HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
PERDÃO
LEI ESPECIAL
REJEIÇÃO
Sumário

Texto Integral


§I. - RELATÓRIO

AA, requer, ao amparo do disposto no art.° 222.°, nº 2 alínea b) do CPP “Petição Extraordinária de Habeas Corpus o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:

Da aplicação da Lei de Perdão - Lei 9/2020 de 10.04.2020

1.° - O arguido foi condenado, há longos anos, nos presentes autos, por factos que remontam ao mês de Maio de 2004. Há, por isso, mais de 16 anos.

2.° - Tendo sido declarado contumaz - e residindo no Reino Unido, com sua companheira e filha - veio o arguido a tomar conhecimento, através do seu mandatário, que lhe havia sido revogada a pena suspensa de um ano e dez meses de prisão. (Mandados de Detenção emitidos em 24.10.2013 “ex vis” de Douto despacho Judicial já transitado em julgado).

3.° - O arguido - sabedor que contra si tinham sido emitidos os respectivos Mandados de Detenção para execução dessa pena - decidiu regressar a Portugal para o seu cumprimento.

4.° - No dia 14 de Julho de 2020 foi preso como os autos dão conta encontrando-se no Estabelecimento Prisional de … . (Recluso nº …)

5.°- No entanto o arguido, condenado em pena de prisão já transitada em julgado encontra-se abrangido pelo perdão ínsito no art° 2º, nº 1 e 5 da Lei 9/2020 de 10 de abril

6.° - Uma vez que o perdão aí estipulado é de dois anos e o crime pelo qual foi condenado admite esse mesmo perdão. (art.°210.° CP).

7.° - Pelo que a sua prisão se mostra doravante ilegal.

8.° - Dado o disposto no art.° 29.° nº 4 da Constituição da República Portuguesa, aplicam-se retroatívamente ao arguido “as leis penais de conteúdo mais favorável”,

9.° - Sem esquecer que a alínea a) do nº 1 do art. 1.° da Lei 9/2020 de 10 de Abril estatui genericamente que a presente lei estabelece “Um perdão parcial de penas de prisão” não restringindo essa aplicação a condenados que não se encontrassem reclusos no momento da promulgação da Lei.

10.° - Devendo assim entender-se que esse perdão incide “prima facie” sobre as penas de prisão em concreto aplicadas aos condenados independentemente da sua situação concreta (em liberdade provisória, ou em reclusão), e ressalvadas as excepções contidas no art. 1º, nº 6 da mencionada Lei.

11.º - Diferente interpretação do disposto nos arts. 1.° e 2.° da Lei 9/ 2020 de 10 de Abril revelar-se-ta materialmente inconstitucional precisamente por violação da excepção à irretroactívidade da lei penal, a que faz jus a norma constante do apontado art. 29.°, nº 4 da CRP.

12,° - A qualquer cidadão que se encontre ilegalmente preso, o STJ concede a providência excepcional de Habeas Corpus (art.° 222.° nº 1 do CPP)

13.° - Pelo que se requer a imediata restituição à liberdade do arguido AA, face ao disposto no art. 222.° n° 2 alínea b) do CPP.”

§I.a). – Artigo 223º, nº 1 do Código Processo Penal.

O juiz do tribunal da comarca de …, informou “(…) que o arguido foi detido em 14-7-2020, ao abrigo de mandado de detenção, emitido em 24-10-2013, para cumprimento da pena de 1 ano e 10 meses de prisão, na sequência de revogação da suspensão da execução da pena em que fora condenado, arguido que se encontra no estabelecimento prisional de … .”

§I.b). – QUESTÃO PARA APRECIAÇÃO/SOLUÇÃO.

Esgrime o requerente a ilegalidade da sua situação prisional (actual) por entender que lhe deveria ter sido aplicado o perdão de penas consagrado no artigo 2º, nº 1 da lei nº 9/2020, de 10 de Abril.

§II. – FUNDAMENTAÇÃO.

§II.A. – ELEMENTOS PERTINENTES PARA A SOLUÇÃO DO CASO.

1. - O requerente foi condenado, por decisão transitada em julgado, datada de 16 de Junho de 2010, a) (…) pela prática, em autoria material, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão.

b) Suspender a execução de tal pena de prisão pelo período de 1 (um) ano e 10 (dez) meses, acompanhada de um regime de prova assente num plano individual de readaptação social, a elaborar pelos serviços de reinserção social, devendo ainda impender sobre o arguido a obrigação de responder a todas as convocatórias que para o efeito lhe vierem a ser feitas pelo Tribunal e pelos técnicos de reinserção social.

2. – Em despacho datado de 19 de Julho de 2013, foi decidido (sic): “Por decisão transitada em julgado em 16.06.2010, foi o arguido AA condenado, como autor material, da prática de um crime de roubo, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e 10 (dez) meses, acompanhada de regime de prova assente num plano individual de readaptação social, a elaborar pelos serviços de reinserção social, devendo ainda impender sobre o arguido a obrigação de responder a todas as convocatórias que para o efeito lhe vierem a ser feitas pelo Tribunal e pelos técnicos de reinserção social.

Por despacho de fls. 254 foi homologado piano individual de reinserção social.

Foi junta aos autos certidão de sentença proferida em 07.04.2011 no processo n.° 889/10.5… do Io juízo, Ia secção do Tribunal de Peq. Inst. Criminal de …, transitada em 06.06.2011 no qual o arguido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, e um crime de injúria agravada, praticados em 25.09.2010.

Foi designada data para audição do arguido, sendo que nos termos da mesma foi decidido a prorrogação do prazo de suspensão da execução da pena por um ano, devendo o arguido frequentar consultas de psicologia e realizar tratamento de desintoxicação relativamente ao consumo de estupefacientes.

Por informação prestada pela DGRS datada de 26.10.2012 (cfr. fls. 180/182), foi informado que o arguido tem faltado sistematicamente à convocatórias enviadas, sendo que "dos contactos telefónicos efectuados com o próprio, este tem manifestado uma atitude de grande resistência face a qualquer tipo de intervenção por parte dos nossos serviços (...) a atitude do arguido remete para a sua colocação deliberada numa posição de não cumprimento da presente medida (...), considera-se que o arguido não se encontra a cumprir o Plano de Reinserção Social delineado".

Foi designada data para tomada de declarações ao arguido, nos termos da qual, pelo mesmo foi referido que:

"(...) não se recorda da condenação nos presentes autos nomeadamente do crime e da pena. Recordando-se no entanto que foi condenado no âmbito de um processo da Pequena Instância Criminal de …, contudo não se recorda do crime nem da pena em que foi condenado. Recorda-se no entanto de ter vindo cá ao Tribunal em Fevereiro deste ano para ser ouvido, não se recordando, de ter sido determinada a prorrogação da pena, lembrando-se no entanto que tinha de frequentar consultas de psicologia e submeter-se a um tratamento de desintoxicação de consumo de estupefacientes. Contudo referiu, que não foi a tais consultas, nem tratamento uma vez que não sabia onde se dirigir nem sabia que era através da DGRS. Nem diligenciou junto ao Tribunal nem junto da DGRS para saber de tal esclarecimento, Admite ter recebido as convocatórias da DGRS, contudo tem faltado a tais convocatórias, uma vez, que tem o dia todo ocupado, da parte de manhã com as aulas de código na escola de condução Atlântica e da parte da tarde no curso de formação profissional de técnico de informática com horário das 14 as 20 horas. Questionado acerca de não ter ligado à DGRS para justificar a sua falta de comparência, uma vez que disse ter recebido as convocatórias, referiu que não ligou porque deixou passar, bem como, não tem vontade de comparecer na DGRS, porque acha que e é desnecessário.

Sendo que aos fins-de-semana fica em casa. Mais referiu que esta a tirar a carta de condução desde janeiro Fevereiro deste ano. Mais referiu que trabalhou julho de 2011 até Novembro de, altura em que foi despedido. Mais referiu que a partir de Novembro de 2011, ficou à espera de uma nova oportunidade. Sendo, que após enviou o seu currículo para várias empresas, como por exemplo …, …; …, … . Mais referiu ainda que considera a oportunidade que lhe foi concedida em Fevereiro de 2012, por este Tribunal, sendo que continua a merecer mais oportunidades., porque se tem esforçado a fazer alguma coisa pela sua vida. Mais referiu que actualmente consome haxixe todos os dias. Mais referiu que beneficia de uma bolsa de estudo pelo curso que frequenta numa escola em …, mas contudo não sabe dizer o nome da escola, recebe uma bolsa no montante de 100 euros, sendo que gasta 60 euros para o passe, sendo que os 40 remanescentes gasta para consumo de haxixe. Vive com a mãe e irmão, sendo que é a mãe que o sustenta."

O Ministério Público teve vista nos autos e pronunciou-se, a fls. 346/349, no sentido de ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido.

Notificado de tal promoção, veio o arguido referir que a sua mãe encontra-se desempregada, não conseguindo suportar o pagamento semanal do valor de € 6,00 para o transporte do arguido à DGRS, razão pela qual é difícil cumprir as visitas do arguido à DGRS, tendo ambos ficado com a convicção que não era necessário comparecer ao IRS pois o assistente social em questão nunca mais disse nada. Mais alegou que, pensava que estava a cumprir com o seu dever de reinserção social e profissional não tendo consciência de que se encontrava a violar alguma decisão judicial.

A fls. 363/364 dos autos consta informação da DGRS nos termos da qual, (...) No passado dia 24.01.2013, o arguido disponibilizou-se para comparecer nos nossos serviços juntamente com a sua mãe, a quem efectuamos uma entrevista conjunta. O arguido admitiu que tem incumprido com a obrigação de comparecer nos nossos serviços sempre que convocado para o efeito. Justificou esse incumprimento com o facto de sentir que os nossos serviços não o podem ajudar, embora não tenha concretizado que tipo de ajuda procura o próprio (...), face ao exposto, deve considerar-se que o arguido tem manifestado dificuldades assinaláveis no cumprimento do plano delineado, nomeadamente, cumprir com as entrevistas nos nossos serviços. (...) sobre a eventual ajuda ou apoio em relação ao consumo de "cannabis", e respectivo acompanhamento psicológico, o arguido recusa qualquer intervenção a esse nível (...)”.

Foram tomadas declarações ao técnico de Reinserção Social, Dr. BB, nos termos das quais ressalta (...) mais refere que registou uma mudança de comportamento do arguido desde 24.01,2013, contudo o mesmo continua a não mostrar qualquer vontade de aderir a uma intervenção terapêutica de tratamento de consumo de estupefacientes. No mais referiu que não foram agendadas consultas de psicologia para o arguido uma vez que o mesmo considera que não são importantes (...)”.

Por sua vez, tomadas declarações ao arguido, por esta foi referido que "(...) continua a achar desnecessário a intervenção da DGRS que não o estão a ajudar. Mais referiu que considera desnecessário a frequência de consultas de psicologia bem como considera o tratamento indicado para consumo de estupefacientes desnecessário e não vai surtir qualquer efeito (...)”.

Cumpre apreciar e decidir. A suspensão da execução de pena é uma pena de substituição das penas privativas de liberdade, com um particular sentido pedagógico e de ressocialização.

Aqui há uma pena que efectivamente pronunciada pelo Tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição previstas no art. 40° do Código Penal “Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao arguido, ou seja, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime”.

Ora compulsados os autos, dir-se-á que concorda-se inteiramente com os fundamentos de facto e de direito aduzidos pelo Ministério Público.

Na verdade, resulta à sociedade que o arguido cometeu, durante o período de suspensão da execução da pena de prisão, novos crimes pelos quais foi julgado e condenado. Mais acresce que, o arguido não se encontrou impossibilitado de cumprir o plano de reinserção social, manifestando uma atitude de desinteresse e indiferença pelo cumprimento do mesmo, o que nos permite concluir que as finalidades que estiveram na base da suspensão aplicada não alcançaram os seus objectivos.

Assim sendo, e nos termos do art. 56.°, nºs 1, al. a) e 2, do Código Penal, revogo a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido nos presentes autos e determino que o mesmo cumpra a pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão em que foi condenado.”

3. – Em 15 de Julho de 2020, foi promovida a sequente liquidação de pena (sic): “Por douta sentença, transitada em julgado no dia 16 de junho de 2010, foi o arguido AA condenado peia prática de 1 crime de roubo, p. e p, pelo artigo 210°, nº 1, do CP, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, mediante sujeição a regime de prova - cfr. fls. 212-229 e 232-233.

Compulsados os autos, verifica-se que o arguido cometeu novos ilícitos criminais durante o período de suspensão da execução da pena de prisão e não cumpriu o regime de prova em que havia sido condenado, razão pela qual se revogou a suspensão da execução da pena de prisão e se determinou o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença - cfr. fis. 372-376 e 411.

Mais se verifica que, em 14-07-2016, o TEP declarou a contumácia do arguido, sendo que este não sofreu qualquer dia de detenção ou privação da liberdade que cumpra descontar, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 80°, do Código Penal, tendo sido ligado à ordem dos presentes autos, no dia 14 de julho de 2020 - cfr. fls. 442-443 e 465-467.

II - Atentos os elementos supra referidos e o disposto nos artigos 41° do Código Penal e 479°, nº 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, o arguido atingirá:

• 1/2 DA PENA:--------------------------------------14 de junho de 2021;

• FIM DA PENA:-----------------------------------14 de maio de 2022.” – fls. 32 do presente procedimento;

4. – A liquidação de pena promovida foi objecto do sequente despacho (sic): “Concorda-se com a liquidação de pena nos termos constantes da promoção do Ministério Público, pelo que se homologa a mesma.” – fl. 34 do presente procedimento.

§II.b). – PRESSUPOSTOS EXIGÍVEIS PARA SOLVÊNCIA DA PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS.

A providência (excepcional) de habeas corpus – cfr. artigos 220º a 223º do Código de Processo Penal – é qualificada como um expediente jurídico-constitucional de reacção perante uma situação de evidente/ostensiva violação do direito que, a qualquer cidadão, é constitucionalmente reconhecido de não ser privado de acção e movimentação individual, fora dos casos em que a lei permite o decretamento de privação de liberdade (indiciação de acções penalmente puníveis nas situações previstas no artigo 202º do Código de Processo Penal ou após confirmação judicial, por sentença, de cometimento de crimes – previamente imputados a um individuo – por que o tribunal tenha imposto uma condenação em pena de prisão efectiva).

Por a medida de coacção de prisão preventiva se configurar como uma forma de asseguramento e normalização de um procedimento judicial que colide e alanceia a capacidade individual de acção e movimentação, liberta de qualquer constrangimento externo – v.g. por banda do Estado – a lei comina prazos máximos e inderrogáveis durante os quais um cidadão pode ser mantido na situação de prisão preventiva, antes de julgamento por uma indiciação/imputação jurídico-criminal – cfr. artigo 215º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal. 

A vulneração dos prazos legalmente estatuídos, possibilita aquele que se encontre privado de liberdade – detenção ou prisão – por razão, ou motivo, que se não quadre com o quadro legal estabelecido no ordenamento jurídico vigente pode pedir a apreciação da situação em que se encontra ao Supremo Tribunal de Justiça.

O instituto de habeas corpus configura-se, a um tempo, como um direito fundamental e uma garantia. O instituto mostra-se a um tempo um direito, na medida em que a lei, maxime a Constituição, o confirma como um valor e um estado subjectivo activo incrustado na constelação individual de direitos irremíveis do cidadão e que se fixa, directa e imediatamente, na esfera jurídica de qualquer cidadão no gozo pleno dos seus direitos cívicos, e ao mesmo tempo uma garantia na medida em que permite a qualquer cidadão reagir contra uma situação que repute abusiva e violadora de um direito – a liberdade de acção e de livre movimentação pessoal – inscrito como inderrogável no amplexo de direitos fundamentais do individuo. (Em outros ordenamentos jusprocessuais, caso do italiano, a forma de reacção contra a ilegalidade da aplicação de medidas de privação de liberdade consideradas desproporcionadas e inadequadas é efectuada através de um procedimento denominado «riesame», que tem o poder de avaliar a legitimidade e o mérito da medida coercitiva aplicada “senza essere vincolato né dagli eventualli motivi del recorso dell´imputato, né dalla motivazione del provvedimento che ha applicato la misura – art. 309, coma 9” [“sem estar vinculado, nem pela eventual fundamentação (motivos) do recurso do imputado, nem pela motivação da providência que aplicou a medida – artigo 309, nº 9] (tradução nossa) – cfr. Paolo Tonini, Manuale Breve de Diritto Processuale Penale, Giuffrè Editore, 2017, p. 344. De forma residual a reacção/impugnação contra a aplicação de medidas cautelares é efectuada através o «apello», ou seja um meio de impugnação residual relativamente ao «riesame» e que é utilizado em todos os casos em que não é aplicada «per la prima volta (ab initio)» uma medida coercitiva. Porém, desde 2013 que, por força da condenação da Itália pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por procedimentos adoptados com a expulsão de imigrantes, o Estado italiano vem providenciando pela adopção de legislação actuante e efectiva que permite actuar em casos de violação da liberdade da pessoa.)     

Legitimamente, e por direito, o pedido pode ser impulsionado por qualquer cidadão (“no gozo dos seus direitos políticos”) e deve ser apresentado à autoridade à ordem da qual o cidadão se encontra preso. (“A) O habeas corpus é uma garantia constitucional de proteção da liberdade física (liberdade de locomoção, de “ir e vir”, na expressiva formulação da lei brasileira), e não de quaisquer outros direitos fundamentais. O habeas corpus é um “direito-garantia”, um instrumento de proteção da liberdade, não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito à liberdade, esse sim um direito fundamental estabelecido no art. 27.º da Constituição.

B) O habeas corpus é uma providência, independente do sistema de recursos penais. Uma providência urgente, conforme resulta da brevidade do prazo estipulado para a sua decisão.

Mas deverá qualificar-se como "extraordinária", no sentido que lhe era atribuído pelo DL n.º 35043, ou seja, como subsidiária dos recursos judiciais?

A autonomia do habeas corpus relativamente aos recursos dificilmente se coaduna com a sua subsidiariedade, entendida como exigindo o esgotamento dos recursos ordinários para que seja legítima a intervenção da providência. O habeas corpus deve servir para as situações mais graves, as mais carecidas de tutela urgente, ou seja, aquelas em que a privação da liberdade se mostrar claramente ilegal, sendo então o meio adequado, e não excecional, de fazer frente à ilegalidade.

A providência só pode ser entendida como “extraordinária” no sentido da sua singularidade relativamente aos recursos penais, pela sua exclusiva finalidade de meio de reação à privação ilegal da liberdade e pelo seu processamento específico, não como mecanismo supletivo ou subsidiário de tutela da liberdade.

C) A Constituição esboça uma definição das situações abrangidas pela garantia (“abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal”). Constata-se, assim, que os pressupostos e a extensão da providência não são definidos com precisão, o mesmo sucedendo com a definição do tribunal competente, pelo que se impõe a intervenção do legislador ordinário para dar cumprimento ao preceito constitucional, para dar efetividade à garantia constitucional do habeas corpus, à semelhança do que aconteceu com as anteriores constituições portuguesas.

Mas como interpretar a expressão: “haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”? Trata-se de dois requisitos ou de um só? Sendo dois, serão cumulativos?

Há quem sustente a falta de autonomia entre os dois requisitos enunciados, que seriam afinal um só: a ilegalidade da detenção ou da prisão; a expressão “por virtude”, subsequente a “abuso de poder”, demonstraria que o restante enunciado da frase seria a explicitação desse conceito de “abuso de poder”, não sendo este uma exigência suplementar relativamente à detenção ou prisão ilegal. Por outras palavras, sempre que haja detenção ou prisão ilegal estará verificado o condicionalismo de intervenção do habeas corpus.” – Cfr. Maia Costa, in Revista Julgar, 2016, ano 29, págs. 218-246. 

Como fundamento desta pretensão, de carácter excepcional, o peticionante pode convocar uma das sequentes situações: a) incompetência da entidade que ordenou ou efectuou a prisão; b) ter a prisão uma razão, ou substrato jurídico-factual, arredada do quadro legal estabelecido; e c) ser a prisão mantida para além do prazos que a lei determina e fixa ou que a decisão judicial haja determinado. “Cfr, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, que se deixa transcrito, parte interessante.

A providência de habeas corpus tem, como resulta da lei, carácter excepcional.

Não já, no sentido de constituir expediente processual de ordem meramente residual, como outrora aqui vinha sendo entendida, antes, por se tratar de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional, haja ou não ainda aberta a via dos recursos ordinários.

“E é precisamente por pretender reagir contra situações de excepcional gravidade que o habeas corpus tem de possuir uma celeridade que o torna de todo incompatível com um prévio esgotamento dos recursos ordinários”.

Porque assim, a petição de habeas corpus, em caso de prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal: a) Ter sido [a prisão] efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; c) Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.

“Exemplos de situações abrangidas por estas disposições poderiam encontrar-se na prisão preventiva decretada por outrem que não um juiz; na prisão preventiva aplicada a um arguido suspeito da prática de crime negligente ou punível com pena de prisão inferior a três anos; na prisão preventiva que ultrapasse os prazos previstos no artigo 215.º do C.P.P.

Confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”.

Mas a providência excepcional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art.º 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite».

Pois, não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários. Justamente, os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante, agora, de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal.

Exactamente por isso, a matéria de facto sobre que há-de assentar a decisão de habeas corpus tem forçosamente de ser certa, ou, pelo menos, estabilizada, sem prejuízo de o Supremo Tribunal de Justiça poder ordenar algumas diligências de última hora – art.º 223.º, n.º 4, b), do Código de Processo Penal – mas sempre sem poder substituir-se à instância de julgamento da matéria de facto, e apenas como complemento esclarecedor de eventuais lacunas de informação do quadro de facto porventura subsistentes, com vista à decisão, ou seja, na terminologia legal, cingidas a esclarecer «as condições de legalidade da prisão».

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu acórdão de 16 de Dezembro de 2003, proferido no procedimento de habeas corpus n.º 4393/03-5, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

“(…) Pelo contrário, os recursos de agravo previstos no artigo 219.º [do Código de Processo Penal] podem ter outros fundamentos, sobretudo os relacionados com a inexistência de uma necessidade cautelar que torne indispensável a aplicação da medida de coacção; com a não adequação da medida à necessidade cautelar; com a desproporcionalidade da medida face ao perigo que se visa evitar. Pense-se, a título de exemplo, em situações em que não se verifique qualquer perigo de fuga do arguido, de perturbação da ordem ou tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa; em casos em que a medida aplicada não é idónea a garantir a não ocorrência do perigo que se receia; ou ainda na aplicação de uma medida demasiado gravosa tendo em conta outras que deveriam ser preferidas por menos desvaliosas e igualmente eficazes ou tendo em conta a gravidade do delito cometido e a sanção que previsivelmente lhe será aplicada”.

A natureza sumária e expedita da decisão de habeas corpus, por outro lado, não permite que, quando o aspecto jurídico da questão se apresente altamente problemático, o Supremo se substitua de ânimo leve às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, possa censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira. Até porque, permanecendo discutível e não consensual a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial – numa apreciação pouco menos que perfunctória, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.”

Como se assinalou no acórdão supra citado – de 1 de Fevereiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira – o procedimento (providência) de habeas corpus não assume carácter ou natureza residual, antes se perfila como um procedimento autónomo e com identidade própria que pode coexistir com o recurso. A providência de habeas corpus não se destina a reagir contra uma decisão reputada injusta de aplicação de uma medida de privação de liberdade, rectius prisão preventiva, antes se destina a pôr cobro a uma situação de ilegalidade e abuso de poder por parte das autoridades. A providência de habeas corpus não se destina a corrigir ou reavaliar as decisões judiciais que dentro da legalidade apliquem a medida coactiva de prisão preventiva. Ela surge no universo do direito como meio de ilaquear um estado patológico decorrente de uma actuação contrária à lei e ao arrepio dos adequados e correctos modos de apreciação e avaliação de uma situação factual (em que uma medida de coacção como a prisão preventiva não pode ser aplicada).

“Por outro lado, a providência de habeas corpus, por alegada prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do art. 222.º do CPP, perante situações de violação ostensiva da liberdade das pessoas, seja por incompetência da entidade que ordenou a prisão, seja por a lei não permitir a privação da liberdade com o fundamento invocado ou sem ter sido invocado fundamento algum, seja ainda por se mostrarem excedidos os prazos legais da sua duração.

São tais razões - e só elas – que justificam a celeridade e premência na apreciação extraordinária da situação de privação de liberdade com vista a aquilatar se houve abuso de poder ou violação grosseira da lei, na privação da liberdade, que imponha de imediato a reposição da legalidade.

A providência de habeas corpus, enquanto remédio de urgência perante ofensas graves à liberdade, que se traduzam em abuso de poder, ou por serem ofensas sem lei ou por serem grosseiramente contra a lei, não constitui no sistema nacional um recurso dos recursos e muito menos um recurso contra os recursos. (v.v.g. Ac. deste Supremo de 20-12-2006, proc. n.º 4705/06 - 3.ª)

Tal não significa que a providência deva ser concebida, como frequentemente o foi, como só podendo ser usada contra a ilegalidade da prisão quando não possa reagir-se contra essa situação de outro modo, designadamente por via dos recursos ordinários (v. Acórdão deste Supremo de 29-05-02, proc. n.º 2090/02- 3.ª Secção, onde se explana desenvolvidamente essa tese).

Aliás, resulta do artigo 219º nº 2 do CPP, que, mesmo em caso de recurso de decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas de coacção legalmente previstas, inexiste relação de dependência ou de caso julgado entre esse recurso e a providência de habeas corpus, independentemente dos respectivos fundamentos.

O habeas corpus não se destina a formular juízos de mérito sobre as decisões judiciais determinantes da privação de liberdade, ou a sindicar nulidades ou irregularidades nessas decisões – para isso servem os recursos ordinários - mas tão só a verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou, erro grosseiro) enquadrável no disposto das três alíneas do nº 2 do artº 222ºdo CPP.” (Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.06.2017, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça, no processo de habeas corpus sob o nº 881/16.6JAPRT-X.S1.)

No mesmo eito segue o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 16-03.2015, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, em que a propósito da providência especial de habeas corpus se escreveu (sic): “A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31º da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220º e 222º do CPP. Estabelecem tais preceitos os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional.  

Nos termos do artigo 222º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de i) a mesma ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ii) ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou iii) se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222º do CPP. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso das decisões tomadas numa tramitação processual em que foi determinada a prisão do requerente ou um sucedâneo dos recursos admissíveis Conforme se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Fevereiro de 2005, “no âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”.

Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira a uma determinada situação processual do requerente, se os actos de um determinado processo – valendo os efeitos que em cada momento ali se produzam e independentemente da discussão que aí possam suscitar, a decidir segundo o regime normal dos recursos – produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos da petição referidos no artigo 222º, nº 2 do CPP.

A providência em causa assume, assim, uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para estancar casos de detenção ou de prisão ilegais. Por isso, a mesma não pode ser utilizada para sobrestar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para reapreciação.

Na verdade, a essência da providência em causa reside numa afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve ser demonstrado, sem qualquer margem para dúvida, que aquele que está preso não deve estar e que a sua prisão afronta o seu direito fundamental a estar livre. É exactamente nessa linha que se pronuncia Cláudia Santos, referindo, nesta senda que “confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.12.2019; Proc. nº 130/17.0JGLSB-Q.S1, relatado pelo Conselheiro Manuel Matos e no mesmo eito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.05.2003, Proc. nº 03P1778, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira. [Cláudia Santos, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, Fascículo 2, p. 300]) Também Cavaleiro Ferreira avança que "o habeas corpus é a providência destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade" (Citado em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.04.2008, Proc. nº 08P1504, relatado pelo Conselheiro Rodrigues Costa. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1986, p. 273)  

A providência excepcional em causa não se substitui, nem pode substituir-se, aos recursos ordinários, ou seja, não é, nem pode ser, meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. O habeas corpus está, assim, reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, exactamente por serem ilegais, impõem, e permitem, uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida. (“Ora, o habeas corpus não é um modo de impugnação das decisões que aplicam medidas de coação. Pode, na modalidade do art. 222.º, atacar tanto situações de prisão preventiva (ou obrigação de permanência na habitação), como de cumprimento de pena (por excesso de prazo). E, na do art. 220.º, pode incidir sobre situações completamente alheias a um processo penal, como garantia que é contra qualquer situação de privação de liberdade não validada judicialmente.

O habeas corpus é uma garantia situada à margem do sistema de impugnações do processo penal e, como tal, deveria constar de diploma autónomo do Código de Processo Penal, que abrangesse a totalidade do regime do instituto, incluindo os “regimes especiais” que fossem necessários (como os de portadores de anomalia psíquica, previsto no art. 31.º da Lei de Saúde Mental), o que reforçaria a visibilidade e a legibilidade do mesmo e reforçaria o seu prestígio institucional.

Tal como está estruturado, o habeas corpus constitui um remédio contra a privação ilegal da liberdade. O que significa desde logo que o habeas corpus está exclusivamente direcionado para pôr termo à ilegalidade, quando constatada, restituindo o detido à liberdade.

Afastado do âmbito da providência fica, pois, o apuramento das responsabilidades dos autores das ilegalidades verificadas, a determinar em processo autónomo. Como igualmente lhe é alheia a reparação dos direitos dos lesados, a peticionar no foro próprio, conforme prevê o art. 225.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal. A finalidade do habeas corpus, enquanto garantia da liberdade individual, esgota-se na reposição da legalidade, ou seja, na libertação do detido, quando constatada uma detenção ilegal.

(…) O habeas corpus em virtude de prisão ilegal está previsto no art. 222.º do Código de Processo Penal. Estamos aqui perante situações em que a prisão foi decretada ou validada por um juiz, servindo, pois, a providência para "fiscalizar” uma decisão jurisdicional.

Numa primeira análise, não deixa de ser estranho que exista um mecanismo de controlo de decisões jurisdicionais fora do sistema de recursos penais. Na verdade, o modo de impugnação por excelência de decisões desse tipo é o recurso para um tribunal superior. O habeas corpus, para ter razão de ser, deverá ter uma função diferente da dos recursos, deverá servir como instrumento de proteção da liberdade quando os meios ordinários não servirem de base suficiente para essa proteção. Nesse sentido, e só ele, o habeas corpus é uma providência extraordinária.

Mas deverá o sujeito ter de esgotar os meios ordinários de impugnação para ter acesso ao habeas corpus? Já se abordou esta questão, pronunciando-nos pela negativa, em face do texto constitucional.

A posição afirmativa constituía, porém, a jurisprudência corrente do Supremo Tribunal de Justiça até ao início deste século. Mas essa orientação veio a ser abandonada a partir do acórdão de 3.7.2001 (cons. Armando Leandro), que decidiu precisamente que a admissibilidade de recurso da decisão, ou a sua pendência, não impede o habeas corpus, desde que verificados os respetivos pressupostos.

Esta posição veio a ser consagrada na lei, no n.º 2 do art. 219.º do Código de Processo Penal, pela Lei n.º 48/2007, de 29-862.

Na verdade, no habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade. No habeas corpus procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal.

De fora do âmbito da providência ficam todas as situações que são enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão, bem como na análise dos pressupostos materiais das medidas privativas da liberdade. Para essas situações estão reservados os recursos penais, como o do art. 219.º do Código de Processo Penal. O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, ou seja, num meio de acelerar a tramitação dos recursos penais, que dispõem de tramitação diferente, não esquecendo que o referido recurso do art. 219.º tem igualmente um prazo específico para decisão (30 dias). O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna aliás com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei.

Nesta perspetiva, não existe sobreposição ou “concorrência” entre a providência e o recurso penal. Cada um dos meios tem o seu objeto específico de impugnação.

Em síntese: desde que verificados os requisitos do habeas corpus (prisão ilegal por algum dos fundamentos previstos na lei), a providência é admissível, independentemente de ter sido interposto recurso ordinário da mesma decisão.

O prazo estabelecido para a decisão da providência é de 8 dias, conforme a própria Constituição, no n.º 3 do art 31.º, determina. Esse prazo é válido para qualquer das modalidades da providência. Contudo, para o caso da detenção ilegal, deve entender-se que só excecionalmente esse prazo deve ser esgotado.

Em qualquer caso o prazo é meramente ordenador, ou seja, não é atribuída qualquer consequência processual à infração do mesmo. Na verdade, a lei não contém nenhuma disposição idêntica ao citado art. 4.º do DL n.º 320/76, que determinava a libertação do preso caso a providência não fosse decidida no prazo. Por outro lado, a Constituição, já o vimos, não impõe essa solução, embora não a proscreva. Seria aliás essa a solução mais consentânea com o espírito garantístico da providência.

Por último, refira-se que, respeitando o sentido do texto constitucional, a Lei n.º 44/86, de 30-09, que regula o estado de sítio e o estado de emergência, assegura expressamente o direito de habeas corpus às pessoas detidas ou com residência fixa com fundamento em violação das normas de segurança em vigor após a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (n.º 2, al. a) do art. 2.º). Ou seja, no nosso ordenamento jurídico, o habeas corpus não pode, em caso algum, ser suspenso.” – Cfr. Maia Costa, in Revista Julgar, Ano 2016, Ano 29, pags. 218-246.

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu Acórdão de 16 de Dezembro de 2003, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso, mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

A natureza sumária da decisão de habeas corpus, por outro lado, não se deve conjugar com a definição de questões susceptíveis de um tratamento dicotómico e em paridade de defensibilidade. É que, em tal hipótese e como se acentua em decisão deste Tribunal de 1 de Fevereiro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça não se pode substituir, de ânimo leve, às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira. 

Até porque, permanecendo discutível, e não consensual, a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento – ainda para mais numa apreciação pouco menos que perfunctória –, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial –, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.” (Disponível em www.dgsi.pt.)

Assoalhados com o que vem sendo uma posição jurisprudencial constante e uniforme, apreciar-se-á o caso em tela de juízo.

§II. c). – O CASO SOB APRECIAÇÃO.

O requerente faz derivar a sua pretensão ablação de privação de liberdade do facto de i) a “pena de prisão já transitada em julgado” se encontra abrangido pelo perdão ínsito no art° 2º, nº 1 e 5 da Lei 9/2020 de 10 de abril”; ii) dado que no citado preceito “o perdão aí estipulado é de dois anos e o crime pelo qual foi condenado admite esse mesmo perdão. (art.°210.° CP)”; iii) até porque “no art.° 29.° nº 4 da Constituição da República Portuguesa, aplicam-se retroactivamente ao arguido “as leis penais de conteúdo mais favorável”; iv) não devendo ser restringido tal perdão, em observância ao disposto “a alínea a) do nº 1 do art. 1.° da Lei 9/2020 de 10 de Abril”, que estatui “genericamente que a presente lei estabelece “Um perdão parcial de penas de prisão” não restringindo essa aplicação a condenados que não se encontrassem reclusos no momento da promulgação da Lei”; v) o que deverá ser interpretado no sentido de que esse perdão “incide “prima facie” sobre as penas de prisão em concreto aplicadas aos condenados independentemente da sua situação concreta (em liberdade provisória, ou em reclusão), e ressalvadas as excepções contidas no art. 1º, nº 6 da mencionada Lei.

Sem pretendermos ser exaustivos – o tempo para decisão não o permite – diremos, brevemente que, conforme se doutrinou no Assento deste Supremo Tribunal de Justiça nº 6/1947, de 18.07.1947, a propósito da aplicação da lei no tempo, “Com a doutrina que reputamos mais exacta e rigorosa, chamaremos: leis temporárias, as leis limitadas a um determinado período de vigência: ou porque o tempo seja nelas prefixado ou se circunscreva a duração de certo acontecimento previamente identificado; e leis de emergência, as destinadas a vigorar enquanto se mantiverem as circunstâncias extraordinárias ou excepcionais, de interesse público, que as determinaram: circunstâncias de duração indefinida, mais ou menos longa.

 E a pressão destas circunstancias que as determina; e, nisso esta, a sua característica essencial e diferencial das leis temporárias.

O conflito incide sobre acórdãos que decidiram, sem dúvida, sobre leis de emergencial, e portanto deve ele ser assim posto: se a referida excepção e aplicável as infracções puníveis por leis de emergencial?

 A "infracção", referida na excepção 1: e a violação de uma determinada norma ético-jurídica, de princípios basilares de ordem social, com a natural consequência dessa violação - a sanção penal.

O legislador cura da essência da infracção, dos factos precisos que a constituem, da ilicitude desses factos, e, dominado por certa ética e princípios, classifica tais factos como constituindo a infracção.

 Se, passado tempo, atendendo a considerações de ordem politica e social, numa compreensão mais perfeita das necessidades sociais e jurídicas, informado doutra ética e princípios, o legislador se convence e conclui que errou na qualificação desses factos - de ilícitos e anti-sociais, altera o seu primitivo conceito, rectifica o seu anterior juízo acerca de tal qualificação, e, em lei nova, elimina a infracção (formada por estes factos) do número das infracções.

 Nesta hipótese, o critério do legislador modificou-se, consideraram-se não reprovados pela consciência colectiva e não anti-sociais os referidos factos - praticados tanto depois da vigência da lei nova, como já no domínio da lei anterior que punia a infracção; e, quer se trate de leis comuns, quer de emergência, aplica-se a excepção 1.

Mas, e e a regra nas leis punitivas de emergência, se a infracção - com a respectiva sanção, vem a ser eliminada (como sucede no caso dos autos), não porque o legislador adoptasse outro critério quanto a ilicitude e anti - sociabilidade dos respectivos factos, mas apenas porque mudaram ou desapareceram as circunstancias que levara a classifica-los daquele modo, então já não e de aplicar a excepção 1; os factos continuariam a ser reprovados pela consciência colectiva, nocivos ao interesse nacional, se se mantivessem as circunstancias que originaram a lei punitiva; e ate se diria, em face da mutabilidade das circunstâncias, ligada aos factos, que a lei nova não poderia precisar e atingir estes, e, com eles, a "infracção".

 E, em caso de dúvida ou ambiguidade da lei sobre a excepção, deve prevalecer a regra da não retroactividade estabelecida no artigo 6 do Código Penal.

Veja-se a doutrina consagrada na secção criminal deste Supremo Tribunal: nos acórdãos, publicados nos Boletins Oficiais de Março e Maio de 1947, de 5, 26 de Fevereiro e 26 de Março desse ano.”

Do mesmo passo, escreveu-se, a propósito da delimitação conceptual das leis temporárias e excepcionais, no acórdão de Uniformização nº, 4/2006, de 13 de Fevereiro de 2006, publicado no Diário da República nº 55/2006, Serie I-A, de 17.03.2006, que (sic): “Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (ver nota 4), «a lei tem vigência temporária quando se fixa o seu termo em certa data, se torna a sua vigência dependente decerto pressuposto ou se destina à consecução de certo fim. Em qualquer destes casos, a cessação da vigência da lei não depende da sua revogação».

Para Mário de Brito (ver nota 5), «lei temporária é aquela que é publicada para vigorar apenas durante um prazo determinado que ela própria indique ou enquanto se mantiver certo estado de coisas (v. g., o estado de guerra)».

Marcello Caetano (ver nota 6) considerava as leis de vigência temporária como sendo «as que contêm entre os seus preceitos a indicação do período pelo qual vigoram ou da data em que cessarão de se aplicar».

Cavaleiro de Ferreira (ver nota 7), por seu turno, definia leis temporárias como sendo «aquelas que por imposição da própria lei têm tempo limitado e próprio de aplicação. A própria lei fixa o termo da sua vigência, o qual não resulta, portanto, da sucessão de outra lei no tempo».

Reportando-se às excepções ao princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, Eduardo Correia (ver nota 8) relevava as leis temporais como sendo «aquelas leis que directamente marcam um prazo para a sua vigência, ou em que directamente, por exemplo, o facto de terem em vista um certo estado de coisas faz concluir da sua transitoriedade». Acrescenta ainda que «neste último caso estão, a título de exemplo, as medidas repressivas tomadas por ocasião de uma epidemia. Nestes casos, terminado o prazo fixado para a sua vigência, ou desaparecido o estado de coisas que a provocou, nem por isso deixam de ser punidos os factos que durante esse período se praticaram. E isto compreende-se. É que, mesmo depois do período fixado na lei para a sua vigência, os factos que anteriormente a violaram continuam a ser censuráveis. Não se trata, por outro lado, de uma modificação das concepções do legislador - se as circunstâncias se repetissem ele teria tomado a mesma medida -, mas de uma revogação prevista por ele próprio».

Finalmente, culminando este breve excurso doutrinal, expende Figueiredo Dias (ver nota 9):

«Leis temporárias devem pois considerar-se aquelas que, a priori, são editadas pelo legislador para um tempo determinado: seja porque este período é desde logo apontado pelo legislador em termos de calendário ou em função da verificação ou cessação de um certo evento, v. g., a duração de um estado de sítio ou de um estado de guerra (chamadas leis temporárias em sentido estrito); seja porque aquele período se torna reconhecível em função de certas circunstâncias temporais (chamadas leis temporárias em sentido amplo). Comum é a circunstância de a lei cessar automaticamente a sua vigência uma vez decorrido o período de tempo para o qual foi editada. A razão que justifica o afastamento da aplicação da lei mais favorável reside em que a modificação legal se operou em função não de uma alteração da concepção legislativa - esta é sempre a mesma -, mas unicamente de uma alteração das circunstâncias fácticas (pense-se nomeadamente em termos de direito penal económico) que deram base à lei. Não existem por isso aqui expectativas que mereçam ser tuteladas, enquanto, por outro lado, razões de prevenção geral positiva persistem. O que deve ser reforçada é a necessidade, a que começou por aludir-se, de interpretação rigorosa daquilo que na verdade constitui uma lei temporária; com a consequência de, em caso de dúvida, fazer valer as regras da proibição da retroactividade e da aplicação da lei mais favorável em termos gerais.» - Direito Penal, Parte Geral, t. I, Questões Fundamentais - A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2004.”

Ocioso será proclamar a emergência e temporalidade das normas que se expandiram ao longo de mais de mais de três (3) meses, incoadas com o Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março que “estabelece medidas excepcionais e temporárias relativas á situação do novo Coronavirus – Covid 19”, passando pela Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, que estatui as “Medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, dando sequência a legislação tendente atalhar a situações de necessidade premente e de potencial alastramento de situação de contágio de que é paradigmática a publicação da Lei nº 9/2020, de 10 de Abril, “Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19” culminado com a publicação da Lei nº 15/2020, de 29 de Maio, que (sic): “Altera as medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19, procedendo à quarta alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, à primeira alteração à Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, e à décima segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.”

Preceituava o artigo 2º, nº 1 da Lei nº 9/2020, de 9 de Abril que eram “perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos”.

Como ressalta, com meridiana clareza e inteligibilidade, a legislação publicada ao abrigo do estado de emergência decretado pelo Decreto do Presidente da República nº 14-/2020, de 18 de Março – inicialmente por um período de 15 dias e depois sucessivamente prorrogado – teve como escopo acudir a uma situação de emergência ditada por uma situação pandémica originada pela prorrogação e disseminação indiscriminada e insidiosa de um vírus que ameaçava de forma inexaurível e irrefreável a aúde das pessoas e da população em geral. Foi uma legislação ditada por razões de saúde pública e de preservação da incolumidade da vida das pessoas e que se destinava a vigorar enquanto e durante o período considerado adequado pelas autoridades sanitárias. Daí que as leis e concomitante normação regulamentar que se viesse a produzir durante esse período tinha como estrito e confinado alcance i) preservar a saúde pública; ii) regulamentar especificamente para as situações especialmente visadas pela normação adrede; iii) período temporal delimitado pela situação de emergência viesse a ditar; iv) e dirigidas às situações involucradas nas normas específicas e situações pessoais e de grupo visadas pela regulação normativa.

A lei 9/2020, de 19 de Abril visou, especificamente e teve como escopo, prevenir situações de contágio, contaminação e disseminação do vírus em espaço confinados e densamente povoados, como são os espaços prisionais, e propensos a um relacionamento prolixo e descomprometido de pessoas e em que ocorrem situações de difícil controle das situações pela aglomeração da população prisional em determinados espaços (refeitórios, etc.) e ainda pela propensão das pessoas que, adveniente do seu estado de reclusão e privação de liberdade ficam, psicologicamente e emocionalmente predispostas a aceitar e acolher prescrições regulamentares e instruções internas de autopreservação, pessoal e comunitária. 

Foi a emergência da situação – saúde pública, associada a bloqueamento de contágio e disseminação de uma espécie viral – que ditou a publicação de uma legislação que rinha como destinatários, como expressamente refere o nº 1 do artigo 2º, o “pessoal ou população reclusa”. Foi, pois, como parece resultar da melhor definição conceptual de leis temporárias ou excepcionais, uma normação que foi ditada pelas concretas, particulares e especificas condições e circunstancialismo vivencial de uma época concreta e com limitação temporal a definir e, neste caso, com destinatários concretos e particulares, “os reclusos”, isto é, queles que no momento da publicação da lei se encontrassem privados de liberdade e em cumprimento de pena decorrente de condenação com trânsito em julgado. A lei visou, pela sua natureza de emergência e temporalidade, um amplexo específico de pessoas – “os reclusos” que se encontravam, naquele momento, em cumprimento de penas (por crimes não excluídos expressamente no diploma – artigo 2º, nº 6 da mencionada Lei – e estava destinada a vigorar enquanto não fosse publicada lei que desse por finda a situação que pretendeu atalhar.

(A urgência temporal não permite uma maior desgrane de algumas definições relativas à natureza das leis, mas pensamos ficar suficientemente explicita a ideia que se pret4ende expor.) 

Tendo a lei como destinatários um conjunto de pessoas – concretamente aqueles que se encontravam em cumprimento de penas por condenações transitadas em julgado – e prosseguindo o seu escopo a evitação de uma concreta e específica situação, a situação configurada pelo arguido no seu pedido não se encontra contemplada.

O requerente foi preso em 14 de Julho de 2020, quando a situação de emergência que ditou e motivou a concessão da graça – perdão – concedida pelo Estado já havia cumprido os fins para que a haviam determinado, ou seja, objectivo que se pretendia com a implementação da legislação adrede já se havia exaurido.

Sempre acrescerá que sendo a prisão legal – porque ditada por ordem judicial competente, ou seja em cumprimento de mandato oriundo de uma condenação transitada em julgado – uma eventual aplicação do perdão se traduziria numa omissão de apreciação de uma situação que, eventual a lei impunha ao juiz de execução de penas. Vale dizer, a prisão foi ordenada por entidade competente e o seu cumprimento executa-se em ordem da ordem legítima, o que confere, desde logo, legitimidade e legalidade ao acto e à situação de privação de liberdade em que o requerente se encontra. A apreciação de aplicação, ou não do perdão – consequentemente dos respectivos pressupostos e/ou requisitos – depende do juiz competente, neste caso o juiz de execução de penas competente. A eventual omissão de um acto jurisdicional não se configura como ilegalidade da prisão para efeitos da providência de habeas corpus. O requerente deverá, se assim o entender, requerer ao juiz (de execução de penas) competente a apreciação da aplicação de um eventual perdão, esgrimindo o artigo 2º, nº 1 da Lei nº 9/2020 e não obtendo provisão poderá recorrer doa decisão (negativa) que venha a recair sobre a sus petição/pretensão.

A providência de habeas corpus como se vincou supra não é um meio normal de sanar situações, antes se destina a sanar flagrantes e escancaradas situações de ilegalidade e/ou abuso de poder.   

Não se configura, pois, ilegal a situação de prisão em que o peticionante se encontra, pelas razões que se deixam expostas, o que determina a denegação da pretensão formulada.

§III. – DECISÃO.

Na desinência do que foi exposto, acordam os juízes que compõem este colectivo, no Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Indeferir o pedido de habeas corpus formulado pelo recluso AA;

- Condenar o requerente nas respectivas custas, fixando a taxa de justiça e, 6 Uc`s.

Lisboa, 7 de Agosto de 2020

Gabriel Martim Catarino (Relator)

Teresa Féria

Maria da Graça Trigo