PROCEDIMENTO CAUTELAR
INDEFERIMENTO DA DISPENSA DO CONTRADITÓRIO
CONTRADITÓRIO SOBRE O REQUERIMENTO DE OPOSIÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário


I- Em sede de procedimento cautelar comum, a não notificação à requerente da decisão liminar que indeferiu a requerida dispensa de audição das partes contrárias é susceptível de influir no exame ou decisão do procedimento cautelar produzindo a nulidade desta decisão.
II- Actualmente vigora uma concepção ampla do princípio do contraditório, nos termos da qual, além do direito de conhecer a pretensão contra si formulada e do direito de pronúncia prévia à decisão, a ambas as partes, em plena igualdade, é garantido o direito a intervirem ao longo do processo de molde a influenciarem a decisão da causa no plano dos factos, prova e direito.
III- Não se tendo assegurado à requerente o exercício do seu direito ao contraditório quanto ao articulado de oposição e documento junto conheceu-se do mérito do procedimento cautelar sem que estivessem reunidas as condições indispensáveis para tal sendo consequentemente nula esta decisão por excesso de pronúncia.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

X – A. S. & FILHOS, S.A., com sede na Rua …, Vila Nova de Famalicão, intentou o procedimento cautelar comum contra BANCO ..., S.A., com sede na Praça …, Porto, e Y CONSTRUTORES, S.A., com sede na Rua …, Guimarães, pedindo, sem audição das requeridas, que se:

a) Ordene à 1ª requerida que, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na acção principal de que este procedimento cautelar é dependente, não pague à 2ª requerida nenhuma quantia e por conta da seguinte garantia bancária n.º ..........64, emitido pela 1ª requerida no montante de € 7.802,89;
b) Ordene à 2ª requerida que se abstenha de qualquer accionamento ou pedido de pagamento de quaisquer quantias junto do 1º requerido relativas à sobredita garantia bancária;
c) Ordene à 1ª requerida não exigir ou não efectuar o reembolso à requerente.

Alegou, para tanto, ter celebrado com a 2ª requerida um contrato sub-empreitada, que a 1ª requerida, a seu pedido, prestou à 2ª requerida a garantia bancária nº ..........64 que ascendia ao valor de € 7.802,89 destinada a garantir o cumprimento integral e atempado de todas as obrigações pecuniárias que para o ordenante (a requerente) emergem.
Mais alegou que executou todos os trabalhos de reparação indispensáveis para assegurar a perfeição e o uso normal da obra nas condições previstas e executou todos os trabalhos de reparação da sua responsabilidade, quando devidamente comunicados, tendo cumprido as suas obrigações no aludido contrato. A 2ª requerida enviou à requerente uma carta datada de 02/06/2020 solicitando o pagamento de uma factura no prazo máximo de 10 dias, sob pena de não o fazendo ser forçada a executar a garantia bancária que cauciona o contrato em apreço. Este accionamento é abusivo, fraudulento e efectuado de má-fé porquanto a requerente não se responsabilizou pelos trabalhos que não realizou, nem a 2ª requerida demonstrou qualquer desconformidade contratual que justifique o accionamento da garantia. Este accionamento causará um prejuízo sério à requerente que terá que reembolsar o banco se a garantia bancária for executada.

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Foi indeferida a pretensão de ver a providência decretada sem audição prévia das requeridas.
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A 2ª requerida deduziu oposição dizendo não existir prova clara, líquida e inequívoca da fraude ou evidente abuso no accionamento da garantia bancária que, de resto, a requerida tem motivos para accionar.
Termina pugnando pelo indeferimento da providência.
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Procedeu-se a audiência, após a qual foi proferida sentença, cuja parte decisória, na parte que interessa, reproduzimos:

Por tudo o exposto, o Tribunal decide julgar improcedente o presente procedimento cautelar e, em consequência indefiro a providência cautelar requerida pela “X – A. S. & FILHOS, S.A.”.” contra “BANCO ..., S.A.” e “Y CONSTRUTORES, S.A.”.
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Não se conformando com esta sentença veio a Requerente dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“I. No relatório da sentença proferida pelo Tribunal a quo decidiu-se o que se transcreve “(…) Indeferida que foi a pretensão da requerente de ver a providência cautelar decretada sem audição prévia das requeridas, foram estas devidamente citadas. (…)”
II. Tendo a Recorrente requerido a medida cautelar, sem audiência das partes contrárias, a citação apenas deveria ser ordenada após trânsito em julgado do despacho de indeferimento, que, para além de ser fundamentado, careceu de notificação à Recorrente, sendo passível de recurso nos termos gerais.
III. Dúvida não subsiste que se está em face de matéria passível de nulidade, por configurar uma nulidade por omissão de ato.
IV. O articulado de oposição à providência cautelar não foi, porém, notificado “entre mandatários”, nem oficiosamente pela Secretaria (art. 221.º, n.º 1 e 157., n.º 6 º, CPC), à Recorrente.
V. Não foi concedida oportunidade à Recorrente para, de forma efetiva, exercer o contraditório (art. 3.º, n.º 3 do CPC) quanto aos novos factos e meios de prova juntos com tal articulado.
VI. O que deu dado azo à prevalência apenas da tese unilateral e da 2.ª Requerida e inquinado a decisão nela baseada.
VII. A falta de notificação envolve, ipso facto, um atentado ao direito de defesa a que todo a Requerente tem absoluto e insofismável direito.
