LIVRANÇA
AVALISTA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
INTERPELAÇÃO
CONTAGEM DE JUROS
CLÁUSULA DE RESOLUÇÃO EXPRESSA
Sumário

I - O avalista pode excepcionar o preenchimento abusivo da livrança se também subscreveu o acordo de preenchimento, devendo esta situação ser equiparada às demais em que as excepções pessoais são oponíveis - cf. artigo 17.º da LULL.
II - Não tendo sido dada a oportunidade à executada, opoente, avalista da livrança dada à execução, a oportunidade de provar o preenchimento abusivo que invocou, por ter sido entendido que os factos já dados por assentes eram bastantes para decidir a oposição no despacho saneador, deverão os autos prosseguir para se conhecer da invocada excepção, baixando à primeira instância para instrução da oposição e produção de prova sobre a mesma.
III - Apesar de entendermos que a falta de interpelação do avalista do incumprimento do devedor principal e do subsequente preenchimento da livrança não conduz à inexigibilidade do título cambiário, o certo é que a mesma releva para a determinação do momento a partir do qual se inicial a contagem dos juros moratórios.

Texto Integral

Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2019:9576/08.3TBVNG-A.P2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B… deduziu oposição à execução que contra si move C…, S.A., onde concluiu pedindo a extinção da execução.
Alega, em síntese, que não foi interpelada para cumprir, que nenhum contrato foi resolvido, que não conhece os termos do contrato, pelo que a obrigação é ilíquida e inexigível e que não foi respeitada a “temporalidade” do aval.

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Recebidos os embargos, a exequente contestou, pugnando pela improcedência da oposição.
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Por despacho saneador sentença exarado a 21.11.2019 a Sr.ª Juiz a quo julgou os embargos totalmente improcedentes e determinou o prosseguimento da execução nos seus precisos termos.
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Não se conformando com a decisão proferida, veio a recorrente B… interpor recurso de apelação.
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O Tribunal da Relação do Porto proferiu, neste seguimento, decisão singular onde decidiu “anular a decisão recorrida e, em consequência, determinar que os autos regressem ao Tribunal recorrido para que aí se dê cumprimento ao princípio do contraditório, realizando-se a audiência prévia e, após, se determine o prosseguimento dos autos conforme for entendido de facto e de direito”.
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A 13.02.2020 foi proferido novo despacho saneador sentença julgando os embargos improcedentes e determinou o prosseguimento da execução nos seus precisos termos.
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Não se conformando com a decisão proferida, veio, de novo, a recorrente B… interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

I.Entende a aqui Recorrente que, sem mais, não poderia o Tribunal “a quo” dar como provados os factos constantes de A a E.

II. Entende a aqui Recorrente, terem sido violadas, nomeadamente, as normas constantes dos artigos 6.º, n.º 4 da Lei n.º 41/2013, de 26/6 (acção executiva), 3.º, 410.º, 615.º, n.º 1, al. b e d), 607.º, 412.º, 607.º, n.º 3 e 4, do C.P.C. e 362.º, 781.º do C.C. e art.º 20.º e 205.º n.º 1 e 2, ambos, da CRP.

III. A Sentença “a quo” padece de nulidade causa da violação do disposto no artº.6 nº.4 da Lei nº.41/2014 de 26 de Junho, bem como do principio do contraditório previsto no artº.3 do CPC, e bem assim dos princípios que fundamentam a Instrução do Processo, vertidos no artº.410. e seguintes do CPC, uma vez que, tendo a Recorrente colocado em crise o acordo junto a fls. 18, deveria o Tribunal “a quo”, designadamente quanto ao constante da alínea e) dos factos provados ordenar a apresentação do competente requerimento de prova, e não o efectivando preteriu formalidade essencial, susceptivel de influir o desfecho dos autos, sob pena de nulidade;

IV. Ao dar como assente o teor do referido acordo, incorre a sentença sub judice em nulidade, por violação do princípio do contraditório, já que tal teor não se encontrava admitido, nem por acordo, nem por confissão das partes (artigo 607.º, n.º 4 do C.P.C.), não se trata de um facto notório (artigo 412.º do C.P.C), tão pouco se basta com simples prova documental (artigos 362.º e ss do C.C.);

V. A Recorrente não logra alcançar a fundamentação quer de facto, quer de direito, para se dar como provados os referidos factos, incorrendo a sentença “ a quo” em nulidade por violação dos deveres de fundamentação (artigos 607.º, n.º 3 e 4 a 615.º, n.º 1, al. b) do C.P.C.;

VI. Acresce que encontra-se verificada, concomitantemente, a nulidade prevista da al. d), do artigo 615.º, uma vez que o Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre as questões alegadas pela Oponente que devia apreciar: ut artigos 2.º a 15.º e 24.º a 26.º foi colocado em crise o referido acordo junto a fls. 18, sendo certo que limita as questões a decidir à validade e exigibilidade da obrigação inscrita na livrança e no documento particular que a esta subjaz (esquecendo as demais questões sendo: conhecimento da relação subjacente, limitação temporal do aval e necessidade de interpelação para cumprimento).

