REIVINDICAÇÃO
VIOLAÇÃO DE DIREITO REAL
PRÉDIO URBANO
PARTES HABITACIONAIS SEPARADAS
AUTONOMIZAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
GRAVIDADE DO DANO
OBRIGAÇÃO DE ENTREGA
Sumário


I- Como actualmente a sentença contém tanto a decisão sobre as questões de direito como a decisão sobre a matéria de facto, podem emergir da decisão da matéria de facto vícios semelhantes aos referidos no artigo 615º, nº 1, als. c) e d), do CPC.
II- Porém, o regime e respectivas consequências não são coincidentes, uma vez que a invocação dos vícios da decisão sobre a matéria de facto é feita nos termos do artigo 640º do CPC, não decorrendo necessariamente do reconhecimento dos mesmos a anulação da decisão. Isto porque em regra a Relação, no âmbito do recurso, substitui-se ao tribunal recorrido e nas restantes situações rege o disposto no artigo 662º, nºs 2 e 3, do CPC.
III- Se duas partes habitacionais são adjacentes, tendo uma delas sido separada da outra por obras entretanto realizadas pelos réus, que ocuparam para habitação uma dessas partes por tolerância dos herdeiros no âmbito de um inventário, partilham estruturas, fundações, paredes-mestras e pátio com acesso único por porta carral, eram anteriormente susceptíveis de serem percorridas através de ligações e aberturas internas, e sempre foram utilizadas como uma única casa, é legítimo concluir que se trata de um único prédio.
IV- A mera existência de conflitos entre as partes, sem que se demonstrem actos reveladores da gravidade dos mesmos, é insuficiente para considerar que gera o dever de indemnizar por danos patrimoniais e não patrimoniais.
V- A obrigação de entrega de parte de um prédio pelo devedor pode ser realizada também por terceiros, em sua substituição, e é possível a utilização do processo executivo para entrega de coisa certa, pelo que não há fundamento legal para a fixação de sanção pecuniária compulsória por atraso na restituição.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães(1):

I – RELATÓRIO

1.1. A Herança de R. P., representada pelo cabeça-de-casal D. S., intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra M. P. e marido, A. P., pedindo que os Réus sejam condenados:

«A) Na entrega à Autora da casa de habitação inscrita na matriz urbana da freguesia de ..., como artigo ..., do concelho de ..., livre e devoluta de pessoas e bens;
B) No pagamento à Autora do valor de € 7.000 (sete mil euros), a título de ressarcimento pelo dano não patrimonial, e € 2.000 (dois mil euros), a título de ressarcimento pelo dano patrimonial, valores acrescidos dos respectivos juros a contar da citação e até efectivo e integral pagamento;
C) Reconhecer a Autora como única e exclusiva proprietária do imóvel;
D) No pagamento de sanção pecuniária compulsória de € 100 (cem euros) por cada dia de atraso na entrega da habitação».

Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que a autora da herança deixou como únicos e universais herdeiros o viúvo, cabeça-de-casal, D. S., e os filhos D. R. e M. M.. Acrescentou que a autora da herança era dona e legítima possuidora do prédio identificado na p.i. (composto de casa de habitação com a superfície coberta de 241,28 m2, e de quintal com 277,20 m2 de área, a confrontar de norte e nascente com caminho, sul e poente com proprietário), que adquiriu por sucessão e doação, além de ter exercido sobre o mesmo prédio todos os actos de posse, como proprietária, assim como o fizeram os seus ante possuidores.
Mais alegou que os Réus ocuparam a habitação no decurso do inventário que correu termos por morte de L. P. e D. A., autorizados pelo então cabeça-de-casal, pai do Réu marido, facto que nunca foi aceite pelos demais herdeiros, sendo que o imóvel não acabou adjudicado ao pai do Réu marido.
Por fim, alegaram existir vários episódios de insultos e ameaças, retirada de bens dos herdeiros dos locais onde os armazenam, computando danos não patrimoniais e patrimoniais.

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Os Réus contestaram por excepção, invocando a ilegitimidade activa por a acção não ter sido intentada por todos os herdeiros, impugnaram os factos alegados e deduziram reconvenção, na qual peticionam:

A) – Serem os Reconvintes declarados donos e legítimos proprietários da casa de habitação, com a superfície coberta de cerca de 114 metros quadrados, adega contígua com cerca de 36 metros quadrados, e logradouro exterior, com cerca de cem metros quadrados, sendo a casa de habitação com altos e baixos, com duas divisões ou cortes na parte inferior, e na parte superior com cozinha, sala de jantar, três quartos, uma casa de banho e, ao fundo, a sul, mais dois compartimentos, sita em ..., freguesia de ..., concelho de ..., a qual confronta a norte com caminho, a nascente com R. P., a sul e a poente com A. G.,
B) – Serem os Reconvintes declarados donos e legítimos comproprietários, na proporção de metade indivisa, do quinteiro ou pátio interior comum, com cerca de cinquenta metros quadrados, que confronta a norte com caminho, a nascente e sul com R. P. e poente com A. P., sito em ..., freguesia de ..., concelho de ...».
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Em réplica, a Autora respondeu à excepção de ilegitimidade e defendeu-se por impugnação relativamente à reconvenção.
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1.2. Foi admitida a intervenção principal provocada de D. R. e M. M..

Posteriormente, na sequência da dedução do competente incidente, considerou-se provada a cessão do direito de propriedade sobre o imóvel objecto do pedido deduzido na p.i., «que deixou de pertencer aos primitivos autores/chamados na qualidade de herdeiros de R. P. para passar a pertencer a D. S. e M. M., por direito próprio, na proporção de metade», e decidiu-se declará-los «habilitados a substituir o chamado D. R. na qualidade de herdeiro da referida herança, e deixando eles próprios de intervir na qualidade de herdeiros, mas por si e por direito próprio».
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Realizada audiência preliminar, foi proferido despacho-saneador, seleccionada a matéria de facto assente e elaborada a base instrutória.
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1.3. Após realização da audiência de julgamento, a Mma. Juíza proferiu sentença, cujo dispositivo a seguir se transcreve:
«Face ao exposto, nos termos das disposições legais citadas, julgo a presente ação parcialmente procedente e totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência:
a) declaro que os Autores D. S. E M. M. são proprietários, na proporção de metade, do prédio urbano id. em 5, e condeno os Réus M. P. E A. P. a reconhecer o aludido direito;
b) absolvo os Réus do mais peticionado contra si e os Autores do pedido reconvencional».
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1.4. Inconformados, os Autores D. S. e M. M. interpuseram recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1- A Douta Sentença é ambígua e obscura, (nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 c) do C. P. C.), já que
2- reconhece os Autores como proprietários do prédio urbano ..., na “proporção de metade”, sem que seja claro que reconheça que cada um dos dois é proprietário de metade, ou que os dois sejam proprietários de ½ do artigo urbano ..., como literalmente parece querer dizer.
3- Esta dúvida está associada ao facto de, face aos factos provados e não provados, qualquer leitura ser possível, nomeadamente porque parece ser dada como provada a existência de duas habitações contíguas e autónomas – cfr. Factos 14 e 26.
4- Por outro lado, foram os próprios Réus que, em sede de Douta Contestação, referem que existem dois prédios distintos, que foram autonomizados há mais de 30 anos – cfr. Artigo 23.º da Contestação, 11/01/2012, referência 251850 – o que implica que, antes da alegada “autonomização” tenha existido apenas um prédio com o artigo ....
5- Ou seja, face à Contestação, e face aos factos provados 14 e 26, pode a Decisão significar que aos Autores só é reconhecido ½ da propriedade do artigo ....º (sendo que, nesse caso, o restante ½ não lhes será reconhecido).
6- No entanto, também é interpretável como que o Autor D. S. seja proprietário de ½ do prédio, sendo que o restante ½ será propriedade da Autora M. M..
7- Se acrescentarmos que os Autores foram absolvidos do pedido reconvencional, o que implica que aos réus não é reconhecida a propriedade tal como a invocam, ficamos sem perceber o que ao certo significa.
8- Nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 c) do C. P. C.
9- Os Autores foram totalmente absolvidos do pedido Reconvencional.
10- No entanto, os Réus foram apenas condenados a reconhecer os Autores como proprietários do prédio urbano ..., na proporção de “metade”, sendo absolvidos dos pedidos de condenação a devolver-lhes a casa livre de pessoas e bens, a indemnizá-los por danos patrimoniais e não patrimoniais, a reconhecê-los como únicos e exclusivos proprietários do prédio, e ainda no pagamento de sanção pecuniária compulsória de € 100, por cada dia de atraso na entrega do imóvel.
11- Acontece que ao absolver totalmente os Autores do pedido reconvencional, o tribunal determinou que o alegado pelos Réus foi totalmente inviabilizado pelo Tribunal.
12- Recorde-se que os Réus pugnaram pela sua absolvição dos pedidos, e em reconvenção pediram que fosse declarado que eles fossem declarados donos e legítimos proprietários de “…casa de habitação … a qual confronta a norte com caminho, a nascente com R. P., a sul e poente com A. G.”.
13- Mas se os Autores foram totalmente absolvidos deste pedido, não se compreende que apenas tenha sido declarado que os Autores são proprietários “… do prédio urbano id. em 5, e condenados os Réus … a reconhecer o aludido direito;” mas absolvidos os Réus do mais peticionado.
14- Ao absolver, totalmente, os Autores do pedido reconvencional, o Digníssimo Juiz do Tribunal ad quo tinha necessariamente que condenar os Réus a devolver-lhes a casa livre de pessoas e bens, a indemnizá-los por danos patrimoniais e não patrimoniais, a reconhecê-los como únicos e exclusivos proprietários do prédio, e ainda no pagamento de sanção pecuniária compulsória de € 100, por cada dia de atraso na entrega do imóvel.
15- Se acrescentarmos a matéria que consta de factos provados 8, 9, 10, 11, 24, 26, 27, 29, 30, 31, que em suma determina que ambas as partes da casa partilham as mesmas fundações e paredes mestras interiores e exteriores, e que mantinham ligações internas (que foram fechadas pelos Réus), que tem um quinteiro interno, com apenas um acesso ao caminho, e apenas utilizado pelos Autores, e que ¼ do artigo urbano ... adveio aos Autores por doação de M. B., e ¾ por via do Inventário 76/1991, e que os Réus entraram para a parte que ocupam durante esse inventário, por mão do pai do réu, que era cabeça de casal no inventário, que ponderava a hipótese de adjudicar o prédio, e que, após o inventário, os réus não deixaram a casa contra a vontade da autora (tudo matéria alegada pelos Autores),
16- Ficamos na dúvida:
17- Então se a parte ocupada pelos Réus não lhes pertence (visto os Autores terem sido absolvidos do pedido Reconvencional), mas visto os Réus terem sido absolvidos dos pedidos de deixar a parte por eles ocupada, então que decide o Tribunal?
18- A parte ocupada pelos Réus não é de ninguém?!!!
19- O Tribunal não decidiu!
20- Tal como dito supra em A), a Douta Sentença é ambígua, e tudo pode significar, mas, vista a matéria de facto (mormente Factos provados 8, 9, 10, 11, 24, 26, 27, 29, 30, 31) e analisada a Decisão, ficamos com a noção de que o Tribunal não é consequente, e congruente, pois não tira as devidas consequências, que poderiam ser ou a condenação dos Réus em deixar a parte por eles ocupada (a mais lógica face aos factos provados), ou a condenação dos Autores no pedido Reconvencional (que não aconteceu).
21- Face a isto, os Autores respeitosamente entendem que se encontram violados os artigo 607.º, 609.º (limites da condenação), e do disposto no artigo 608.º n.º 2 do C. P. C.
22- A resposta à matéria de facto é confusa, e incoerente.
23- Isto porque é contraditória, seja dentro das respostas aos factos provados, seja adequando as respostas aos factos provados com as respostas aos factos não provados.
24- Assim, a meio de resposta a facto provado 26.º, o Juiz parece dar como provado que existem duas habitações, diversas, independentes e contíguas.
25- Mas o resto da resposta a esse facto, e ainda as respostas a factos provados 5, 8, 9, 15 a 26, 29, 30, 31 e 32 parecem determinar exactamente o contrário disso.
26- Mais: face aos factos provados 5, 8, 9, 15 a 26 (excluindo o meio onde parece ser dada como provada a existência de duas habitações autónomas e contíguas), 29, 30, 31 e 32, a matéria de factos não provados a), b) e c) tinha de transitar para os factos provados (além da contradição, a Sentença também faz «tábua rasa» de resposta a quesitos 20.º, 25.º, 49.º, 57.º, e 92.º A, de prova pericial, onde os Sr. Peritos afirmam que o acesso a essas lojas se faz pelo quinteiro interno, que é usado pelos Autores, e afirma que os Autores usam as lojas por baixo da parte da casa ocupada pelos Réus).
27- Por outro lado, imperativamente a matéria de meio de facto provado 26.º, onde parece ser dada como provada a existência de duas habitações autónomas e contíguas, teria de passar para os factos não provados.
28- Ao dar estas respostas à matéria de facto (incoerentes e contraditórias) a Douta Sentença padece da nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 c), e 640.º n.º 1 a) todos do C. P. C.
29- Para além de tudo isto, ainda por cima existe Contradição entre matéria de facto, e fundamentação:
30- Esta é a parte mais “dolorosa” de toda a Douta Sentença.
31- Com efeito, após a leitura da resposta dada a matéria provada e não provada, verificamos que a justificação das respostas é contraditória com a mesma:
32- É que, é o próprio Juiz que afirma que a prova produzida pelos Réus foi ténue - cfr. Douta Sentença em Página 10, parágrafo 2.
33- Na verdade, não existe outra interpretação para o facto de terem conseguido apenas apresentar como testemunhas os próprios filhos!
34- Depois, em sede de Depoimento de Parte, os Réus acabam como infirmar a tese vertida pelos próprios em sede dos articulados, e bem assim como, cada um deles, contradisse o outro.
35- Perante isto, a única conclusão que seria lógico retirar é que a tese alegada por eles, em articulados e julgamento, é falsa, e como tal, não deveria ser-lhes dada razão.
36- Mas tal não acontece, espantosa e irracionalmente.
37- Vejam os Venerandos Desembargadores que em sede de resposta a meio de facto provado 26.º, o Juiz parece dar como provado que existem duas habitações, contíguas, e logo autónomas e independentes.
38- Ora, essa é a tese dos Réus!
39- Mas, se os seus depoimentos foram contraditórios,
40- Se apenas conseguiram trazer como testemunhas os próprios filhos que nada conseguiram elucidar,
41- Como se explica a resposta a resposta a meio de facto provado 26.º, e a factos não provados a), b), e c)!?
42- Como é possível acolher a tese de alguém que infirma o por si vertido nos articulados, e entra em contradição em Depoimento de Parte!
43- Alguns exemplos de contradições:
44- O Réu marido declarou que recebeu a casa de seu pai, que era cabeça de casal de um Inventário, onde a mesma lhe teria sido adjudicada.
45- Vejam os Venerandos Desembargadores que é o Réu marido que localiza a casa que ocupa como sendo adquirida pelo pai no inventário, em que era cabeça de casal, e que por esse facto os deixou ocupar a casa – cfr. Página 13.º de Sentença, parágrafos 2.º, 3.º, e 4.º.
46- Vejam os Venerandos Desembargadores que esta matéria está dada como provada em 26.º 27.º, e 28.º.
47- É o próprio Juiz que, em parágrafo 5.º de página 13.º, que retira a conclusão de que se trata da mesma casa identificada a 5.º. e referida na certidão junta a fls. 31 e ss., que foi adjudicada a R. P., na quota de ¾, não cabendo por isso ao pai do Réu marido.
48- Mas, se é a própria motivação que expressa que a casa ocupada pelos Réus é a mesma que foi adjudicada à Autora, porque é que a meio de facto provado 26.º parece vir provado que a parte ocupada pelo Réu não pertence a esse prédio!?
49- É o próprio Réu que o afirma, e é o próprio Juiz que o declara!
50- E se assim é (como de facto está provado que é, e tal como os Autores alegaram), como se explica a resposta a meio de facto provado 26.º!?
51- Aqui verifica-se clara contradição entre a motivação e o facto provado a meio de 26.º, sendo que tal consubstancia nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 c), sendo que a desconsideração da confissão do Réu consubstancia violação do disposto no artigo 465.º do C. P.C., e do disposto no artigo 358.º n.º 1, do C. C.
52- Ou seja, seguindo a tese vertida na Motivação, o facto que, a meio de 26.º parece declarar a existência de duas habitações, deveria constar de factos não provados.
53- Outra contradição:
54- Em sede de meio de facto provado 26.º, o Juiz ad quo, parece dar como provado que existem duas habitações, diferentes, contíguas.
55- Com efeito, (e não se percebe como, face à evidência e abundância de prova produzida), em página 12 de Douta Sentença, parágrafo 4.º, refere que careceu de prova a afirmação pelos Autores de que R. P. possuiu a casa na sua totalidade, incluindo a parte ocupada pelos Réus, porque “a doação de M. B. a esta (na proporção de ¼) foi feita em 1989, e a ocupação pelos Réus ocorreu durante os anos 80, pelo que não existia qualquer acto temporal em que R. P. tivesse, após a doação feita, usado e ocupado aquele espaço.
56- Mas depois, dá como provado, em facto 11.º, que M. B. doou ¼ do artigo ... a R. P..
57- Espantosamente, o Digníssimo Juiz ad quo, tanto aceita que a parte ocupada pelos Réus seja parte do artigo ... (como afirmam os Autores), mas sobre a qual nunca foi exercida posse pelos Autores, porque os Réus entraram para lá antes da doação, como acaba por parecer afirmar, e dar como provado a meio de facto 26, de que se tratam de duas casa diferentes.
58- Então, como é que ficamos?!
59- Por outro lado, é dado como assente e provado em 11.º, que M. B. era proprietária desse ¼, e o doou à Autora, falecida, R. P., o que significa que reconhece que esse 1/4 do prédio urbano ..., transitou de M. B., para R. P., o que não pode deixar de acontecer apesar de os Réus lá se encontrarem (nenhum argumento afasta esse trato sucessivo).
60- Ou seja, em sede de Motivação, em parágrafo 4.º de página 12, o Digníssimo Juiz argumenta que a parte ocupada pelos Réus é parte do artigo ..., mas depois em sede de matéria de facto, e a meio de facto provado 26, parece dar a entender que afinal se tratam de duas habitações.
61- É outro exemplo de que existe contradição entre a Motivação e a matéria de facto dada como provada.
62- Mas existe outro exemplo ainda mais inacreditável:
63- Em primeiro parágrafo de página 14.ª da Douta Sentença, é afirmado, acerca do depoimento da Ré M. P., que o mesmo é contraditório, seja com a versão expressa nos articulados, seja com a versão expressa pelo marido, nomeadamente na parte do depoimento em que ela afirma que a parte que ocupavam era uma casa que teria pertencido a uns “Pelados”, que a doaram ao pai do Réu marido (seu sogro), mas que este nunca a teria habitado. Portanto, seria uma casa distinta do artigo ..., com donos distintos.
64- Acerca disso, o Digníssimo Juiz afirma que essa afirmação carece de sentido, sendo que argumenta que tal é difícil de explicar, uma vez que “existia uma ligação entre os dois espaços” e porque existia um quinteiro comum.
65- Ou seja, em motivação, o próprio Juiz conclui que dificilmente a casa poderia pertencer a donos distintos.
66- Então, se assim é, como acaba por dar a entender a meio de facto provado 26 que existiam duas habitações distintas?!
67- É que a argumentação do Digníssimo Juiz serve para fundamentar a tese, e ao mesmo tempo a sua antítese!
68- Não existe qualquer coerência, parecendo mesmo que cada facto é analisado em separado de todos os outros.
69- Acrescente-se ainda, que em parágrafo 2.º de página 14 da Sentença, o Juiz relata que a Ré afirmou que a casa teria sido recebida pelo sogro, em partilhas pela morte dos pais, onde era cabeça de casal.
70- Essa matéria – verdadeira confissão – deveria ter sido levada aos factos assentes, porque acaba por confirmar que a casa foi partilhada no Inventário 76/1991, sendo que não foi adjudicada ao sogro da Ré, mas sim à Autora R. P..
71- Assim, ao parecer dar como provado, a meio de facto 26.º, que existiam duas habitações diversas, o Digníssimo Juiz contraria a Motivação, nomeadamente o vertido em parágrafos 1, e 2 de página 14 da Sentença, sendo que tal consubstancia nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 c), sendo que a desconsideração da confissão do Réu consubstancia violação do disposto no artigo 465.º do C. P. C., e do disposto no artigo 358.º n.º 1, do C. C.
72- Outro exemplo:
73- Em parágrafo 3.º de página 14 de Douta Sentença, o Digníssimo Juiz declara que, em sede de Depoimentos de Parte, dos Réus, estes confirmam a existência de conflitos com os Autores, em relação à ocupação da casa.
74- No entanto, essa matéria, que é fundamental, para provar que a ocupação pelos Réus não foi consentida, nem pacífica, não consta de factos provados.
75- Acresce que tal vem alegado em sede de ponto 30 da PI, e provado com documento 11 da mesma.
76- Assim, ao não levar a factos provados que a ocupação pelos Réus não foi consentida nem pacífica, e que existiram conflitos, nomeadamente judiciais, o Digníssimo Juiz, apesar de o declarar na Motivação, contraria-a, sendo que tal consubstancia nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 c), sendo que a desconsideração da confissão dos Réus consubstancia violação do disposto no artigo 465.º do C. P. C., e do disposto no artigo 358.º n.º 1, do C. C.
77- Deveria pois ser levado aos Factos Provados que existiam conflitos entre Autores e Réus, o que significa que a ocupação nunca foi aceite, nem pacífica.
78- Também aqui se verifica contradição entre Motivação e resposta a Matéria de Facto.
79- Por último, a prova produzida, através dos Depoimentos de Parte dos Réus, a prova testemunhal, a documental e a pericial mereciam resposta diferente à matéria de facto – nos termos do disposto no artigo 640.º n.º 1 do C. P. C.
80- Assim, o meio do artigo 26.º dos factos provados, na parte que refere “”numa habitação contígua à referida em 14.º” deve ser mudado para os factos não provados, mantendo-se o restante;
81- Os factos não provados a), b), c) deverão ser mudados para os factos provados.
82- Deverá constar dos factos provados que existiram conflitos entre Autores e Réus, incluindo no foro criminal, relativos à ocupação da habitação pelos Réus, e que aqueles não aceitam a permanência deles;
83- Deverá constar de factos provados que os Réus causam tristeza e nervosismo aos Autores,
84- Deverá constar de factos provados que as obras efectuadas na habitação foram feitas sem o consentimento dos Autores, que não as aceitam, e que essas obras prejudicam a imagem da habitação.
85- Assim, se verificam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, devendo os Réus ser condenados nos pedidos dos Autores – artigo 483.º do C. C.
86- Os Réus não têm qualquer título ou argumento para ocupar a habitação, nomeadamente a divisão, nem a usucapião.
87- É com mágoa que os Autores se vêem na necessidade de apontar estes (numerosos e flagrantes) vícios, sendo que cogitam, como justificação para os mesmos, o facto de a Sentença ter sido notificada com, quase, um ano de distância relativamente à produção de prova, em violação do disposto no artigo 607.º n.º 1 do C. P. C. (decerto com alguma justificação), o que não pode deixar de causar “distância” relativamente à prova produzida
Termos em que a Douta Sentença deverá ser revogada, e substituída pela condenação, integral, dos Réus nos Pedidos, mantendo-se a absolvição total dos Autores, relativamente ao pedido na Reconvenção
Repondo-se assim, a tão ansiada JUSTIÇA!».
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Os Réus contra-alegaram, pugnando pela manutenção do decidido.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

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1.5. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (2). Tal restrição não opera relativamente às questões de conhecimento oficioso, as quais podem ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes – artigo 5º, nº 3, do CPC. Por outro lado, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, constituem questões jurídicas a decidir:

i) Saber se a sentença é nula por ininteligibilidade, decorrente de ambiguidade e obscuridade (artigo 615º, nº 1, al. c), 2ª parte, do CPC);
ii) Nulidade da sentença emergente da «violação do disposto no artigo 607.º (conteúdo da sentença), 609.º do C.P.C. (limites da condenação), e do disposto no artigo 608.º n.º 2 do C.P.C.»;
iii) Nulidade da sentença por «contradição na resposta à matéria de facto»;
iv) Nulidade da sentença por «contradição entre matéria dada como provada e matéria dada como não provada»;
v) Nulidade da sentença por «contradição entre matéria de facto e fundamentação»;
vi) Erro da decisão sobre a matéria de facto;
vii) Reapreciação de direito no que respeita à questão de saber se o prédio cuja propriedade já foi reconhecida aos Autores integra a parte ocupada pelos Réus e se estes devem ser condenados a entregá-la;
viii) Verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e fixação da indemnização;
ix) Aplicabilidade de sanção pecuniária compulsória ao atraso na restituição do prédio.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

Na decisão recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:

1. R. P. faleceu em …, Suíça, no estado civil de casada.
2. D. S. e R. P. contraíram casamento em - de outubro de 1982, em ….
3. São únicos herdeiros da referida R. P., D. S. e os dois filhos, D. R. e M. M..
4. D. S. era cabeça de casal da herança aberta por morte da mulher R. P..
5. Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial de ..., freguesia de ..., com o nº …/19890227, o prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo .., composto de casa de habitação e descrito como confrontando a norte, sul e nascente com caminho público e poente com bens do casal.
6. Através da apresentação 92, 7.8.2012, mostra-se registada a aquisição de ½ a favor de D. S., viúvo, e através da apresentação 1105, de 7.8.2012, mostra-se registada a aquisição de ½ a favor de M. M., ambas as aquisições por sucessão hereditária e partilha, tendo como sujeito passivo R. P..
7. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de ..., o prédio referido em 5.
8. No âmbito do processo de inventário nº 76/1991, que correu termos no Tribunal de Vila Pouca de Aguiar, por óbito de L. P. e D. A., foi adjudicada à falecida identificada em 1. a verba nº 107, depois de retificada, como “três quartas partes indivisas, de uma casa de habitação e quintal, em ..., que confronta a nascente, norte e sul com caminho e de poente com bens do casal, não descrito na Conservatória e inscrito na matriz respetiva sob o artigo .., com o valor matricial correspondente àquela fração de trinta e seis mil e sessenta e quatro escudos”.
9. Por escritura pública de partilha por óbito de R. P., extraída do livro de notas para escrituras diversas nº 220, do notário F. T., do Cartório Notarial de ..., consta que no dia 11 de dezembro de 1964, D. A. e esposa L. P. adquiriram, relativamente à verba nº 46, “uma quarta parte de uma casa de habitação em ...”, que confronta na sua totalidade do nascente, norte e sul com caminho público e poente com bens do casal de R. P., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ...
10. O acesso ao quinteiro é único e faz-se por uma porta carral, a partir do caminho que passa a norte.
11. Por escritura pública de “doação”, outorgada em 10.3.1989, M. B. declarou doar a R. P., que aceitou, ¼ indiviso de um prédio urbano que se compõe de casa para habitação, com a área coberta de 241,28 m2 e descoberta de 277,20 m2, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha …, de 27.2.1989, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ....
12. O prédio referido em 5. tem, aproximadamente, superfície coberta de 241,28 m2 e quintal de 277,20 m2.
13. É composto por casa de habitação e quintal.
14. A casa de habitação referida em 13. tem cerca de vinte metros de comprimento, na sua parte frontal, ao correr do referido caminho a nascente, cerca de oito metros de largura, na parte lateral direita (estando-se de frente para ela, no caminho) e cerca de dezoito metros de largura, a sul, na parte lateral esquerda (do lado onde existe uma garagem, que faz parte do prédio referido em 5.), tudo numa superfície de cerca de 280 metros quadrados, excluindo o quinteiro e a casa referida em f. ou a referida em 26..
15. E o quintal situa-se na parte frontal e lateral esquerda da casa de habitação, para nascente e sul, acompanhando o caminho público, e tem cerca de 30 metros de comprimento, entre o tanque e uma oliveira colocada na esquina a sul, junto ao caminho, por cerca de 10 metros de largura média, com a área aproximada de 300 metros quadrados.
16. A Autora e ante possuidores, há mais de setenta anos, que no prédio referido em 5. cultivam e colhem frutos do quintal, como couves, feijão, batatas, laranjas e milho.
17. E limpava o dito quintal.
18. Habitava a casa e suas dependências.
19. Reparava e mantinha a habitação.
20. Limpava e reparava o telhado, paredes e portas.
21. O que fazia à vista e todos e sem interrupção.
22. Após a data referida em 8., foi a Autora quem passou a pagar a contribuição autárquica do prédio referido em 5..
23. Foi a Autora quem reparou o telhado.
24. É a Autora que utiliza os quinteiros interiores da casa, para passagem e depósito de lenhas, estrumes, produtos agrícolas, carros e utensílios agrícolas.
25. Utiliza as lojas na parte baixa da habitação para depósito de lenhas, estrumes, utensílios agrícolas e animais.
26. No decurso do processo de inventário referido em 8., o cabeça de casal, pai do Réu marido, autorizou a permanência dos Réus, a título temporário, numa habitação contígua à referida em 14., partilhando as construções a mesma estrutura, designadamente a parede mestra, a sul.
27. O cabeça de casal ponderava a possibilidade de o prédio lhe vir a ser adjudicado e os demais herdeiros concordaram com a permanência dos Réus até ao termo do inventário.
28. Após o termo do inventário, os Réus, contra a vontade da Autora, não saíram da habitação.
29. Verifica-se uma descontinuidade do telhado na interseção da parte ocupada pelos Autores com a ocupada pelos Réus; o edifício referido em 5. partilha da mesma estrutura e fundações, paredes mestras, interiores e exteriores, e partilha da mesma estrutura, designadamente a mesma parede mestra, a sul, da parte ocupada pelos Réus.
30. A casa referida em 14. e a parte contígua, referida em 26., eram suscetíveis de serem percorridas através de ligações e aberturas internas, antes de os Réus procederem ao fecho de portas de ligação.
31. Existe entre as duas zonas (a casa de habitação referida em 14. e a parte ocupada pelos Réus, referida em 26.), um só quinteiro ou pátio, que confronta a norte com caminho, sul e nascente com a parte ocupada pelos Autores e a poente com a parte ocupada pelos Réus.
32. Os Réus não permitem que a Autora utilize a zona referida em 26..
33. Os Réus, em data não concretamente apurada, mandaram fazer uma armação nova para o telhado da construção referida em 26., por si ocupada, consertaram a armação e o telhado da adega.
34. A partir de data não concretamente apurada, mas situada no decurso dos anos 80, os Réus passaram a habitar na construção referida em 26., onde foram criados os filhos dos Réus E., D. M. e S. M., aí dormindo, guardando os pertences, recebendo os amigos, fazendo as refeições, cuidando dessa parte da casa e da adega.
35. Fazendo-o à vista de toda a gente e sem interrupção temporal.
36. Em data não concretamente apurada, os Réus fizeram obras nessa construção, colocando soalho novo, na sala e nos quartos, instalaram rede elétrica, de água e saneamento, construíram casa de banho completa, com fossa sética no exterior, rebocaram as paredes e efetuaram pinturas, e substituíram, mais recentemente, o piso da varanda virada a sul por laje aligeirada de vigotas, abobadilha e argamassa de cimento e areia.
37. Sobre a laje referida em 36. edificaram paredes exteriores com tijolos de 11 cms, em que deixaram duas janelas para sul, e uma parede interior, com tijolo de 7 cms, com porta, assim obtendo dois compartimentos.
38. A parte ocupada pelos Réus tem quartos de dormir, tem uma pequena cozinha, medindo a casa cerca de 18,5 metros de comprimento por cerca de 6 metros e vinte de largura, pelo que tem de superfície coberta cerca de 114 metros quadrados.
39. Tem uma entrada própria e independente, virada a norte, com escadas exteriores de pedra; e, ainda, um logradouro exterior, com cerca de 100 metros quadrados, onde os mesmos circulam a pé e depositam lenha e outros pertences.
40. E contiguamente uma adega com cerca de 36 metros quadrados, construída com pedra e blocos de cimento, encimada por uma armação de madeira e telhado, onde os Réus colocaram luz elétrica.
41. A parte ocupada pelos Réus tem janelas e portas autónomas viradas para a casa de habitação referida em 14., existindo entre as duas zonas uma abertura, atualmente tapada, no corredor sul da casa, ao nível do rés-do-chão.
42. Existem quatro divisões ou cortes na parte inferior.
43. Uma com acesso a sul, junto à casa do forno, perto do local onde os Réus possuem galinheiros.
44. Outra com acesso direto ao quinteiro ou pátio comum, através de porta de madeira.
45. E na sala tem um alçapão de acesso a essa corte.
46. Tem ao nível do primeiro andar uma pequena cozinha, cuja porta também dá para o quinteiro ou pátio, através de escadas em pedra.
47. Tem uma sala de jantar, três quartos, uma casa de banho e, ao fundo, a sul, onde outrora havia uma varanda, mais dois compartimentos ainda inacabados, com placa e paredes exteriores e interiores de tijolo.
48. Pelo lado exterior, tem a porta principal e as escadas de acesso à sala de jantar viradas a norte, três portas com varandim e uma janela, viradas a poente e, na parte virada a nascente, para o lado do quinteiro, tem a porta da cozinha, a porta dos baixos ou cortes, uma pequena varanda (que liga a sala de jantar à cozinha) e duas janelas, e tem uma porta da cozinha e uma da corte viradas para o quinteiro referido em 31..
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2.1.1. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
«a. O prédio id. em 5. não é suscetível de divisão.
b. Para aceder ao interior da habitação referida em 14. e à zona ocupada pelos Réus são partilhadas as mesmas entradas.
c. As lojas que se encontram na parte inferior são utilizadas pela Autora para guardar lenhas, utensílios, engenhos e produtos agrícolas e os Réus mexem nos pertences da Autora e retiram-nos das lojas situadas nessa parte inferior da habitação, onde a Autora os guarda.
d. O que causa aos Autores nervosismo e ansiedade, impedindo-os de descansar e relaxar.
e. Causando-lhes receio de serem agredidos e injuriados.
f. Ao lado da casa de habitação referida em 14., para poente, os avós paternos do Réu construíram outra casa, designadamente a parte ocupada pelos Réus, referida em 26.. com alicerces, paredes exteriores e interiores, armação e telhado autónomos e independentes face à casa de habitação referida em 14..
g. Sem aberturas internas que estabeleçam a ligação com a casa referida em 14..
h. O prédio referido em 5. confronta a nascente e sul com a proprietária do terreno adjacente ao quintal, que era de R. P..
i. E a poente a confrontação é com o Réu A. P..
j. Os Réus guardam milho, lenha, tonel e outros pertences na parte inferior referida em 42., por aí circulando livremente as galinhas, guardam na adega garrafões de vinho, ferramentas agrícolas.
k. Pelo referido em 32. os Réus pagaram seiscentos contos.
l. Para o quinteiro referido em 31. entravam outrora carros de bois para transportar estrumes para as cortes dos animais e por onde saíam com os estrumes já curtidos para os campos agrícolas.
m. Os Réus utilizavam a corte para guardar as talhas das azeitonas, os presuntos, lenhas e outros produtos.
n. A partir da rua ou caminho, os Réus entravam e saíam do quinteiro através da porta carral, que se encontrava franqueada, que se fechava apenas com um facho acessível aos Réus e seus filhos, fechando-o em qualquer ocasião, sem dificuldade.
o. Os Réus atuavam conforme descrito em 34. e 35. sem oposição de ninguém e na convicção de serem proprietários da casa de habitação referida em 5. e 14., adega e logradouro».
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Nulidade da sentença por ininteligibilidade – ambiguidade e obscuridade

Nas palavras de Alberto dos Reis (3), «a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz».
Assim, a decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.
E a decisão judicial só é ininteligível se um declaratário normal, nos termos dos artigos 236º, nº 1, e 238º, nº 1, ambos do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de se socorrer da fundamentação para a interpretar (4).
Segundo os Recorrentes a sentença é obscura e ambígua por se ficar «sem perceber o que ao certo significa» o que consta da alínea a) do dispositivo, uma vez que «reconhece os Autores como proprietários do prédio urbano ..., na “proporção de metade”, sem que seja claro que reconheça que cada um dos dois é proprietário de metade, ou que os dois sejam proprietários de ½ do artigo urbano ...».
No seu entender, «face aos factos provados 14 e 26, pode a Decisão significar que aos Autores só é reconhecido ½ da propriedade do artigo ....º (sendo que, nesse caso, o restante ½ não lhes será reconhecido)», mas «também é interpretável como que o Autor D. S. seja proprietário de ½ do prédio, sendo que o restante ½ será propriedade da Autora M. M.».

Vejamos se o aludido segmento do dispositivo é ininteligível, o qual tem a seguinte redacção:

«a) declaro que os Autores D. S. E M. M. são proprietários, na proporção de metade, do prédio urbano id. em 5, e condeno os Réus M. P. E A. P. a reconhecer o aludido direito».
Sendo verdade que a alínea a) do dispositivo da sentença podia ser mais explícita, se recorrermos à fundamentação concluímos que se pretendeu dizer “cada um na proporção de metade” ou, noutra formulação, “na proporção de metade para cada um”.
Com efeito, o que consta dessa alínea está directamente relacionado com os pontos de facto nºs 5 e 6, onde se identifica o prédio urbano e se dá por adquirido o registo da aquisição da sua propriedade a favor dos Autores, sendo «½ a favor de D. S.» e «½ a favor de M. M.».
Portanto, cada Autor é, no dizer da sentença, proprietário de metade. E assim sendo, o prédio, na sua totalidade, da exclusiva propriedade dos Autores, mas cada um deles “na proporção de metade”.
Por isso, face aos fundamentos de facto, não é plausível cogitar que aos «Autores só é reconhecido ½ da propriedade».
Mas a eventual dúvida facilmente se dissipava através da mera leitura da fundamentação de direito da sentença, onde se afirmou que «atenta a factualidade provada sobre a utilização dada pela autora da herança e herdeiros, aqui Autores, relativamente ao prédio identificado em 5., com os limites e extensão descritos, e o registo a favor dos mesmos, por sucessão hereditária e partilha, da totalidade do prédio, na proporção de metade para cada um, em conjugação com o expendido supra quanto à presunção derivada do registo e ao instituto da usucapião, impõe-se concluir que o referido prédio, descrito sob o nº … e inscrito sob o artigo ..., é propriedade dos Autores».
Aliás, são os próprios Recorrentes que começam o recurso a invocar que alegaram e demonstraram que «são donos, e legítimos proprietários, do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o n.º .., concelho de ..., e sito no lugar de ..., e que é composto de casa de habitação com Sp. Cob. 241,28m2, e quintal com 277,20m2, a confrontar de Norte e Nascente com caminho, sul e poente com proprietário, igualmente registado a favor dos mesmos, na proporção de 1/2 para cada um – cfr. Facto provado 6».
Em suma, nessa parte, o dispositivo está em conformidade os factos dados como provados, a fundamentação de direito e até com o alegado pelos próprios Recorrentes.

Termos em que improcede a arguida nulidade da sentença.
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2.2.2. Nulidade da sentença alegada nas conclusões 8 a 21

Os Recorrentes começam por indicar, na conclusão 8, que se trata da «nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 c) do C.P.C.», mas sem que concretizem se é o vício previsto na primeira parte ou na segunda parte da aludida alínea c), que são realidades absolutamente diferentes.
Todavia, concluem que a nulidade decorre da «violação do disposto no artigo 607.º (conteúdo da sentença), 609.º do C.P.C. (limites da condenação), e do disposto no artigo 608.º n.º 2 do C.P.C.». Apesar de os Recorrentes se referirem à nulidade da alínea c) do nº 1 do artigo 615º, convém recordar que a violação do disposto no artigo 608º, nº 2, do CPC gera a nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC e que a nulidade a que se reporta a alínea e) do nº 1 do artigo 615º do CPC ocorre quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, ou seja, em violação do disposto no artigo 609º, nº 1, do CPC.

Em primeiro lugar, no que respeita à alegada «violação do disposto no artigo 607.º» do CPC, trata-se de uma imputação não fundamentada, pois não é desenvolvido um único argumento substancial do qual resulte que o conteúdo da sentença está em desconformidade com o disposto naquela disposição legal. Percorrida a sentença, também não se vislumbra aquela pretensa inobservância.

Em segundo lugar, quanto ao argumentado nas conclusões 9 a 14, está essencialmente em causa uma discordância com o decidido pelo Tribunal de 1ª instância, o que está bem patente na parte em que se refere «ao absolver, totalmente, os Autores do pedido reconvencional, o Digníssimo Juiz do Tribunal ad quo tinha necessariamente que condenar os Réus a devolver-lhes a casa livre de pessoas e bens, a indemnizá-los por danos patrimoniais e não patrimoniais, a reconhecê-los como únicos e exclusivos proprietários do prédio, e ainda no pagamento de sanção pecuniária compulsória de € 100, por cada dia de atraso na entrega do imóvel» (conclusão 14). Trata-se de uma questão de direito, de mérito ou demérito do decidido, e não um motivo de nulidade da sentença.

Em terceiro lugar, cabe analisar da alegada nulidade directamente relacionada com o disposto no artigo 609º, nº 1, do Código de Processo Civil, segundo o qual a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
É uma nulidade que emerge, em primeira linha, da violação do princípio dispositivo que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual. Encontra ainda fundamento no princípio do contraditório, segundo o qual o tribunal não pode resolver o conflito de interesses sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
Pese embora toda a evolução entretanto ocorrida, mantêm-se actuais as palavras de Alberto dos Reis (5): «O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes. (...) Também não pode condenar em objecto diverso do que se pediu, isto é, não pode modificar a qualidade do pedido. Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a prestar um facto; se o pedido respeita à entrega de uma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo)».
A regra do nº 1 do artigo 609º do CPC deve ser interpretada em sentido hábil e flexível, de modo a permitir ao tribunal corrigir o pedido, quando este traduza mera qualificação jurídica, sem alteração do teor substantivo, ou quando a causa de pedir, invocada expressamente pelo autor, não exclua uma outra abarcada por aquela (6).
Segundo Manuel Tomé Gomes (7), «também no que respeita à fixação ou condenação em objecto diferente do pedido se tem suscitado dúvidas sobre o alcance prático deste limite, em particular nos casos em que a solução passa por uma qualificação jurídica diversa da sustentada pelo autor ou reconvinte. É o que acontece quando, por exemplo, o autor pede a resolução de um contrato com fundamento em incumprimento, mas em que se verifica que o contrato em crie é nulo por falta de forma; ou quando, por exemplo, o autor instaura uma acção de impugnação pauliana, concluindo, erradamente, pela invalidade (nulidade ou anulabilidade) do negócio impugnado, sendo que o efeito adequado é o da ineficácia relativa, à luz do disposto no artigo 616º, nºs 1 e 4 do CC. Será que o tribunal poderá, na primeira hipótese, declarar a nulidade do contrato e decretar a respectiva consequência restituitória, ao abrigo do disposto nos artigos 286º e 289º do CC, e, na segunda hipótese, decretar a ineficácia do negócio impugnado, dando ainda provimento à pretensão do autor.
A solução desta questão pressupõe, antes de mais, a interpretação do pedido e o entendimento de que este consiste no efeito prático-jurídico pretendido e não tanto na coloração jurídica que lhe é dada pelo autor. Na verdade, é unânime a doutrina de que o tribunal não está adstrito à qualificação jurídica dada pelas partes, já que, à luz do disposto no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Assim sendo, se a situação se reconduzir a um mero erro de qualificação jurídica na formulação do pedido, aferido em função do contexto da pretensão, parece que nada obsta a que o tribunal decrete o efeito prático pretendido, ainda que com fundamento em base jurídica diversa».
Teixeira de Sousa (8) responde a essa questão, dizendo que «quando o tribunal convola uma qualificação errada (por exemplo, nulidade ou propriedade) numa qualificação correta (por exemplo, anulabilidade ou usufruto), está apenas a usar a sua liberdade de qualificação jurídica. Sendo assim, se o tribunal conhecer do pedido de acordo com a qualificação que considera correta, esse órgão não está a extravasar do âmbito do seu conhecimento. A circunstância de a nova qualificação corresponder a uma qualificação de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente (ou seja, sem ser a pedido da parte) é irrelevante. Na verdade, a parte formulou um pedido, limitando-se o tribunal a conhecer desse pedido segundo a qualificação correta que a parte também deveria ter utilizado. Portanto, o tribunal conhece do pedido da parte, embora segundo a qualificação que a mesma lhe devia ter atribuído».

No caso dos autos, do dispositivo da sentença não resulta que o Tribunal recorrido tenha condenado em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art. 609º, nº 1, do CPC).
Mal ou bem, o que na apreciação da questão agora em análise não releva, a sentença não condenou em objecto diverso ou em quantidade superior, mas sim em menos do que o pedido, o que não consubstancia a ultrapassagem de qualquer dos limites da condenação estabelecidos no artigo 609º, nº 1, do CPC, nem, consequentemente, foi dada causa a qualquer nulidade, atenta a declarada improcedência do restante peticionado.

Finalmente, vejamos a alegada violação do disposto no artigo 608º, nº 2, do CPC, segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Portanto, duas patologias podem ocorrer: omissão de pronúncia ou excesso de pronúncia.
Para não ocorrer a primeira, o juiz deve conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (9). O não conhecimento de todas as questões, no sentido apontado, cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade.
Porém, importa distinguir entre “questões a apreciar” e “razões” ou “argumentos” aduzidos pelas partes. Já Alberto dos Reis dizia (10): «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão». Por isso, não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da acção. Por outro lado, o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição directa sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui.
O vício do excesso de pronúncia ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado (que não sejam de conhecimento oficioso), sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido, que centram o objecto do litígio. Há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada. Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia susceptível de integrar nulidade.
Há algum paralelo entre o objecto da actividade do juiz delimitado no artigo 608º, nº 2, e os limites da condenação estabelecidos no artigo 609º, nº 1, ambos do CPC, sem perder de vista que um versa sobre “questões” e o outro sobre limites às decisões de condenação. No primeiro caso estabelecem-se, além do mais, limites à actividade de conhecimento e no segundo limites ao poder de condenação. Como referia Alberto dos Reis (11), «o juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites do pedido formulado pelas partes».
No caso vertente, os Recorrentes sustentam que «o Tribunal não é consequente, e congruente, pois não tira as devidas consequências, que poderiam ser ou a condenação dos Réus em deixar a parte por eles ocupada (a mais lógica face aos factos provados), ou a condenação dos Autores no pedido Reconvencional (que não aconteceu)». O argumento principal é este: «se a parte ocupada pelos Réus não lhes pertence (visto os Autores terem sido absolvidos do pedido Reconvencional), mas visto os Réus terem sido absolvidos dos pedidos de deixar a parte por eles ocupada, então que decide o Tribunal? A parte ocupada pelos Réus não é de ninguém?!!!».
Não vamos neste momento tecer qualquer consideração sobre o mérito da decisão, mas o que resulta da sentença é que “a parte ocupada pelos Réus” não integra o prédio dos Autores (pelo menos, segundo o Tribunal a quo, os Autores não o lograram demonstrar) e não é propriedade dos Réus (consideração que emerge da improcedência do pedido reconvencional). Mas daí não resulta que «não é de ninguém»: pode ser de terceiros (12); não tem necessariamente que ser de alguma das partes. Não sendo apenas duas as possibilidades, a exclusão de duas delas não afasta uma terceira, pelo que inexiste incompatibilidade ou falta de apreciação de questão que devesse ser decidida.
Porém, permanece como questão a decidir neste recurso, em sede de apreciação do alegado erro de direito, saber se aquela concreta parte ocupada pelos Réus integra o prédio dos Autores.

Pelo exposto, desatende-se a arguição da nulidade invocada.
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2.2.3. Nulidade da sentença por «contradição na resposta à matéria de facto»

Nas conclusões 22 a 28 (bem como noutras conclusões, designadamente a 41), os Recorrentes sustentam que «a resposta à matéria de facto é confusa e incoerente», pelo que a sentença «padece da nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 c), e 640.º n.º 1 a) todos do C.P.C.».

Primeiro, a referência ao artigo 640º do CPC desde logo evidencia que a questão é essencialmente de impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Segundo, na parte em que os Recorrentes alegam que a decisão sobre a matéria de facto fez “tábua rasa” da «prova pericial, onde os Sr. Peritos afirmam que o acesso a essas lojas se faz pelo quinteiro interno, que é usado pelos Autores, e afirma que os Autores usam as lojas por baixo da parte da casa ocupada pelos Réus», está em causa uma pura questão de impugnação da decisão de facto e não propriamente uma contradição entre factos.
Terceiro, quanto ao argumento de que «a meio de resposta a facto provado 26.º, o Juiz parece dar como provado que existem duas habitações, diversas, independentes e contíguas», mas que «o resto da resposta a esse facto, e ainda as respostas a factos provados 5, 8, 9, 15 a 26, 29, 30, 31 e 32 parecem determinar exactamente o contrário disso», o mesmo não demonstra a existência de uma absoluta contradição entre parte do facto nº 26 e os restantes factos que aponta, mas sim, de um eventual erro de julgamento da matéria de facto, matéria a tratar quando se apreciar o recurso que impugna a decisão de facto. O pequeno extracto referido no ponto de facto 26, na parte em que se diz «numa habitação contígua à referida em 14.», tem de ser interpretada e conciliada com os restantes factos, designadamente quando, como e quem é que fez obras para separar a parte que os Réus ocupam da parte que sempre permaneceu na posse dos Autores e seus antecessores. Aliás, na sentença não se qualificaram essas duas partes como “casas” autónomas (além disso, no ponto de facto 31 houve o cuidado de qualificar a parte ocupada pelos Autores como «a casa de habitação referida em 14.», enquanto que a outra parte foi referida como «a parte ocupada pelos Réus, referida em 26.»), mas sim como “habitações”, ou seja, utilizando uma terminologia funcional. Neste último sentido é verdade que os Réus ocupam essa parte desde a década de 80, onde actualmente habitam, daí que seja uma “habitação”. Porém, também na factualidade apurada, designadamente naqueles que os Recorrentes indicam nesta parte das conclusões, constam os factos objectivos relevantes para interpretar e aplicar o direito.

Termos em que indefere a apontada arguição de nulidade da sentença.
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2.2.4. Nulidade da sentença por contradição entre factos provados e factos não provados

Em várias das suas conclusões, os Recorrentes invocam a existência de contradições entre factos provados e factos não provados.
Nesta parte, impõe-se brevidade e concisão na nossa apreciação.
O artigo 607º, nº 4, do CPC obriga o juiz a declarar na sentença «quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados». Tal pronúncia visa atingir várias finalidades, desde logo a de permitir sindicar a decisão.
Porém, se o juiz julga não provado determinado facto daí não se pode inferir a ocorrência de quaisquer outros factos. Dessa consideração do ponto de facto como não provado apenas resulta que esse facto – no contexto factual a considerar – inexistiu, tudo se passando como se o facto não tivesse sido articulado.
Depois, em sede de subsunção jurídica, um facto não provado é um não-facto. É algo que inexiste na realidade processual.
Assim sendo, não é susceptível de haver contradição entre um facto provado e um facto não provado, assim como não há oposição entre um facto real e algo que não tem existência no mundo do ser. Não há incompatibilidade entre eles.
Finalmente o erro de julgamento da decisão sobre a matéria de facto não integra a causa de nulidade da sentença prevista na 1ª parte da alínea c) do artigo 615º do CPC. Tal vício tem um remédio processual específico, que é a impugnação da matéria de facto, a efectuar nos termos do artigo 640º, nº 1, do CPC.
É isso precisamente que os Recorrentes fazem no recurso, onde invocam o apontado erro. Tal matéria será abordada no seu lugar próprio.
Termos em que improcede a arguição de nulidade da sentença com o aludido fundamento.
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2.2.5. Nulidade da sentença por «contradição entre matéria de facto e fundamentação»

Dispõe o artigo 615º, nº 1, al. c), 1ª parte, do CPC que é nula a sentença quando «os fundamentos estejam em oposição com a decisão».
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Se na fundamentação da sentença o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição. Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio mas decide em colisão com tais pressupostos.
No fundo, para se verificar esta nulidade é necessário que a fundamentação aponte num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se. Esta nulidade, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal. Se decide mal, o que existe é erro de julgamento e não oposição causadora de nulidade da sentença.
Feitas estas considerações gerais, vejamos a sua pertinência no caso concreto.
Verifica-se que nas conclusões 29 a 78 os Recorrentes apontam um extenso rol de pretensas contradições entre a motivação da decisão sobre a matéria de facto e determinados factos dados como provados ou não provados.
Desde logo, importar ter em conta que actualmente, como a sentença contém tanto a decisão sobre as questões de direito como a decisão sobre a matéria de facto, pode emergir da decisão da matéria de facto um vício semelhante ao referido no artigo 615º, nº 1, al. c), do CPC.
Porém, o regime e respectivas consequências não são inteiramente coincidentes, uma vez que a invocação dos vícios da decisão sobre a matéria de facto é feita nos termos do artigo 640º do CPC, não decorrendo necessariamente do reconhecimento dos mesmos a anulação da decisão. Isto porque em regra a Relação, em recurso, substitui-se ao tribunal recorrido (13), sendo que nas restantes situações rege o artigo 662º, nºs 2 e 3, do CPC.
Depois, constata-se que na maior parte das situações referidas nas conclusões o que se aponta, mais do que uma contradição, é um erro de julgamento na decisão relativa à matéria de facto.
Ora, o erro de julgamento da decisão sobre a matéria de facto não integra a causa de nulidade da sentença prevista na 1ª parte da alínea c) do artigo 615º do CPC. Tal como já se referiu atrás, esse vício tem um remédio processual específico, que é a impugnação da matéria de facto, a efectuar nos termos do artigo 640º, nº 1, do CPC.
Como os Recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto, é nesse âmbito que devem ser apreciados os apontados erros.

Uma última nota, dado que os Recorrentes sistematicamente alegam que os Réus produziram confissão em audiência de julgamento e que o Tribunal a quo a desconsiderou, o que, no seu entender, «consubstancia violação do disposto no artigo 465.º do C. P. C., e do disposto no artigo 358.º n.º 1, do C.C.».
No fundo, os Recorrentes invocam que ocorreu uma violação de direito probatório material, por a sentença recorrida não ter atendido à confissão dos Recorridos.
Dispõe o artigo 607º, nº 4, do CPC, que «o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito».
Embora consagrando o princípio da livre convicção da prova, o legislador estabeleceu limitações a esse princípio, como é patente no estatuído no nº 5 do artigo 607º do CPC, nos termos do qual o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», sendo que essa «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».
A confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art. 352º do CCiv.).
Podendo ser judicial ou extrajudicial, apenas releva para o caso dos autos a primeira modalidade, ou seja, a que é feita em juízo (art. 355º, nº 2, do CCiv.) e, dentro desta, a provocada, que pode ser feita em depoimento de parte ou em prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal (art. 356º, nº 2, do mesmo código).

Quanto à sua força probatória, há que distinguir:

a) A confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente (art. 358º, nº 1, do CCiv.);
b) A confissão judicial que não seja escrita e a confissão extrajudicial feita a terceiro ou contida em testamento são apreciadas livremente pelo tribunal (art. 358º, nº 4, do CCiv.).

O reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente (art. 361º do CCiv.).

No caso dos autos, o Réu prestou declarações de parte (a seu pedido, pois consta da acta de 28.05.2019 que o mandatário dos Autores prescindiu das declarações de parte daquele, que também havia requerido); a Ré prestou declarações de parte (v. acta de 11.07.2019). A confissão tanto se pode produzir em depoimento de parte como em declarações de parte. Sendo prestadas declarações de parte, isso, em abstracto, não constituí obstáculo à relevância da confissão judicial escrita, pois, nos termos do artigo 466º, nº 2, do CPC, às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior [prova por confissão das partes ou depoimento de parte].
O nº 3 do artigo 466º do CPC enuncia que o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
O depoimento de parte é sempre reduzido a escrito, na parte em que houver confissão do depoente, ou em que este narre factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória (art. 463º, n.º 1, do CPC), pelo que fica necessariamente a constar em acta, que nessa parte é denominada de assentada (art. 463º, nºs 2 e 3, do CPC). Tais regras são igualmente aplicáveis, em virtude da remissão operada pelo artigo 466º, nº 2, do CPC, às declarações das partes.
Porque a confissão judicial escrita desfruta de um valor probatório de prova plena contra a parte que confessa certo facto (art. 358º, nº 1, do CCiv.) e a confissão judicial não escrita é, nos termos gerais, livremente apreciada pelo julgador (art. 358º, nº 4, do CCiv.), impõe-se que a confissão judicial obtida através de depoimento ou declarações de parte, necessariamente orais, na audiência final, seja reduzida a escrito, para que dela se possa retirar a força probatória plena.
A falta de redução a escrito do depoimento de parte ou das declarações de parte, nos casos em que a lei o exige (para conter confissão), constitui nulidade, que ficará sanada se não for arguida pela parte interessada até ao momento em que termine o ato (sessão da audiência final) – arts. 195º, nº 1, e 199º, ambos do CPC.
No caso dos autos, consultadas as actas da audiência final, verifica-se que as mesmas não contêm qualquer assentada com a invocada confissão judicial dos Réus, nem foi arguida a nulidade por falta de redução a escrito da confissão.
Assim sendo, de harmonia com as regras acabadas de expor, a confissão judicial alegada pelos Recorrentes não tem força probatória plena. Repare-se que o simples facto de a audiência ser gravada não dispensa a redução a escrito da declaração confessória, porquanto só desse modo se assegura que da mesma sejam retirados efeitos probatórios plenos (art. 358º, nºs 1 e 4, do CCiv.).
Porém, o facto de não ter havido confissão judicial escrita e de, nessa medida, não revestir força probatória contra o confitente, não obsta a que as declarações prestadas pelos Réus não sejam livremente valoradas pelo Tribunal, em conformidade com o disposto no nº 4 do artigo 358º do CCiv..
Isso já não é problema de «violação do disposto no artigo 465.º do C. P. C., e do disposto no artigo 358.º n.º 1, do C.C.», mas sim de livre apreciação da prova, questão que apenas tem pertinência em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Assim sendo, também nessa parte não se verifica qualquer nulidade da decisão recorrida.
Pelo exposto, desatende-se a arguição da nulidade invocada.
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2.2.6. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.6.1. Em sede de recurso, os Recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

Estão efectivamente atribuídos à Relação poderes de reapreciação da matéria de facto no âmbito de recurso interposto, que a transformam num tribunal de instância que também julga a matéria de facto, garantindo um duplo grau de jurisdição. O âmbito da intervenção deste Tribunal está definido no artigo 662º do CPC, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu nº 1 que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, recaindo sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.

Por referência às suas conclusões (v. 77 a 84), extrai-se que os Autores/Recorrentes consideram incorrectamente julgados os pontos nºs 26 dos factos provados e as alíneas a), b), c) e d) dos factos não provados.

Quanto ao resultado da impugnação, pretendem que:

a) «o meio do artigo 26.º dos factos provados, na parte que refere ”numa habitação contígua à referida em 14.º” deve ser mudado para os factos não provados, mantendo-se o restante» (conclusão 80);
b) «Os factos não provados a), b), c) deverão ser mudados para os factos provados» (conclusão 81);
c) «Deverá constar dos factos provados que existiram conflitos entre Autores e Réus, incluindo no foro criminal, relativos à ocupação da habitação pelos Réus, e que aqueles não aceitam a permanência deles» (conclusão 82);
d) «Deverá constar de factos provados que os Réus causam tristeza e nervosismo aos Autores» (conclusão 83);
e) «Deverá constar de factos provados que as obras efectuadas na habitação foram feitas sem o consentimento dos Autores, que não as aceitam, e que essas obras prejudicam a imagem da habitação» (conclusão 84).
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2.2.6.2. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à análise de todos os documentos juntos aos autos e do relatório pericial e posteriores esclarecimentos prestados por escrito, e à audição integral da gravação das declarações de parte do Réu A. P. e da Ré M. P. e dos depoimentos das testemunhas D. R. (nascido a -.07.1970, filho de R. P., enteado do Autor D. S., irmão da Autora M. M. e primo em segundo grau do Réu marido), M. G. (nasceu a -.01.1962, em ..., e frequentava assiduamente a casa dos autos; é prima do Réu marido), C. A. (nascida a -.11.1976, filha do Autor D. S. e irmã consanguínea da Autora M. M. Machado; a falecida R. P. era sua madrasta), M. C. (nascida a -.03.1956, morou na casa dos autos entre os cinco e os dezasseis anos de idade; os pais desta testemunha foram caseiros dos pais da falecida R. P. e andou na escola com o Réu A. P.), M. L. (nascida a -.09.1945, irmã da testemunha anterior, trabalhou na casa dos autos, como empregada de limpeza, a partir dos seus doze anos de idade; os pais desta testemunha foram caseiros dos pais da falecida R. P. e era amiga desta). Foram também lidos os depoimentos reduzidos a escrito, no âmbito das cartas rogatórias, das testemunhas E. B. (desconhece-se a data de nascimento, apenas se sabendo, pelas suas declarações, que nasceu depois de 1979 – quando respondeu ao ponto 72 –, filha dos Réus, residente na Suíça), D. M. (nascido a -.03.1983, filho dos Réus, residente na Bélgica) e S. M. (nascida a -.08.1978, filha dos Réus, residente na Bélgica).
Como existem nos autos algumas fotografias do prédio e das partes ocupadas por Autores e Réus aqui em causa, isso permitiu a esta Relação ter uma ideia aproximada dos factos objecto dos depoimentos.
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2.2.6.3. O Tribunal a quo exprimiu a motivação da decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

«O Tribunal fundou a sua convicção, nos termos do artigo 607º, nº5, CPC, numa análise crítica e conjugada dos meios de prova produzidos, designadamente, apoiando-se nos documentos juntos aos autos, em articulação com os depoimentos de parte e testemunhais prestados por carta rogatória e na audiência de julgamento, tudo numa leitura conforme às regras da lógica e da experiência comum convocáveis para o caso, sendo que, no apuramento das características e configuração dos imóveis, e demais matéria objeto da perícia, valoramos, de acordo com o disposto no art. 389º, Cód. Civil, essencialmente, pela sua clareza, concretização e fiabilidade – relativamente à prova testemunhal - essa prova pericial vertida no relatório e respetivos esclarecimentos (fls. 579 e ss., 647 e ss., 668 e ss.), em conjugação com as fotografias juntas com o próprio relatório.
Em termos documentais, atentando nos arts. 371º e 376º, Cód. Civil, e sem prejuízo das conclusões já extraídas em sede de fixação da matéria assente, valoramos os documentos juntos com a p.i. e a réplica: assento de óbito, casamento e nascimento, o instrumento de habilitação de herdeiros, a caderneta e certidões de registo predial (atualizadas a fls. 217 e ss.), a certidão do processo de inventário nº 76/1991, a certidão da escritura de partilha por morte de R. P., as notificações da A.T. referentes a I.M.I. em nome de R. P., certidão do processo de inquérito nº164/96, fotogramas de fls. 75 e ss., bem como a fotografia aérea junta com a contestação.
Na formulação da presente decisão, fundou-se o Tribunal em matéria instrumental, intercetada com as máximas de experiência comum (cfr. artigo 351.º do Cód. Civil), de molde a retirar, da instrução e discussão feitas, a resposta para a matéria que efetivamente relevava nos autos.
Assim, além da factualidade que fora considerada assente na prolação do despacho saneador, resultou provada a factualidade que resultou do aludido relatório e esclarecimentos, devidamente documentados fotograficamente e contextualizados pela demais prova, naquilo que não ofereceu dúvidas ao Tribunal nem resultou suficientemente infirmado pelos depoimentos das partes ou testemunhais (cfr. 11. a 14., 28., 30., 32., 35. a 48.).
Por outro lado, a utilização da autora da Herança e, posteriormente, dos demais herdeiros, do prédio identificado em 5., mais precisamente da casa de habitação e quintal, tal como está inscrito e descrito a favor dos dois herdeiros, e a utilização, pelos Réus, de um espaço contíguo, situado a poente, que partilha a mesma estrutura, designadamente uma parede mestra, ali estabelecendo a sua habitação, com uma adega contígua, que foram remodelando ao longo do tempo, resultaram, essencialmente, do depoimento das partes e testemunhas, considerando as limitações conhecidas à eficácia plena da prova documental autêntica.
Do depoimento das testemunhas arroladas pelos Réus, seus filhos, E. S., D. M. e S. M., prestado por meio de carta rogatória, diga-se que pouca informação útil, pertinente e assertiva, logrou o Tribunal retirar.
As respostas remetidas revelaram, quanto à testemunha E. S., alguma confusão em relação aos espaços a que se referiam as perguntas e mesmo em relação à identificação das partes pela respetiva posição processual (“Autores”, “Réus”).
As três testemunhas, além da relação familiar com os Réus e o natural e inegável interesse com que depunham na causa, deram respostas lacónicas, de “sim” ou “não”, nada concretizadas ou contextualizadas, revelaram ambiguidade em algumas delas (“é possível”) ou negaram mesmo conhecimento direto (“não sei”).
Ora, a prova de factos relevantes em sede de sentença só pode decorrer de uma prova feita com assertividade, concretização e suficiência, não se bastando com referências genéricas e evasivas, que não trazem qualquer grau de convencimento ao Tribunal, como foi o caso das testemunhas arroladas pelos Réus, seus filhos.
Já as testemunhas dos Autores, designadamente o enteado e filha de D. S., D. R. e C. A., depuseram - apesar dessa relação familiar e do interesse que por essa via têm num desfecho positivo da ação - de forma clara e circunstanciada, explicitando os termos em que a autora da Herança, R. P., mãe do primeiro e madrasta da segunda, utilizou a casa e os seus compartimentos, nos mesmos termos em que o fizeram os seus antecessores e continuaram a fazer os sucessores, aqui Autores, sem prejuízo de a referida R. P. e D. S. terem estado emigrados alguns anos.
De acordo com os depoimentos assertivos e esclarecidos das duas testemunhas, era livremente acessível a parte agora ocupada pelos Réus, através de uma porta do quinteiro, entretanto encerrada, mas resultando também do seu depoimento, apesar de tudo, que a zona agora ocupada pelos Réus era tida como uma casa “separada”, da tia “Mariquinhas”, relativamente à qual a primeira das referidas testemunhas disse, inclusive, que guardavam algum resguardo, sendo “advertidos” pela mãe quando transpunham a porta de ligação.
Ambas as testemunhas se referiram a uma doação da tia M. B. a R. P., de ¼ da casa, sendo que, apesar de se referirem recorrentemente a esse ¼ como a parte agora ocupada pelos Réus, não resultou minimamente demonstrado que a doação em causa, documentada, aliás, a fls. 765 e ss., se referisse àquela construção, sendo que, possuindo a referida M. B. ¼ indiviso do prédio inscrito na matriz sob o artigo ..., essa quota era ideal, não correspondendo a uma parte fisicamente delimitada, tendo sido essa quota ideal que foi doada a R. P..
Por outro lado, não obstante a eficácia probatória plena da certidão de registo predial não abranger, como sabemos, as áreas, limites e confrontações dos prédios objeto de registo, o que permitiria ao Tribunal concluir que, apesar do que está descrito e inscrito, a casa de habitação dos Réus integra o prédio identificado em 5., nenhum elemento probatório permite ao Tribunal concluir que essa construção, ocupada pelos Réus, é parte integrante daquele prédio, sendo que, se assim fosse, e tal como resulta claro do relatório pericial e fotografia aérea de fls. 580, a área coberta do prédio seria muito superior à descrita e inscrita.
Para alcançarmos tal conclusão, de que se trata do mesmo e de um só prédio, é manifestamente insuficiente a prova de que ambas as construções partilham da estrutura, designadamente uma parede mestra, que existia uma porta e corredor que possibilitavam a comunicação entre “as duas casas”, ou mesmo que foi na qualidade de cabeça de casal que o pai do Réu lhe permitiu passar a habitar a referida casa.
As duas referidas testemunhas dos Autores, assim como as testemunhas M. G. e M. C., descreveram circunstanciada e consistentemente o prédio referido em 5. e reportaram-se à ocupação pelos Réus, da zona onde hoje têm a sua casa de habitação, a partir de meados dos anos oitenta, inicialmente por “caridade” e depois contra a vontade de R. P., autora da Herança. A testemunha M. C. revelou especial conhecimento e memória acerca dos imóveis e espaços adjacentes, já que os seus pais eram “caseiros” e a testemunha frequentou a casa desde muito jovem, depondo de modo fluido sobre a ocupação que foi sendo dada ao prédio identificado em 5. pelos Autores.
No mesmo sentido, a testemunha M. L., amiga da referida R. P., em depoimento espontâneo e escorreito, referiu-se à utilização da casa pela mesma e da ocupação pelos Réus da parte da casa em que habitam, em data que não soube precisar, mas que situou, sem certezas, em momento mais tardio do que as demais testemunhas.
Ora, do conjunto dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Autores resultou, sem dúvidas ou hesitações relevantes, provada a factualidade atinente à utilização, pela autora da Herança, seus antecessores e sucessores, do prédio identificado em 5., nos termos descritos nos factos provados, em termos consistentes com o direito que se mostra registado a seu favor, entretanto transmitido aos herdeiros habilitados nos autos, na proporção de metade.
Resultou igualmente claro que os Réus passaram, em data que não logramos apurar, mas situada nos anos 80, a ocupar a casa de habitação onde ainda se encontram, contígua à habitação desde sempre utilizada pelos antecessores e sucessores de R. P. e pela própria.
O que não resultou apurado, com a certeza e segurança que se impunha, foi que esse espaço integrasse, como alegavam os Autores, o prédio identificado em 5., descrito a favor dos Autores, inscrito sob o artigo ... na matriz.
De facto, a utilização reportada pelas testemunhas dos Autores, como tendo sido feita pela referida R. P., após tal prédio lhe ter sido adjudicado, e pelos respetivos sucessores, como proprietários, não abrange a área ocupada pelos Réus, relativamente à qual, apesar da comunicabilidade das “casas” não foi, objetivamente, descrita uma utilização conjunta e indistinta de todo o espaço, protraída no tempo, sendo, aliás, paradigmático, aquilo que a testemunha D. R. referiu a tal propósito. Acresce que, apesar das referências à doação de ¼ pertencente a M. B. a R. P., que teria, de acordo com a versão trazida pelos Autores e veiculada pela generalidade das testemunhas por si apresentadas, trazido à titularidade de R. P. a integralidade do prédio, incluindo a parte ocupada pelos Réus, o certo é que a doação foi feita em 1989 e a ocupação por parte dos Réus ocorreu durante os anos 80, pelo que não existiria qualquer hiato temporal em que R. P. tivesse, após a doação feita, usado e ocupado aquele espaço.
Sem prejuízo do que ficou dito quanto à limitação do alcance da prova produzida pelos Autores, relativamente à inclusão da parte ocupada pelos Réus no prédio inscrito sob o artigo ..., a prova produzida pelos Réus e Reconvintes - que se propunham demonstrar a propriedade da casa de habitação que ocupam, bem como a compropriedade do quinteiro situado entre essa casa e a ocupada pelos Autores – foi incipiente e inconsistente.
A prova testemunhal por si apresentada foi, pelas razões assinaladas, praticamente despicienda. As declarações dos próprios Réus foram, aliás, suficientes para o Tribunal concluir que o que alegaram na contestação/reconvenção não pode ser dado como provado.
O Réu A. P., apesar das proclamatórias afirmações de que a casa lhe pertence, que é onde habita há largos anos com a mulher e onde criou os seus filhos, esclareceu o Tribunal que a casa, conhecida como “dos Pelados”, havia sido doada à sua bisavó, pela família com aquele apelido ou alcunha, (por razões que não concretizou), e que o seu pai, A. G., veio a herdar, além de outros prédios, a dita casa, em inventário que correu termos em 1978, passando o pai do Réu a permitir, a partir dessa data, que ele e a mulher ocupassem o imóvel, o que fizeram após algumas obras de recuperação, ali se mantendo até hoje.
Ao longo do depoimento, o Réu acabou por afirmar que na altura em que o pai autorizou que fossem para a casa ainda não estavam concluídas as “partilhas” mas que o pai era cabeça de casal e, como tal, autorizou que ocupassem a casa.
Confrontado com a circunstância de não poder o seu pai transmitir-lhe qualquer direito de propriedade sobre a casa se a mesma não havia sido ainda partilhada e adjudicada ao mesmo, refugiou-se o Réu sempre nas mesmas lacónicas e proclamatórias afirmações de que a casa lhe pertencia.
Além de não obter qualquer respaldo em prova documental essa aquisição em sede de inventário, pelo pai do Réu marido, do imóvel ora ocupado pelos Réus, de acordo com a certidão junta a fls. 31 e ss., o inventário aberto por morte de L. P. e D. A., em que o pai do Réu assumiu, efetivamente, o cargo de cabeça de casal, data de 1991, e não de 1978, e ali veio a ser adjudicada a R. P. a quota de ¾ do prédio inscrito sob o artigo ....
Se o depoimento do Réu não corroborava a versão expendida na contestação/reconvenção, o depoimento da sua mulher, a Ré M. P., conseguiu contrariar a versão do marido e a da contestação/reconvenção. De facto, num depoimento confuso e intranquilo, a Ré afirmou que a casa que habitam foi verbalmente doada ao seu sogro, o referido A. G., pela família dos “Pelados”, porque este, ainda criança, fazia alguns recados à sua avó, R., e chamava os membros daquela família na hora do jantar (!). A partir daqui, justificou a Ré, ao arrepio da versão apresentada pelo próprio marido - que nunca disse que a casa teria sido doada ao seu pai - a sua permanência na casa pela doação que o sogro lhes fizera, sendo que o sogro, apesar de ter recebido a casa em doação em criança (!), nunca lá habitara. Se as duas casas pertenciam a donos distintos, também não soube explicar a Ré porque existia uma ligação entre os dois espaços e por que razão o quinteiro era comum…
Apesar desta novel versão da Ré, a dado momento do depoimento, e em perfeita contradição com o que dissera anteriormente, afirmou que os Réus estavam a ocupar o que era do sogro, que era o cabeça de casal da herança dos pais, sendo que o seu marido, aqui Réu, lhe disse em tempos que a casa ficara em partilhas para o seu sogro.
Apesar de pretenderem fazer crer ao Tribunal que tal ocupação sempre foi pacífica e consentida pelos demais herdeiros, designadamente pela autora da Herança e pelos herdeiros, não deixaram os Réus de confirmar alguns conflitos, envolvendo mesmo processos judiciais.
Como decorre do exposto supra, a factualidade não provada resultou, necessariamente, de ausência de prova idónea produzida a propósito ou da prova produzida em sentido diverso.
Sobre o descrito em a. e b. relevou o relatório pericial já aludido.
A propósito do referido em c. a e., cuja prova incumbia e aproveitava aos Autores, não foi produzida qualquer prova.
Também sobre o referido em f. a o., cuja prova incumbia e aproveitava aos Réus/Reconvintes, não foi produzida prova suficiente e idónea, sendo que, concretamente, a construção de uma casa, independente, pelos avós dos Réus, não colheu suporte em qualquer meio de prova, sucumbindo, em parte, a prova da configuração dos imóveis aventada pelos Réus, sem respaldo em meios de prova seguros, designadamente nos depoimentos dos próprios Réus, sem tradução na realidade hoje existente e infirmada que foi pelo depoimento das testemunhas dos Autores, que revelaram conhecimento do local.
Especificamente sobre o “animus” com que atuaram os Réus ao longo deste tempo, considerado não provado em o., não foi produzida qualquer prova idónea nesse sentido, sendo que os Réus apesar de, perguntados pelo Ilustre Mandatário se se consideravam donos da casa que ocupam, afirmarem prontamente que sim, o certo é que descreveram o modo como passaram a habitar no imóvel de forma inconsistente e até incongruente entre si (ora porque o mesmo havia ficado para o pai do Réu em partilhas no inventário, ora porque o pai do Réu era cabeça de casal e dera autorização, ora, ainda, porque a casa havia sido doada ao pai do Réu ainda em criança). Da generalidade da prova resultou, sim, que o pai do Réu, enquanto cabeça de casal da herança de seus pais, autorizou a ida e permanência dos Réus na referida casa, com a concordância, inicial, dos demais herdeiros, mas com a oposição de pelo menos alguns herdeiros, após a partilha, mantendo-se as divergências e conflitos em virtude da permanência dos Réus no imóvel, ao longo do tempo.
Nessa sequência, não podemos concluir que os Réus atuassem sem oposição e na convicção de serem proprietários do imóvel».
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2.2.6.4. Ponto de facto nº 26

No aludido ponto da factualidade apurada deu-se como provado que «no decurso do processo de inventário referido em 8., o cabeça de casal, pai do Réu marido, autorizou a permanência dos Réus, a título temporário, numa habitação contígua à referida em 14., partilhando as construções a mesma estrutura, designadamente a parede mestra, a sul».
Os Recorrentes sustentam que «o meio do artigo 26.º dos factos provados, na parte que refere ”numa habitação contígua à referida em 14.º” deve ser mudado para os factos não provados, mantendo-se o restante».
Como se percebe pela leitura tanto da motivação como das conclusões das alegações, o ponto de facto nº 26 da factualidade constitui a pedra de toque de todo o recurso dos Recorrentes.
É nele que centram o essencial da sua impugnação, sendo os demais factos objecto do recurso “quase” secundários.

Depois de revistos todos os meios de prova, retiramos duas conclusões factuais inequívocas:
a) As partes ocupadas pelos Autores e pelos Réus integram um único prédio, um único edifício, que constituía em tempos, pelo menos nas décadas de 50, 60 e 70 do século passado uma “casa de lavoura”, onde uma família tinha o seu centro de vida e utilizava todas as dependências da casa, seja no âmbito da sua dinâmica familiar, seja no âmbito da actividade agrícola que desenvolvia. Dada a sua estrutura e amplitude, aproxima-se daquilo a que se costuma designar como casa senhorial, que várias testemunhas qualificavam como a “casa dos patrões” (v. depoimentos de M. G., M. C. e M. L.) e até “casa dos morgados” (nesta parte, v. depoimento de M. L.).
b) Os Réus ocupam uma parte desse prédio desde a década de oitenta e não a adquiriram (seja qual for o direito em causa e a forma de aquisição: direito de propriedade ou qualquer outro direito real menor) por qualquer meio: não a compraram (nem sequer os Réus o afirmaram), não lhes foi formalmente doada (também nem sequer os Réus o alegaram), não sucederam a alguém que tivesse um direito de propriedade ou de compropriedade sobre o prédio ou a uma parte especificada daquele; não lhes foi “doado” informalmente por um pretenso proprietário ou comproprietário. Em bom e rigoroso português: ocupam algo que não lhes pertence. Por mera tolerância de um cabeça-de-casal, estando pendente um inventário do qual fazia parte uma verba consistente em três quartas partes indivisas daquele prédio (a outra quarta parte sabe-se que pertencia a uma irmã de um dos inventariados, de seu nome M. B., conhecida por “tia M.”), passaram a ocupar uma parte da casa, que delimitaram da restante parte do edifício através de obras que foram fazendo ao longo do tempo.
Esta é a realidade insofismável que se retira da prova produzida.
Não se torna necessário desenvolver esta última conclusão, uma vez que o pedido reconvencional foi julgado improcedente e não foi objecto de recurso.
Por isso, só releva a referida primeira apreciação factual.
Foram ouvidas três testemunhas equidistantes das partes e que nenhum interesse têm no resultado da acção, cujos depoimentos merecem inteira credibilidade, pelo conhecimento directo dos factos que revelaram e a isenção com que depuseram. São elas M. G., M. C. e M. L., cuja razão de ciência já se sintetizou supra. A primeira nasceu e foi criada em ..., e frequentou a casa, no seu dizer, durante «muitos anos» (1m4s); as outras duas viveram naquela casa durante um período de tempo substancial e frequentaram-na também durante “muitos anos”, sendo que os seus pais foram caseiros dos pais de R. P. (a falecida mulher do Autor e mãe da Autora), titulares de 3/4 do prédio. Todas essas testemunhas frequentaram a casa e descreveram, além do mais, que a mesma era utilizada como sendo “uma só casa”, sem qualquer espécie de autonomização ou independência da parte hoje ocupada pelos Réus. Por exemplo, era na parte agora ocupada pelos Réus que os “patrões” (assim foi referido pelas testemunhas M. C., M. L. e M. G.), D. A. e mulher, L. P., ou seja, os pais da falecida R. P. e avós do Réu A. P., dormiam, assim como a referida R. P. e uma irmã (v. o depoimento de M. C. aos 9m9s e 10m54s; v. gravação do depoimento de M. G. aos 3m27s; depoimento de M. L. – 11m37s a 11m58s); também era nessa parte que se situava a casa de banho (muito rudimentar) que era utilizada, designadamente, por toda a família, deslocando-se para o efeito das outras divisões da casa sempre que necessitavam; igualmente descreveram que era a porta exterior da parte ocupada pelos Réus de que as crianças da casa (e ainda as crianças que estavam a frequentar a casa) se serviam para ir e regressar da escola (a testemunha M. C., por exemplo, afirmou que era isso que ela própria fazia – v. gravação aos 09m45s), que se situava ao lado; além disso, essa era qualificada como a porta principal da casa (depoimento de M. L. aos 6m35s e 8m51s a 9m42s). Múltiplos outros exemplos foram apontados por estas testemunhas (bem como por D. R., que aí viveu entre 1976 e 19.12.1979, e ainda C. A., que passou a frequentar a casa a partir de 1983, mas com um óbvio menor conhecimento dos factos) reveladores de que era uma só casa e não duas casas contíguas, que as partes ora ocupadas por Autores e Réus integram uma mesma coisa (14) e assim sempre foi considerada por todos, não havendo qualquer dúvida legítima a esse respeito.
Aliás, que as partes ocupadas pelos Réus e Autores constituem uma unidade resulta evidente do facto de partilharem a mesma estrutura, fundações, paredes-mestras, interiores e exteriores, tal como se deu como provado em vários pontos de facto, designadamente no ponto 29. É verdade que desde a década de 80 do século passado os Réus fizeram sucessivamente obras no sentido de autonomizar a parte por si ocupada; mas os elementos introduzidos artificialmente através dessas obras, para conseguir obter a separação entre as duas partes, são de desconsiderar na análise da questão de saber se são duas casas ou apenas duas partes da mesma casa. O que entretanto os Réus fizeram não apaga os factos relativos ao historial da utilização da casa e da sucessão na sua titularidade, que são, para nós, inequívocos.
Mais, o próprio Réu marido admitiu, durante as suas declarações (8minutos33segundos), que os seus avós – D. A. e mulher, L. P. (pais da falecida mulher do Autor e mãe da Autora) – ocupavam a casa toda com os filhos, usavam a parte que hoje está ocupada pelos Réus (8m57s) e também a habitavam. Explicitamente, aos nove minutos e doze segundos da gravação das suas declarações, afirmou que «parte da família dormia lá» (na parte por si agora ocupada), situação que passou completamente despercebida ao Tribunal a quo, assim como os depoimentos das três mencionadas testemunhas sobre uma utilização conjunta e indistinta de todo o prédio, seja da parte ora ocupada pelos Autores, seja da parte ocupada pelos Réus, que descreveram de forma circunstanciada e consistente (15).

Dito isto, a impugnação dos Recorrentes é mais um problema semântico, de utilização de palavras, do que de verdadeira substância.
O problema parece estar na utilização das palavras “habitação” e “contígua”.
Habitação, no sentido aqui relevante, significa lugar ou casa onde se habita. Contíguo é algo que se toca por um lado, que é imediato, próximo ou adjacente.
Como já salientamos, os Réus ocuparam uma parte de uma unidade habitacional e nela, através de obras sucessivas, passaram a habitar e, ao longo do tempo, realizaram obras no sentido de a autonomizar da restante parte da casa. Não ocuparam uma casa, mas sim uma parte de uma casa. Aquela zona ocupada pelos Réus não tem apenas espaços habitacionais, mas outros compartimentos com outras funções, designadamente lojas (também designadas por cortes pelas pessoas ouvidas durante a audiência de julgamento).
Por isso, afigura-se-nos que não se pode pura e simplesmente dar como não provado o segmento do ponto de facto onde se diz «numa habitação contígua à referida em 14.», deixando o ponto de facto sem qualquer coerência intrínseca (a parte final deixaria de ter sentido, por deixar de ter objecto: «partilhando as construções a mesma estrutura, designadamente a parede mestra, a sul»), mas antes corrigir a sua formulação.
Assim, em vez de «numa habitação contígua à referida em 14.», deve passar a constar «numa zona (16) da mesma casa adjacente à referida em 14.»

Nestes termos, na parcial procedência da impugnação, decide-se que o ponto nº 26 da matéria de facto passa a ter a seguinte redacção:
26. No decurso do processo de inventário referido em 8., o cabeça-de-casal, pai do Réu marido, autorizou a permanência dos Réus, a título temporário, numa zona da mesma casa adjacente à referida em 14., partilhando as construções a mesma estrutura, designadamente a parede-mestra, a sul.
*

2.2.6.5. Alínea a) dos factos não provados

O Tribunal de 1ª instância decidiu dar como não provado, sob a alínea a), que «o prédio id. em 5. não é suscetível de divisão».
Os Recorrentes argumentam que esse ponto não provado não se coaduna «com a resposta a meio de facto 26.º, quando o Digníssimo Juiz dá como provada a existência de duas habitações».
Para além de a questão já ter ficado prejudicada pelo decidido em 2.2.6.4., esse argumento não procederia, pois a circunstância de se dar como provado que existem duas habitações não acarretaria, só por si, qualquer insusceptibilidade de divisão. Pelo contrário, se existissem duas habitações, isso constituiria pelo menos um indício de que era possível a divisão entre as duas.

Argumentam ainda os Recorrentes: «Como se pode dar como não provado a), se se dá como provado que: ambas as partes eram percorríveis pelo interior (antes dos Réus fecharem as passagens); ambas as partes partilham as mesmas fundações, e paredes mestras interiores e exteriores, e que existe um páteo ou quinteiro interno, por onde os Autores acedem às lojas situadas na parte de baixo da parte ocupada pelos Réus, e que tem apenas um acesso para o caminho a norte?!».
O facto de as partes ora separadas terem sido anteriormente susceptíveis de ser percorridas pelo interior, e de fazerem parte da mesma casa ou edifício, não é suficiente para afastar a possibilidade de divisão.
Quanto ao resto a resposta dos Srs. Peritos, constante do relatório pericial, é inteiramente esclarecedora e conduz necessariamente à não demonstração do ponto de facto constante da alínea a): «Constata-se no local que o prédio poderá ser susceptível de divisão (como já se encontra), permitindo a instituição de duas fracções (…)».

Por isso, o facto foi, e bem, dado como não demonstrado.
*
2.2.6.6. Alínea b) dos factos não provados

Está em causa o seguinte facto:
«Para aceder ao interior da habitação referida em 14. e à zona ocupada pelos Réus são partilhadas as mesmas entradas».
Perguntam os Recorrentes: «para que serviu a resposta dada (…) [quando] está dado como provado a 25.º que é a Autora que usa as lojas na parte baixa da habitação, para depósito de lenhas, estrumes, utensílios agrícolas, e animais?».
Sustentam que essas «lojas, na parte baixa da habitação, situam-se na parte baixa da parte que os Réus ocuparam – neste sentido vide Relatório Pericial, resposta a quesitos 20.º, 25.º, 49.º, 57.º, e 92.º A, onde os Sr. Peritos afirmam que o acesso a essas lojas se faz pelo quinteiro interno, que é usado pelos Autores, e afirma que os Autores usam as lojas por baixo da parte da casa ocupada pelos Réus».
A confusão advém de o Tribunal a quo ter misturado nesta alínea dois factos independentes, quando apenas um deles tinha sido alegado e constava da base instrutória, sob o quesito 25º, onde se perguntava se «para aceder ao interior da habitação são partilhadas as mesmas entradas?». Nos quesitos 26º e 27º, que mereceram resposta nos pontos nºs 24 e 25 dos factos provados, perguntava-se se «as lojas que se encontram na parte inferior da habitação são utilizadas pela Autora para guardar lenhas?» e «utensílios, engenhos e produtos agrícolas?».
O segmento referente «à zona ocupada pelos Réus» não constava, como tal, da base instrutória e o que estava em causa era o acesso às actuais zonas habitacionais e não às caves, cortes ou quinteiros interiores da casa. Portanto, nesta parte, os Recorrentes pretendem introduzir um facto que não constava da base instrutória e não foi por eles alegado. O que os Recorrentes alegaram, na petição inicial, foi o seguinte:
«36- Para aceder ao interior da habitação são partilhadas as mesmas entradas,
37- As lojas são que se encontram na parte inferior da habitação são utilizadas pela Autora lá guardando lenhas,
38- Utensílios, engenhos e produtos agrícolas».

No que concerne ao quesito 25º a resposta é uniforme: para aceder ao interior da habitação referida em 14. não são partilhadas as mesmas entradas. Por isso, nessa parte o ponto de facto tinha de ser considerado não provado. Isto porque, como se pode ver na página 14 do relatório pericial, os Srs. Peritos verificaram que «as partes habitacionais ocupadas possuem entradas independentes».
Quanto aos demais espaços não habitacionais, o Tribunal a quo descreveu exaustivamente a situação factual verificada, a qual pode ser apreendida do que consta dos pontos nºs 10, 24, 25, 31, 42, 43, 44, 45 (alçapão de acesso à corte, construído pelo Réu, pois inexistia anteriormente, o que até o próprio admitiu), 46 e 48.
Termos em que inexiste fundamento para a alteração preconizada pelos Recorrentes.
*
2.2.6.7. Alínea c) dos factos não provados

Nesta alínea consta o seguinte:
«As lojas que se encontram na parte inferior são utilizadas pela Autora para guardar lenhas, utensílios, engenhos e produtos agrícolas e os Réus mexem nos pertences da Autora e retiram-nos das lojas situadas nessa parte inferior da habitação, onde a Autora os guarda».
Na motivação da decisão diz-se que «a propósito do referido em c. a e., cuja prova incumbia e aproveitava aos Autores, não foi produzida qualquer prova».
Argumentam os Recorrentes: «dá como não provado que as lojas que se encontram na parte inferior são usadas pela Autora para guardar lenhas, utensílios, engenhos e produtos agrícolas. Então, como se pode dar tal matéria como não provada, se se deu como provado que é a Autora que usa os quinteiros interiores da casa, e que utiliza as lojas na parte baixa da habitação».

Na decisão deste ponto não provado verifica-se algum atabalhoamento do Tribunal a quo, que pretendia declarar apenas um facto não provado e acabou por expressar dois, sendo que um deles já tinha sido dado como provado.
Isto porque a primeira parte já tinha sido dada como provada nos pontos nºs 24 – «é a Autora que utiliza os quinteiros interiores da casa, para passagem e depósito de lenhas, estrumes, produtos agrícolas, carros e utensílios agrícolas» - e 25 – a Autora «utiliza as lojas na parte baixa da habitação para depósito de lenhas, estrumes, utensílios agrícolas e animais».
Se esses factos já tinham sido dados como provados nos termos descritos, ou seja, que nas lojas ou nos quinteiros a Autora depositava ou guardava “lenhas”, “produtos agrícolas”, “utensílios agrícolas”, etc., naturalmente que não se podia fazer constar tal facto da matéria de facto não provada.
Mas a intenção do Tribunal a quo era outra: dar como não demonstrado que «os Réus mexem nos pertences da Autora e retiram-nos das lojas situadas nessa parte inferior da habitação, onde a Autora os guarda».
E nesta parte concordamos com o decidido na 1ª instância, sendo que não foi produzida minimamente convincente sobre a realidade desse facto. Além disso, para proceder a impugnação, os Recorrentes tinham que cumprir os requisitos constantes do artigo 640º, nºs 1, al. b), e 2, o que não lograram fazer. Os Recorrentes não especificam os concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação realizada em audiência de julgamento, que impunham decisão diversa da recorrida.
Portanto, há apenas que excluir da alínea c) a sua primeira parte.

Termos em que se decide que a alínea c) dos factos não provados passará a ter a seguinte redacção:
c. Os Réus mexem nos pertences da Autora e retiram-nos das lojas situadas na parte inferior da habitação.
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2.2.6.8. Alínea d) dos factos não provados

O Tribunal a quo deu como não provado o facto constante desta alínea («o que causa aos Autores nervosismo e ansiedade, impedindo-os de descansar e relaxar»), fundamentando a sua decisão em que «não foi produzida qualquer prova» a esse respeito.
Pretendem os Recorrentes que passe a «constar de factos provados que os Réus causam tristeza e nervosismo aos Autores» (conclusão 83).
Em primeiro lugar, verifica-se que os Recorrentes não indicam os actos dos Réus que lhes «causam tristeza e nervosismo», o que só por si inviabiliza a impugnação. Tanto a tristeza como o nervosismo relevantes têm de ter uma causa e esta Relação teria de apreciar se a mesma, se fosse indicada, tinha comprovação na prova produzida. Não sendo indicados os concretos actos que constituem a “causa” daqueles estados, naturalmente que é irrelevante apurar se apenas existe o estado desprovido da respectiva causa, a qual não se pode presumir.
Em segundo lugar, os Recorrentes esqueceram-se de especificar, de modo concreto e circunstanciado, os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.
Em terceiro lugar, o essencial do circunstancialismo alegado na petição inicial (v. arts. 41º a 47º, em especial os 43º, 44º e 47º) como fundamento para o nervosismo e ansiedade dos Autores, não resultou demonstrado – v. alíneas c) e e) dos factos não provados. Também não resulta dos meios de prova produzidos que o simples facto de os Réus se arrogarem agora donos da parte que ocupam cause aos Autores uma relevante tristeza ou nervosismo.
Em quarto lugar, face à prova produzida, também não poderíamos dar por adquirido o facto em causa. Sendo todas as demais pessoas interessadas, os depoimentos das três testemunhas que são equidistantes das partes, ou seja, as testemunhas M. G., M. C. e M. L., apenas permitem dar como adquirido que há conflitos entre as partes (algo que todas as testemunhas arroladas pelos Autores referiram), mas não mais do que isso, pois os Autores estão contra a permanência dos Réus na propriedade e estes, por sua vez, pretendem lá continuar. É claro que aludiram ao impacto estético das obras realizadas pelos Réus, mas isso nem sequer tinha sido alegado enquanto causa de tristeza ou nervosismo.
Pelo exposto, o facto indicado pelos Recorrentes não pode ser dado como provado.
*
2.2.6.9. Factos indicados nas conclusões 82 e 84

Pretendem os Recorrentes que passem a constar dos factos provados que:

i) «existiram conflitos entre Autores e Réus, incluindo no foro criminal, relativos à ocupação da habitação pelos Réus, e que aqueles não aceitam a permanência deles» (conclusão 82);
ii) «as obras efectuadas na habitação foram feitas sem o consentimento dos Autores, que não as aceitam, e que essas obras prejudicam a imagem da habitação» (conclusão 84).

Que existiram conflitos entre as partes nesta acção relativos à ocupação de parte da casa pelos Réus e que os Autores não aceitam a permanência daqueles é algo que resulta evidente, desde logo, da simples existência do presente processo, onde o conflito – e respectivos episódios – é bem patente; o próprio Tribunal recorrido considerou que a ocupação não tem sido pacífica e consentida e que «não deixaram os Réus de confirmar alguns conflitos, envolvendo mesmo processos judiciais». Além disso, todas as cinco testemunhas indicadas pelos Autores se referiram à existência de conflitos e à não-aceitação, por aqueles e sua antecessora, da ocupação por parte dos Réus. Também foi produzida prova documental da existência de queixas-crime, sendo que a testemunha D. R. até concretizou no que consistiu uma delas.

Não havendo nenhuma dúvida sobre quais as obras que foram feitas pelos Réus, tal como se deu como provado (até os Réus as descreveram), também resulta uniformemente dos depoimentos das cinco testemunhas arroladas pelos Autores que tais obras foram feitas sem o consentimento dos Autores e que estes as não aceitam.
Já a questão de saber se essas obras prejudicam a imagem da casa, além de ter uma componente subjectiva não despicienda, julgamos que é absolutamente irrelevante para a decisão da causa.

Termos em que se ordena o aditamento aos factos provados de dois novos pontos, com os nºs 49 e 50:

49. Existiram conflitos entre Autores e Réus, incluindo no foro criminal, relativos à ocupação da habitação pelos Réus, e aqueles não aceitam a permanência destes.
50. As obras efectuadas na habitação foram feitas sem o consentimento dos Autores, que não as aceitam.
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2.2.6.10. Correcção oficiosa da redacção do ponto nº 14

No ponto 14 dos factos provados consta o seguinte:
«A casa de habitação referida em 13. tem cerca de vinte metros de comprimento, na sua parte frontal, ao correr do referido caminho a nascente, cerca de oito metros de largura, na parte lateral direita (estando-se de frente para ela, no caminho) e cerca de dezoito metros de largura, a sul, na parte lateral esquerda (do lado onde existe uma garagem, que faz parte do prédio referido em 5.), tudo numa superfície de cerca de 280 metros quadrados, excluindo o quinteiro e a casa referida em f. ou a referida em 26.».
Portanto, nesse ponto 14 alude-se a um facto constante dos factos não provados, na parte em que se diz «a casa referida em f.»
Na alínea f) deu-se como não demonstrado que «ao lado da casa de habitação referida em 14., para poente, os avós paternos do Réu construíram outra casa, designadamente a parte ocupada pelos Réus, referida em 26.. com alicerces, paredes exteriores e interiores, armação e telhado autónomos e independentes face à casa de habitação referida em 14.».
Ora, se se considerou não demonstrada a construção de uma outra casa pelos avós paternos do Réu marido (e pais da falecida mulher do Autor e mãe da Autora), autónoma e independente da já existente, naturalmente que essa inexistente casa não pode servir de referência a um facto provado.

Pelo exposto, decide-se conferir ao ponto nº 14 dos factos provados a seguinte redacção:
14. A casa de habitação referida em 13. tem cerca de vinte metros de comprimento, na sua parte frontal, ao correr do referido caminho a nascente, cerca de oito metros de largura, na parte lateral direita (estando-se de frente para ela, no caminho) e cerca de dezoito metros de largura, a sul, na parte lateral esquerda (do lado onde existe uma garagem, que faz parte do prédio referido em 5.), tudo numa superfície de cerca de 280 metros quadrados, excluindo o quinteiro e a zona ocupada pelos Réus referida em 26.
**
2.2.7. Da reapreciação de Direito

O quadro factual relevante com vista à sua subsunção jurídica é aquele que resulta dos factos dados como provados com as modificações ora introduzidas por esta Relação.

Nas suas alegações, os Recorrentes pugnam pela procedência integral da acção, pelo que as questões de direito se resumem a três:

- Objecto da reivindicação;
- Responsabilidade civil extracontratual dos Réus;
- Sanção pecuniária compulsória em caso de atraso na restituição da coisa.
*

2.2.7.1. Da reivindicação

A acção de reivindicação é um meio processual de natureza mista, de declaração e de condenação, exigindo a acumulação de dois pedidos: o reconhecimento do direito real, no caso de propriedade, e a consequente restituição da coisa. Essa natureza mista é a que está em conformidade com a própria noção de acção de reivindicação constante do artigo 1311º, nº 1, do Código Civil, onde se pressupõe “o reconhecimento do seu direito de propriedade”.
Há violação do direito real quando um terceiro impede ou diminui de alguma forma o aproveitamento da coisa contra a vontade do titular (17). Essa violação, para além da situação óbvia do esbulho, pode consistir numa perturbação do uso, ainda que emergente de uma mera ameaça. À ameaça de perturbação do aproveitamento da coisa pode reagir o titular do direito real, mas não através da revindicação, que pressupõe a privação da posse.
Em conformidade com o disposto no artigo 581º, nº 4, do CPC, na acção de reivindicação o autor alega o direito real de gozo, apontando o seu concreto facto jurídico aquisitivo, e que a coisa está em poder do réu (18). É esta a causa de pedir na acção de reivindicação.
Consequentemente, formula dois pedidos: o reconhecimento do direito real de gozo e a restituição da coisa.

No caso dos autos, na petição inicial a primitiva Autora pediu que os Réus fossem condenados a reconhecê-la como «única e exclusiva proprietária do imóvel» e a entregá-lo à Autora. Os Autores sucederam àquela, com a consequente adequação dos pedidos.
Os Autores alegaram ser donos de um prédio urbano, em concreto uma casa de habitação «inscrito sob o artigo ... da freguesia de ..., concelho de ..., e sito no lugar de ..., e que é composto de casa de habitação com Sp. Cob. 241,28m2, e quintal com 277,20m2, a confrontar de Norte e Nascente com caminho, sul e poente com proprietário».
Mais alegaram que os Réus ocuparam parte desse prédio no decurso do inventário que correu termos por morte de L. P. e D. A., autorizados pelo então cabeça-de-casal, pai do Réu marido, e agora arrogam-se de proprietários dessa parte, não obstante os Autores serem donos de todo o prédio.
Os Réus, por sua vez, sustentaram que não se trata de um único prédio, mas sim de duas casas e que só uma delas é propriedade dos Autores, pois a outra casa, onde habitam, é sua propriedade.
Independentemente de saber se se trata de uma única casa ou de duas casas, os Réus não demonstraram ser titulares de qualquer direito real ou outro sobre a coisa. Daí a total improcedência da reconvenção.
Porém, essa questão fáctico-jurídica estruturante da posição dos pleiteantes permanece como relevante, uma vez que os Recorrentes pretendem vê-la dilucidada no recurso.
Na sentença, em sede de fundamentação de direito, entendeu-se que «não se provou que os atos de posse protraídos no tempo, com as características objetivas e subjetivas assinaladas nos factos provados, e o registo predial da aquisição a favor dos Autores, incluíssem a parte habitada pelos Réus, que constitui, fundamentalmente, a sua casa de habitação, referida em 25., melhor descrita em 37. a 48.».
O pressuposto do assim decidido alicerça-se na tese de que estão em confronto dois prédios, ou seja, que o espaço ocupado pelos Réus constitui um prédio autónomo e independente daquele cuja propriedade foi reconhecida aos Autores na sentença.

Salvo o devido e merecido respeito, discordamos totalmente da aludida tese.
Comecemos por analisar a questão ao contrário: em vez de começar por demonstrar que se trata de um único prédio (19), vejamos se está demonstrado que são dois prédios, ou seja, duas coisas autónomas, desconsiderando, obviamente, toda e qualquer obra introduzida pelos Réus no sentido de tornar autónoma a parte que ocupam.
Dito de outro modo, existe nos autos algum elemento, por menor que ele seja, que demonstre que o espaço ou zona habitacional ocupada pelos Réus constitui um prédio autónomo?
A resposta é negativa.
O pretenso “prédio” autónomo, enquanto tal, não está inscrito na matriz predial, não está descrito no registo predial e não consta de qualquer documento, designadamente no inventário daqueles que foram donos de três quartas partes do mesmo (também sempre se soube a quem pertencia a outra quarta parte), ou de quaisquer partilhas dos seus antecessores, tudo pessoas de uma única família (ascendentes do Réu marido e de R. P., falecida mulher do Autor e mãe da Autora). Não existe qualquer rasto de tal autonomização e nem sequer se pode dizer que existem terceiros envolvidos, a quem pudesse ser “atribuída” a propriedade do “prédio”; é medianamente pacífico que ao longo de mais de 70 anos apenas uma família se relacionou com aquele espaço, o qual é anterior a esse período de tempo, e que ninguém exterior a essa família se arroga de qualquer direito sobre o dito espaço.
Se a tese contrária não tem qualquer base de sustentação factual, para não ficarmos no limbo confortável da retórica da “não decisão”, enfrentemos agora a questão de saber se os factos provados evidenciam que se trata de um único prédio.
Em primeiro lugar, as duas partes – aquela cuja propriedade já foi reconhecida aos Autores e a que se mostra ocupada pelos Réus – partilham da mesma estrutura e fundações, paredes-mestras, interiores e exteriores, designadamente a mesma parede mestra, a sul, da parte ocupada pelos Réus (20).
Portanto, se existe uma partilha das mesmas estruturas, fundações e paredes-mestras, esse é um elemento objecto favorável à qualificação como uma unidade predial, um único prédio. Sublinha-se que não estamos perante um facto de interpretação subjectiva, mas antes de uma realidade objectiva.

Em segundo lugar, existe entre as duas zonas (a parte dos Autores e a parte ocupada pelos Réus), um só quinteiro ou pátio, que confronta a norte com caminho, sul e nascente com a parte ocupada pelos Autores e a poente com a parte ocupada pelos Réus. O acesso a esse quinteiro é único e faz-se por uma porta carral, a partir do caminho que passa a norte.
Também o facto de existir um pátio, com acesso único por porta carral, depõe a favor da tese de que se trata de um único prédio, sobretudo se atendermos à função desse quinteiro e ao que se acede a partir dele.
Em terceiro lugar, as duas partes, antes de os Réus procederem ao fecho de portas de ligação, eram susceptíveis de serem percorridas através de ligações e aberturas internas.
Este elemento objectivo é muito importante, pois ensina a experiência comum que não é vulgar prédios independentes terem ligações entre eles como se fossem apenas um prédio. O normal é as diferentes divisões ou zonas de um mesmo prédio estarem ligadas entre si, permitindo a passagem de umas para as outras.
Em quarto lugar, está demonstrado que existiu um inventário, com o nº 76/1991, que correu termos no Tribunal de Vila Pouca de Aguiar, por óbito de L. P. e D. A. (avós paternos do Réu marido e pais de R. P., falecida mulher do Autor e mãe da Autora), e que foi o respectivo cabeça-de-casal (precisamente o pai do Réu marido), no âmbito do inventário (21), que autorizou os Réus a ocuparem a zona que actualmente habitam e a aí permanecerem.
Se o gozo (por mera tolerância dos respectivos interessados) daquela parte foi proporcionado aos Réus no âmbito do inventário e do exercício das funções de cabeça-de-casal, então isso significa que o “bem” em causa, ou algum direito sobre o mesmo, integrava o conjunto dos bens objecto do inventário. De outro modo, a autorização dos herdeiros não seria necessária, nem fazia sentido o cabeça-de-casal, no exercício das suas funções, estar a ceder o gozo de algo que não era objecto do inventário.
Verifica-se que a referida parte objecto de cedência aos Réus não foi autonomizada como verba. Por isso, só se pode concluir que integrava a verba nº 107, aí descrita como «três quartas partes indivisas, de uma casa de habitação e quintal, em ..., que confronta a nascente, norte e sul com caminho e de poente com bens do casal, não descrito na Conservatória e inscrito na matriz respetiva sob o artigo ..., com o valor matricial correspondente àquela fracção de trinta e seis mil e sessenta e quatro escudos».
Essa conclusão é a única que está de harmonia com os elementos objectivos que se acabaram de descrever.
Tal verba foi adjudicada, no âmbito do dito inventário, a R. P., da qual os Autores são sucessores. E a restante quarta parte indivisa do prédio foi adquirida pela mesma R. P., mediante doação de M. B. (irmã do inventariado D. A.), por escritura pública outorgada em 10.03.1989. Ficou assim titular da totalidade das quatro partes até aí indivisas.
Por isso, R. P. era a proprietária plena do prédio que integra a zona ocupada pelos Réus.
Em quinto lugar, a apontada conclusão ainda mais sai reforçada da constatação de que a zona ocupada pelos Réus não está autonomamente inscrita na matriz predial ou descrita no registo predial e não consta como prédio autónomo em qualquer documento.

Face ao exposto e em suma: os Autores demonstraram que o prédio de que são proprietários – e como tal já tinham sido reconhecidos na sentença da primeira instância – integra a zona ocupada pelos Réus.
Está demonstrada a forma como R. P. adquiriu (por sucessão mortis causa e doação) a propriedade do prédio dos autos e como se integrou no património dos Autores, na proporção de metade para cada um deles, por sucessão hereditária e partilha. Mesmo que assim não estivesse evidenciado, sempre funcionaria o instituto da usucapião, sendo certo que também a propriedade do prédio está registada a favor deles e beneficiam da correspondente presunção (22).

Como os Réus não dispõem de título para deter parte do prédio dos Autores, cuja ocupação iniciaram e mantiveram por mera tolerância dos interessados do inventário nº 76/1991, e cuja cessação deveria ter ocorrido com o termo do inventário (v. pontos 27 e 28), devem ser condenados a restituir aos Autores o que ilegitimamente detêm, livre de pessoas e bens, tal como peticionado.
Termos em que procede nesta parte a apelação.
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2.2.7.2. Da indemnização

Na petição inicial os Autores pediram a condenação dos Réus no pagamento «do valor de € 7.000 (sete mil euros), a título de ressarcimento pelo dano não patrimonial, e € 2.000 (dois mil euros), a título de ressarcimento pelo dano patrimonial, valores acrescidos dos respectivos juros a contar da citação e até efectivo e integral pagamento».
Tendo a sentença julgado improcedente tal pedido, os Recorrentes, a conclusão 85 das suas alegações, sustentam que «se verificam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, devendo os Réus ser condenados nos pedidos dos Autores – artigo 483.º do C.C.».
Vejamos.
Nesta acção os Autores reivindicaram um imóvel e pediram que os Réus fossem condenados a proceder à entrega (restituição) de uma parte que estes ocupam, alegando que têm vindo a ocupar tal parte sem autorização e sem título que os legitime para o efeito.
Já se concluiu que os Autores são proprietários do prédio que integra a parte ocupada pelos Réus e que estes devem ser condenados a entregar àqueles a parte que detêm. Estamos perante a ocupação de uma parte de um prédio urbano sem título, ilegítima e, pelo menos desde que foi proposta a acção (14.10.2011) e os Réus citados para a mesma, sabidamente contra a vontade dos Autores.
Posto isto, suscita-se a questão de saber se os Autores têm direito a ser indemnizados por danos patrimoniais e não patrimoniais.

A obrigação de indemnizar pode emergir de diversas fontes (23). Os Recorrentes, tanto na petição inicial como nas alegações do seu recurso, indicam que a fonte de que emergirá o direito de indemnização que invocam é a responsabilidade civil por factos ilícitos.
Dispõe a esse respeito o artigo 483º, nº 1, do Código Civil, que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Para que alguém incorra nesta modalidade de responsabilidade civil é necessário que se verifique um facto ilícito, mas ainda outros pressupostos: culpa (imputação do facto ao lesante), dano e nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo.
No que respeita aos danos patrimoniais, há a considerar que quem se encontra constituído na obrigação de indemnizar deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562º do Código Civil), compreendendo-se nessa reparação não só o prejuízo causado nos bens ou nos direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão – danos emergentes –, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência do facto lesivo, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão – lucros cessantes (art. 564º, nº 1, do Código Civil).
O princípio geral, nos termos do artigo 562º do Código Civil, que preside à obrigação de indemnizar, é a reconstituição do lesado na situação hipotética que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação – é a chamada teoria da diferença (reposição das coisas no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano - princípio da reposição natural). Por outro lado, há que ressarcir, segundo o artigo 563º do Código Civil, os danos que o facto ilícito tenha ocasionado e que se traduzam nos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Já quando estão em causa danos não patrimoniais, a respectiva indemnização não visa reconstruir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, mas sim compensar de alguma forma o lesado pelas dores físicas e morais sofridas, em suma, pelo seu padecimento.
Na verdade, os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente, sendo possível, todavia, em certa medida, compensar o dano mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro, isto é trata-se de proporcionar ao lesado uma compensação que, de algum modo, alivie os sofrimentos que o facto lesivo lhe provocou, ou lhos faça esquecer.

No caso dos autos importa começar por determinar se os Autores sofreram algum dano patrimonial em consequência da ocupação que os Réus fazem do prédio desde a década de 80 do século passado, seja na modalidade de dano emergente ou na de lucros cessantes.
A situação dos autos tem algumas particularidades.
Em primeiro lugar, por mera tolerância dos interessados no inventário nº 76/1991, do Tribunal de Vila Pouca de Aguiar, o respectivo cabeça-de-casal, nesse âmbito, autorizou os Réus a ocuparem a zona que actualmente habitam e a aí permanecerem.

Em segundo lugar, sendo certo que os herdeiros concordaram com a permanência dos Réus até ao termo do inventário, não resulta dos factos provados quando é que este último facto ocorreu. Em todo o caso, até ao termo do inventário a ocupação por parte dos Réus era legítima, por autorizada.
Em terceiro lugar, sabe-se apenas que após o termo do inventário, os Réus, contra a vontade da Autora, não saíram da habitação. Portanto, em termos objectivos apenas se apurou que antes da propositura da acção ocorreu o termo do inventário, que os Réus não saíram da habitação nessa altura e que a primitiva autora herança por óbito de R. P. discordava da permanência dos Réus no prédio. Também resultou demonstrado que existiram conflitos entre Autores e Réus, incluindo no foro criminal, relativos à ocupação da habitação pelos Réus, e que aqueles não aceitam a permanência destes.
Perante isto, pergunta-se: quando é que os Autores (ou antes destes, R. P. ou, depois do seu decesso, os seus herdeiros) interpelaram os Réus, comunicando-lhe o termo do processo de inventário e exigindo-lhe a entrega da parte ocupada?
A resposta só pode ser esta: ignora-se se esse facto, com o conteúdo acabado de mencionar, ocorreu ou não. Apenas está provado que os Autores não aceitam a permanência dos Réus no prédio (tal como a primitiva autora já não aceitava – v. ponto de facto nº 28) e que se têm registado conflitos a esse respeito. Mas a realidade é que os Autores não fizeram o que devia ter sido feito.
Por isso, só com a citação dos Réus é que inequivocamente a detenção pelos Réus passou a ser ilegítima, constituindo-se em mora no que respeita à obrigação de entrega.
Sendo certo que a indemnização por danos patrimoniais, no valor de € 2.000,00, foi peticionada por referência à data de propositura da acção (portanto, danos já concretizados e não danos futuros), não estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pois, desde logo, não está demonstrada a ilicitude e muito menos a existência de qualquer dano patrimonial.
Aliás, na petição inicial nem sequer se concretizou o dano, limitando-se à afirmação de que os Réus «violam o direito de propriedade da Autora previsto nos artigos 1302.º e ss. do C. C., direito absoluto, ocupando-a ilegal e abusivamente, causando-lhe dano patrimonial que avalia em € 2.000 (dois mil euros) até à presente data».
Não basta a violação do direito de propriedade, pois o dano não é um evento abstracto ou virtual sem exteriorização prática. O dano patrimonial consubstancia sempre um resultado negativo na esfera jurídica do lesado em consequência do evento lesivo: se não fosse a lesão o lesado estaria numa situação melhor, ou porque os seus bens ou direitos não teriam sofrido um prejuízo ou porque não obteve os benefícios com que legitimamente podia contar. Se o evento lesivo gera no património do lesado uma desvantagem susceptível de avaliação pecuniária então há dano patrimonial juridicamente relevante.
Em suma, a realidade provada no processo não demonstra que os Autores sofreram uma desvantagem no seu património.

No que respeita aos danos não patrimoniais, o enquadramento factual de que se parte é o mesmo, no que respeita à definição do momento a partir do qual os Réus passaram a permanecer ilegitimamente no prédio.
Depois, os Autores alegaram um conjunto de factos que alicerçavam o pedido de indemnização por danos não patrimoniais que não se demonstraram, como sejam “insultos e ameaças” por parte dos Réus, o “receio de serem agredidos e injuriados”, “os seus pertences serem mexidos e retirados dos locais onde os guardam”. Também não se demonstrou o efeito de tais não demonstrados actos, ou seja, o “nervosismo e ansiedade” e a impossibilidade de “descansar e relaxar”.
A mera existência objectiva de conflitos entre as partes, envolvendo até queixas-crime, sem que se demonstre o bem fundado das mesmas e a gravidade dos actos consubtanciadores dos ditos conflitos, é insuficiente para considerar que gera o dever de indemnizar por danos não patrimoniais, os quais têm de ser suficientemente graves para merecer a tutela do direito – artigo 496º, nº 1, do Código Civil.

Sendo assim, improcedem as conclusões quanto a esta questão.
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2.2.7.3. Da sanção pecuniária compulsória

Na petição inicial os ora Recorrentes haviam peticionado a condenação dos Réus no pagamento de uma «sanção pecuniária compulsória de € 100,00 por cada dia de atraso na entrega da habitação», nos termos do artigo 829º-A do Código Civil, e no âmbito do recurso insistem que deve ser julgado procedente tal pedido (24).

Estabelece o artigo 829º-A, nº 1, do Código Civil que «nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso».
Pela sanção prevista no artigo 829º-A do Código Civil, o juiz adita à condenação principal uma condenação pecuniária acessória que se distingue de uma indemnização, pois que, visando incitar o devedor ao cumprimento da obrigação, não tem carácter indemnizatório. O essencial está em que a referida sanção pecuniária destina-se a induzir o devedor a cumprir e a acatar a decisão judicial.
Porém, para que o devedor possa ser condenado numa sanção pecuniária compulsória é indispensável que esteja em causa uma obrigação de facto infungível. Isto porque o campo de aplicação das sanções pecuniárias compulsórias limita-se às prestações de facto não fungíveis.
A prestação diz-se fungível, quando pode ser realizada por pessoa diferente do devedor, sem prejuízo do interesse do credor. Será infungível se o devedor não puder ser substituído no cumprimento por terceiro (25). A regra é a prestação ser fungível, por estatisticamente dominante, e como tal foi consagrada no artigo 767º, nº 1, do Código Civil.
No caso dos autos está em causa a obrigação de entrega de uma parte de um prédio urbano ocupada pelos Réus.
Tal obrigação, sendo uma prestação de facto, não é infungível, pois não requer a intervenção insubstituível dos devedores, ora Recorridos. Não é uma obrigação de facere de carácter pessoal, ou seja, cuja realização requer necessariamente a intervenção dos Recorridos e estes são insusceptíveis de ser substituídos por outrem. Atesta a conclusão de que é uma obrigação fungível a circunstância de ser susceptível de execução específica.
Tratando-se de coisa determinada, não se vê obstáculo a que essa entrega – e a realização da respectiva prestação – se possa fazer mediante a utilização do processo executivo para entrega de coisa certa (como se prevê no artigo 827º do Código Civil, depois desenvolvido nos artigos 859º e seguintes do CPC), sem necessidade de qualquer medida compulsória adicional incidente sobre os próprios obrigados e tendente ao cumprimento por estes da sua obrigação.
Em suma: a obrigação de restituição, que impende sobre os Recorridos, pode ser realizada também por terceiros, em sua substituição, visto que, no cumprimento da obrigação, não estão em causa as qualidades específicas do devedor. Assim, tal obrigação é de natureza fungível.
Sendo a obrigação fungível, não é aplicável o disposto no artigo 829º-A, nº 1, do Código Civil, pelo que não há fundamento legal para a fixação da sanção pecuniária compulsória.
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2.3. Sumário

1 – Como actualmente a sentença contém tanto a decisão sobre as questões de direito como a decisão sobre a matéria de facto, podem emergir da decisão da matéria de facto vícios semelhantes aos referidos no artigo 615º, nº 1, als. c) e d), do CPC.
2 – Porém, o regime e respectivas consequências não são coincidentes, uma vez que a invocação dos vícios da decisão sobre a matéria de facto é feita nos termos do artigo 640º do CPC, não decorrendo necessariamente do reconhecimento dos mesmos a anulação da decisão. Isto porque em regra a Relação, no âmbito do recurso, substitui-se ao tribunal recorrido e nas restantes situações rege o disposto no artigo 662º, nºs 2 e 3, do CPC.
3 – Se duas partes habitacionais são adjacentes, tendo uma delas sido separada da outra por obras entretanto realizadas pelos réus, que ocuparam para habitação uma dessas partes por tolerância dos herdeiros no âmbito de um inventário, partilham estruturas, fundações, paredes-mestras e pátio com acesso único por porta carral, eram anteriormente susceptíveis de serem percorridas através de ligações e aberturas internas, e sempre foram utilizadas como uma única casa, é legítimo concluir que se trata de um único prédio.
4 – A mera existência de conflitos entre as partes, sem que se demonstrem actos reveladores da gravidade dos mesmos, é insuficiente para considerar que gera o dever de indemnizar por danos patrimoniais e não patrimoniais.
5 – A obrigação de entrega de parte de um prédio pelo devedor pode ser realizada também por terceiros, em sua substituição, e é possível a utilização do processo executivo para entrega de coisa certa, pelo que não há fundamento legal para a fixação de sanção pecuniária compulsória por atraso na restituição.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogando-se parcialmente a sentença, decide-se:
a) Declarar que os Autores D. S. e M. M. são proprietários, cada um na proporção de metade, do prédio urbano identificado em 5, o qual integra também a parte ocupada pelos Réus identificada em 26 e 36 a 48, e condenar os Réus M. P. e A. P. a reconhecer o aludido direito;
b) Condenar os Réus a entregar aos Autores a parte do prédio que ocupam, descrita em 26 e 36 a 48, livre e devoluta de pessoas e bens;
c) Manter em tudo o mais a sentença.
Custas na proporção do decaimento.
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Guimarães, 12.11.2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)



1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 115.
3. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 151.
4. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 735.
5. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, págs. 67/68.
6. Ac. do STJ, de 18.11.2004, relator Ferreira Girão, proc. 04B2640.
7. Da Sentença Cível, págs. 43/44.
8. In https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia-540.html#links.
9. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 737.
10. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 143.
11. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, págs. 67 e 68.
12. Raciocínio que apenas se faz para demonstrar que inexiste nulidade, no sentido de que a exclusão das duas hipóteses gera a impossibilidade de existência de uma terceira hipótese, e que a questão é de alegado erro de julgamento.
13. V. arts. 662º, nº 1, e 665º, nº 1, do CPC.
14. Se fosse uma casa autónoma teria sido relacionada no inventário nº 76/1991, que correu termos no mesmo Tribunal a quo, por morte de D. A. e mulher, L. P.. Ora, nesse inventário, não foi relacionado qualquer prédio urbano, rústico ou outro, como omisso e que correspondesse à parte ocupada pelos Réus.
15. Na descrição que fizeram do prédio unitário – seja do interior ou do seu exterior – e espaços adjacentes não se notou uma única desconformidade com aquilo que é observável nas fotografias juntas aos autos e o relato dos peritos sobre a realidade objectiva.
16. A expressão “zona” é similarmente também utilizada no ponto nº 32 (v. «zona referida em 26.», para designar a parte ocupada pelos Réus, pelo que se deve optar pela sua adopção para dar alguma coerência à matéria de facto.
17. José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2ª edição, Almedina, 2018, pág. 429.
18. O autor não tem de alegar a violação do seu direito real de gozo, mas apenas que a coisa está na posse do réu. Os dois factos conjugados – titularidade do direito e privação da coisa por estar indevidamente em poder do réu – determinam a procedência da acção, na base da qual estará a consideração jurídica de que foi violado o direito do autor.
19. V. artigo 204º, nºs 1, al. a), e 2, do Código Civil.
20. Cumpre destacar que a descontinuidade que se verifica no telhado, na intersecção da parte ocupada pelos Autores com a ocupada pelos Réus (v. ponto 29), parece resultar da obra mencionada em 33 («os Réus, em data não concretamente apurada, mandaram fazer uma armação nova para o telhado da construção referida em 26, por si ocupada»).
21. V. pontos 27 e 28 da matéria de facto.
22. O artigo 7º do Código do Registo Predial estabelece uma presunção de verdade ao dispor que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. Em consequência, quem tem o registo a seu favor, não precisa de provar que o direito lhe pertence, porquanto o ónus da prova cabe a quem pretender contrariar o que consta do registo. Porém, constitui jurisprudência pacífica que esta presunção juris tantum limita-se ao direito inscrito e à pessoa do seu titular, não abrangendo nela os elementos de identificação do prédio, designadamente a sua área ou as suas confrontações; dito de outro modo, a presunção abrange os elementos da inscrição registral, mas não os da respectiva descrição. A ordem substantiva prevalece sempre sobre a ordem registral, o que se infere da natureza ilidível da aludida presunção constante do artigo 7º do Código do Registo Predial. Um proprietário cujo prédio “ganhou” área do prédio vizinho, em virtude da forma indevida como foi feita a descrição predial, não se torna proprietário da parte que não é sua, a menos que ocorra um facto aquisitivo com eficácia real a seu favor. Também o proprietário cujo prédio tem maior área do que aquela que consta do registo predial não deixa de ser proprietário da área em falta na descrição predial, mas terá que desenvolver um esforço probatório no sentido de demonstrar que adquiriu (mediante aquisição originária por usucapião - atenta a posse do direito de propriedade pelo decurso do lapso de tempo legalmente relevante - ou aquisição derivada) a parte que não consta descrita no registo.
23. V. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 5ª edição, Almedina, págs. 834 e 835.
24. Na parte em que concluem «pela condenação, integral, dos Réus nos pedidos».
25. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, Almedina, 1986, pág. 90.