VIII. Ao não ordenar a notificação, aquando da notificação da data para audiência de julgamento, à Recorrente, dos articulados de oposição e, bem assim dos documentos que a acompanhavam, impediu o Mmº. Juiz de a Recorrente, na prática, exercer o direito ao contraditório que sempre haveria de lhe ser concedido, violando em simultâneo não só as disposições legais como ainda os princípios da cooperação, da igualdade das partes e até o dever de recíproca cooperação (art. 4.º, 6.º, 7.º, n.º 1 e 4 do CPC).
IX. Os poderes de gestão do processo e de direção da audiência (art. 6.º, 150.º e 602.º do CPC), não excluem os de cooperação salutar e de auxílio sério à parte na remoção de obstáculos que se lhe deparem (como no caso) condicionantes do exercício dos seus direitos indeclináveis, sempre em vista da justa composição do litígio ou da justa decisão da causa (art. 7º, nºs 1 e 4, 9.º e 602.º, n.º 1).
X. O princípio do contraditório, visto como direito de influenciar a decisão, é uma garantia de participação efetiva das partes no desenrolar de todo o litígio, mediante a possibilidade de as mesmas influenciarem em todos as dimensões - factos, provas e direito – a decisão, garantindo-se a ambas condições de igualdade.
XI. O objetivo principal do princípio do contraditório passou a ser a influência positiva, construtiva e ativa na decisão, ou seja, passou a ser visto como o direito de intervir - com argumentos quer factuais, incluindo provas dos factos, quer os jurídicos - para provocar uma decisão favorável.
XII. O princípio do contraditório passou a ter um sentido amplo que abarca quer o direito ao conhecimento e pronuncia sobre todos os elementos suscetíveis de influenciar a decisão carreados para o processo pela parte contrária (contraditório clássico ou horizontal) quer o direito de ambas as partes intervirem para influenciarem a decisão da causa, assim se evitando decisões surpresa (contraditório vertical).
XIII. Na jurisprudência constitucional nenhuma prova deve ser aceite na audiência sem que o tribunal assegure uma ampla e efetiva possibilidade do sujeito a quem ela for oposta de se lhe contrapor, isto é, de responder, discutir, contestar e sustentar a valorização que entender merecida.
XIV. A oposição ao procedimento cautelar é uma nova fase processual que implica a notificação da Requerente para, primeiro, deles se inteirar com conhecimento pleno, e, depois, em igualdade e não obstante aquilo que inicialmente tenha alegado e as provas que tenha produzido, discutir e contraprovar (pelo menos ao longo da audiência final), a nova factualidade com vista a (pelo menos) pô-la em dúvida ou a afastá-la e a sustentar a preservação ou mesmo a consolidação da já antes sumariamente julgada provada em contrário e a favor da providência requerida.
XV. Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade de influir ativamente na construção da decisão (Cfr. Acórdão do STJ de 04/05/99, processo n.º 99057, www.dgsi.pt.)
XVI.Tudo isto, terá confluído essencialmente na violação do contraditório, influenciado o exame e decisão da causa, e, assim, gerado a consequente nulidade processual, bem como da sentença, esta, designadamente, nos termos da alínea d), do nº 1, do artº 615.º do CPC.
XVII. Só com a notificação da sentença é que a Recorrente teve conhecimento do indeferimento da pretensão de não audição das Requeridas.
XVIII. A sanção do esquecimento do ato de tamanha valia é a nulidade.
XIX. Esta nulidade tem de ser suscitada pela via recursória e colocada diretamente a este Tribunal da Relação.
XX. Neste entendimento, o Prof. Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, reimpr., pg. 424) ensinava que “A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem atos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão do tribunal, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infração de disposição de lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (…) e não por meio de arguição de nulidade de processo”.
XXI. Também o Prof. Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 183) entendia que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se».”
XXII. Igual entendimento perfilham os Profs. Antunes Varela (in Manual de Processo Civil, 1985, pg. 393) e Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, pg. 134). O primeiro, refere que “se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”. O segundo, diz que “tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso (…)”.
XXIII. O Acórdão da Relação, de 08-10-2018, em cujo sumário se lê: “A omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar “decisões-surpresa”, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º/1 d) CPC.”.
XXIV. A sentença tem de resolver todas as questões suscitadas pelas partes, seja como fundamento do pedido formulado pela Recorrente, seja como fundamento de impugnação ou das exceções deduzidas pelo réu e ainda questões de forma e questões de fundo.
XXV. O direito de acesso aos tribunais pressupõe a atribuição a todos os sujeitos de direito dos meios processuais próprios que lhes permitam alcançar a tutela de toda e qualquer situação juridicamente relevante.
XXVI. A garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais envolve ainda a sujeição do processo, uma vez iniciado, ao princípio do contraditório e da igualdade de armas (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP).
XXVII. O princípio da igualdade de armas, fundado no princípio da igualdade (artigo 13º da CRP) e no processo equitativo, e que se relaciona estreitamente com o princípio do contraditório (art. 3.º e 4.º CPC) – enquanto direito de ser ouvido e de influenciar a decisão final, com controle da admissibilidade e da produção de prova da parte contrária - exige a igualdade de tratamento das partes na distribuição de meios e deveres processuais, que assegure uma igual e efetiva possibilidade de sucesso na lide, o que implica uma igual oportunidade de exposição de razões e argumentos.
XXVIII. Ao sistema processual civil português repugnam, por imposição constitucional, todas as decisões judiciais tomadas à revelia de um dos interessados.
XXIX. O princípio do contraditório é concretizado, quer pelo direito à audição prévia da parte contra a qual foi requerida a providência judicial, quer pelo direito de resposta em relação a um determinado ato processual praticado pela contraparte ou pelo tribunal.
XXX. O dever de fundamentação da sentença abrange realidades distintas (mas conexas) que incluem a fixação dos factos provados e não provados, a respetiva fundamentação de direito, mas também a explicitação das razões pelas quais o julgador considerou provado determinado facto.
XXXI. Ou seja, inclui a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador sobre a prova.
XXXII. Da leitura atenta à sentença não resulta essa especificação dos fundamentos decisivos para a tomada de decisão.
XXXIII. De acordo com o disposto no art. 607.º, n.º 4 do CPC na fundamentação da sentença o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal a quo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.
XXXIV. O cumprimento do dever de fundamentação/motivação da sentença contribui «…para a sua eficácia, pela via da persuasão dos respectivos destinatários e da comunidade jurídica em geral, (ii) consinta às partes e aos tribunais de recurso, fazer reexame do processo lógico ou racional subjacente à decisão, e (iii) constitua um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere), nessa medida se configurando como garantia do respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões (Ac. do TRE n.º 368/12.6GBLLE.E1 de 13-05-2014 (Relator: ANTÓNIO CLEMENTE LIMA)
XXXV. A fundamentação deve revelar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo juiz ao decidir como decidiu sobre todos os pontos da matéria de facto.
XXXVI. Nos casos em que os elementos probatórios tenham um valor objetivo (como sucede, na maior parte dos casos, com a prova documental) a revelação das razões por que se decidiu dar como provados determinados factos poderá ser atingida com a mera indicação dos respetivos meios de prova, sem prejuízo da necessidade de fazer uma apreciação crítica, quando for questionável o valor probatório de algum ou alguns documentos ou existirem documentos que apontam em sentidos contraditórios.
XXXVII. Tratando-se de meios de prova suscetíveis de avaliação subjetiva (como sucede com a prova testemunhal) será indispensável, para atingir tal objetivo de revelação das razões da decisão, que seja efetuada uma apreciação crítica da prova, traduzida na indicação das razões por que se deu ou não valor probatório a determinados elementos de prova ou se deu preferência probatória a determinados elementos em prejuízo de outros, relativamente a cada um dos factos relativamente aos quais essa apreciação seja necessária»
XXXVIII. Procedendo ao exame crítico da prova, o juiz deve indicar os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado (Miguel Teixeira de Sousa in, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 348).
XXXIX. E no caso de haver elementos probatórios divergentes, deve explicar (fundamentar) as razões porque deu prevalência a uns sobre os outros,
XL. No caso presente, não foram considerados os documentos n.º 6, 12,13, 14, 15 e 16.
XLI. A matéria de facto provada tem de ser alterada, alterada a fundamentação e a decisão e, por fim e em consequência, a providência cautelar seja julgada procedente.
XLII. Há uma contradição evidente entre os factos provados e factos não provados, o que denota a fragilidade da tomada de decisão.
XLIII. Entre o ponto 9. Dos factos provados da fundamentação de facto diz-se que:” A requerente respondeu, conforme emails constantes dos documentos n.º 10 e 11 juntos com a petição inicial e cujo teor se dão por integralmente por reproduzidos, que de facto nenhuma solicitação foi feita à requerente para que procedesse à desmontagem e posterior montagem de alguma misturadora existente na obra.” e o ponto A. Dos factos não provados que se transcreve: “ No decurso do prazo de garantia da obra, a requerente executou todos os trabalhos de reparação indispensáveis para assegurar a perfeição e o uso normal da obra nas condições previstas, e executou todos os trabalhos de reparação da sua responsabilidade, quando devidamente comunicados.”
XLIV. A prova documental e testemunhal produzidas nos autos deveria ter levado o Tribunal a quo a julgar como provados os factos constantes nos artigos 4.º, 15.º, 23.º, 24.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 32.º, 33.º e 34.º, 62.º, 63.º, 65.º e 66.º do requerimento inicial da aqui Recorrente.
XLV. O facto no artigo n.º 15 do requerimento inicial pugna a Recorrente que deveria ter sido dado como provado, fundado tal pretensão na prova documental n.º 6, pelo que merece ser levado aos factos provados.
XLVI. Os factos nos artigos n.º 32 e 33 do requerimento inicial pugna a Recorrente que deveria ter sido dado como provado, fundado tal pretensão na prova documental n.º 12 e 13 e prova testemunhal (R. S.).
XLVII. O facto no artigo 34.º do requerimento inicial pugna a Recorrente que deveria ter sido dado como provado, fundado tal pretensão na prova documental nos documentos 14, 15 e 16.
XLVIII. Os factos nos artigos 62.º, 63.º, 65.º e 66.º do requerimento inicial pugna a Recorrente que deveria ter sido dado como provado, fundado tal pretensão na prova testemunhal (J. P.).
XLIX. A matéria de facto provada deverá ser alterada, passando a integral também a factualidade seguinte:
i) No decurso do prazo de garantia da obra, a requerente executou todos os trabalhos de reparação indispensáveis para assegurar a perfeição e o uso normal da obra nas condições previstas, e executou todos os trabalhos de reparação da sua responsabilidade, quando devidamente comunicados.
ii) A requerente tem cumprido as suas obrigações no aludido contrato.
iii) A requerente efectuou a montagem de algumas misturadoras sem os espelhos colocados, em vários blocos e pisos, devido à má coordenação dos trabalhos pela 2.ª requerida.
iv) Devido à crise económica que se faz sentir no país, em particular no sector da construção civil, a requerente não dispõe de liquidez que lhe permita honrar compromissos.
v) Em virtude do não acionamento da garantia bancária/ pagamento da garantia bancária à requerente reduz os custos associados à manutenção do contrato celebrado com as entidades bancárias com vista à prestação de garantias bancárias, bem como juros e comissões que o mesmo envolve.
vi) Com reflexo na dificuldade de aquisição de matérias-primas e cumprimento de responsabilidades com fornecedores e colaboradores, sendo que o incumprimento com fornecedores irá originar um impacto negativo na atividade da requerente, designadamente por força da exposição a ações judiciais.
vii) Para além de que a execução da garantia bancária irá afetar o prestígio e o bom nome da requerente.
L. Da conjugação de elementos de prova resulta indicadores seguros sobre a verificação de tal factualidade, que imponham decisão diversa da tomada em primeira instância.
LI. A prova produzida inclui apreciação de prova testemunhal e documental não analisada criticamente, pelo que todos os factos terão de ser reapreciados à luz dos diversos contributos de cada meio de prova para a fixação do acervo probatório.
LI. A decisão dos autos igualmente revela que a mesma não foi, em absoluto, ponderada, e porque não efetua a compatibilização de toda a matéria de facto (abstendo-se em absoluto de, sequer, conhecer uma parte importante dela), acaba por não especificar (todos) os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
LII. Por esta ordem de razões, poderá impor-se a devolução do processo ao tribunal de 1.ª instância a fim de aí ser proferida nova decisão tendo o julgador oportunidade de corrigir os eventuais erros que detete.
LIII. Na sentença recorrida, entendeu o Mmo. Juiz do Tribunal a quo que “(…) perante os factos dados como provados, e especialmente aqueles que foram dados como não provados, é de concluir que não logrou a requerente provar qualquer situação susceptível de integrar uma situação excepcional nos termos descritos, de molde a justificar a recusa do pagamento da garantia, isto é, que a execução da garantia represente a violação flagrante e inequívoca das regras da boa fé, que se integre numa atuação manifestamente fraudulenta ou importe a violação de interesses de ordem pública.(…)”
LIV. A Sentença recorrida não indica quais sejam os factos provados e não provados que resultem claramente qual o entendimento do Tribunal do que seja uma situação excecional, de molde a justificar a recusa do pagamento da garantia.
LV. Pode a Requerente recorrer a todos os meios probatórios previstos na lei para demonstrar, por um lado, os pressupostos de atribuição da providência cautelar requerida, ou seja, a probabilidade séria da existência do seu direito (fumus boni iuris), o fundado receio de uma lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora), a adequação da providência requerida ao fim pretendido, a proporcionalidade existente entre o prejuízo resultante da concessão da providência e o dano que com ela se pretende evitar e, por outro lado, a existência de um abuso no acionamento das garantias.
LVI. Para a Recorrente a decisão do Tribunal não carreou para os autos prova documental bastante sobre a inexistência de incumprimento contratual por banda da Requerente/ Recorrente – cfr. docs. 4, 5, 6, 10,11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 do requerimento inicial- como (ii) tal prova pode e deve, se for o caso, ser complementada através dos outros documentos que deveriam ter sido acrescentados para a prova dos factos e que não o foram.
LVII. Não será lícito que recaia sobre o Requerente de uma providência cautelar o ónus de junção, ao Requerimento Inicial, de prova documental inequívoca que ateste o não incumprimento das obrigações por si assumidas, pois isso constituiria um ónus diabólico que não está no espírito da lei (art. 362.º e segs do CPC, art. 1.º, 13.º, 20, n.º 1 e 4 e 204.º da CRP).
LVIII. A documentação junta aos autos é idónea na prova bastante da probabilidade séria da existência do direito i.e., do direito à inviolabilidade do património da Recorrente por comportamentos ilícitos.
LVIX. Tem sido unanimemente aceite, quer pela doutrina, que pela jurisprudência que o devedor, mandante da garantia bancária autónoma, recorra a uma medida cautelar para impedir o beneficiário de receber a quantia objeto da garantia, obstando a um aproveitamento abusivo e fraudulento da posição desse beneficiário, desde que estejam verificados os requisitos gerais do procedimento cautelar em causa, como também o requisito adicional: ser efetuada prova pronta e líquida da fraude ou do evidente abuso – v. a título meramente exemplificativo, MÓNICA JARDIM, ob. cit, 327-337, JORGE DUARTE PINHEIRO, Garantia Bancária Autónoma, ROA, ano 52º, Vol. II (Jul1992), 459 e ss, Ac. TRP de 28-04- 2011 (Pº 171/11.0TVPRT.P1) e Ac. TRL de 16.06.2011 (Pº 2304/10.5TVLSB-A.L1-2), relatado pela ora relatora.
XL. A doutrina e a jurisprudência admitem, como exigência indispensável, que o requerente do procedimento cautelar efetue prova pronta e líquida da fraude ou abuso evidente do beneficiário da garantia, mas não é, contudo, unívoca a questão de saber o que se pode entender por “meios de prova líquidos”.