VII. A Recorrida não invocou quaisquer factos dos quais emergisse o direito ao preenchimento da livrança junta.

VIII. Foi dada à execução a livrança constante de fls. alegadamente para garantia do contrato de crédito ao consumo n.º ………./……….., celebrado em 25.05.1998, que não se encontra junto aos Autos, e “quod non est in actiis non est in mundo”;

IX. A Recorrida não alegou a interpelação dos devedores para pagamento, sendo que nas dívidas liquidáveis em prestações, de acordo com o regime consagrado no artigo 781.º, do Código Civil, o não pagamento de uma delas não importa a exigibilidade imediata de todas, cabendo ao credor interpelar o devedor para proceder ao pagamento da totalidade da dívida;

X. A Recorrente não detinha qualquer controlo sobre as quantias concedidas e não detinha qualquer controlo sobre os devedores, daí a importância de apurar se tais documentos lhe foram entregues e os limites da sua responsabilidade lhe foram explicados;

XI. Não foi junta qualquer prova, tão pouco foi sequer alegada a interpelação da aqui Recorrente para pagamento, desconhecendo a mesma, quais, quando e como se tornaram vencidas as obrigações principais; (Neste sentido Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Maio de 2012, P. 7169/10.4TBALM-A.L1-7, Relator: Graça Amaral, in www.dgsi.pt,; Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27 de Janeiro de 2015, P. 517/12.4TBMLD-A.P1.C1, Relator: Jaime Ferreira, in www.dgsi.pt; Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 03-04-2014, P. 1033/10.4TBLSB-A.P2, Relator: Leonel Serôdio, in www.dgsi.pt; Ac. do STJ de 13.04.2011, no processo n.º 2093/04.2TBSTB-A L1.S1, inwww.dgsi.pt );

XII. É necessária interpelação prévia do avalista quando, sendo o título entregue em branco ao credor (para este lhe apor a data de pagamento e a quantia prometida pagar, em termos deixados ao seu critério), pois só assim o avalista tem conhecimento do montante exacto e da data em que se vence a garantia prestada, o que não sucedeu no caso em discussão, sendo que,

XIII. Desconhece a aqui Recorrente a concreta contabilização e concretização que alcance a quantia exequenda, sendo que a quantia de capital se computava em € 11.318,26, e desconhece o que se encontra contemplado nos demais € 18.242,42, sendo inqualificável que tal valor seja muito superior ao valor do capital em si objecto do contrato (€ 12.500.00), e, a serem devidos juros, apenas deveriam ser contabilizados após a citação para a execução;

XIV. A predita, mostra-se essencial designadamente para efeito de invocação da prescrição parcelar das quantias amortizáveis e juros, nos termos previstos no artigo 310.º, al. d) e e) do C.C..; (v.g. Ac. Tribunal da Relação do Porto, de 24/03/2014, P. 4273/11.5TBMTS-A.P1, in www.dgsi.pt.);

XV. O pacto de preenchimento um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos vai ocorrer o preenchimento do titulo subscrito em branco total ou parcialmente, em regra, sem fixação de prazo certo para o preenchimento, nem montante previamente determinado, o credor tem o dever de interpelar o devedor, reclamando o cumprimento da obrigação emergente do contrato subjacente à subscrição do título, o que não sucedeu por parte da Exequente, aqui Recorrida;

XVI. A Recorrente alegou não deter qualquer cópia do contrato de crédito ao consumo, e do referido acordo, não conhecendo o limite das suas responsabilidades, para assim poder exercer cabal contraditório, nem tão pouco teve oportunidade de requerer a respectiva junção uma vez que o Tribunal “ a quo” proferiu Saneador Sentença violando as normas processuais que determinavam tal obrigatoriedade;

XVII. Na verdade, o alegado acordo de fls. 18, além de não se encontrar datado e não enunciar os termos e circunstâncias em que foi elaborado, não detém qualquer aposição do n.º do contrato a que se refere, designadamente o aposto na livrança dada à execução, que permitisse ao Tribunal “a quo” concluir que o mesmo se reporta a esta livrança.

XVIII. Ao contrato de consumo em discussão nos autos e pacto de preenchimento é aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais, aprovado pelo D.L. n.º 446/85, de 25.10, facto totalmente ignorado pelo Tribunal “ aquo”, que não dispensa um suspiro que seja a tal diploma legal;

XIX. Não é pelo simples facto da Recorrente ter assinado o acordo que os deveres de comunicação e informação foram cumpridos pelo beneficiário, como parece inculcar da Sentença Recorrida;

XX. A prova de que a Exequente, aqui Recorrida procedeu à entrega de cópias dos contratos e acordo de preenchimento, bem como explicou o limite das responsabilidades da Recorrente, afigura-se essencial á boa decisão da causa, pelo que, não poderia a Exma. Sra. Dra. Juiz “a quo” passar por cima destes factos e proferir tout court saneador sentença, sob pena dos princípios basilares do acesso à justiça, constitucionalmente consagrados, sendo que o Tribunal “ a quo” não poderia deixar de ter aplicado, a consequência prevista no artigo 8º al. a) do D.L n.º 446/85, de 25.10, ou seja, “as cláusulas têm-se por excluídas” e assim, podendo a Recorrente, enquanto subscritora desse pacto opor a invalidade do mesmo e que por conseguinte inquinaria o aval, afectando-o do mesmo vício;

XXI. Podendo a Recorrente, enquanto subscritora desse pacto, opor a invalidade do mesmo o que por conseguinte inquinaria o aval, afectando-o do mesmo vício, viu-se coartada a tal pelo Tribunal “a quo”, violando-se o exercício do contraditório e o princípio da tutela jurisdicional efectiva, prevista, conjugadamente no mesmo a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, violando o disposto, conjugadamente, no art.º 20.º e 205.º n.º 1 e 2, ambos, da CRP..
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso prendem-se com saber:
- Se é já possível conhecer do mérito dos embargos;
- Sendo-o, se existe fundamento para julgar os embargos improcedentes;
- Do eventual vício de inobservância do princípio do contraditório e da ocorrência de decisão-surpresa.
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3. Conhecendo do mérito do recurso
3.1 - Factos assentes
O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:
1. O exequente é portador de uma livrança, que contém no rosto manuscritos os seguintes nomes D… e E… e o valor Caução.
2. No local indicado para a assinatura do subscritor encontram-se duas assinaturas manuscritas, com os nomes D… e E… e o valor Caução.
3. No local indicado para a data de vencimento encontra-se manuscrita a data 10/10/2008 e no local destinado à importância o valor de € 29.560,68.
4. No rosto da livrança encontra-se ainda manuscrita por duas vezes a expressão “Por aval aos subscritores”, seguida de assinaturas manuscritas, entre as quais a da oponente B….
5. A embargante, o embargado, os referidos D… e E… subscreveram o acordo junto a fls. 18, que aqui se dá por totalmente reproduzido, no qual declararam: “para garantia e segurança do cumprimento das responsabilidades ora assumidas o(s) beneficiários - e cônjuges e avalistas - subscrevem uma livrança em branco, declarando desde já, e por esta via, autorizar o seu preenchimento pelo Banco se e quando este considerar oportuno, pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora. Todos os intervenientes dão o seu assentimento à entrega desta livrança, nos termos e condições em que a mesma é feita, pelo que assinam, conjuntamente com os Beneficiários, esta autorização.”.
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3.2 - Fundamentos de Direito

No caso vertente o Tribunal a quo entendendo encontrar-se assente a factualidade relevante para o efeito decidiu proferir despacho saneador sentença julgando improcedentes os embargos e determinou o prosseguimento da execução.
Deste entendimento dissente a recorrente.
Adiantamos, desde já, que atenta a factualidade controvertida vertida nos articulados apresentados pelas partes não se encontram reunidos os pressupostos para a prolação de despacho saneador sentença.
Com efeito, no caso sub judice, foi dada à execução a livrança em causa nos autos, alegadamente para garantia do contrato de crédito ao consumo n.º ………./………., celebrado em 25.05.1998, que não se encontra junto aos autos.
A aqui Recorrente alegou, designadamente, nos artigos 26.º a 28.º da petição de embargos, que “nunca foi notificada de qualquer incidente no âmbito do alegado contrato de crédito ao consumo, de cujos termos e condições a Oponente não dispõe sequer de uma cópia, nunca entregue pela exequente, para poder sufragar o limite das suas responsabilidades.”, sendo certo que havia subscrito o pacto de preenchimento.
Ademais, a eventual falta de interpelação do avalista do incumprimento do devedor principal e do subsequente preenchimento da livrança, facto que se mostra controvertido em sede de articulados, releva para a determinação do momento a partir do qual se inicia a contagem dos juros moratórios, sendo certo que a embargada em sede de requerimento executivo peticiona juros vencidos desde 08.10.2008 e vincendos à taxa legal de 4%.
A propósito da violação do pacto de preenchimento pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/04/2011, in proc. n.º 293/04.2TBSTB-A.L1.S1:
“O artigo 10º da LULL - Violação do pacto de preenchimento - aplicável às livranças por força do artigo 77º -, estatui:
“Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
O contrato ou pacto de preenchimento é, na definição do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Maio de 2005 - 05A1086, in www.dgsi.pt.:
“O acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc.”.
Este acordo, que pode ser expresso ou de induzir perante certos factos provados (tácito), reporta-se à obrigação cartular em si mesma, que pode ou não coincidir com a obrigação que esta garante (obrigação extracartular), e que daquela é causal ou subjacente.
Na relação cartular valem, tão-somente, os critérios da incorporação, literalidade, autonomia e abstracção e não a “causa debendi” bastando-se para a execução a não demonstração, pelo executado, de ter sido incumprido o pacto de preenchimento que pode ser invocado no domínio das relações imediatas.
Princípio que também é válido quanto aos avalistas, que subscreveram - como é o caso - o pacto de preenchimento.
O pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária, daí que esse preenchimento tenha atinência não só com o acordo de preenchimento (no fundo o contrato que, como todos, deve ser pontualmente cumprido, art.º 406º, nº 1, do Código Civil); esse regular preenchimento em obediência ao pacto, é o quid que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade.
No caso sub judice, o aval foi prestado em livrança subscrita em branco, no que as partes, aliás, estão de acordo.
A divergência entre as partes circunscreve-se, designadamente, à matéria do invocado abuso no preenchimento da livrança e consequente inexigibilidade da obrigação de pagamento daí emergente, fundada na falta de interpelação da subscritora daquele título e da Embargante- avalista.
É sabido que pode existir letra ou livrança em branco sem ter havido contrato de preenchimento. Porém, quando o haja, o preenchimento tem de fazer-se nos limites e termos ajustados.
Através do contrato de preenchimento, que pode ser expresso ou tácito, as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc..
Na falta de acordo prévio, o preenchimento está sujeito a limites, derivados da relação fundamental que determina a criação cambiária e outros da lei supletiva e dos usos da praça.
Tendo o avalista intervindo no pacto de preenchimento pode ele opor ao portador as excepções que competiam ao avalizado se o título cambiário estiver no domínio das relações imediatas - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.12.2006, proc. n.º 06A2589 in www.dgsi.pt.
Pode, em consequência e nestas circunstâncias, excepcionar o preenchimento abusivo, cujo “onus probandi” cabe ao obrigado cambiário (artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil) já que integra um facto modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito. (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Março de 2007- proc.º 07A205), se também tiver subscrito o pacto de preenchimento. - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22/02/2011, Proc. 31/05-4TBVVD-B.G1.S1, in www.dgsi.pt.
É o que sucede no caso em apreço, uma vez que no pacto de preenchimento interveio a avalista da subscritora, ora Recorrente, sendo certo que na oposição (cf. artigos 2.º a 15.º e 24.º a 26.º) foi colocado em crise o acordo junto a fls. 18, não se encontrando admitido, nem por acordo, nem por confissão das partes (artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil), tão pouco se trata de um facto notório (artigo 412.º do Código de Processo Civil), ou se basta com simples prova documental (artigos 362.º e ss do Código Civil).
A violação do pacto de preenchimento, configurando uma falsidade material do título, retira-lhe, na medida do que for desrespeitado, a eficácia probatória, impendendo sobre quem a invoca - no caso a opoente - a prova desse facto impeditivo.
Porém, não foi dada a oportunidade à opoente de provar o preenchimento abusivo, sendo certo que se entendeu que os factos dados por assentes eram bastantes para decidir a oposição.
Nesta perspectiva, tendo-se por correcto o entendimento de que a opoente podia opor a excepção de preenchimento abusivo, deverão prosseguir os autos para se produzir prova sobre a invocada excepção.
Ademais, apesar de entendermos que a falta de interpelação do avalista do incumprimento do devedor principal e do subsequente preenchimento da livrança não conduz à inexigibilidade do título cambiário, o certo é que a mesma releva para a determinação do momento a partir do qual se inicial a contagem dos juros moratórios, por aplicação do disposto no art.º 610, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.
Ora, no requerimento executivo a aqui embargada peticiona juros vencidos desde 10.10.2008, bem como os juros vincendos pelo que sendo controvertido se houve ou não interpelação, bem como a data da mesma impõe-se recair, igualmente, prova sobre o referido ponto.
Tais factos, por se encontrarem controvertidos deverão merecer a enunciação de um ou mais temas da prova atinentes aos mesmos e a outros que o Tribunal a quo considere relevantes, nomeadamente, quanto à interpelação.
Como é sabido, nos termos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 595º, do Código de Processo Civil, o despacho saneador destina-se a “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória”.
Tal acontecerá (i) quando toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documentos, (ii) quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, e (iii) quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental.
Além disso, entende-se que o conhecimento do mérito da causa, total ou parcialmente, só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo em vista apenas a partilhada pelo juiz da causa.
Assim, a exemplo do que sucedia no anterior artigo 511º, do Código de Processo Civil, o juiz, ao identificar o objecto do litígio e ao fixar os temas da prova (artigo 596º do Código de Processo Civil), deve (continuar a) seleccionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
Nesta conformidade, “(…) o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final” - cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 2.07.2013, publicado em www.dgsi.pt.
Na verdade, “(…) quando o juiz coloca a si próprio a questão de saber se tem, efectivamente, condições para conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, o mais frequente é ser duvidoso o sentido da resposta. Quer dizer, poucos serão os processos em que, na fase intermédia, o juiz pode, claramente, concluir que todos os factos alegados estão provados ou não provados(…) Por outro lado, esta dificuldade é agravada pela perspectiva de a questão de direito poder ter mais do que uma solução, implicando que o relevo dos referidos factos (ainda que controvertidos) varie em função desta ou daquela solução jurídica(…)” - cf. Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 256/7.
Assim, por uma questão de cautela, e para esse efeito, o Juiz deverá usar um critério objectivo, isto é, tomando como referência indicadores que não se cinjam à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema - cf. Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 257; cfr. Lebre de Freitas, in “A acção declarativa comum à luz do Código de Processo Civil de 2013”, pág. 186.
Ora, no caso vertente, conforme resulta do exposto, contrariamente ao defendido pelo Tribunal Recorrido, entende-se que existem factos alegados pela opoente que, podendo conduzir à procedência parcial ou total das suas pretensões, ainda se mostram controvertidos.
Nesta conformidade, afigura-se-nos que, tendo em conta o exposto, o Tribunal Recorrido não podia, desde já, proferir a decisão aqui posta em crise.
Conclui-se, pois, que os presentes autos devem prosseguir os seus ulteriores termos processuais, completando-se o despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova (os já mencionados que contendem com a matéria de facto já referida e ainda os que o Tribunal recorrido entender ser pertinente formular), sendo de admitir que, produzindo-se prova sobre essa factualidade, seja proferida uma decisão conscienciosa da questão de mérito.
Assim, procedendo a apelação, deve ser revogada a sentença, com a consequência de, em 1ª Instância, dever retomar-se a fase de saneamento do processo, substituindo-se a decisão aqui revogada por decisão que atenda àquela matéria de facto que se considerou relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito, à luz das posições assumidas nos articulados e do regime dos artigos 597º, 595º e 596º do Código de Processo Civil, ainda que precedida de despacho de aperfeiçoamento uma vez que a audiência prévia se quedou pela alínea b), do n.º 1, do artigo 591.º do referido diploma (cf. alínea c) do referido preceito e diploma).
Impõe-se, por isso, a procedência da apelação, revogando-se a decisão impugnada, que deve ser substituída por outra que dê obediência ao acima exposto.
Em face do exposto, ficam prejudicadas as restantes questões colocadas neste recurso.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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4. Decisão
Nos termos supra expostos, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação apresentado, e, em consequência, revogar a decisão recorrida, decisão que deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, retomando a fase do saneamento do processo, completando-se o despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova de forma a que se dê obediência ao acima exposto.
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As custas da apelação são a cargo da apelada.
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Notifique.

Porto, 08 de Outubro de 2020
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas)