PROCEDIMENTO CAUTELAR
ENCABEÇAMENTO PELO CÔNJUGE SOBREVIVO
COLISÃO DE DIREITOS
Sumário

I - O Direito de preferência do cônjuge sobrevivo a ser encabeçado na casa de morada da família, só opera no momento da partilha da herança. Desde a abertura da herança até essa data a utilização dessa habitação deve ser feita no quadro de administração de um bem comum pertença da herança.
II - O direito de compropriedade não permite, que um dos consortes use em exclusivo parte da coisa indivisa, impedindo os outros em absoluto de também o fazerem.
III - Faz parte do direito de personalidade previsto no art. 70º, do CC a necessidade expressa por uma cidadã com 86 anos, de ser acompanhada pelos familiares. Mas também é um direito de personalidade o acesso do seu filho, nora e neto à única casa de banho da casa da habitação que usam em comum.
IV - Para que exista colisão de direitos é necessário que o seu exercício seja em concreto incompatível. Não existe essa incompatibilidade entre a necessidade de usar uma casa de banho e a mera impossibilidade subjectiva de determinados familiares acompanharem a sua mãe nessas condições.
V - Em caso de conflito o direito de 3 pessoas acederem à única casa de banho da sua habitação deve prevalecer, face à necessidade da requerente com 86 anos ser acompanhada durante a noite, pelos seus restantes filhos que se incompatibilizaram por motivos desconhecidos com os primeiros.

Texto Integral

Processo nº 121/20.3T8PFR.P1
Procedimento cautelar

Sumário
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I. RELATÓRIO.
B…, NIF ………, viúva, residente na Rua …, n.º .., …, Paços de Ferreira, veio intentar procedimento cautelar comum contra C… e mulher D…, residentes na Rua …, n.º .., …, Paços de Ferreira, pedindo se ordene o encerramento provisório da porta que liga a casa habitada pela Requerente à casa dos Requeridos e que os mesmos sejam condenados provisoriamente a absterem-se de qualquer conduta que possa pôr em causa o encerramento provisório da referida porta até à decisão que vier a ser tomada na ação principal, com a cominação de, não o fazendo, incorrerem num crime de desobediência.
Alega, para tanto, em síntese, que Requerente e Requeridos (respetivamente, filho e nora da Requerente) residem no imóvel que integra a herança deixada por óbito do marido da Requerente, pai do Requerido, o qual tem partes de utilização autónoma, sendo um aparte utilizada pela Requerente e outra parte utilizada pelos Requeridos, necessitando a Requerente, atendendo à sua idade e ao seu estado de saúde, que alguém pernoite consigo, do lado da residência que a mesma ocupa, já que se encontra incompatibilizada com os Requeridos. Mais alega que os seus restantes filhos se encontram na disponibilidade de pernoitar na parte da casa ocupada pela Requerente, mas que pretendem ter privacidade de modo a não haver conflitos. Alega ainda que a parte da casa que a requerente habita comunica com a parte da casa que os Requeridos habitam através de uma porta que a Requerente pretende ver encerrada, opondo-se os Requeridos a tal encerramento, uma vezque pretendem continuar a utilizar o quarto de banho que se situa do lado da casa ocupado pela Requerente.

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Admitiu-se liminarmente o procedimento cautelar e dirigiu-se convite ao aperfeiçoamento por despacho de 4/2/2020.
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A requerente veio responder ao convite que lhe foi dirigido pelo Tribunal, concretizando parte da factualidade alegada na p.i. e juntando documentos (cfr. fls. 25 a 33).
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Por despacho de 18/2/2020 determinou-se a citação prévia dos requeridos, e os Requeridos vieram deduzir oposição, invocando a ineptidão da petição inicial, impugnando parte da factualidade alegada na petição inicial e alegando que não podem permitir o encerramento da porta em causa uma vez que assim ficam privados do acesso à única casa de banho existente na casa, sendo que, se qualquer um dos demais filhos da Requerente pretender pernoitar com a mesma na habitação, dispõe de condições de privacidade para tal, nunca tendo os Requeridos impedido a presença de qualquer um dos irmãos no imóvel.
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Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pelas partes e depois foi proferida decisão que julgou o procedimento improcedente por não provado,
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Foram apresentadas as seguintes conclusões:
1. O Tribunal Recorrido reconhece que a situação da Requerente é digna de tutela jurídica, afirmando, que não se verifica o fundado receio de que os Recorridos causem lesão grave e dificilmente reparável a tal direito, uma vez que, não resulta dos autos que aqueles impeçam ou obstaculizem a Recorrente de receber os cuidados de assistência e auxilio durante a noite, designadamente dos restantes filhos.
2. O Tribunal Recorrido afirma que são os restantes filhos da Recorrente que se recusam a pernoitar na casa da Requerente por se sentirem constrangidos perante a hipótese de os Requeridos aí se poderem deslocar, designadamente para utilizarem a única casa de banho disponível na habitação, concluindo que se algum perigo de lesão grave do direito da Requerente se verifica tem causa na conduta dos demais filhos da Recorrente que condicionam o cumprimento do dever de auxílio e assistência a que estão obrigados ao encerramento de uma porta comunicante com a residência dos Requeridos.
3. A conclusão silogística empreendida pelo Tribunal está errada, uma vez que as premissas não permitem o resultado a que se chegou.
4. Os Recorridos habitam o prédio que hoje integra a herança aberta por óbito do marido da Recorrente por mero favor e tolerância desta e do seu falecido marido, que se arrasta desde há cerca de 35 anos, tolerância estendida à utilização do quarto de banho existente na habitação da Recorrente.
5. A Recorrente por força da lei (artigo 2018º do C.C.) tem direito a habitar a casa que era a casa do casal constituído por si e seu falecido marido, sendo que o prédio onde se integra essa casa e onde se localiza o falado quarto de banho, era bem comum do dissolvido casal e como tal a Recorrente acumula a qualidade de cônjuge meeira, herdeira e cabeça de casal, cabendo-lhe no âmbito desta função a administração da herança e podendo enquanto tal pedir de terceiro incluindo de qualquer herdeiro a entrega dos bens.
6. Os Recorridos só têm direito a utilizar a casa de banho existente na parte do prédio onde está localizada a casa da mãe, enquanto existir essa vontade por parte da Recorrente, já que não se provou a existência de qualquer contrato que imponha à Recorrente o dever e obrigação de ter que suportar, a utilização da casa de banho existente na parte do edifício onde se insere a sua habitação, por parte dos Requeridos.
7. Com os factos que resultaram provados e pelos fundamentos que acima se expôs o Tribunal tinha que tutelar o direito que a Recorrente pode exigir aos demais filhos e que estes querem cumprir e decidir autorizá-la, no âmbito do presente procedimento cautelar, a encerrar provisoriamente a porta comunicante que liga uma casa a outra e condenar também provisoriamente os Recorridos a absterem-se de qualquer conduta que possa pôr em causa o encerramento provisório da porta até à decisão que vier a ocorrer na ação principal.
8. O encerramento da porta comunicante entre habitações, (da Recorrente e Recorridos) não é um simples capricho ou mero incómodo, mas antes o único modo de se poder preservar o direito à privacidade e intimidade do casal (filhos e noras) que pernoitar na casa da mãe.
9. A conclusão que não se verifica o requisito da lesão grave e dificilmente reparável do direito da Recorrente uma vez que não resulta dos autos que sejam os Recorridos a impedir ou obstaculizar a Requerente de receber os cuidados de assistência durante a noite designadamente dos restantes filhos, é errada.
10. Não é necessário que ocorra uma oposição direta do Recorridos para existir uma clara situação de impedimento ou obstaculização do direito da Recorrente a que lhe seja prestado o auxílio e assistência pelos demais filhos.
11. Sendo do conhecimento dos Recorridos que os irmãos e cunhadas não aceitam dormir ou pernoitar em casa da mãe e sogra com a porta comunicante de ambas as habitações a funcionar e a permitir o livre acesso dos Recorridos à casa da Recorrente para além do mais utilizarem.
12. o quarto de banho e tendo vontade expressa ou escondida que os irmãos não pernoitem na casa da mãe que já sentem sua, obviamente que a oposição daqueles a que se encerre a referida porta constitui um impedimento ou obstáculo ao direito que a Recorrente pretende ver realizado pelos demais filhos.
13. O raciocínio utilizado pelo Tribunal para afastar a lesão grave, atual e irreparável do direito da Recorrente, ora discutido e esmiuçado não tem cabimento e é claro e cristalino que os Recorridos estão a violar o direito de auxílio e assistência que a Recorrente pretende ver realizado por intermédio dos demais filhos, ao oporem-se ao encerramento da porta comunicante entre cada uma das habitações.
14. O Tribunal, ao não encontrar na conduta dos Recorridos de oposição ao encerramento da porta discutida nos autos, um indisfarçável modo de violação dos direitos da Recorrente ao auxilio e assistência que aquela pretende ver cumprido pelos demais filhos que não os recorridos, nega-lhe a efetivação daquele direito.
15. A Recorrente, pessoa com a idade de 86 anos, pede ao Tribunal é a tutela do seu direito a ser auxiliada e assistida, pelos seus demais filhos e noras, contra um filho e nora que habitam por favor em parte de um prédio que é bem comum da Requerente e seu falecido marido, e onde se insere a casa que esta tem direito a habitar, enquanto cônjuge sobrevivo, enquanto cônjuge meeiro, herdeira e cabeça de casal.
16. A Recorrente apenas e tão só pretende que os Recorridos deixem de aceder à sua casa, que deixem de utilizar a casa de banho da sua habitação, para permitir que os demais filhos semanalmente e de modo alternado pernoitem na sua habitação, com o respetivo cônjuge, dando efetividade ao direito de ser auxiliada e assistida durante a noite, protegendo desse modo tanto quanto possível a sua saúde e vida.
17. Nenhuma razão ou causa se encontra que justifique que a Recorrente continue privada do afeto, cuidado e amparo dos filhos e noras que estão disponíveis a dar-lho, desde que, possam dormir e pernoitar na habitação da mãe, com respeito pela sua intimidade e privacidade no quarto onde pernoitarão.
18. Não andou bem o Tribunal ao concluir que não se verifica a violação por parte dos Recorridos dos direitos da Recorrente, considerando mesmo que quem viola esses direitos são os demais filhos da Recorrente ao recusarem-se a auxiliar e assistir a mãe sem o encerramento da porta que da habitação dos Recorridos dá acesso à habitação da Recorrente, como se aqueles fossem obrigados a suportar, sempre que os Recorridos quisessem, a violação da sua privacidade e intimidade no local onde pernoitarão em casa da mãe.
19. Na sentença recorrida o Tribunal de primeira instância violou por erro de interpretação e aplicação o preceituado nos artigos 1874º, 2018º, 2088º do C.C. não se olvidando o artigo 1º da nossa lei fundamental que nos refere enquanto estado como República soberana baseada na dignidade de pessoa humana.
Nestes termos e nos melhores de direito deve revogar-se a sentença recorrida, proferindo-se decisão que permita à Recorrente encerrar provisoriamente a porta que liga a casa por si habitada à casa dos Recorridos e que condene estes também provisoriamente a absterem-se de qualquer conduta que possa colocar em causa o encerramento provisório da referida porta até à decisão final.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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3. A questão a decidir é apenas determinar se face à matéria de facto indiciada e não impugnada a decisão jurídica pode ser alterada nos termos requeridos.

4.1. Fundamentação de facto
1. A Requerente nasceu no dia 27/09/1933.
2. Foi casada com E… sob o regime da comunhão geral de bens, tendo o casamento sido dissolvido por óbito deste em 19/07/2017.
3. Desse casamento nasceram os seguintes filhos: a. F…, casado com G…; b. C…, casado com D…; c. H…, casado com I…; d. J…, divorciado e. K…, divorciado.
4. Em 2/10/2019, a requerente apresentou queixa-crime contra os requeridos, que deu origem ao proc. de inquérito n.º 471/19.1T9PFR, que corre termos nos serviços do Ministério Público junto deste Tribunal.
5. A Requerente é seguida em consulta de psiquiatria por processo demencialvascular com menção depressiva, estando medicada com antidepressivo e antidemencial.
6. A Requerente necessita de ajuda de terceiros para se deitar e levantar da cama, para executar a sua higiene pessoal e realizar as suas necessidades fisiológicas, para se vestir e despir, para preparar a sua alimentação e para tomar medicação.
7. A Requerente frequenta, durante o dia, o centro de dia do L….
8. E necessita, à noite, do apoio de terceira pessoa para os atos referidos em 6..
9. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 777, freguesia … –…, o Prédio sito na Rua …, composto de casa de rés-do-chão e 1.º andar, com área coberta de 87 m2, com os seguintes compartimentos: no primeiro andar um com 9,30m2, outro com 9 m2, outro com7,50 m2, outro com 10,15 m2, outro com 7,54 m2, outro com 7,35 m2, outro com 9,60 m2, outro com 5,41 m2 e quarto sanitário; no r/c oficina de móveis e arrecadação de madeiras, anexo a casa térrea para arrumos com área coberta de 38m2.
10. O imóvel referido em 9. faz parte do acervo patrimonial da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de E….
11. A Requerente e os Requeridos habitam o imóvel referido em 9., ocupando áreas distintas e partilham a utilização da única casa de banho aí existente.
12. A zona da casa ocupada pela Requerente é contígua à zona da casa ocupada pelos Requeridos, comunicando uma com a outra por intermédio de uma porta.
13. A casa de banho existente no imóvel situa-se na zona da casa ocupada pela Requerente, tendo os Requeridos que atravessar a porta referida em 12. para a poderem utilizar.
14. Na zona da casa ocupada pela Requerente existem, para além da casa-de-banho, uma cozinha, uma sala e dois quartos, sendo um deles ocupado pela Requerente.
15. Para os Requeridos acederem à casa de banho do imóvel têm que passar por um dos quartos, que não o da Requerente, situado na zona ocupada por esta.
16. Alguns dos demais filhos e noras da Requerente pretendem pernoitar na casa da Requerente, alternadamente, por forma a prestar-lhe assistência.
17. Porém, têm uma relação de conflito com os Requeridos, não se falando.
18. Só com o encerramento da porta referida em 12. estão os demais filhos e noras da requerente disponíveis para dar cumprimento ao dever de auxílio e assistência de que a requerente necessita.
19. A Requerente e os demais filhos disseram aos Requeridos para estes construírem, a expensas dos Requeridos, uma casa de banho na zona da casa por eles ocupada.
20. O agregado familiar dos Requeridos é composto pelos próprios e por um filho.
21. Há cerca de 35 anos que os Requeridos residem nesse local.
22. Foram sempre os Requeridos que prestaram assistência à Requerente e ao seu falecido marido em vida deste, o que se prolongou até Agosto de 2019.
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B - Factos não provados:
Com relevo para a decisão final, não se provou que:
a) A Requerente sofre de doença coronária e é hipertensa.
b) Existe local e viabilidade técnica para construção de uma casa de banho na zona da casa ocupada pelos Requeridos.
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5. Fundamentação de Direito
O presente caso, que configura um drama humano sério, por certo hiperbolizado pela situação de pandemia, tem, porém, uma solução jurídica simples e clara.
A mesma pode ser resolvida, por apelo aos direitos de personalidade; aos direitos de compropriedade e ainda às regras relativas à divisão do acervo hereditário que, recorde-se consagram um direito de preferência do cônjuge sobrevivo sobre a casa de morada da família e o seu recheio.

5.1. Da atribuição da casa de banho como parte exclusiva da casa de morada da família
O art.º 2103.º, n.º 1, do Código Civil preceitua que “o cônjuge sobrevivo tem direito a ser encabeçado, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada de família e no direito de uso do respectivo recheio, devendo tornas aos co-herdeiros se o valor recebido exceder o da sua parte sucessória e meação, se a houver”.
Este direito é um direito de preferência que deve ser exercido no momento da partilha.
Conforme afirma Capelo de Sousa[1], com a atribuição preferencial destes direitos pretende o legislador proteger mais eficazmente o cônjuge sobrevivo atribuindo-lhe na partilha preferência em relação a certos bens que estiveram ao serviço do casal e que por isso devem permanecer ligados ao cônjuge sobrevivo.
Mas, note-se que, por um lado, não decorre em rigor da factualidade alegada e comprovada que o imóvel assuma a natureza da casa de morada da família e, por outro lado, que esse direito de preferência só opera no decurso da partilha[2] sendo que a requerente continua a fruir esse imóvel.
Ora, conforme já foi decidido pelo Ac do TRL de 28/06/2012, nº 4109/11.7TBFUN.L1-2 (Maria José Mouro) até à partilha do imóvel, pode o cônjuge sobrevivo continuar a usar a casa como o fazia em vida do falecido: “Para a situação da casa de morada de família entre o momento da abertura da sucessão e o da partilha, valem as regras gerais relativas à administração da herança, mas o cônjuge e demais partilhantes têm em relação à utilização da casa em questão enquanto a partilha não esteja efectuada, os mesmos direitos e obrigações que tinham em vida do falecido”.
Nesta matéria Capelo de Sousa[3] é claro ao referir que “ dados os termos da lei ao exigir que tal encabeçamento se faça no “momento da partilha”, isso retira a possibilidade de acções declarativa e executiva com o pedido específico de encabeçamento nos direitos em causa. Acrescentando, contudo: «Quanto à situação da casa de morada de família entre o momento da abertura da sucessão e o da partilha, valem as regras gerais relativas à administração da herança (arts. 2079º e segs. do CCivil)”.
Assim esse instituto não pode fundamentar o uso exclusivo da casa de banho pela requerente.
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5.2. Do uso da coisa comum no âmbito da compropriedade
A requerente e os requeridos são comproprietários do imóvel, o qual não se encontra material e juridicamente dividido e possui apenas uma casa de banho situada na zona ocupada pela requerente.
Nos termos do artigo 1406.º, n.º 1, do CC, (na parte pertinente) «na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que (…) não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito».
Ou seja, o pedido formulado pela requerente terá o efeito prático de impedir o gozo da coisa, como casa de habitação por parte dos requerentes, assim impedindo o seu gozo.
Como salienta a nossa doutrina[4], «o segundo limite do uso da coisa pelo comproprietário é ditado pela necessidade de facultar aos outros consortes a possibilidade de igualmente se serviram dela (…)”.
Logo, o pedido da requerente viola essa norma e parte de um pressuposto errado, ou seja, que a casa de banho, por estar na zona que habitualmente usa lhe pertence ou pode ser usada por si em exclusivo.
Note-se aliás que um caso semelhante já foi decidido pelo Ac da RL de 16.5.2013 Nº 7244/04.4TBCSC.L1-6. E, nesta matéria, Carvalho Fernandes[5] salienta: «como é evidente, os problemas surgem, quanto a este limite, nos casos em que não se mostre praticável um fraccionamento do uso. Suponha-se uma situação de compropriedade que tenha por objecto uma fracção autónoma e esta não permita o uso simultâneo de todos os comproprietários. Na falta de acordo, as alternativas são as de não permitir o uso de qualquer dos comproprietários e a de encontrar uma solução sucedânea da prevista na lei. Poderia ela ser a de o comproprietário, que venha a ter o uso exclusivo, compensar os demais pelo valor do uso que exceda a sua quota. Do ponto de vista económico-social, afigura-se-nos ser esta uma solução acertada”.
Ora, nem sequer é isso que a requerente pretende. A mesma limita-se a querer fazer sua a coisa comum (casa de banho) e permite apenas que os comproprietários construam uma nova para servir a zona da fracção que ocupam, isto é, a requerente quer dividir uma coisa indivisível apropriando-se da única casa de banho.
É evidente, pois, que a sua pretensão não pode ter guarida nos termos do direito de compropriedade.
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5.3. Da utilização dos direitos de personalidade
A nossa legislação protege de forma acentuada os direitos de personalidade, onde se inclui o direito de ser acompanhado pela família próxima como pretende a requerente.
O art. 70º, do CC dispõe que: “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. 2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”.
Esta norma, pela sua formulação ampla em termos de cláusula geral tem a flexibilidade e a capacidade expansiva de incluir a pretensão da requerente, como uma dimensão do seu direito à saúde e ao equilíbrio bio-psíquico-social. [6]
Por isso, parece hoje pacífico que, na tutela da integridade física e psíquica de uma pessoa se deve inscrever o direito ao repouso, à tranquilidade, ao sono ou o acompanhamento dos seus familiares.
Note-se, por exemplo, que o Ac. do TRL de 4.11.2004, nº 4161/2004-6 19.5.94, entendeu que o senhorio violava o direito de saúde da arrendatária ao avariar o elevador da fração obrigando-a, com 84 anos, a subir vários andares.
Mas, o caso presente releva que os requeridos têm também direito a usufruir na sua habitação de uma casa de banho, sem a qual o seu direito de saúde, higiene e tranquilidade também fica ameaçado.
Bastará dizer que o art 84 do RGEU exige que: “Em cada habitação, as instalações sanitárias serão quantitativamente proporcionadas ao número de compartimentos e terão, como mínimo, uma instalação com lavatório, banheira, uma bacia de retrete e um bidé”.
Por isso, é evidente que a fruição dos requeridos sem essa casa de banho nunca poderia ser qualificada como uma casa de habitação digna, apta e funcional do seu direito de habitação, ao seu direito de saúde e aos seus direitos de personalidade.
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6. Dos requisitos da colisão de direitos
Antes da aplicação ao caso do art. 335º, do CC importa frisar que a problemática da colisão de direitos pressupõe que “o exercício de um direito impossibilita, no todo ou em parte, o exercício de outro”.
Ou seja, para que se verifique uma situação desta natureza é necessário cumulativamente que[7]:
a) exista uma pluralidade de direitos,
b) que estes sejam de titulares diferentes;
c) e que seja impossibilidade de exercício simultâneo e integral desses direitos.
Ou, como salienta o Ac da RG de 3.3.2016, nº 593/11.7TBMNC-G1 (Miguel Baldaia); a colisão verifica-se sempre que dois ou mais direitos subjetivos assegurem, aos seus titulares, permissões incompatíveis entre si.
Ora, no caso presente não podemos afirmar que exista essa incompatibilidade.
Teremos de notar que o uso pelos requeridos da casa de banho é compatível em abstrato com o direito de acompanhamento da requerente.[8] Bastaria a fixação de um horário ou a criação de maior privacidade para as visitas para inexistir esse problema., Depois, decorre dos factos provados que esta situação existe desde há 35 anos e que a requerente enviuvou desde 2017.
Ou seja, estranho será que algo seja agora incompatível quando não o foi durante largos anos entre as mesmas partes.
Por fim, a impossibilidade de os restantes filhos realizarem esse apoio, a existir é meramente subjectiva, ou seja, esse acompanhamento poderia ser realizado por outra pessoa (ainda que remunerada), que não estivesse incompatibilizada com os requeridos[9].
Como bem salienta a decisão de 1º instância, está por demonstrar e não decorre dos factos provados que “fechar a porta e impedir o acesso à casa de banho” seja a única forma da requerente ter acompanhamento por parte dos seus outros familiares.
Por isso, não está demonstrado o pressuposto fundamental para o conflito de direitos (o principio da necessidade), ou seja, que a restrição do direito dos requeridos seja fundamental e o único meio para salvaguardar o direito da requerente.
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6.2. Da colisão de direitos
Por fim para que não subsistam dúvidas, mesmo que pudéssemos afirmar que estamos perante uma situação de colisão de direitos, o resultado teria de ser desfavorável à apelante.
O art. 335º, do CC dispõe que: “Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes”.
Esta norma adotou, pois, o princípio da concordância prática, segundo a qual se procura obter o máximo de proteção para cada um dos direitos, comprimindo-os mutuamente de forma proporcional. Caso tal não seja possível em certas situações é antes necessário que se encontre o direito “preponderante”.[10]
Conforme salienta, por exemplo o Ac do STJ de 29.11.2016, nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1: “Os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito hão de ser solucionados mediante a respetiva ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de um em relação ao outro e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual”.
Ora, in casu estamos perante a utilização de uma casa de banho pelo que, por exemplo, não se pode limitar o seu uso por parte dos requeridos durante a noite.
Do mesmo modo, não podemos impor à requerente a restrição do seu desejo de ter apoio familiar apenas por algumas horas, por forma a que estes usem de forma limitada a casa de banho.
Tendo em conta que estamos perante um problema de acesso a uma instalação sanitária, a flexibilização e utilização da casa de banho é complicada, fundamentalmente porque a requerente efectua um pedido absoluto e definitivo (impedir o acesso total à mesma).
Ora, segundo essa lógica de tudo ou nada defendida pela requerente, os dois direitos não são passíveis de compatibilização.
Importaria, pois, determinar o interesse prevalecente a proteger:
a) ora, a necessidade de utilizar uma casa de banho numa casa de habitação é tão ou mais premente que a necessidade de ter acompanhamento noturno mesmo sendo uma pessoa de idade e com problemas de saúde;
b) essa necessidade diz respeito a 3 pessoas por confronto com o pedido da requerente, já que está provado que “o agregado familiar dos Requeridos é composto pelos próprios e por um filho, logo são 3 os afectados versus um”.
c) Os requerentes vivem no local com apenas 1 casa de banho há 35 anos[11];
d) não é possível construir no local outra casa de banho (factos não provados).
e) a requerente pretende impor aos requeridos a construção de uma casa de banho sem suportar qualquer custo;
Deste modo, podemos concluir que, no caso concreto, o direito preponderante é o dos requeridos pelo que ponderando os interesses em causa, e face ao princípio da proporcionalidade, deveria manter-se a situação factual que existe entre as partes há 35 anos, por ser aquela que, protege da forma mais amplas os direitos de personalidade e propriedade das partes.
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7. Decisão
Pelo exposto, este tribunal julga o presente recurso improcedente por não provado e, por via disso, mantém integralmente a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante por ter decaído totalmente.

Porto em 22.10.2020
Paulo Duarte Teixeira
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
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[1] Lições de Direito das Sucessões, II, pág. 243.
[2] Sobre as variações do conceito, cfr. Nuno de Salter Cid, in “A Proteção da Casa de Morada da Família no Direito Português, 1996, pág. 30 e 31 e segs.
[3] In Lições de Direito das Sucessões», vol. II, pag. 238 e nota 952.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado”, volume III, Coimbra Editora, 1987, 2ª edição, p. 357.
[5] in “Lições de Direitos reais”, Quid Juris, 2ª edição, 1997, p.322 e 323.
[6] Alguns recentes arestos, abordam este direito sob o prisma do sossego, equilíbrio psicológico, barulho ou incómodos por exploração cfr. Ac. do STJ de 01/03/2016, processo 1219/11.4TVLSB.L1.S1; Ac. do STJ de 29/11/2016, processo 7613/09.3TBCSC.L1.S1; Ac. R.C. de 03/30/2015, processo 498/13.7TBTND.C1; e Ac. R.C de 15/11/2016, processo 136/16.6T8PNI.C1 (hostel para surfistas).
[7] ELSA VAZ SEQUEIRA, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, UC, pág. 793
[8] O tribunal oficiosamente ouviu a prova produzida. Da primeira testemunha, filho da requerente, logo decorre que o problema afinal é que para acesso à casa de banho será necessário passar pelo quarto onde ficaria a dormir. Por isso, o problema referido por essa testemunha é a passagem não o uso do quarto de banho (cfr. nos mesmos termos depoimento Sr. J…).
[9] Cfr. depoimento irmão Sr. J… que afirma “seria isso que estava a pensar fazer”.
[10] Neste sentido, entre outros: Paulo Videira Henriques, “Os “excessos de linguagem” na imprensa”, António Pinto Monteiro (coord.), Estudos de Direito da Comunicação, Instituto Jurídico da Comunicação, 2002, pp. 207 e 208, Euclides Dâmaso Simões, “A liberdade de expressão na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, Revista do Ministério Público, 113, 2008, pp. 102 e 103; Francisco Teixeira da Mota, O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Liberdade de Expressão, Coimbra Editora, 2009, pp. 19 e 20. E na nossa jurisprudência o Ac do STJ de 13.3.1997 nº JSTJ00031587 e o O Ac do TC nº 388/2014, Processo n.º 175/14, 2.ª Secção (Cura Mariano).
[11] Depoimento testemunha Sr. M… só há um ano é que estão zangados, fui lá e na altura davam-se bem.; “viveu ali quase 40 anos com a nora e o filho”.