XLI. Alguns defendem ser admissível qualquer meio legal de prova, mormente a prova pericial, prova testemunhal e da possibilidade de valoração dos depoimentos das partes e outros, entendem que líquida é exclusivamente a prova documental, de segura e imediata interpretação, i.e., provas pré–constituídas – (cfr. sobre os diversos entendimentos acerca do sentido a atribuir à expressão prova ponta e líquida, MÓNICA JARDIM, ob. cit, 292-294.).
LXII. Para que seja deferida uma providência cautelar não especificada, é necessário que se verifiquem os seguintes pressupostos cumulativos: a) a séria probabilidade da existência do direito invocado e tido por ameaçado, que tanto pode ser um direito já existente na esfera jurídica do requerente ou que venha a emergir de decisão a proferir em ação constitutiva já proposta ou a propor; b) o fundado receio de que outrem (o requerido), antes de proferida a decisão de mérito, ou porque a ação não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a esse direito (periculum in mora); c) que a providência requerida seja adequada a remover esse periculum in mora; e d) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ele se quis evitar.
LXIII. Quanto ao primeiro dos enunciados pressupostos legais, a natureza urgente das providências cautelares, associada ao periculum in mora na tutela de um direito ameaçado, não é compatível com uma atividade probatória tendencialmente aprofundada por parte do juiz sobre a existência desse direito, pelo que naturalmente não se pode exigir ao requerente de um procedimento cautelar, que com vista ao yuhm decretamento dessa medida faça prova da existência do direito subjectivo que invoca ser titular e estar em perigo.
LXIV. Ou seja, (art. 368º, n.º 1), o que se exige “uma prova da realidade jurídica, mas apenas manifestações externas” sobre a existência do direito; “não se requer um direito certo, mas um direito aparente; um fumus boni iuris”, em que o decretamento da medida cautelar não fica “dependente da prova exaustiva quanto à existência do direito subjectivo por ele alegado no processo principal – até porque a existência do direito constitui o objeto dessa ação.
LXV. A doutrina entente que a atividade judicial tendente à verificação do fumus boni iuris exige, por isso, a formulação de um juízo de probabilidade séria, de mera aparência ou mera justificação quanto à verdade dos factos alegados na petição inicial e à existência do direito invocado pelo requerente da providência, bem como quanto à probabilidade de o mesmo vir a ser reconhecido na ação principal de que a providência cautelar, em regra, depende” - Marco Carvalho Gonçalves, “Providências Cautelares”, 2016, 2ª ed., Almedina, págs. 183 e 188 a 189.
LXVI. Também para Abrantes Geraldes, “para o decretamento das providências basta que sumariamente (“summaria cognitio”) se conclua pela séria probabilidade da existência do direito invocado (aparência do direito) e pelo justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio causa prejuízo irreparável ou de difícil reparação (perigo de insatisfação desse direito)”, acrescentando que “a aparência do direito supõe a existência de um certo juízo positivo por parte do juiz de que o resultado do processo principal será provavelmente favorável ao autor, o que, porém, não deve conduzir ao resultado indesejável de só ser adotada uma medida cautelar quando o juiz adquira a convicção absoluta de que a pretensão do autor irá proceder”.
LXVII. O risco de decisões injustas em prejuízo do requerente ou do requerido foi coberto pelo legislador através da concessão ao juiz do verdadeiro fiel da balança, devendo formar o seu juízo, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, depois de produzida a prova apresentada pelas partes e de se esgotar o dever de inquisitoriedade perante a situação de facto submetida à sua apreciação”, advertindo que “a atuação do juiz no âmbito dos procedimentos cautelares é daqueles que mais reclama a interferência dos fatores de ponderação, do bom senso, enfim, da justa medida que permita estabelecer o maior equilíbrio dos interesses conflituantes, sem graves riscos de prejuízos para o requerido, mas igualmente sem excessivos receios de proferir uma decisão total ou parcialmente favorável ao requerente” (…) devendo “o juiz evitar que a decisão, qualquer que ela seja, agrave o litígio entre as partes, que tanto pode emergir da concessão ao requerente de uma providência materialmente injustificada, como, pelo contrário, da demissão do juiz de administração da justiça, denegando, sem razão a pretensão” – Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. III – 5- Procedimento Cautelar Comum, Almedina, 1998, págs.209 e 210.
LXVIII. O critério de ponderação do periculum in mora pressupõe um juízo qualificado ou um temor racional” que assente “em factos concretos e consistentes que permitam afirmar, com objetividade e distanciamento, a seriedade e a atualidade da ameaça, bem como a necessidade de serem adotadas medidas urgentes, que permitam evitar o prejuízo, que foi concretizado com a ameaça efetuada na carta do dia 02/06/2020.
LXIX. Assim se verificam os pressupostos para o decretamento da providência cautelar.
LXX. Poderá impor-se, pelo exposto, a revogação da sentença e a sua substituição por decisão que determine o deferimento da providência cautelar.

Pugna pela revogação da sentença e substituição por decisão que determine o deferimento da providência cautelar.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

A) Apurar se se verificam os apontados vícios da decisão liminar - falta de fundamentação, a não notificação da mesma e a citação ter sido feita sem que tal decisão tivesse transitado em julgado – e, na afirmativa, as eventuais consequências;
B) Apreciar a suscitada nulidade da sentença por excesso de pronúncia com fundamento na não notificação ao requerente da oposição;
C) Na negativa quanto às questões suscitadas em A) e B), reapreciar a matéria de facto dada como indiciariamente provada;
D) E, por fim, verificar se ocorre erro na subsunção jurídica.
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II – Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos:

1. A requerente exerce a actividade de instalação – Comércio por grosso de ferragens, ferramentas manuais e artigos para canalizações - Arrendamento de bens imobiliários – Construção de edifícios (residenciais e não residenciais) e, nesse exercício, celebrou com a 2ª requerida, Y Construtores, S.A., um contrato de subempreitada, segundo o qual a requerente obrigava-se a realizar na empreitada geral designada por “COND HABITACIONAL K” os trabalhos da subempreitada de “SUB-REDES HIDRAÚLICAS”.
2. No âmbito do contrato de subempreitada a 1ª requerida, o BANCO ..., S.A. prestou à 2ª requerida, Y Construtores, S.A., a pedido da requerente, com data de Junho de 2019, uma garantia bancária, no montante máximo de € 7.802,89 (sete mil, oitocentos e dois euros e oitenta e nove cêntimos) a garantia bancária nº ..........64.
3. A garantia bancária destinava-se a garantir o cumprimento integral e atempado de todas as obrigações pecuniárias que para o ordenante (a requerente) emergem.
4. A 2ª requerida remeteu à requerente, uma carta, datada de 02/06/2020, nos termos do doc. n.º 3 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente por reproduzido, donde consta, nomeadamente: “(…) solicitamos a V/Exas o pagamento da mesma (factura n.º 210000033, datada de 29/05/2020) no prazo máximo de 10 dias contar da recepção do presente oficio sob pena de, não fazendo, sermos forçados a executar a garantia bancária que cauciona o contrato de subempreitada em apreço por tal montante”.
5. Em consequência do pagamento da garantia bancária a requerente terá que pagar essa verba à 1ª requerida.
6. Por carta datada de 24/01/2020, enviada pela 2ª requerida, a requerente teve conhecimento da existência de uma infiltração existente na fracção R do Bloco 1, cfr. doc. n.º 4 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, informando que “Dado que não obtivemos qualquer resposta acerca do assunto anteriormente referido -em anexo , e uma vez que não podemos continuar com os apartamentos danificados (fotos enviadas), iremos proceder às reparações (incluindo a correta ligação da misturadora) sendo posteriormente apresentados os custos das mesmas.”.
7. Em 10/02/2020 a requerente recebe outra carta, cfr. doc. nº 5 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente por reproduzido, com um orçamento no valor de € 10.221,75 (dez mil, duzentos e vinte e um euros e setenta e cinco cêntimos).
8. Em 12/03/2020 a requerente recebe o e-mail cfr doc. nº 10 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido, a informar que a montagem dos equipamentos sanitários, assim como as respectivas torneiras, misturadoras e acessórios de IS são da responsabilidade da X e sempre que necessário desmontar alguma misturadora de encastrar durante o decorrer e até à conclusão da obra, foi sempre solicitado ao instalador que procedesse à sua desmontagem e posterior montagem, por ser a entidade habilitada para o efeito.
9. A requerente respondeu, cfr e-mails constantes dos doc. nº 10 e 11 juntos com a petição inicial e cujo teor se dão por integralmente por reproduzidos, que, de facto, nenhuma solicitação foi feita à requerente para que procedesse à desmontagem e posterior montagem de alguma misturadora existente na obra.
10. Por carta recebida em 14/04/2020, cfr. doc. nº 17 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a 2ª requerida, para além do mais, alega que comunicou à requerente a existência de patologias e identificou a origem das mesmas: incorrecta ligação da torneira do lavatório.
11. A requerente respondeu, cfr. doc. nº 18, 19 e 20 juntos com a petição inicial e cujo teor se dão por integralmente reproduzidos, em que alega que não há qualquer comunicação da existência de patologias, além de que se limitam a alegar, sem juntar qualquer tipo de elemento de prova e, em que a respectiva prova, nos termos do art. 342º, nº 1 do Código Civil cabe à 2ª requerida.
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Não se provou:

A. No decurso do prazo de garantia da obra, a requerente executou todos os trabalhos de reparação indispensáveis para assegurar a perfeição e o uso normal da obra nas condições previstas, e executou todos os trabalhos de reparação da sua responsabilidade, quando devidamente comunicados.
B. A requerente tem cumprido as suas obrigações no aludido contrato.
C. Por ocasião do recebimento da carta referida em 7, uma equipa da requerente, acompanhada por elementos da 2ª requerida esteve no local de intervenção, verificaram in loco o que se estava a passar e verificaram vestígios/estilhaços de espelhos partidos nas misturadoras, que alguns espelhos haviam sido substituídos, não pela requerente, que havia alguns espelhos partidos onde as misturadoras estavam previamente montadas, desconhecendo-se o motivo de estarem partidos, e que as “bichas” estavam mal apertadas e não haviam sido verificados os vedantes.
D. A requerente efectuou a montagem de algumas misturadoras sem os espelhos colocados, em vários blocos e pisos, devido à má coordenação dos trabalhos pela 2.ª requerida.
E. Pela experiência técnica da requerente, para serem colocados os espelhos nos locais em falta tiveram que desmontar e voltar a montar as misturadoras, convenientemente.
F. A 2ª requerida confirmou junto da requerente que uma sua equipa de manutenção havia feito esse trabalho.
G. Em 03/03/2020 realizou-se uma reunião a fim de se discutir o assunto e daí resultou que, a 2ª requerida reconheceu que havia estilhaços de espelhos nas misturadoras.
H. A entrega formal da obra ocorreu no dia 20/12/2018.
I. Devido à crise económica que se faz sentir no nosso país, em particular no sector da construção civil, a requerente não dispõe de liquidez que lhe permita honrar compromissos.
J. Em virtude do não accionamento da garantia bancária/pagamento da garantia bancária a requerente reduz os custos associados à manutenção do contrato celebrado com as entidades bancárias com vista à prestação de garantias bancárias, bem como juros e comissões que o mesmo envolve.
K. Desse incumprimento será notificado o Banco de Portugal, que depois o difundirá por todas as instituições financeiras.
L. Com reflexo na dificuldade de aquisição de matérias-primas e cumprimento de responsabilidades com fornecedores e colaboradores, sendo que o incumprimento com fornecedores irá originar um impacto negativo na actividade da requerente, designadamente por força da exposição a acções judiciais.
M. Para além de que a execução da garantia bancária irá afectar o prestígio e o bom nome da requerente.
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Da nulidade da sentença

O tribunal recorrido proferiu, em 09/06/2020, despacho liminar nos termos do qual indeferiu a requerida dispensa de citação das requeridas e ordenou a citação destas, o que foi feito de imediato.
A recorrente, no que concerne a este despacho, aponta vários vícios, a saber, a falta de fundamentação desta decisão, a não notificação da mesma e o facto da citação ter sido feita imediatamente sem que tivesse transitado em julgado tal decisão, defendendo a nulidade da sentença.
Antes de mais, nos termos do art. 644º, nº 1, 2 e 3 a contrario do C.P.C. (diploma a que pertencerão as disposições a citar sem menção de origem), a impugnação deste despacho liminar deve ser feita no recurso da sentença como, aliás, fez a ora recorrente.
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Sendo certo que as decisões devem ser fundamentadas (art. 205º nº 1 da C.R.P. e 154º), que não pode confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre e que apenas a primeira constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 615º, verificamos que, na decisão em causa, foi justificado a razão do indeferimento da dispensa de audição das requeridas. Assim, não ocorrendo falta absoluta de fundamentação, não se mostra verificada a apontada nulidade da decisão liminar.
Questão distinta é saber se tal fundamentação é insuficiente ou errada, o que consubstancia eventual erro de julgamento.
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A omissão de notificação do despacho liminar, que se impugna nos termos do art. 219º nº 2, 220º n 1, 247º, é susceptível de influir no exame ou decisão do procedimento cautelar pelo que produz a nulidade desta (art. 195º nº 1 a contrario). Com efeito, não é indiferente para o desfecho de um procedimento cautelar a audiência ou não da parte contrária.
Acresce que o desconhecimento desse despacho não permite à requerente impugná-lo no recurso da decisão final.
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O facto de se ter procedido à citação sem esperar pelo trânsito afigura-se-nos inócuo na medida em que a decisão liminar não é passível de apelação autónoma.
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Refere a apelante que a oposição apresentada pela segunda requerida não lhe foi notificada pelo que não pôde defender-se exercendo o contraditório quanto à matéria aí alegada e documento junto e consequentemente pugna pela nulidade da sentença por excesso de pronúncia nos termos do art. 615º nº 1 d) do C.P.C..
Vejamos.
O princípio do contraditório, decorrente do princípio da igualdade das partes, é um princípio estruturante e basilar no processo civil.
Na verdade, “O processo civil reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars) (…). Esta estruturação dialéctica ou polémica do processo tira partido do contraste dos interesses dos pleiteantes, ou até só do contraste de opiniões (…) para o esclarecimento da verdade. (…) Espera-se que, também para os efeitos do processo, da discussão nasça a luz (…). – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimp., 1993, Coimbra Ed., p. 379.
Antes do Dec.-Lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro havia uma concepção restrita deste princípio, nos termos da qual o mesmo se desdobrava em dois, a saber, o direito de conhecimento de pretensão contra si formulada e o direito de pronúncia prévia à decisão, que estão actualmente previstos no art. 3º nº 1 segunda parte e nº 2.
Com o referido Dec.-Lei nº 329-A/95 foram introduzidos os nº 3 e 4 do art. 3º, os quais foram aperfeiçoados pelo Dec.-Lei nº 120/96 de 25 de Setembro e mantidos na Revisão do C.P.C. de 2013, que prevêem o direito de ambas as partes intervirem para influenciar a decisão da causa evitando decisões-surpresa. Encontramo-nos perante uma concepção ampla do referido princípio.
Assim, “Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.” – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol 1º, 4ª ed., Almedina, p. 29.
Esta concepção inscreve-se numa visão do processo civil em que este passa a ser visto como uma comunicação entre as partes e o tribunal e em que o julgador passa a estar empenhado na justa composição do litígio, para o que é essencial a colaboração e lealdade das partes. Privilegia-se a bondade da decisão de mérito em detrimento da de forma.
No que concerne ao direito de influenciar a decisão no plano do direito refere José Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, 3º ed., Coimbra ed., p. 133:
“No plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.
Tratando-se de um fundamento de direito na disponibilidade exclusiva das partes, a possibilidade de discussão resulta naturalmente da sua invocação (necessária) pelo interessado e do direito de resposta da parte contrária. Mas a proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (art. 3-3).
Não basta, pois, para que esta vertente do princípio do contraditório seja assegurada, que às partes, em igualdade, seja dada a possibilidade de, antes da decisão, alegarem de direito (art. 604-3 e), em 1ª instância; art. 639, em instância de recurso).”
O cumprimento do contraditório no plano do direito não limita a liberdade do juiz em qualificar juridicamente os factos (art. 5º, nº 3), apenas impõe que, num momento prévio, faculte às partes a apresentação de argumentos que considerem pertinentes perante uma determinada e possível qualificação jurídica do pleito. Em sede de direito adjectivo, antes de conhecer de excepção dilatória de conhecimento oficioso que as partes não previram, deve ouvir as partes.
Apenas não há que exercer o contraditório em caso de “manifesta desnecessidade” a apurar em concreto. Um exemplo de manifesta desnecessidade será, como refere Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, p. 134, convidar a parte a pronunciar-se acerca de determinada questão que foi suscitada no último articulado admissível e a mesma for resolvida a seu favor.
Revertendo ao caso em apreço compulsados os autos verificamos que, com efeito, a oposição não foi notificada à requerente, nem pela secretaria (219º nº 2, 220º nº 2), nem oficiosamente pelo mandatário (art. 221º).
Os art. 367º e 368º não prevêem um terceiro articulado de resposta à oposição, contudo, quanto às eventuais excepções deduzidas e documentos juntos, pode a requerente responder no início da audiência final nos termos do art. 3º, nº 3 e 4, 427º e 547º. Mas, da acta da audiência e da gravação da mesma não resulta que no início da mesma a oposição tenha sido notificada e que tenha sido dada (ou pedida) a palavra à mandatária da requerente para se pronunciar acerca da mesma.
Assim sendo, encontramo-nos perante uma nulidade secundária prevista no art. 195º nº 1 porquanto aquela omissão pode influir no exame e decisão do presente procedimento atentas as considerações supra referidas.
Verificamos que, na audiência final, esteve presente o mandatário subscritor de tal oposição; o legal representante da segunda requerida foi ouvido em declarações de parte, tal como havia sido requerido naquele articulado, e aquele advogado prescindiu, após a inquirição das testemunhas arroladas pela requerente, das três testemunhas por si arroladas. Assim, a mandatária da requerente necessariamente se apercebeu da existência de uma oposição, mas nada disse ou requereu.
Coloca-se a questão de saber se esta nulidade devia ter sido arguida no tribunal recorrido e até ao fim da audiência final como dispõe o art. 199º nº 1 ou se podia ser suscitada em recurso e colocada a este Tribunal, como o foi.
A doutrina e jurisprudência pacífica defendem que, quando a infracção processual está coberta por decisão judicial subsequente, é de impugnar esta através de recurso.
Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 1984, Reimpr., p 424 ensinava: “A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão do tribunal, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição de lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (…) e não por meio de arguição de nulidade de processo”.
No que concerne às situações que se podem configurar no contexto das nulidades refere Miguel Teixeira de Sousa, in Blog do IPPC, 28/01/2019 Jurisprudência 2018 (163) disponível em https://blogippc.blogspot.com/2019/01/jurisprudencia-2018-163.html:
“Efectivamente, são possíveis três situações bastante distintas:
-- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
-- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
-- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso (…) o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso. (…)
No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões.
(…) Se, apesar da omissão indevida de um acto, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do acto omitido (ou, pela positiva, conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do acto), essa decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC) (…).
O objecto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida -- hipótese em que o recurso é procedente -- ou não há vícios da decisão impugnada -- situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam actos obrigatórios ou que impõem a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do acto.
É, aliás, porque o objecto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objecto que se deve entender que uma decisão-surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula -- isto é, padece de um vício que se integra no objecto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer -- ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual -- situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objecto do recurso.”
Pelo exposto, também com este fundamento, é de declarar nula a decisão recorrida.
Assim, fica prejudicada a apreciação das demais questões recursivas.
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Atento o circunstancialismo em causa este Tribunal não pode substituir-se ao tribunal recorrido nos termos do art. 665º do C.P.C. pelo que há que determinar que os autos baixem à 1ª instância para notificação à recorrente do despacho liminar e da oposição, concedendo quanto a esta a oportunidade de se pronunciar prosseguindo depois os autos a tramitação processual subsequente.
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As custas da apelação são da responsabilidade da recorrida segunda requerida (art. 527º do C.P.C.).
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – Em sede de procedimento cautelar comum, a não notificação à requerente da decisão liminar que indeferiu a requerida dispensa de audição das partes contrárias é susceptível de influir no exame ou decisão do procedimento cautelar produzindo a nulidade desta decisão.
II – Actualmente vigora uma concepção ampla do princípio do contraditório, nos termos da qual, além do direito de conhecer a pretensão contra si formulada e do direito de pronúncia prévia à decisão, a ambas as partes, em plena igualdade, é garantido o direito a intervirem ao longo do processo de molde a influenciarem a decisão da causa no plano dos factos, prova e direito.
III - Não se tendo assegurado à requerente o exercício do seu direito ao contraditório quanto ao articulado de oposição e documento junto conheceu-se do mérito do procedimento cautelar sem que estivessem reunidas as condições indispensáveis para tal sendo consequentemente nula esta decisão por excesso de pronúncia.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, declaram nula a decisão recorrida, determinam a baixa dos autos à 1ª instância para cumprimento do princípio do contraditório em relação ao despacho liminar e à oposição prosseguindo depois os autos a tramitação processual subsequente.
Custas pela apelada segunda requerida.
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Guimarães, 12/11/2020

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade