MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
TRADUÇÃO
JULGAMENTO
CUMPRIMENTO DE PENA
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
QUESTÃO NOVA
NULIDADE
INQUÉRITO
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
RECUSA OBRIGATÓRIA DE EXECUÇÃO
Sumário


I – O recurso vem interposto do acórdão da Relação de Évora que declarou o seu consentimento para afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou o Requerido no âmbito do Processo n.º (…) – MDE – com vista ao procedimento criminal pela prática dos crimes supra identificados, a que respeita o Proc. IV K10/17, do Tribunal Regional de Lódz, Polónia.
II - Efectivamente, por acórdão do mesmo Tribunal de 6 de Agosto de 2019, foi determinada a execução do mandado de detenção europeu e a consequente entrega de agora recorrente às autoridades judiciárias competentes da Polónia, "logo que deixe de interessar a detenção do mesmo à ordem do processo de inquérito n.º (…), que corre termos pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de ... .
III - Sublinhando-se ainda que na tramitação do MDE que culminou na decisão de entrega diferida, o aí Requerido e aqui Recorrente foi pessoalmente ouvido tendo então declarado não renunciar ao princípio da especialidade.
IV - Agora, o que está em causa é o pedido de prestação do consentimento para afastamento do princípio da especialidade para, em caso de deferimento, o Requerido poder responder perante Tribunal Regional de Lódz da Polónia por factos integradores de crimes praticados em data anterior aos factos constantes do MDE emitido pelo Tribunal Regional de Gdansk – Polónia.
V – O artigo 27.º, n.º 3, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia, de 13 de junho de 2002, com correspondência no artigo 7.º, n.º 4 da Lei n.º 65/2003, permite que a regra da especialidade não se aplique através do pedido de consentimento do Estado-Membro de execução para efeitos de procedimento penal ou para sancionar outras infracções. A pessoa entregue no âmbito da execução de um MDE que ali não tenha renunciado à regra da especialidade deixará de beneficiar da mesma quando a autoridade judiciária que a ordenou a sua entrega (Tribunal da Relação) der o seu consentimento para que a pessoa possa ser sujeita a procedimento criminal por infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que determinou a emissão do MDE.
VI - O pedido de consentimento é apresentado à autoridade judiciária de execução acompanhado das informações referidas no n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 65/2003 (conteúdo do MDE) e de uma tradução conforme indicado no artigo 3.º, n.º 2 da mesma Lei (tradução do MDE).
VII - O consentimento deve ser dado sempre que a infração para a qual é solicitado dê ela própria lugar a entrega em conformidade com o disposto Decisão-Quadro relativa ao MDE e da Lei n.º 65/2003, limitando-se aos factos que constam do pedido de consentimento. Por sua vez, o consentimento deve ser recusado pelos motivos referidos no artigo 11.º da mesma Lei (causas de recusa obrigatória), podendo ainda ser recusado pelos motivos constantes do artigo 12.º (causas de recusa facultativa).
VIII - Atenta a concreta tramitação de pedido de consentimento do Estado de execução para efeitos de procedimento criminal ou sancionamento de outras infracções praticadas em momento anterior ao da entrega determinada no MDE, podemos legitimamente concluir que não nos encontramos verdadeiramente perante MDE caracterizado pela completa novidade, mas sim perante uma ampliação do pedido ali inicialmente formulado, uma extensão desse pedido.
IX - O Requerido, ao suscitar, e bem, a deficiente tradução do vocábulo traduzido erradamente como «sentença», em vez de «despacho», manifestou «que bem percebeu o conteúdo do MDE e as razões da sua emissão».
X – E, através da resposta fornecida pela autoridade judiciária da Polónia, ficou esclarecido que o Requerido não foi condenado naqueles autos e que o MDE emitido pelo Tribunal Distrital de Lódz em 12 de novembro de 2019 "não está relacionado com a pena de privação de liberdade pronunciada contra [o requerido]", que em 16 de maio de 2018 o Tribunal Distrital de Lódz "emitiu o despacho de prisão preventiva e o Mandado de Detenção Europeu foi emitido para efeitos de procedimento penal por crimes que lhe foram imputados".
XI – Tal informação - que foi dada a conhecer ao Ministério Público e ao requerido - não deixa margem para dúvidas quanto aos fins a que se destina o presente MDE, deixando claro que o requerido ainda não foi julgado pela prática destes crimes, que o MDE não visa o cumprimento de qualquer pena privativa da liberdade em que tivesse sido condenado, mas o julgamento do arguido pelos crimes que lhe vinham imputados.
XII - Por outro lado, tal deficiência de tradução, concretamente, quando aí se diz que a "decisão que fundamenta o mandado ..." é a sentença de "16 de maio de 2018", não integra qualquer nulidade, configurando, antes, uma mera irregularidade, ex vi artigos 118 n.ºs 1 e 2 e 123 n.º 1 do CPP, a qual foi oportunamente sanada, nos termos referidos.
XIII – Acresce que o âmbito do MDE e a sua validade não são aferidos pela promoção do Ministério Público, a qual se destina, na sua essência, a promover execução do mandado, nos termos em que esta é pedida pelo Estado de emissão, podendo o Estado de execução, caso as informações comunicadas pelo Estado de emissão sejam insuficientes, solicitar as "informações complementares necessárias", como expressamente se dispõe no art.º 16 n.º 3 da Lei 65/2003, de 23.08, informações que, no caso, foram fornecidas.
XIV – Improcede, assim, a alegação do requerido já que não se vislumbram «que outras incorrecções e/ou imprecisões existem na tradução e conteúdo do MDE», nem se considera que a execução do pedido formulado pela autoridade judiciária polaca no sentido do consentimento para afastamento da regra da especialidade, após o esclarecimento prestado quanto ao fim do MDE, infrinja o seu direito de defesa e o direito a um processo justo e equitativo.
XV – A matéria de facto dada como provada no segmento do acórdão recorrido apontado pelo requerido constitui parte integrante do MDE pelo que teria de se considerar provada sob pena de infracção do princípio do reconhecimento mútuo, havido como pedra angular da cooperação judiciária, e do princípio da mútua confiança segundo os quais, «desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União».
XVI – Tratando-se, no caso, de um pedido de prestação do consentimento do Tribunal da Relação para afastamento do princípio da especialidade, pedido que tem sido tramitado no processo instaurado para cumprimento de MDE emitido pelo Tribunal Regional de Gdansk – Polónia, em 03-12-2018 e que obteve decisão de execução por acórdão de 6 de Agosto de 2019, nos termos da qual se determinou a entrega do aí Requerido àquela autoridade judiciária "logo que deixe de interessar a detenção do mesmo à ordem do processo de inquérito n.º (…), tendo o requerido então sido aí ouvido tendo declarado não consentir na entrega e não renunciar ao princípio da especialidade.
XVII - Estando já ordenada a entrega (diferida) do requerido ao Estado emitente do MDE, e tendo o mesmo já declarado não renunciar ao princípio da especialidade, pode ser dispensada a sua nova audição.
Com efeito, estando agora em causa a ampliação ou extensão daquele MDE, diligência de natureza meramente acessória ou incidental do procedimento inicial, a nova audição do requerido constituiria diligência desnecessária, repetição da anterior e que nada de novo aportaria aos autos, sendo que tal diligência se teria por desnecessária para aplicação de medida de coacção na medida em que o requerido se encontra detido à ordem de processo de inquérito pendente no DIAP de ... .
XVIII - A pronúncia quanto à factualidade do pedido de ampliação do MDE pode perfeitamente, sem ofensa do direito de defesa do requerido e das demais garantias que lhe assistem, ser efectuada e desenvolvida pela sua Ilustre Mandatária, defesa essa realizada com proficiência, como os autos bem demonstram.
XIX - As questões subjacentes à alegada revogação do MDE emitido pelo Tribunal Distrital de Gdansk configuram uma verdadeira questão nova que não foi objecto de apreciação do Tribunal da Relação de que se recorre e que, por isso mesmo, não foi aí apreciada. Consequentemente, tais questões não poderão ser objecto de conhecimento no âmbito do presente recurso.
XX – Tendo presente a natureza e as finalidades subjacentes à emissão e execução de um MDE, a invocada nulidade traduzida na «falta de inquérito» não tem aqui aplicação, sendo que relativamente à questão da «falta de audição» do requerido já se concluiu  pela inverificação dessa invocada nulidade ou de qualquer outro vício.
XXI - Todas as questões que se relacionam com a investigação dos factos que determinaram a formulação do pedido de consentimento para afastamento do princípio da especialidade deverão ser suscitadas no processo pendente no Tribunal Regional de Lodz. Não no âmbito do ressente procedimento.
XXII – Devendo sublinhar-se que a execução do MDE não se confunde com o julgamento de mérito da questão de facto e de direito que lhe subjaz, julgamento esse a ter lugar, se for o caso, perante a jurisdição e sob a responsabilidade do Estado emissor no qual convirá proceder a instrução e julgamento conjunto, onde se pondere a actividade imputada em toda a sua amplitude, de forma a ter uma panorâmica geral da conduta desenvolvida.
XXIII - Por outro lado, há que ter em conta que este processo de carácter «para-penal», de natureza e com configuração de desenvolvimento de urgência, caracteriza-se pela simplicidade e celeridade e que a detenção atentos os fins visados e aquela natureza urgente, com tratamento preferencial, como decorre do artigo 25.º da Lei n.º 65/2003, tem prazos de duração curtos (muito mais curtos do que os de prisão preventiva) e inultrapassáveis.
XXIII - Estas considerações, tecidas a respeito da emissão e execução de um MDE são perfeitamente transponíveis, até por maioria de razão, para a situação de ampliação de um original MDE através do pedido de prestação do consentimento para afastamento do princípio da especialidade.
XXIV - Não se verificando qualquer dos motivos de recusa (obrigatória ou facultativa) que obste ao consentimento pedido, e considerando verificarem-se os pressupostos de que depende o deferimento do pedido (artigos 2.º, n.º 1 e 3.º, n.os 1 e 2, da Lei 65/2003, de 23.08), este apresenta-se como justificado.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO


1. O Tribunal Regional de Gdansk, da Polónia, emitiu - em 03-02-2018 - mandado de detenção europeu contra o cidadão polaco AA - nascido em .. de outubro de 1964, em Varsóvia, filho de BB e de CC, com última residência conhecida em. … 5/26, …, na Polónia, atualmente detido no Estabelecimento Prisional …, em prisão preventiva, à ordem do Proc. 21/l9.3… - com vista à sua entrega àquela autoridade judicial para cumprimento do remanescente de 723 (setecentos e vinte e três) dias da pena de 3 (três) anos de prisão que lhe foi imposta no Processo IV K 22/13, por sentença datada de 12 de março de 2015, pela prática de dois delitos de fabrico, processamento e contrabando ilegal de substâncias de substituição ou substâncias psicotrópicas ou a sua comercialização, crimes previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artºs 55, parágrafos 1 e 3 da Lei de 29 de julho de 2005, relativa à prevenção da toxicodependência, e 64 parágrafo I do Código Penal, e 62 parágrafo 1 da Lei de 29 de julho de 2005, relativa à prevenção da toxicodependência.

Ouvido o requerido, nos termos do art.º 18 da Lei 65/2003, de 23.08, este declarou não consentir na sua entrega ao Estado requerente e não renunciar à regra da especialidade, vindo então a decidir-se - por acórdão de 6 de agosto de 2019 - a execução do mandado de detenção europeu e a consequente entrega de AA às autoridades judiciárias competentes da Polónia, "logo que deixe de interessar a detenção do mesmo à ordem do processo de inquérito n.º 2/19.3…, que corre termos pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de … ".


2. Veio então o Ministério Público junto deste tribunal, em 10.01.2020 - nos termos do disposto nos artigos 27 n.ºs 2, 3 al.ª g) e 4 da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia, de 13 de junho de 2002, e 7 n.ºs 2, 3 al.ª g) e 4 da Lei 65/2003, de 23.08, na redação da Lei 35/2015, de 4 de maio, requerer a prestação de consentimento deste tribunal para "afastamento do princípio da especialidade" de que beneficiou o requerido - acima melhor identificado - no âmbito do Mandado de Detenção Europeu n.º 132/19.1 YREVR, que tramitou pela l.ª Subsecção deste tribunal, alegando, em síntese:

a) O Tribunal Regional de Gdansk, da Polónia, emitiu - em 3.12.2018 - mandado de detenção europeu contra o cidadão polaco AA, acima melhor identificado, que correu termos neste tribunal sob o n.º 132/l9.1 YREVR, com vista à sua entrega àquela autoridade judicial para cumprimento do remanescente de 723 (setecentos e vinte e três) dias da pena de 3 (três) anos de prisão que lhe foi imposta no Processo IV K 22113, por sentença datada de 12 de março de 2015, pela prática de dois delitos de fabrico, processamento e contrabando ilegal de substâncias de substituição ou substâncias psicotrópicas ou a sua comercialização, crimes previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos art.ºs 55, parágrafos 1 e 3 da Lei de 29 de julho de 2005, relativa à prevenção da toxicodependência, e 64 parágrafo 1 do Código Penal, e 62 parágrafo 1 da Lei de 29 de julho de 2005, relativa à prevenção da toxicodependência.

b) Quando foi ouvido no mencionado processo, nos termos do art.º 18 da Lei 65/2013, aquele não renunciou ao princípio da especialidade.

c) Por acórdão de 6 de agosto de 2019 foi determinada a execução do mandado de detenção europeu e a consequente entrega de AA às autoridades judiciárias competentes da Polónia, "logo que deixe de interessar a detenção do mesmo à ordem do processo de inquérito n.º 2/19.3…, que corre termos pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de …".

d) No dia 26 de novembro de 2019 o Juiz do Tribunal Regional de Lódz emitiu, no Processo IV K 10/17, um novo MDE contra o mesmo cidadão, por factos que não estiveram na origem do MDE que originou este processo (n.º 132/19.1 YREVR), "para cumprimento das penas de: 8 (oito) anos de privação da liberdade;

10 (dez) anos de privação de liberdade;

12 (doze) anos de privação de liberdade, impostas por sentença de 16 de maio de 2018".

e) Os factos a que se reporta o MDE emitido em 26.11.2019 (este MDE) são temporariamente anteriores aos do MDE que originou os presentes autos, pois ocorreram no período de novembro de 1998 a julho de 2001, e integram a prática dos crimes de:

- infração de participação numa organização criminosa de carácter armado, p. e p. pelo art. ° 258 parágrafo 2 do Código Penal Polaco;

- infração de se passar por polícia e tentativa de extorsão de proteção usando armas de fogo sem autorização, associada com a privação de um homem da liberdade, cometida nas condições da organização criminosa de caráter armado, p. e p. pelo artigo 13 parágrafo 1 do Código Penal Polaco, em conjugação com os artigos 282, 227, 189 parágrafo 1, 263 parágrafo 2, 11 parágrafo 2 e 65, todos do mesmo Código Penal Polaco;

 - infração de extorsão de proteção praticada em relação com a tomada de refém e com a privação de liberdade por mais de sete dias e com uma angústia especial do refém causadora de danos corporais graves que constituíam as lesões irreversíveis, cometidas nas condições da organização criminosa de carácter armado, p. e p. pelos artigos 189 parágrafo 2 do Código Penal Polaco, em conjugação com os artigos 252 parágrafos 1 e 2, 282, 156 parágrafo 1 n.º 2, 11 parágrafo 2 e 65, todos do Código Penal Polaco.

f) Estes factos, para além de punidos pelo ordenamento jurídico português, integram os crimes previstos no artigo 2 n.º 2 al.ªs o), q) e v) da lei 65/2003, não sendo, por isso, necessário o controlo da dupla incriminação.

g) O Estado de emissão - pelo presente mandado - pretende o afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou aquele cidadão no âmbito destes autos, através o mecanismo previsto na al.ª g) do n.º 2 do art.º 7 da Lei 65/2003, na redacção da Lei 35/2015, para que o mesmo "possa ser sujeito a procedimento criminal pela prática dos factos que dele constam".

h) O consentimento cuja prestação vem pedida consubstancia uma ampliação do pedido de entrega anteriormente efetuado, no âmbito do MDE cujo cumprimento/execução foram decididos no Processo n.º 132/19.1 YREVR, e vem expressamente consagrada nos n.ºs 2, 3 al.ª g) e 4 do art.º 27 da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia, de 13.06.2002, de cuja conjugação resulta que "a regra da especialidade não se aplica quando a autoridade judiciária de execução que ordenou a entrega da pessoa reclamada tenha dado o respetivo consentimento", devendo tal ampliação efetuar-se nos termos previstos no referido n.º 4 do art.º 27.

i) O procedimento criminal não se acha prescrito e os factos que integram os crimes a que se reporta este MDE não foram nem são objeto de procedimento criminal em Portugal.

j) Nada obsta a que este Tribunal da Relação, enquanto autoridade judiciária de execução, que já antes ordenou a entrega do cidadão em causa no âmbito do Processo n.º 132/19.1 YREVR, aceite e consinta na ampliação do pedido em que se traduz este novo 11DE, emitido em 26.11.2019, pelo Juiz do Tribunal de Lódz no Processo IV KI0117 contra o cidadão AA, tanto mais que o mesmo obedece aos requisitos previstos nos artigos 2 n.º 1 e 3 n.ºs 1 e 2 da Lei 6512003, de 23.08, e não se verificam causas de recusa (obrigatórias ou facultativas) previstas nos artigos 11 e 12 da mesma lei (cfr. n.º 4 do art.º 7 da mencionada lei e o art.º 4 do art.º 27 da Decisão-Quadro n.º 2002/5847JAI, do Conselho da União Europeia, de 13 de junho de 2002)

3. Na sequência deste pedido foi notificado o requerido, uma vez que, quando foi ouvido, não renunciara ao princípio da especialidade, tendo aquele suscitado, como questão prévia, uma deficiente tradução do MDE, uma vez que onde consta "sentença" deve entender-se "despacho", pois que "não existe qualquer sentença condenatória no processo que corre na Polónia sob o n.º IV K10117", concluindo que, "caso não venha a ser junta nova tradução, deverá, então, ser declaro nulo o MDE e tudo o que posteriormente houver sido processado" (sic).

Mais alegou:

- O MDE não visa o cumprimento de qualquer pena, o Tribunal Polaco pretende é sujeitar o requerido à medida de coação privativa da liberdade, aguardando o julgamento pela prática dos crimes pelos quais se encontra acusado;

- Desconhece-se o verdadeiro alcance e conteúdo do despacho ao abrigo do qual se pretende a entrega do requerido, nomeadamente - se se tratar de extradição para cumprimento de medida de coação privativa da liberdade - a comunicação e/ou informação sobre o prazo previsto para a mesma, e a ausência de outras informações, nomeadamente, sobre eventuais interrupções da prescrição, o que obsta a qualquer tomada de decisão;

- O afastamento do princípio da especialidade consubstanciaria uma verdadeira violação do princípio da lealdade processual, pois que o requerido nunca foi notificado de qualquer ato processual ocorrido nos autos referidos no MDE, desconhecia a existência daqueles e não praticou os factos sumariamente descritos no MDE.


4. Em face do requerido, e mediante parecer do Ministério Público, foi solicitada á autoridade judiciária de emissão informação que ''pena foi aplicada ao requerido por via da sentença proferida pelo Tribunal regional de Lódz em 16 de maio de 2018", tendo aquele tribunal informado, por ofício de 11.05-2020:

- Que o MDE emitido pelo Tribunal Distrital de Lódz em 12 de novembro de 2019 "não está relacionado com a pena de privação de liberdade pronunciada contra AA";

- Que em 16 de maio de 2018 o Tribunal Distrital de Lódz "emitiu o despacho de prisão preventiva e o mandado de Detenção Europeu foi emitido para efeitos de procedimento penal por crimes que lhe foram imputados".


5. Notificado o requerido da resposta dada pelo tribunal de emissão do MDE, veio aquele a dizer que tal informação "só infirma o exposto pelo requerido ... ", pelo que continua aquele "a pugnar pela nulidade do MDE, exatamente nos termos em que afez ... "[1].


2. Por acórdão proferido em 14 de Julho de 2020, o Tribunal da Relação de Évora deliberou:


declarar o consentimento deste tribunal para afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou o cidadão de nacionalidade polaca AA no âmbito do Processo n.º 132/19.1 YREVR (MDE) deste tribunal, com vista ao procedimento criminal pela prática dos crimes supra identificados, a que respeita o Proc. IV K10/17, do Tribunal Regional de Lódz, Polónia, a que acima se fez referência.

 

3. Inconformado, interpôs o requerido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (presente recurso), rematando a respectiva motivação com as conclusões que se transcrevem:


«EM CONCLUSÃO:


1. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido em 14 de Julho de 2020 pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, nos termos da qual se decidiu declarar o consentimento para afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou o ora Recorrente no âmbito do Processo nº 132/19.1 YREVR (MDE) daquele tribunal, com vista ao procedimento criminal pela prática dos crimes ali identificados, a que respeita o Proc. IV K10/17, do Tribunal Regional de Lódz, Polónia.


2. Os presentes tiveram início com o mandado de detenção europeu (MDE) emitido pelo Tribunal Regional de Gdansk, da Polónia, em 03/12/2018, contra o ora Requerido, com vista à sua entrega àquela autoridade judicial para cumprimento do remanescente de 723 (setecentos e vinte e três) dias da pena de 3 (três) anos de prisão que lhe foi imposta no Processo IV K 22/13, por sentença data de 12 de Março de 2015.


3. No dia 05/08/2018, procedeu-se a audição pessoal do Requerido nos termos do art.º 18.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, tendo o mesmo declarado não consentir na sua entrega ao Estado emissor do MDE e não renunciar à regra da especialidade.


4. Por Acórdão proferido em 6 de Agosto de 2019, o Tribunal da Relação de Évora determinou a entrega do Requerido às autoridades judiciárias competentes da Polónia, logo que deixe de interessar a detenção do mesmo à ordem do processo de inquérito n.º 2/19.3…, que corre termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de …, decisão essa que transitou em julgado.


5. Posteriormente, em 26 de Novembro de 2019, o Tribunal Regional de Lódz, no Processo IV K10/17, procedeu à emissão de um MDE contra o Requerido, por factos anteriores aos que estiveram na origem emitido pelo Tribunal Regional de Gdansk e tendo em vista o cumprimento das penas em que foi condenado por sentença proferida em 16/05/2018 naquele processo.


6. Em decorrência desse novo MDE, em 10 de Janeiro de 2020, o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora veio, ao abrigo do disposto nos artigos 27.°, n.ºs 2, 3 alínea g) e 4 da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia, de 13 de Junho de 2002 e 7.°, n.ºs 2, alínea g) e 4 da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, requerer a Prestação de Consentimento para afastamento do princípio da especialidade de que o Requerido beneficiou nos presentes autos.


7. Pedido este que, face à não renúncia ao princípio da especialidade manifestada no MDE emitido pelo Tribunal Regional de Gdansk, o Ministério Público considerou consubstanciar uma ampliação do pedido neste formulado, pretensão que obteve provimento no Acórdão recorrido.


8. O MDE emitido pelo Tribunal Regional de Lódz não cumpre as exigências quanto ao conteúdo e forma impostas nos artigos 27.°, n.ºs 2, 3, al. g) e 4, 8.°, n.ºs 1, als. c) e g) e 2, da Decisão-Quadro n.º 202/584/JAI, de 13 de Junho de 2002, do Conselho da União Europeia, nem o disposto nos artigos 3.°, n.ºs 1, als. c), f) e g), 16.°, n.ºs 2, 3 e 5, 17.° n.ºs 3 e 4 e 22.º, n.º 2, do regime jurídico do mandado de detenção europeu aprovado pela Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto que as transpôs para a ordem jurídica interna.


9. Decorre daquele quadro normativo aplicável o MDE tem de conter todos os requisitos de forma e conteúdo exigidos, os quais têm de ser verificados pela autoridade judiciária do Estado Membro de execução e, verificando-se essa conformidade, deve ser entregue ao Requerido antes da sua audição pessoal e para efeitos da tomada de posição por este sobre o consentimento ou não na sua execução, a renúncia, ou não, à regra da especialidade, a dedução de oposição e apresentação de provas.


10. Caso posteriormente se verifique que as informações comunicadas pelo Estado membro de emissão são insuficientes para que se possa decidir da entrega, deverão ser-lhe solicitadas as informações necessárias a proferir decisão.


11. No pedido de Prestação de Consentimento para afastamento da regra da especialidade consta, em termos de fundamentação fáctica, que o Tribunal Judicial de Lódz, no âmbito do Processo IV K10/17, emitiu em 26/11/2019, contra o Requerido um MDE "para cumprimento das penas de - 8 (oito) anos de privação de liberdade; -10 (dez) anos de privação de liberdade; -12 (doze) anos de privação de liberdade.", impostas por Sentença condenatória de 16/05/2018 e que o Requerido não esteve presente no julgamento do Processo IV K10/17, nem foi pessoalmente notificada da decisão ... ".


12. Requisitos estes mencionados a Decisão-Quadro n.º 202/584/JAI e no art.º 12.º-A da Lei n.º 63/2003, de 23 de Agosto e que, por isso, foram invocados na fundamentação do pedido de Prestação de Consentimento para afastamento do princípio da especialidade.


13. Notificada, exclusivamente, a mandatária do Requerido, do despacho proferido em 21/01/2020, a fls. 158, veio suscitar a questão prévia da deficiência da tradução do MDE, impeditiva de uma correcta e cabal interpretação do mesmo e, consequentemente, do exercício do seu direito de defesa, que considerou geradora de nulidade, que tempestivamente arguiu.


14. Por despacho proferido em 10/03/2020, a fls. 171, foi determinada a notificação do Ministério Público para se pronunciar relativamente às deficiências da tradução do mandado, vindo a promover se solicitasse à "autoridade judiciária de emissão que informe, e documente, que pena de prisão foi aplicada ao requerido por via da sentença proferida pelo Tribunal Regional de Lodz em 16 de Maio de 2018.", o que foi deferido por despacho proferido em 24/03/2020.


15. O Requerido não foi notificado daquela promoção e despacho judicial, nem na sua própria pessoa, nem na pessoa da sua mandatária.


16. Por comunicação datada de 11/05/2020, a autoridade judiciária de emissão, veio informar que o MDE em referência "não está relacionado com a pena de privação de liberdade pronunciada contra AA. Contra AA em 16 de Maio de 2018, o Tribunal Distrital de Lodz emitiu o despacho de prisão preventiva e o Mandado de Detenção Europeu foi emitido para efeitos de procedimento penal por crimes que lhe foram imputados.".


17. Tal resposta, tal como de resto o MDE, não veio acompanhada de qualquer documento,


18. Da tramitação acima mencionada decorre que na sequência da questão da deficiente tradução do MDE, apenas se considerou necessário esclarecer qual a pena aplicada ao mesmo por Sentença de 16/05/2020, não obstante o Requerido ter afirmado que padecia de várias deficiências e que sem as mesmas fossem superadas, estava prejudicado o exercício do seu direito de defesa e o direito a um processo justo e equitativo.


19. E nem mesmo o facto de o Tribunal Regional de Lodz vir informar que não foi proferida qualquer sentença e, consequentemente, não lhe foi aplicada qualquer pena, o Tribunal a quo não considerou necessário verificar nem a correção ou deficiência da tradução e da restante informação vertida naquele.


20. O que se impunha, pois a informação prestada pela autoridade judiciária de emissão em 12/05/2020, não permite esclarecer todas as dúvidas que o MDE suscita e foram invocadas pelo Requerido, mas apenas e tão só que o vocábulo indicado a título meramente exemplificativo não é uma sentença, mas um despacho e que o que ali constava como Sentença de 16 de Maio de 2018, afinal era um despacho que determinou a aplicação da medida de prisão preventiva e que o Requerido não foi condenado em qualquer pena, ficando sem se saber que outras incorreções e/ou imprecisões existem na tradução e conteúdo do MDE.


21. O que não é de todo irrelevante, considerando ainda que no MDE, de acordo com a tradução disponível, foi proferida uma Sentença condenatória no âmbito da qual foram aplicadas penas de prisão efectiva, apesar de não ter comparecido pessoalmente no julgamento que conduziu à decisão, que a prescrição da execução das penas - que não dos crimes -, ocorrerá nas datas ali mencionadas, mas que após a entrega, quando lhe for notificada a decisão, poderá solicitar novo julgamento ou recurso, cujo prazo é de 7 dias (pontos B., C., D. e F. do MDE),


22. Por outro lado, na tradução disponível do MDE, consta ainda que o mandado que deu origem aos presentes autos foi emitido no Processo IV KOP 101/18 do Tribunal Regional de Gdansk e que o Requerido renunciou à regra da especialidade, quando o mesmo foi emitido no Processo IV K 22/13, o Requerido não renunciou à regra da especialidade e nele não é feita qualquer referência a um qualquer Processo IV Kop 101/18 desse mesmo Tribunal.


23. Todas estas incorreções e deficiências da tradução e/ou do conteúdo do MDE, bem como as insuficiências que do mesmo ressaltam, não permitem o conhecimento da decisão ao abrigo da qual se pretende a entrega do Requerido, em decorrência do que os autos estão inquinados ab initio.


24. Uma vez verificada a existência de deficiente tradução e/ou deficiente e insuficiente informação, no exercício do poder-dever de verificação da conformidade do MDE com os requisitos de forma e conteúdo, impunha-se que a autoridade judiciária de execução determinasse a tradução integral do MDE e que solicitasse as informações necessárias à remoção de todas e quaisquer dúvidas quanto ao seu conteúdo e finalidade.


25. A isso não obstando o facto de o mecanismo do mandado de detenção europeu ser baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros e do princípio do reconhecimento mútuo subjacente à execução do mandado, antes pelo contrário, pois na sua execução tem de respeitar os direitos fundamentais e os princípios reconhecidos no art.º 6.° do Tratado da União Europeia e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nomeadamente no seu capítulo VI, não podendo o mesmo sobrepor-se a garantias processuais e direitos fundamentais inscritos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente no art.º 6.º, na sua dimensão do direito de defesa inserido no direito a um processo justo equitativo e não impedindo que cada Estado aplique as suas normas constitucionais com a mesma dimensão e alcance.


26. Face ao exposto, é manifesto que não foram cumpridos os requisitos constantes das normas acima referidas, que assim se devem ter por violadas, tal como de resto o direito a um processo justo e equitativo e com todas as garantias de defesa, em violação de direitos fundamentais e observância dos princípios reconhecidos pelo art.º 6.° do Tratado da União Europeia e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nomeadamente no seu capítulo VI, do disposto no art.º 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e no art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.


27. Acresce que o disposto nos artigos 17.°, n.º 1, 18.º, n.ºs 2, 3, 4, 5 e 6 da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, exige que a pessoa procurada seja informada da existência e conteúdo do MDE e da possibilidade de consentir ou não em ser entregue à autoridade judiciária de emissão, devendo para o efeito ser apresentada ao Ministério Público para audição pessoal, seguindo-se a audição pessoal pelo Juiz Relator que o deve elucidar sobre a existência e conteúdo daquele, sobre o direito de se opor à sua execução e de renunciar ao benefício da especialidade, devendo a informação que assim lhe é transmitida sobre a regra da especialidade e a declaração da pessoa procurada, tal como de resto o consentimento na entrega que eventualmente prestar serem exarados em auto, assinado por ele e pelo defensor ou advogado constituído.


28. As exigências contidas nestas normas, resultam do disposto nos artigos 11.º, n.º 1, 13.º, 14.º, 18.º, n.º 1, al. a), 19.º, n.º 1, da Decisão-Quadro n.º 20002/584/JAI do Conselho da União Europeia e encontram a sua razão justificativa no respeito pelos direitos fundamentais e observância dos princípios reconhecidos pelo art.º 6.º do Tratado da União Europeia e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nomeadamente no seu capítulo VI, no que se inclui o direito a um processo justo equitativo e a possibilidade de um exercício efectivo do direito de defesa consagrado no art.º 32.º, n.º 1 da CRP e no art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.


29. Resulta dos presentes autos que recebido pelo Ministério Público o MDE emitido em 26 de Novembro de 2019, pelo Tribunal Regional de Lódz, no Processo IV K 10/17, o Requerido não foi apresentado ao Ministério Público para audição pessoal, nem o Juiz Relator procedeu à sua audição, pelo que o Requerido não foi elucidado pela autoridade judiciária sobre a existência e o conteúdo do mandado de detenção europeu, sobre o direito de se opor à sua execução e de renunciar ao benefício da regra da especialidade.


30. O Requerido foi ouvido nos presentes autos, mas apenas no âmbito do MDE em 03/12/2018, pelo Tribunal Regional de Gdansk, tendo sido apenas em relação a esse mandado que se pronunciou no sentido de não dar o seu consentimento à sua execução e de não renunciar ao princípio da especialidade.


31. O MDE emitido em 29/11/2019 pelo Tribunal Regional de Lódz constitui, pois, uma situação nova, a qual não foi tomada em consideração aquando da audição pessoal do Requerido no âmbito do MDE emitido pelo Tribunal Regional de Gdansk pelo que não podia ser tida em consideração para, por si só, fundamentar o pedido de afastamento do princípio da especialidade e, por maioria de razão, determinar esse afastamento, tanto mais que tal ampliação e consequente decisão não resulta de um processo justo e equitativo, no qual tenham sido dadas ao Requerido todas as garantias de defesa.


32. Tendo o novo MDE sido emitido em momento posterior, por diferente autoridade judiciária e com diferente fundamentação e âmbito, não poderia deixar de se proceder à audição pessoal do Requerido nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 17.º, n.º 1 e 18.º, n.ºs 2, 5 e 6, da Lei n.º 65/2003 de 23 de Agosto, o que não se verificou, nem no momento do recebimento do MDE emitido em 28/12/2019, pelo Tribunal Regional de Lódz, nem em momento subsequente.


33. A não audição do Requerido constitui preterição de acto obrigatório, consubstanciando uma nulidade insanável nos termos das disposições conjugadas dos artigos 17.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 2, 3, 5 e 6 e 21.º, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto e art.º 119.º, al. c), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art.º 34.º daquela Lei e do disposto no art.º 32.º, n.º 1 da CRP e art.º 6.º da CEDH.


34. Por sua vez, a «falta de inquérito» que decorre do facto e o Requerido não ter sido pessoalmente ouvido e, consequentemente, inteirado do conteúdo do MDE contra si requerido, consubstancia violação daqueles mesmos normativos e comando constitucional, que não se pode ter por suprido com a resposta da mandatária do arguido, sob pena de violação de um direito fundamental, integrando a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. d) do Código de Processo Penal.


35. Nulidades que devem ser declaradas, determinando a invalidade de todos os actos subsequentes ao recebimento pelo Senhor Juiz Relator do pedido de Prestação de Consentimento para dispensa do princípio da especialidade, nulidade essa que afecta igualmente o Acórdão recorrido.


36. Em consequência, ser determinada a tradução integral do MDE por entidade certificada diversa da que efectuou a junta aos autos, após o que deve ser determinada a audição pessoal do Requerido, prosseguindo os autos em conformidade.


37. O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 3.º, n.ºs 1, alíneas c), f) e g) e 2, 16.°, n.ºs 2, 3 e 5, 17.º, n.ºs 1, 3 e 4, 18.°, n.ºs 2, 3, 5 e 6, 21.º e 22.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto e art.º 119.º, alíneas c) e d), do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi do art.º 34.º daquela Lei, bem como direitos fundamentais e observância dos princípios reconhecidos pelo art.º 6.º do Tratado da União Europeia e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nomeadamente no seu capítulo VI, no que se inclui o direito a um processo equitativo e a possibilidade de um exercício efectivo do direito de defesa igualmente consagrados nos artigos 16.º, n.º 2, 18.º, 20.º, n.º 4 e 32.°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.


38. Sem prescindir, mas por mera cautela de patrocínio, discorda o Requerido da Matéria de Facto Provada vertida nas alíneas c) e d) do ponto 6.1. do douto Acórdão recorrido.


39. Conforme vertido na decisão no segmento em referência, os factos ali dados como provados resultam da documentação junta aos autos, que o Tribunal a quo não concretiza qual seja.


40. Ao Requerido só foi dado conhecimento e exclusivamente na pessoa da sua mandatária, do MDE emitido pelo Tribunal Regional de Lódz em 26/12/2019 e da informação emitida por essa entidade em 12/05/2020.


41. De nenhum desses documentos consta que o Juiz do Tribunal Regional de Lódz tenha emitido o MDE contra o Requerido, "pretendendo o afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou aquele cidadão no âmbito destes autos, através do mecanismo previsto na al. a g) do n.º 2 do art.º 7 da Lei 65/2003, na redação da Lei 35/2015,", conforme se consignou na al. c) dos factos provados.


42. Estando consignado no MDE do Tribunal Regional de Lódz que o Requerido renunciou ao princípio da especialidade, manifesto é que não poderia a autoridade judiciária pretender o afastamento desse princípio, pelo que deve o facto provado sob a alínea c) ser expurgado desse segmento.


43. Por outro lado, deu-se como provado sob a alínea d), que De acordo com as informações do MDE a prescrição do procedimento criminal terá lugar em 31 de julho de 2026, 6 de junho de 2026 e 29 de junho de 2026, respetivamente.", não obstante da informação do MDE constar" F. Outras circunstâncias pertinentes para o processo (indicações facultativas): A prescrição da execução da condenação de privação de liberdade terá lugar .... ".


44. A expressão "A prescrição da execução da condenação de privação de liberdade" não pode ter-se por equivalente a prescrição do procedimento criminal, antes sugerindo que ali se refere a prescrição da execução das penas em que foi condenado, único sentido compatível com o que demais consta da tradução do MDE que consta dos autos, como acima se deixou alegado.


45. É certo que na comunicação da autoridade judiciária de emissão de 12/05/2020, se esclarece que o MDE foi emitido para procedimento criminal, o que poderá ter determinado o entendimento do Tribunal a quo no sentido de que o que ali se queria dizer era prescrição do procedimento criminal e não prescrição das penas.


46. Mas, com o devido respeito, tal dedução é inaceitável, considerando que o conteúdo do MDE aponta, em grande parte, no sentido do cumprimento de penas que foram aplicadas ao Requerido no processo no âmbito do qual aquele mandado de detenção europeu foi emitido, e o esclarecimento constante da comunicação de 12/05/2020 não se apresenta como suficiente para esclarecimento de todas as questões que o conteúdo daquele suscita, por contraditórias e desacompanhadas de qualquer documento / decisão, não obstante tal ter sido solicitado.


47. Face às contradições sobre questões essenciais entre o conteúdo do MDE e a comunicação de 12/05/2020, para mais desacompanhada de qualquer documento ou decisão que as clarifique, sem que subsistam dúvidas, tal facto não pode ser dado como provado, devendo ser expurgado da matéria de facto provada.


Termos e fundamentos por que deve ser revogado o douto Acórdão recorrido e proferida decisão de não declaração de consentimento para afastamento do princípio da especialidade ou, caso assim se não entenda, ser declarada a nulidade de todo o processado desde o recebimento pelo Senhor Juiz Relator do Pedido de Prestação de Consentimento para a afastamento da regra da especialidade, nulidade essa que afecta o Acórdão recorrido, determinando-se a tradução integral, por entidade certificada, do MDE emitido pelo Tribunal Regional de Lódz, a subsequente audição pessoal do Requerido, prosseguindo os autos em conformidade, com o que se fará a necessária JUSTIÇA.


4. Respondeu o Ministério Público, formulando as conclusões que igualmente se transcrevem:


«1 - O Venerando Tribunal da Relação de Évora decidiu "declarar o consentimento deste tribunal para afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou o cidadão de nacionalidade polaca AA no âmbito do Processo n.º 132/19.1 YREVR (MDE) deste tribunal, com vista ao procedimento criminal pela prática dos crimes supra identificados, a que respeita o Proc. IV K10/17, do Tribunal Regional de Lodz, Polónia ... "


2 - O requerido vem interpor recurso pretendendo que "deve ser revogado o douto Acórdão recorrido e proferida decisão de não declaração de consentimento para afastamento do princípio da especialidade ou, caso assim se não entenda, ser declarada a nulidade de todo o processado desde o recebimento pelo Senhor Juiz Relator do Pedido de Prestação de Consentimento para a afastamento da regra da especialidade, nulidade essa que afecta o Acórdão recorrido, determinando-se a tradução integral, por entidade certificada, do MDE emitido pelo Tribunal Regional de Lódz, a subsequente audição pessoal do Requerido, prosseguindo os autos em conformidade, com o que se fará a necessária JUSTIÇA.”


3 - Para tanto e resumidamente, questiona a tradução do MDE, a falta de nova audição do requerido e discorda da matéria de facto provada no ponto c- 1, c9 e d) do Acórdão.


4 - No dia 6-8-2019, posteriormente à audição do requerido que declarou não renunciar ao princípio da especialidade, foi proferido Acórdão nos presentes autos decidindo-se a entrega do ora recorrente às autoridades judiciárias polacas com vista ao cumprimento de uma pena remanescente, na sequência de um MDE emitido em 3-12-2018, pelo Tribunal Regional de Gdansk, Polónia (Processo IV K 22/13).


5 - Em 26-11-2019, o Tribunal Regional de Lódz emitiu novo MOE, respeitante a outro processo (IV K 10/17) no qual se pretendia o afastamento de princípio da especialidade do qual o requerido havia beneficiado neste processo, a fim de ser sujeito a procedimento criminal pela prática de factos anteriormente cometidos, sendo que a prescrição do procedimento criminal por estes ilícitos ocorrerá em 31-7-2026, 6-6-2026 e 29-6-2026.


6 - Resulta deste MDE que o arguido tinha conhecimento do processo e da matéria penal em causa ao mencionar que o julgamento não se realizou por falta do requerido e do seu defensor, acrescentando-se ainda que o processo chegou a ser suspenso em virtude de doença/cirurgia alegada pelo arguido.


7 - Por se terem suscitado dúvidas sobre o objecto do Mandado, o Tribunal (artigo 16.º n.º 3 do DL 65/2003, de 23-8), solicitou informação complementar às autoridades judiciárias da Polónia que esclareceram expressamente que o MDE "não está relacionado com a pena de privação de liberdade pronunciada contra AA” e que em 16-5.2018 o Tribunal Distrital de Lódz "emitiu o despacho de prisão preventiva e o Mandado de Detenção Europeu foi emitido para efeitos de procedimento penal por crimes que lhe foram imputados".


8 - Este pedido do estado de emissão consubstancia uma ampliação de pedido de entrega anteriormente efectuado no âmbito do MDE que originou os presentes autos, a efectivar-se nos termos do artigo 7.º n.º 4 da Lei 65/2003, consagrada no artigo 27.º n.º 2, 3 g) e 4 da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia de 13-6-2002, daí resultando que "a regra da especialidade não se aplica quando a autoridade judiciária de execução que ordenou a entrega de pessoa reclamada tenha dado o respectivo consentimento”.


9 - Em conformidade com o disposto no artigo 7.° n.º 4 c) da Lei 65/2003 o consentimento "deve ser prestado sempre que esteja em causa infracção que permita a entrega por aplicação do regime jurídico do mandado de detenção europe”', o que é manifestamente o caso.


10 - Atento o teor do artigo 18.º da Lei 65/2003, uma segunda audição do requerido no âmbito do mesmo processo seria uma mera e desnecessária repetição da anterior que nada de novo traria aos autos, pelo que sempre seria de dispensar.


11 - Dispensável para aplicação de medida coactiva, dado que o requerido se encontra detido preventivamente à ordem de processo de Inquérito acorrer termos no DIAP de Faro e relativamente aos novos factos imputados porque já são do seu total conhecimento, conforme resulta do item "F” do Mandado.


12 - Com efeito, após entrega da pessoa procurada ao País emitente, não se justifica nova audição do requerido já que, havendo anterior consentimento e estando apenas em causa o consentimento deste tribunal para afastamento do principio da especialidade quanto a outro processado, trata-se de diligência de natureza meramente acessória ao procedimento inicial.


13 - Nada a apontar aos factos provados nas alíneas c) e d) do ponto 6.1. do douto Acórdão recorrido


14 - Também não se verificam causas de recusa (obrigatórias ou facultativas) de execução do MDE, previstas nos artigos 11.º e 12.º da Lei 65/2003 de 23-8.


15 - Assim, mantendo-se o douto Acórdão nos seus precisos termos já que não foram cometidas quaisquer nulidades nem violadas quaisquer disposições legais ou constitucionais.»


5. Na pendência deste recurso, juntou o Recorrente o articulado cujo teor se transcreve:


«1. O presente recurso veio interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 14/07/2020, nos termos do qual se declarou o consentimento para o afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou o recorrente no âmbito dos presentes autos, com vista ao procedimento criminal pela prática dos crimes a que respeita o Proc. IV K10/17 do Tribunal Judicial de Lodz, Polónia.


2. Já após a interposição do recurso, foi o Requerido notificado da decisão proferida pelo Tribunal Distrital de Gdansk, Polónia, em 7 de Agosto de 2020, no âmbito do Proc. IV K 22/13, nos termos da qual se decidiu revogar o mandado de captura ordenado por decisão de 16 de Agosto de 2017, conforme decisões e traduções que se juntam como Docs. 1 e 2 que se juntam e dão por integralmente reproduzidos.


3. A decisão proferida em 7 de Agosto de 2020 é da maior relevância para a apreciação e decisão a proferir por este Supremo Tribunal de Justiça.


4. Com efeito, como resulta dos presentes autos, o MDE que lhe deu origem foi emitido pelo Tribunal Distrital de Gdansk, no Processo IV K 22/13. tendo sido apenas em relação a esse mandado que se pronunciou no sentido de não dar o seu consentimento à sua execução e de não renunciar ao princípio da especialidade.


5. Face à revogação do mandado de captura emitido no Proc. IV K 22/13, a entrega do Requerido para cumprimento do remanescente da pena no âmbito do MDE; que deu origem aos presentes autos e determinada pelo Tribunal a quo em 06/08/2018, deixou de ter objecto, uma vez que tal entrega deixou de interessar à entidade emissora,


6. Em face do exposto, a audição pessoal do Requerido no âmbito do MDE emitido no Proc. IV K10/17 do Tribunal Regional de Lódz e que deu origem ao douto Acórdão recorrido, para além de obrigatória, revela-se ainda como necessária, tanto mais que o pedido formulado, consubstanciando uma ampliação do pedido no âmbito do MDE emitido pelo Tribunal Distrital de Gdansk, no âmbito do qual o Requerido, não renunciou à regra dá especialidade, se apresenta agora como destituído de fundamento,


7. termos e fundamentos porque se requer a Vossas Excelências se dignem admitir a junção aos autos dos documentos ora apresentados, concluindo-se nos precisos termos da Motivação de Recurso.»


6. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal pronunciou-se nos seguintes termos:


«Requerimento que precede:


1. De acordo como os documentos juntos pelo Recorrente, a pena de 3 anos prisão decretada no Proc. n.º XIV K 22/13 do Tribunal Distrital de Gdansk – que deu origem ao presente Proc. n.º 132/19.1 YREVR de execução de MDE emitido pelas autoridades polacas para cumprimento do remanescente de 723 dias daquela –, foi englobada em cúmulo efectuado no Proc. n.º III K 146/19, sendo, consequentemente, revogado o mandado de captura emitido.

Suposta a conformidade com o original de tais documentos, juntos por cópia electrónica, a situação noticiada pode repercutir-se sobre a exequibilidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6.8.2018, que foi o que determinou a execução daquele MDE e a entrega, diferida – art.º 31º n.º 1 da Lei n.º 65/2003, de 23.8 –, do Recorrente á autoridades polacas.

Acórdão aquele de que, aliás, o presente procedimento constitui dependência, por de "ampliação" nos termos do art.º 7º n.os 2 al. g) e 6 da Lei n.º 65/2003, de 23.8 da decisão de execução e entrega nele decretada.

2. Pese a dependência assinalada, a verdade é que se entende que, mesmo que tenha sido revogada na Polónia a ordem de captura do Recorrente para cumprimento, singular, do remanescente de pena sempre referido – o que, pelo menos, por ora, não se tem por inequivocamente adquirido –, tal não se repercute directa e imediatamente sobre a marcha e decisão do presente recurso, que colhe o seu fundamento remoto no acórdão de 6.8.2018, transitado em julgado e exequível.


E se é certo que, como assinalado, a revogação se pode projectar sobre tal exequibilidade, não menos o é de que se trata de questão alheia aos poderes de cognição deste STJ – confinados, estes, ao reexame do Acórdão de 14.7.2020, que autorizou a "ampliação" da execução e da entrega –, antes competindo ela ao TRE, a pedido do Recorrente ou, até, a título oficioso.

E tudo assim, sem prejuízo, claro está, das refracções da decisão de eventual inexequibilidade sobre a que venha a ser tomada neste recurso, de que, sendo o caso, se cuidará.

3. Quer, assim, tudo o que precede significar que, do ponto de vista do Ministério Público, a situação ora noticiada em nada obsta ao prosseguimento deste recurso.

E – acrescenta-se – também em nada se projecta sobre a apreciação do seu mérito.

Por isso que é pelo seguimento da instância recursiva, concluindo, tal como na contramotivação do Senhor Procurador-Geral Adjunto de Évora, pela sua improcedência.»


7. Realizada a conferência, cumpre decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. Factos


Considerou-se no acórdão recorrido que:


«Atenta a documentação junta aos autos, consideram-se como provados os seguintes factos:

a) No âmbito do processo supra mencionado (n.º 132/19.1 YREVR), este tribunal - na sequência do MDE emitido pelo Tribunal Regional de Gdansk, da Polónia, em 3.12.2018 - por acórdão de 6 de agosto de 2019, determinou a entrega do cidadão AA (nascido em … de outubro de 1964, em Varsóvia, filho de BB e de CC, com última residência conhecida em … 5/26, …, na Polónia) às autoridades judiciárias competentes da Polónia para cumprimento do remanescente de 723 (setecentos e vinte e três) dias da pena de 3 (três) anos de prisão que lhe foi imposta no Processo IV K 22/13, por sentença datada de 12 de março de 2015, pela prática de dois delitos de fabrico, processamento e contrabando ilegal de substâncias de substituição ou substâncias psicotrópicas ou a sua comercialização, crimes previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos art.rs 55, parágrafos 1 e 3 da Lei de 29 de julho de 2005, relativa à prevenção da toxicodependência, e 64 parágrafo 1 do Código Penal, e 62 parágrafo 1 da Lei de 29 de julho de 2005, relativa à prevenção da toxicodependência, entrega essa a efetuar "logo que deixe de interessar a detenção do mesmo à ordem do processo de inquérito n. o 2119.3…, que corre termos pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de …".

b) Quando foi ouvido no mencionado processo, nos termos do art,18 da Lei 65/2013, aquele não renunciou ao princípio da especialidade.

c) No dia 26 de novembro de 2019 o Juiz do Tribunal Regional de Lódz emitiu, no Processo IV K 10/17, um novo MDE contra o mesmo cidadão, pretendendo o afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou aquele cidadão no âmbito destes autos, através o mecanismo previsto na al.ª g) do n.º 2 do art.º 7 da Lei 65/2003, na redação da lei 35/2015, para que o mesmo possa ser sujeito a procedimento criminal pela prática dos factos que dele constam, que ocorreram no período de novembro de 1998 a julho de 2001 e que, de acordo com o MDE integram:     

- O crime de participação numa organização criminosa de carácter armado, p. e p. pelo art.º 258 parágrafo 2 do Código Penal Polaco, punível com pena até oito anos de privação da liberdade;

- o crime de se passar por polícia e tentativa de extorsão de proteção usando armas de fogo sem autorização, associada com a privação de um homem da liberdade, cometida nas condições da organização criminosa de caráter armado, p. e p. pelo artigo 13 parágrafo 1 do Código Penal Polaco, em conjugação com os artigos 282, 227, 189 parágrafo 1, 263 parágrafo 2, 11 parágrafo 2 e 65, todos do mesmo Código Penal Polaco, punível com pena até 10 anos de privação da liberdade;

- e o crime de extorsão de proteção praticada em relação com a tomada de refém e com a privação de liberdade por mais de sete dias e com uma angústia especial do refém causadora de danos corporais graves que constituíam as lesões irreversíveis, cometidas nas condições da organização criminosa de carácter armado, p. e p. pelos artigos 189 parágrafo 2 do Código Penal Polaco, em conjugação com os artigos 252 parágrafos 1 e 2, 282, 156 parágrafo 1 n.º 2, 11 parágrafo 2 e 65, todos do Código Penal Polaco, punível com pena até 12 anos de privação da liberdade.

d) De acordo com as informações do MDE a prescrição do procedimento criminal terá lugar em 31 de julho de 2026, 6 de junho de 2026 e 29 de junho de 2026, respetivamente.

e) A factualidade que integra aqueles crimes vem descrita da al.ª E do MDE, que aqui se dá como reproduzida, e integra, de acordo com o MDE, os crimes previstos no art.º 2 n.º 2 al.ªs o) - ofensas corporais graves - q) - rapto, sequestro e tomada de reféns - e v) da Lei 65/2003, de 23.08 - extorsão de proteção e extorsão.

f) Mais consta do MDE (al.ª F.):

" …

Por decisão de 13 de janeiro de 2017, durante o julgamento criminal realizado ... o caso AA foi excluído de processos separados devido a um obstáculo de longa data que impedia o acusado de participar nas audiências ... O acusado estava qualificado para a cirurgia com data prevista para setembro de 2017. Segundo a opinião do especialista o acusado poderá comparecer ao julgamento quatro a seis semanas após a cirurgia. Por decisão do tribunal Regional de Lódz de 25 de julho de 2017 o processo foi suspenso ... A data da cirurgia foi transferida de 5 de setembro de 2017 para 4 de dezembro de 2017, sobre a qual o próprio AA informou o tribunal. Em dezembro de 2017 a instituição médica informou o tribunal que o acusado não compareceu à cirurgia planejada. Uma carta enviada duas vezes para explicar a ausência de uma intervenção ficou sem resposta. Nesta situação, por decisão do Tribunal Regional de Lódz de 16 de maio de 2018 uma medida preventiva foi aplicada ao acusado sob a forma de detenção temporário por um período de dois meses ... a partir do momento da detenção. O acusado AA foi devidamente notificado da data da reunião. Nem o acusado nem seu advogado apareceram ... O defensor do acusado recorreu da decisão sobre a aplicação da detenção em prisão preventiva. Por decisão de 11 de julho de 2018 o Tribunal de Recurso de Lódz ... confirmou o despacho impugnado ... ".


2. Apreciação


2.1. Âmbito do recurso


Sendo que o objecto e âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, pretende o recorrente a revogação do acórdão, devendo ser «proferida decisão de não declaração de consentimento para afastamento do princípio da especialidade ou, caso assim se não entenda, ser declarada a nulidade de todo o processado desde o recebimento pelo Senhor Juiz Relator do Pedido de Prestação de Consentimento para a afastamento da regra da especialidade, nulidade essa que afecta o Acórdão recorrido, determinando-se a tradução integral, por entidade certificada, do MDE emitido pelo Tribunal Regional de Lódz, a subsequente audição pessoal do Requerido, prosseguindo os autos em conformidade».

Alega o recorrente que o

O MDE emitido pelo Tribunal Regional de Lódz não cumpre as exigências quanto ao conteúdo e forma impostas nos artigos 27.°, n.ºs 2, 3, al. g) e 4, 8.°, n.ºs 1, als. c) e g) e 2, da Decisão-Quadro n.º 202/584/JAI, de 13 de Junho de 2002, do Conselho da União Europeia, nem o disposto nos artigos 3.°, n.ºs 1, als. c), f) e g), 16.°, n.ºs 2, 3 e 5, 17.° n.ºs 3 e 4 e 22.º, n.º 2, do regime jurídico do mandado de detenção europeu aprovado pela Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto que as transpôs para a ordem jurídica interna.

Invoca a deficiente tradução do MDE, enunciando um conjunto de «incorreções e deficiências da tradução e/ou do conteúdo do MDE, bem como as insuficiências que do mesmo ressaltam» que «não permitem o conhecimento da decisão ao abrigo da qual se pretende a entrega do Requerido, em decorrência do que os autos estão inquinados ab initio».

E que:

«Tendo o novo MDE sido emitido em momento posterior, por diferente autoridade judiciária e com diferente fundamentação e âmbito, não poderia deixar de se proceder à audição pessoal do Requerido nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 17.º, n.º 1 e 18.º, n.ºs 2, 5 e 6, da Lei n.º 65/2003 de 23 de Agosto, o que não se verificou, nem no momento do recebimento do MDE emitido em 28/12/2019, pelo Tribunal Regional de Lódz, nem em momento subsequente», constituindo a não audição pessoal do Requerido «preterição de acto obrigatório, consubstanciando uma nulidade insanável nos termos das disposições conjugadas dos artigos 17.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 2, 3, 5 e 6 e 21.º, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto e art.º 119.º, al. c), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art.º 34.º daquela Lei e do disposto no art.º 32.º, n.º 1 da CRP e art.º 6.º da CEDH», e, bem assim, «”falta de inquérito” que decorre do facto e o Requerido não ter sido pessoalmente ouvido e, consequentemente, inteirado do conteúdo do MDE contra si requerido, consubstancia violação daqueles mesmos normativos e comando constitucional, que não se pode ter por suprido com a resposta da mandatária do arguido, sob pena de violação de um direito fundamental, integrando a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. d) do Código de Processo Penal. Nulidades que devem ser declaradas, determinando a invalidade de todos os actos subsequentes ao recebimento pelo Senhor Juiz Relator do pedido de Prestação de Consentimento para dispensa do princípio da especialidade, nulidade essa que afecta igualmente o Acórdão recorrido».

Discorda ainda o Requerido da matéria de facto provada vertida nas alíneas c) e d) do ponto 6.1. do acórdão recorrido, pois «[c]onforme vertido na decisão no segmento em referência, os factos ali dados como provados resultam da documentação junta aos autos, que o Tribunal a quo não concretiza qual seja».


2.2. O princípio da especialidade


Importa recordar que presente recurso vem interposto do acórdão da Relação de Évora de 14-07-2020 que declarou o seu consentimento para afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou o Requerido no âmbito do Processo n.º 132/19.1 YREVR (MDE) deste tribunal, com vista ao procedimento criminal pela prática dos crimes supra identificados, a que respeita o Proc. IV K10/17, do Tribunal Regional de Lódz, Polónia.

Efectivamente, por acórdão do mesmo Tribunal de 6 de Agosto de 2019, foi determinada a execução do mandado de detenção europeu e a consequente entrega de agora recorrente às autoridades judiciárias competentes da Polónia, "logo que deixe de interessar a detenção do mesmo à ordem do processo de inquérito n.º 2/19.3…, que corre termos pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de Faro.

Sublinhando-se ainda que na tramitação do MDE que culminou na decisão de entrega diferida, o aí Requerido e aqui Recorrente foi pessoalmente ouvido tendo então declarado não renunciar ao princípio da especialidade.

Agora, o que está em causa é o pedido de prestação do consentimento para afastamento do princípio da especialidade para, em caso de deferimento, o Requerido poder responder perante Tribunal Regional de Lódz da Polónia por factos integradores de crimes praticados em data anterior aos factos constantes do MDE emitido pelo Tribunal Regional de Gdansk – Polónia.


O artigo 7.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (lei interna de implementação da Decisão Quadro do Mandado de Detenção Europeu), na sua actual redacção, consagra o princípio da especialidade, nos seguintes termos:


«Artigo 7.º

Princípio da especialidade

1 - A pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu.

2 - O disposto no número anterior não se aplica quando:

a) A pessoa entregue, tendo a possibilidade de abandonar o território do Estado membro de emissão não o fizer num prazo de 45 dias a contar da extinção definitiva da sua responsabilidade penal, ou regressar a esse território após o ter abandonado;

b) A infracção não for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade;

c) O procedimento penal não der lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual;

d) A pessoa entregue seja sujeita a pena ou medida não privativa da liberdade, nomeadamente uma sanção pecuniária ou uma medida alternativa, mesmo se esta pena ou medida forem susceptíveis de restringir a sua liberdade individual;

e) A pessoa, previamente à sua entrega, tenha nela consentido e renunciado ao benefício da regra da especialidade perante a autoridade judiciária de execução;

f) A pessoa, após ter sido entregue, tenha renunciado expressamente ao benefício da regra da especialidade no que diz respeito a determinados factos praticados em data anterior à sua entrega;

g) Exista consentimento da autoridade judiciária de execução que proferiu a decisão de entrega.

3 - Se o Estado membro de emissão for o Estado português, a renúncia prevista na alínea f) do número anterior deve:

a) Ser feita perante o tribunal da relação da área onde a pessoa residir ou se encontrar;

b) Ser exarada em auto assinado pela pessoa e redigida por forma a demonstrar que essa pessoa foi informada dos factos e das suas consequências jurídicas e expressou a sua renúncia voluntariamente e com plena consciência das consequências dessa renúncia;

c) Ser prestada com a assistência de um defensor.

4 - Se o Estado membro de execução for o Estado português, o consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2:

a) É prestado pelo tribunal da relação que proferiu a decisão de entrega;

b) (Revogada.)

c) Deve ser prestado sempre que esteja em causa infracção que permita a entrega, por aplicação do regime jurídico do mandado de detenção europeu;

d) Deve ser recusado pelos motivos previstos no artigo 11.º, podendo ainda ser recusado apenas com os fundamentos previstos nos artigos 12.º e 12.º-A;

e) Devem ser prestadas as garantias a que se refere o artigo 13.º, em relação às situações nele previstas;

f) Deve ser prestado ou recusado no prazo de 30 dias a contar da data da recepção do pedido.

5 - Se o Estado português for o Estado de emissão, é competente para solicitar o consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2 a autoridade judiciária com competência para o conhecimento da infração praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu.

6 - O pedido de consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2 é apresentado pelo Estado membro de emissão ao Estado membro de execução acompanhado das informações referidas no n.º 1 do artigo 3.º e de uma tradução, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º.»


Como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de 17-04-2013, proferido no processo n.º 700/01.8JFLSB.C1.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. Henriques Gaspar)[2]:

«O princípio da especialidade traduz-se em limitar os factos pelos quais a uma pessoa extraditada ou entregue (extradição ou cumprimento de mandado de detenção europeu) será julgada, após a entrega ao Estado requerente, àqueles que motivaram essa entrega; o fundamento jurídico do princípio assenta no reconhecimento da soberania do Estado requerido pelo Estado requerente, e corresponde à observância pelo Estado requerente do compromisso perante o Estado requerido de apenas perseguir a pessoa objecto de entrega pelas infracções mencionadas no pedido; o princípio da especialidade funda-se também na ideia de protecção dos interesses do indivíduo, como uma regra que releva do costume internacional e que vale mesmo na falta de disposições convencionais. Partindo desta visão humanista existe uma conexão entre o princípio da especialidade e a matéria dos direitos do homem, fazendo derivar o princípio da especialidade do art. 6°, n° 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. (cf, v. g., acórdão do STJ de 2/11/2006, proc. nº 4069/06).


No âmbito do mandado de detenção europeu, o princípio da especialidade está consagrado em termos amplos no artigo 7.º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, só cedendo nas condições previstas nas alíneas a) a g) do n.º 2.»


Também no acórdão de 22-01-2014, proferido no processo n.º 144/13.9YRLSB.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. Santos Cabral) se tecem considerações acerca do princípio da especialidade que importa reter. Assim, lê-se aí:


«O princípio da especialidade consagrado no normativo traduz-se em "limitar os factos pelos quais o extraditando será julgado, após a entrega ao Estado requerente, àqueles que motivaram essa entrega" Como refere Ana Zairi [[3]] O fundamento jurídico do princípio assenta, assim, no reconhecimento da soberania do Estado requerido pelo Estado requerente, expressa no carácter convencional da extradição e corresponde à observância pelo Estado requerente do compromisso perante o Estado requerido de apenas perseguir o extraditando pelas infracções mencionadas no pedido. Todavia, uma concepção mais moderna, fundada na ideia de protecção dos interesses do indivíduo, considera a especialidade como uma regra que releva do costume internacional e que vale mesmo na falta de disposições convencionais. Partindo desta visão humanista, a autora citada estabelece uma conexão entre o princípio da especialidade da extradição e a matéria dos direitos do homem, fazendo derivar o princípio da especialidade do art. 6°, n° 3, al. a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que essa norma exige que o acusado seja informado da natureza e da causa da acusação contra ele formulada, o que significa que só pode haver extradição por factos de que o extraditando tenha conhecimento.

Duma forma ou doutra, o princípio da especialidade só constitui uma salvaguarda enquanto o extraditado se encontrar sob a tutela do Estado requerente.

O princípio da especialidade sofre duas excepções:


- quando houver consentimento do Estado requerido na ampliação da extradição, de forma a que o extraditado responda por outros processos;


- quando, terminado o procedimento criminal ou o cumprimento da pena e restituída à liberdade, a pessoa extraditada permaneça no território do Estado requerente para além do prazo de 45 dias, que é concedido para que abandone livremente esse território, ou se a ele regressar, depois de o ter deixado.


Assim como um Estado pode requerer a extradição dum cidadão com fundamento em vários procedimentos criminais de que este é suspeito, arguido ou condenado, assim também, se, depois de operada a entrega, se vier a verificar a existência de outros processos, pode ser solicitada, ao Estado requerido, a ampliação da extradição, a qual só é possível se esse Estado nela consentir».


O princípio da especialidade encontra-se igualmente referenciado no acórdão deste Supremo Tribunal de 09-01-2019, proferido no processo n.º 144/13.9YRLSB – 3.ª Secção (Relator: Cons. Nuno Gonçalves).


Numa breve síntese, pode concluir-se que, de acordo com a regra da especialidade, estabelecida no artigo 27.º da Decisão-Quadro relativa ao MDE, transposta para o direito nacional pelo citado artigo 7.º, n.º 4, da Lei n.º 65/2003, em geral, uma pessoa não pode ser sujeita a procedimento penal por infracção praticada antes da sua entrega diferente daquela que motivou essa mesma entrega.


Ora o artigo 27.º, n.º 3, daquela Decisão-Quadro, com correspondência no artigo 7.º, n.º 4 da Lei n.º 65/2003, permite que a regra da especialidade não se aplique através do pedido de consentimento do Estado-Membro de execução para efeitos de procedimento penal ou para sancionar outras infracções. A pessoa entregue no âmbito da execução de um MDE que ali não tenha renunciado à regra da especialidade deixará de beneficiar da mesma quando a autoridade judiciária que a ordenou a sua entrega (Tribunal da Relação) der o seu consentimento para que a pessoa possa ser sujeita a procedimento criminal por infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que determinou a emissão do MDE.


O pedido de consentimento é apresentado à autoridade judiciária de execução acompanhado das informações referidas no n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 65/2003 (conteúdo do MDE) e de uma tradução conforme indicado no artigo 3.º, n.º 2 da mesma Lei (tradução do MDE).

O consentimento deve ser dado sempre que a infração para a qual é solicitado dê ela própria lugar a entrega em conformidade com o disposto Decisão-Quadro relativa ao MDE e da Lei n.º 65/2003, limitando-se aos factos que constam do pedido de consentimento.

Por sua vez, o consentimento deve ser recusado pelos motivos referidos no artigo 11.º da mesma Lei (causas de recusa obrigatória), podendo ainda ser recusado pelos motivos constantes do artigo 12.º (causas de recusa facultativa).


Atenta a concreta tramitação de pedido de consentimento do Estado de execução para efeitos de procedimento criminal ou sancionamento de outras infracções praticadas em momento anterior ao da entrega determinada no MDE, podemos legitimamente concluir que não nos encontramos verdadeiramente perante MDE caracterizado pela completa novidade, mas sim perante uma ampliação do pedido ali inicialmente formulado, uma extensão desse pedido.

Expostas estas considerações de enquadramento, e retomando a situação dos autos, verificamos que a entrega do Requerido já foi determinada por decisão de 6 de Agosto de 2019, através da execução do MDE solicitado pelo Tribunal Regional de Gdansk no âmbito do qual o mesmo Requerido foi ouvido e declarou não consentir na sua entrega e não renunciar à regra da especialidade.

Entretanto, o Tribunal Regional de Lódz, igualmente da Polónia, solicitou o consentimento da autoridade judiciária portuguesa que executou aquele MDE para que o Requerido possa ser sujeito a procedimento criminal pela prática dos factos que nele se mostram registados e que ocorreram em datas anteriores à data em que foi determinada a entrega.

Por despacho de fls. 158:

«Uma vez que o requerido já foi ouvido no âmbito destes autos e declarou não renunciar ao princípio da especialidade (fls 105 dos autos), notifique o mesmo, na pessoa da sua mandatária, para, querendo, se pronunciar, em 10 dias, sobre o requerimento de fls. 153 e seguintes e doc. De fls. 133 a 151)».

Em resposta, o Requerido suscitou a «questão prévia – Da falta de uma correcta tradução do MDE geradora de nulidade», alegando que «A tradução autenticada que segue junta com o MDE emitido pelo Tribunal Regional de Lodz não se encontra totalmente fiel e correspondente com o texto polaco naquele vertido» e que «a mesma padece de algumas imprecisões e obscuridades que obstam a uma correcta e cabal interpretação do MDE».

A título de exemplo referencia-se a tradução do vocábulo “postanowienie” traduzido como “sentença” quando ele significa “despacho”

Pois que, afirmou, «não existe qualquer sentença condenatória no processo identificado daí que não é correcta a menção feita pelo MP no seu requerimento de que o presente MDE tem como escopo o «cumprimento das penas de …»

Alegou-se a «errada interpretação do MDE ajuizado», decorrente da circunstância de o MDE emitido «não visa o cumprimento de qualquer pena pelo extraditando», a «insuficiência das informações comunicadas pelo estado Polaco», a «violação do princípio da lealdade processual».

Foi então determinado por despacho de fls. 174 que se solicitasse à autoridade judiciária de emissão que informe e documente que pena de prisão foi aplicada ao requerido por via da sentença proferida pelo Tribunal Regional de Lodz em 16 de Maio de 2018.

O Tribunal Polaco informou (fls. 227) que «o Mandado de Detenção Europeu emitido pelo Tribunal Distrital de Lódz em 12 de Novembro de 2019 não está relacionado com a pena de privação de liberdade pronunciada contra AA».

Contra o Requerido, conforme informação prestada pelo Tribunal Distrital de Lodz, foi emitido em 16 de Maio de 2018 «o despacho de prisão preventiva e o Mandado de Detenção Europeu foi emitido para efeitos de procedimento penal por crimes que lhe foram imputados».


2.3. A questão da deficiência da tradução


Por força do disposto no artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, o MDE deve ser traduzido numa das línguas oficiais do Estado membro de execução ou noutra língua oficial das instituições das Comunidades Europeias aceite por este Estado, mediante declaração depositada junto do Secretariado-Geral do Conselho. Tal normativo resulta da transposição da norma prevista no artigo 8.º, n.º 2, da Decisão Quadro 2002/584/JAI.

Por outro lado, o processo de execução do MDE segue subsidiariamente as regras do Código de Processo Penal (CPP) relativas ao julgamento, por força do disposto no artigo 34.º, da Lei n.º 65/2003 de 23-08. Assim, releva no que toca à junção de documento em língua estrangeira (in casu, informação referente ao conteúdo do MDE), o disposto no artigo 92.º, do CPP, mas também o disposto nos artigos 164.º e segs. daquele diploma a propósito da prova documental.

De facto, nos termos do disposto no artigo 92.º, do CPP, nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade (n.º 1), sendo que é nomeado intérprete quando se tornar necessário traduzir documento em língua estrangeira e desacompanhado de tradução autenticada (n.º 6).

E, por força do disposto no artigo 166.º, n.º 1, do CPP, se o documento for escrito em língua estrangeira, é ordenada, sempre que necessário, a sua tradução, nos termos do n.º 6 do artigo 92.º’.

Ora, da conjugação destes dois artigos resulta que a tradução de determinado documento junto ao processo penal como prova documental deve ser ordenada pela autoridade judiciária competente (Ministério Público ou Juiz consoante a fase processual - inquérito, instrução ou julgamento - em que o processo se encontre) de acordo com um critério de necessidade. Razões que se prendem com o cabal exercício do contraditório e a realização dos direitos de defesa constitucionalmente garantidos do arguido subjazem, naturalmente, a este juízo de oportunidade, o qual não pode também deixar de ser sopesado com os princípios da adequação da actividade processual e, da consequente, não realização de actos inúteis no processo.

Ora, estas considerações são inteiramente válidas no âmbito do processo de execução do MDE, ou no presente procedimento, interpretação que encontra expressão literal nos artigos 22.º, 29.º, e 33.º, todos da Lei n.º 65/2003, em que se evidencia a sua natureza urgente e que resulta, igualmente, do artigo 17.º, n.º 1 da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI supra citada, devendo, por isso, excluir-se a realização de diligências inúteis, impertinentes ou dilatórias que não sejam adequadas ou úteis ao seu fim.

E, neste sentido tem seguido o Supremo Tribunal de Justiça, pois se a execução do MDE obedece a requisitos de conteúdo e de forma, a sua ausência, não tem sido entendida pela jurisprudência, como causa de recusa obrigatória ou de recusa facultativa, previstas, respectivamente, nos artigos 11.º e 12.º da citada Lei, ou, sequer como causa de nulidade - cfr. artigo 120.º, n.os 1 e 2, alínea c), do CPP.

Em vez disso, tem sido tratada como uma irregularidade sanável que deve ser arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos 3 dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado, nos termos do artigo 123.º, do CPP, aplicável ex vi artigo 34.º Lei n.º 65/2003.

A falta invocada importaria uma irregularidade sanável, nos termos do citado artigo 123.º do CPP, aqui aplicável subsidiariamente. Neste sentido, v. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de  25-01-2007 (Proc. n.º 07P271 - relator: Cons. Santos Carvalho); de 08- 03-2007 (Proc. n.º 733/07 - 5.ª Secção – relator: Cons. Arménio Sottomayor); de 09-08-2007, Proc. n.º 2847/07 - 5.ª Secção – relator: Cons. Reino Pires) [4]; e de 09-01-2008, Proc. n.º 4855/07 - 3.ª Secção – relator: Cons. Oliveira Mendes).

Essa irregularidade, no caso concreto, é de ter-se por sanada pois, como se diz no acórdão de 17-03-2005, proferido no processo n.º 1138/05 - 5.ª Secção (relator: Cons. Pereira Madeira)[5], a propósito da integração de eventuais insuficiências pelo pedido de informações complementares, o que importa, deste ponto de vista, é, não tanto a correcção inicial do mandado, antes que, segundo um actuante “princípio da actualidade”, com informação posterior ou sem ela, o Estado requerido, por intervenção do tribunal competente, no momento de decidir esteja na posse de todos os elementos necessários sobre o destino a dar à pedida execução do mandado.

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 20-09-2017, proferido no processo n.º 33/17.8ZFLSB-B.S1 - 3.ª Secção (Relator: Cons. Lopes da Mota), «[o] direito do arguido à obtenção do texto da acusação traduzido para língua que compreenda, que o CPP assegura (artigo 60.º), em ordem ao efectivo exercício do direito de defesa, está consagrado no artigo 6.º da CEDH, tal como interpretado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cfr. preâmbulo da Directiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao direito à tradução e interpretação em processo penal, JOUE L 280, de 26.10.2010)».

No caso dos autos, o Ministério Público, no requerimento formulado para obtenção do consentimento do Tribunal da Relação de Évora para afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou o Requerido alegou que no dia 26 de novembro de 2019 o Juiz do Tribunal Regional de Lódz emitiu, no Processo IV K 10/17, um novo MDE contra o mesmo cidadão, por factos que não estiveram na origem do MDE que originou este processo (n.º 132/19.1 YREVR), «para cumprimento das penas de:

8 (oito) anos de privação da liberdade;

10 (dez) anos de privação de liberdade;

12 (doze) anos de privação de liberdade, impostas por sentença de 16 de maio de 2018».

Na sequência da notificação que lhe foi feita, o Requerido suscitou, como questão prévia, a deficiente tradução do MDE, uma vez que onde consta "sentença" deve entender-se "despacho", pois que "não existe qualquer sentença condenatória no processo que corre na Polónia sob o n.º IV K10117", concluindo que, "caso não venha a ser junta nova tradução, deverá, então, ser declaro nulo o MDE e tudo o que posteriormente houver sido processado" (sic).

Mais alegou:

- O MDE não visa o cumprimento de qualquer pena, o Tribunal Polaco pretende é sujeitar o requerido à medida de coação privativa da liberdade, aguardando o julgamento pela prática dos crimes pelos quais se encontra acusado;

- Desconhece-se o verdadeiro alcance e conteúdo do despacho ao abrigo do qual se pretende a entrega do requerido, nomeadamente - se se tratar de extradição para cumprimento de medida de coação privativa da liberdade - a comunicação e/ou informação sobre o prazo previsto para a mesma, e a ausência de outras informações, nomeadamente, sobre eventuais interrupções da prescrição, o que obsta a qualquer tomada de decisão».

Perante a questão suscitada quanto à deficiente tradução do MDE, foi solicitada á autoridade judiciária de emissão informação que ''pena foi aplicada ao requerido por via da sentença proferida pelo Tribunal regional de Lódz em 16 de maio de 2018", tendo aquele tribunal informado, por ofício de 11.05-2020:

- Que o MDE emitido pelo Tribunal Distrital de Lódz em 12 de novembro de 2019 "não está relacionado com a pena de privação de liberdade pronunciada contra AA";

- Que em 16 de maio de 2018 o Tribunal Distrital de Lódz "emitiu o despacho de prisão preventiva e o mandado de Detenção Europeu foi emitido para efeitos de procedimento penal por crimes que lhe foram imputados".

Conforme resulta dos artigos 4.º, 22.º e 39.º da Lei n.º 65/2003, quer a inserção dos dados no Sistema de Informação Schengen (SIS), quer o pedido de cumprimento de MDE ou o pedido da sua ampliação para, como sucedeu no caso em apreço, obtenção do consentimento para dispensa do princípio da especialidade não configuram uma vinculação temática, definitiva, para o tribunal do Estado de execução, em termos de não poder ser completado, esclarecido ou alterado o mandado de detenção, de outro modo não se compreendendo, salienta-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 11-08-2006, proferido no processo n.º 06P3073 (Relator: Cons. Armindo Monteiro) o segmento do artigo 22.º daquela lei que refere que «Se as informações comunicadas pelo Estado membro da emissão forem insuficientes para que se possa decidir da entrega, são solicitadas com urgência as informações necessárias, podendo ser fixado prazo para a sua recepção para que possam ser cumpridos os prazos estabelecidos no artigo 26.º».

Ora, o Requerido, como justamente se dá nota no acórdão sob recurso, ao suscitar, e bem, a deficiente tradução do vocábulo traduzido erradamente como «sentença», em vez de «despacho», manifestou «que bem percebeu o conteúdo do MDE e as razões da sua emissão».

Com a resposta fornecida pela autoridade judiciária da Polónia, ficou esclarecido que o Requerido não foi condenado naqueles autos e que o MDE emitido pelo Tribunal Distrital de Lódz em 12 de novembro de 2019 "não está relacionado com a pena de privação de liberdade pronunciada contra AA", que em 16 de maio de 2018 o Tribunal Distrital de Lódz "emitiu o despacho de prisão preventiva e o Mandado de Detenção Europeu foi emitido para efeitos de procedimento penal por crimes que lhe foram imputados".

«Ora, lê-se no acórdão recorrido, por um lado, tal informação - que foi dada a conhecer ao Ministério Público e ao requerido - não deixa margem para dúvidas quanto aos fins a que se destina o presente MDE, deixando claro que o requerido ainda não foi julgado pela prática destes crimes, que o MDE não visa o cumprimento de qualquer pena privativa da liberdade em que tivesse sido condenado, mas o julgamento do arguido pelos crimes que lhe vinham imputados, por outro lado, tal deficiência de tradução, concretamente, quando aí se diz que a "decisão que fundamenta o mandado ..."é a sentença de "16 de maio de 2018", não integra - nem o requerido fundamenta de direito tal alegação, concretizando a norma que consagra tal nulidade - qualquer nulidade, configurando, antes, uma mera irregularidade, ex vi art.ºs 118 n.ºs 1 e 2 e 123 n.º 1 do CPP, a qual foi oportunamente sanada, nos termos que se deixaram expostos.

Acresce que o âmbito do MDE e a sua validade não são aferidos pela promoção do Ministério Público, a qual se destina, na sua essência, a promover execução do mandado, nos termos em que esta é pedida pelo Estado de emissão, podendo o Estado de execução, caso as informações comunicadas pelo Estado de emissão sejam insuficientes, solicitar as "informações complementares necessárias", como expressamente se dispõe no art.º 16 n.º 3 da Lei 65/2003, de 23.08, informações que, no caso, foram fornecidas.»

Estas considerações merecem a nossa concordância pelo que improcede a alegação do Recorrente já que não se vislumbram «que outras incorrecções e/ou imprecisões existem na tradução e conteúdo do MDE», nem se considera que a execução do pedido formulado pela autoridade judiciária polaca no sentido do consentimento para afastamento da regra da especialidade, após o esclarecimento prestado quanto ao fim do MDE, não infringe o direito de defesa do Requerido e o seu direito a um processo justo e equitativo, improcedendo nesta parte o recurso interposto.


2.4. Discordância quanto à matéria de facto provada


Decorre ainda do exposto que não assiste razão ao Recorrente em discordar da matéria de facto dada como provada nas alíneas c) e d) do ponto 6.1. do acórdão recorrido.

Como bem refere o Ministério Público na sua resposta, «tal matéria constitui parte integrante do MDE» pelo que teria de se considerar provada sob pena de infracção do princípio do reconhecimento mútuo, havido como pedra angular da cooperação judiciária, e do princípio da mútua confiança segundo os quais, «desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União».

O que significa que as autoridades competentes do Estado-Membro no território do qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente deste Estado.

Como se salienta no acórdão deste Supremo Tribunal, de 22-01-2014, proferido no processo n.º 140/13.6YREVR.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. Maia Costa), o MDE funda-se e constitui a primeira manifestação legislativa do princípio do reconhecimento mútuo, que assenta, por sua vez, na ideia de um elevado grau de confiança mútua entre os Estados-Membros da União Europeia e veio substituir integralmente o anterior procedimento da extradição, que assenta precisamente na ideia oposta de “desconfiança”, ou “dúvida”, como princípio.

O princípio do reconhecimento mútuo significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua lei, é exequível directamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro. O MDE, em suma, constitui um instrumento superior de cooperação judiciária, específico do espaço da União Europeia, distinto da extradição, porquanto assente no princípio do reconhecimento mútuo. Um procedimento inteiramente jurisdicizado/judicializado. Jurisdicizado porque não há qualquer juízo de oportunidade política na decisão. Judicializado porque a cooperação se faz directamente entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros, sem qualquer intervenção do poder executivo.

O princípio do reconhecimento mútuo impõe que uma decisão tomada por uma autoridade judiciária de um Estado-Membro com base na sua legislação interna seja reconhecida e executada pela autoridade judiciária do Estado-Membro requerido como se de uma própria decisão desta última se tratasse, sem necessidade portanto de qualquer “revisão” ou “confirmação” por parte desta, embora admita casos de recusa, obrigatória ou facultativa.

Ora, tendo presentes estes princípios basilares do MDE e o conteúdo do pedido de cooperação formulado pela autoridade judiciária polaca no sentido da prestação do consentimento para afastamento da regra da especialidade da qual o Requerido não renunciara, conteúdo exactamente definido com os esclarecimentos prestados pelo Tribunal de Lodz na sequência da resposta ao pedido de informação que lhe fora dirigido pelo Tribunal recorrido, a matéria fáctica questionada pelo Recorrente foi correctamente dada como provada nas apontadas alíneas c) e d) do ponto 6.1. do acórdão agora impugnado.

Improcede, assim, também nesta parte o recurso interposto.


2.5. Quanto à falta de audição pessoal


Como já se deu nota, o Ex.mo Desembargador Relator, através do despacho de fls. 158, proferido na sequência do pedido de prestação do consentimento para afastamento da regra da especialidade formulado pelo Ministério Público, dispensou a audição do Requerido uma vez que o mesmo já foi ouvido no âmbito destes autos e declarou não renunciar ao princípio da especialidade. Determinou-se, isso sim, a sua notificação, na pessoa da sua Mandatária, para se pronunciar, querendo, sobre o pedido do Ministério Público.

Como bem acentua o Ministério Público na sua resposta:

«Conforme resulta dos autos, o requerido já foi ouvido no âmbito dos presentes autos, em 5 de Agosto de 2019, em conformidade com o artigo 18.º da Lei 65/2003, no decurso da qual declarou não renunciar ao princípio da especialidade.

Nos termos de tal dispositivo uma nova audição do requerido seria uma mera e desnecessária repetição da anterior que nada de novo traria aos autos, pelo que sempre seria de dispensar.

Escusada para aplicação de medida de coação, uma vez que o requerido se encontra detido à ordem do processo de inquérito n.º 2/19.3… que corre termos no DIAP de …. - 2.ª secção (já com acusação de deduzida - cfr. fls. 245 a 275 destes autos), e por outro lado, também a factualidade constante de novo MDE é do seu pleno conhecimento face às faltas dadas ao julgamento em tal processo conforme bem explicitado pelas autoridades judiciárias polacas no ponto "F" do MDE.

Actualmente, está unicamente em causa declarar o consentimento deste tribunal para afastamento do princípio da especialidade de que beneficiou o cidadão de nacionalidade polaca AA no âmbito do Processo n.? 132/19.1 YREVR (M DE) com vista ao procedimento criminal pela prática dos crimes supra identificados, a que respeita o Proc. IV K1 0/17, do Tribunal Regional de l.ódz, Polónia.

Efectivamente, entregue a pessoa procurada ao País emitente de Mandado de Detenção Europeu, em nosso entender não se justifica nova audição do requerido já que, havendo anterior consentimento e estando apenas em causa o consentimento deste tribunal para afastamento do principio da especialidade quanto a outro processado, trata-se de diligência de natureza meramente acessória ao procedimento inicial.»

Concordando-se com tais considerações, há que ponderar na verdadeira natureza do pedido formulado pelo Ministério Público. Trata-se, nunca é demais lembrar, de um pedido de prestação do consentimento do Tribunal da Relação para afastamento do princípio da especialidade, pedido que tem sido (correctamente) tramitado no processo instaurado para cumprimento de MDA emitido pelo Tribunal Regional de Gdansk – Polónia, em 03-12-2018 e que obteve decisão de execução por acórdão de 6 de Agosto de 2019, nos termos da qual se determinou a entrega do aí Requerido àquela autoridade judiciária "logo que deixe de interessar a detenção do mesmo à ordem do processo de inquérito n.º 2119.3…, que corre termos pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de Faro".

O Requerido foi então ouvido tendo declarado não consentir na entrega e não renunciar ao princípio da especialidade.

Decorre do exposto, que estando já ordenada a entrega (diferida) do Requerido ao Estado emitente do MDE, e tendo o mesmo já declarado não renunciar ao princípio da especialidade, pode ser dispensada a sua nova audição.

Estando agora em causa a ampliação ou extensão daquele MDE, diligência de natureza meramente acessória ou incidental do procedimento inicial, a nova audição do Requerido constituiria diligência desnecessária, repetição da anterior e que nada de novo aportaria aos autos. Sendo de lembrar, como bem refere o Ministério Público, que essa diligência se teria por desnecessária para aplicação de medida de coacção na medida em que o Requerido se encontra detido à ordem de processo de inquérito pendente no DIAP de Faro – 2.ª Secção.

A pronúncia quanto à factualidade do pedido de ampliação do MDE pode perfeitamente, sem ofensa do direito de defesa do Requerido e das demais garantias que lhe assistem, ser efectuada e desenvolvida pela sua Ilustre Mandatária, defesa essa realizada com proficiência, como os autos bem demonstram.

Em face dos elementos de facto constantes dos autos e presentes na decisão recorrida, é de concluir com segurança que ao Recorrente foram facultados todos os meios para exercer o direito de defesa que lhe assiste e que, aliás, foram efectivamente exercitados.

Nestes termos, conclui-se que a falta de audição do Requerido no âmbito da ampliação do anterior MDE, no qual, já se disse, essa audição teve lugar, não integra qualquer nulidade ou outro vício, improcedendo igualmente o recurso nesta parte.

2.6. Questão nova

Não prejudica esta conclusão a alegação do Recorrente vertida no articulado transcrito supra (ponto I.5), segundo o qual, face à alegada «revogação do mandado de captura emitido no Proc. IV K 22/13, a entrega do Requerido para cumprimento do remanescente da pena no âmbito do MDE; que deu origem aos presentes autos e determinada pelo Tribunal a quo em 06/08/2018, deixou de ter objecto, uma vez que tal entrega deixou de interessar à entidade emissora», pelo que «a audição pessoal do Requerido no âmbito do MDE emitido no Proc. IV K10/17 do Tribunal Regional de Lódz e que deu origem ao douto Acórdão recorrido, para além de obrigatória, revela-se ainda como necessária, tanto mais que o pedido formulado, consubstanciando uma ampliação do pedido no âmbito do MDE emitido pelo Tribunal Distrital de Gdansk, no âmbito do qual o Requerido, não renunciou à regra dá especialidade, se apresenta agora como destituído de fundamento».

Cumpre desde já dizer que as questões subjacentes à alegada revogação do MDE emitido pelo Tribunal Distrital de Gdansk configuram uma verdadeira questão nova que não foi objecto de apreciação do Tribunal da Relação de que se recorre e que, por isso mesmo, não foi aí apreciada. Consequentemente, tais questões não poderão ser objecto de conhecimento no âmbito do presente recurso.

Como se considera no acórdão deste Supremo Tribunal, de 09-03-2017, proferido no processo n.º 582/05.0TASTR.E1.S1 – 3.ª Secção:       

«Os recursos destinam-se ao reexame das questões submetidas ao julgamento do tribunal recorrido. O tribunal de recurso aprecia e conhece de questões já conhecidas pelo tribunal recorrido e não de questões que antes não tenham sido submetidas à apreciação deste tribunal – o tribunal de recurso reaprecia o concretamente já decidido, não profere decisões novas.

Assim sendo, não é lícito invocar no recurso questões que não tenham sido suscitadas nem resolvidas na decisão de que se recorre.

Destinam-se os recursos a reapreciar as decisões tomadas pelos tribunais de inferior hierarquia e não a decidir questões novas que perante eles não foram equacionadas.

A preclusão do conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça de questões não suscitadas perante a Relação, apenas sofre as restrições advindas da natureza da questão levantada quando a sua apreciação deva ou possa fazer-se ex officio (v.g., nulidade de actos jurídicos; questões de inconstitucionalidade normativa; caducidade em matéria de direitos indisponíveis).

Os recursos ordinários não servem para conhecer de novo da causa, mas antes para controlo da decisão recorrida». 

Citando-se ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, «[os] recursos ordinários destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, objectivo que se reflecte na delimitação das pretensões que lhe podem ser dirigidas e no leque de competências susceptíveis de serem assumidas. Na fase de recurso, as partes e o tribunal superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objecto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do tribunal superior está circunscrita a questões que já tenham sido submetidas ao tribunal de categoria inferior, sem prejuízo da possibilidade de suscitar ou de apreciar questões de conhecimento oficioso»[6].

O acórdão citado dá nota do «entendimento constante do STJ, sobre a natureza e função processual do recurso, de que este não pode ter como objecto a decisão de questões novas, constituindo apenas um remédio processual que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões expressas sobre matérias e questões já submetidas e objecto de decisão do tribunal de que se recorre. Em fórmula impressiva: no recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas, que tenham já sido objecto de decisão anterior pelo tribunal a quo e que um interessado pretende ver reapreciadas», referenciando vasta jurisprudência, já consolidada, sobre este tópico.

Posto isto, a invocada revogação do MDE emitido pelo Tribunal de Gdansk em nada altera o que se afirmou a propósito da não audição do Requerido neste procedimento dependente daquele. Como judiciosamente refere o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, «[p]ese a dependência assinalada, a verdade é que se entende que, mesmo que tenha sido revogada na Polónia a ordem de captura do Recorrente para cumprimento, singular, do remanescente de pena sempre referido – o que, pelo menos, por ora, não se tem por inequivocamente adquirido –, tal não se repercute directa e imediatamente sobre a marcha e decisão do presente recurso, que colhe o seu fundamento remoto no acórdão de 6.8.2018, transitado em julgado e exequível».

A dispensa da audição do Requerido determinada pelo Ex.mo Desembargador Relator assentou no facto, expressamente referido, de aquele ter sido ouvido no âmbito do MDE emitido pelo Tribunal de Gdansk e, na ocasião, ter declarado não renunciar à regra da especialidade.

A invocada revogação de tal mandado não se repercute no procedimento e tramitação do pedido de ampliação do mesmo. Como refere aquele Distinto Magistrado, «se é certo que […] a revogação se pode projectar sobre tal exequibilidade, não menos o é de que se trata de questão alheia aos poderes de cognição deste STJ – confinados, estes, ao reexame do Acórdão de 14.7.2020, que autorizou a "ampliação" da execução e da entrega –, antes competindo ela ao TRE, a pedido do Recorrente ou, até, a título oficioso».


2.7. Da falta de inquérito

Alega o Recorrente que:

«33. A não audição do Requerido constitui preterição de acto obrigatório, consubstanciando uma nulidade insanável nos termos das disposições conjugadas dos artigos 17.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 2, 3, 5 e 6 e 21.º, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto e art.º 119.º, al. c), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art.º 34.º daquela Lei e do disposto no art.º 32.º, n.º 1 da CRP e art.º 6.º da CEDH.

34. Por sua vez, a «falta de inquérito» que decorre do facto e o Requerido não ter sido pessoalmente ouvido e, consequentemente, inteirado do conteúdo do MDE contra si requerido, consubstancia violação daqueles mesmos normativos e comando constitucional, que não se pode ter por suprido com a resposta da mandatária do arguido, sob pena de violação de um direito fundamental, integrando a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. d) do Código de Processo Penal.»

A alínea d) do artigo 119.º do CPP comina a nulidade nos casos de «falta de inquérito ou instrução», «em que a lei determinar a sua obrigatoriedade».

Comentando o preceito, considera HENRIQUES GASPAR que «[o inquérito constitui a primeira fase do processo e, por isso, salvo os casos de processo especial, nem sequer poderá haver processo sem ter havido inquérito que permita, no encerramento, a dedução de acusação pelo MP (artigo 283.º), ou do assistente (artigos 284.º e 285.º) (…)»[7].

Ora, tendo presente a natureza e as finalidades subjacentes à emissão e execução de um MDE, torna-se evidente que a nulidade traduzida na «falta de inquérito» não tem aqui aplicação, sendo que a questão da «falta de audição» do Requerido já foi examinada no ponto precedente, tendo-se concluído pela inverificação da invocada nulidade ou de qualquer outro vício. Todas as questões que se relacionam com a investigação dos factos que determinaram a formulação do pedido de consentimento para afastamento do princípio da especialidade deverão ser suscitadas no processo pendente no Tribunal Regional de Lodz. Não no âmbito do ressente procedimento.

Refira-se que, no domínio da execução de um MDE, tem sido entendimento da jurisprudência que, embora o seu conteúdo e forma obedeçam ao determinado no artigo 3.º, da Lei n.º 65/2003, a sua ausência, não constitui causa de recusa obrigatória ou facultativa de execução prevista nos artigos. 11.º e 12.º, mas apenas uma irregularidade sanável nos termos do disposto no artigo 123.º do CPP, aplicável subsidiariamente por força do artigo 34.º, na medida em que, o que importa é, não tanto a correcção inicial do mandado, mas antes que, segundo um actuante “princípio da actualidade” com informação posterior ou sem ela, o Estado requerido, por intervenção do tribunal competente, no momento de decidir esteja na posse de todos os elementos necessários sobre o destino a dar à pedida execução do mandado.

Pois, como já se assinalou, segundo o princípio da confiança dos Estados nas decisões proferidas por qualquer deles, uma decisão judicial tomada pela autoridade de um Estado membro, segundo a sua lei, é exequível directamente pela autoridade judiciária de outro Estado membro, isto é, tem um efeito pleno e directo sobre todos os Estados membros.

Cumprindo sublinhar que a execução do MDE não se confunde com o julgamento de mérito da questão de facto e de direito que lhe subjaz, julgamento esse a ter lugar, se for o caso, perante a jurisdição e sob a responsabilidade do Estado emissor no qual convirá proceder a instrução e julgamento conjunto, onde se pondere a actividade imputada em toda a sua amplitude, de forma a ter uma panorâmica geral da conduta desenvolvida.

Por outro lado, há que ter em conta que este processo de carácter «para-penal», de natureza e com configuração de desenvolvimento de urgência, caracteriza-se pela simplicidade e celeridade e que a detenção atentos os fins visados e aquela natureza urgente, com tratamento preferencial, como decorre do artigo 25.º da Lei n.º 65/2003, tem prazos de duração curtos (muito mais curtos do que os de prisão preventiva) e inultrapassáveis.

Estas considerações, tecidas a respeito da emissão e execução de um MDE são perfeitamente transponíveis, até por maioria de razão, para a situação que aqui se nos depara de ampliação de um original MDE através do pedido de prestação do consentimento para afastamento do princípio da especialidade.

Improcede também o recurso nesta parte.


Como bem se decidiu no acórdão recorrido, «não se verificando qualquer dos motivos de recusa (obrigatória ou facultativa) que obste ao consentimento pedido, e considerando verificarem-se os pressupostos de que depende o deferimento do pedido (art.ºs 2 n.º 1 e 3 n.os 1 e 2 da Lei 65/2003, de 23.08), este apresenta-se como justificado».


III - DECISÃO


Termos em que acordam os Juízes na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:

- Negar provimento ao recurso interposto por AA, confirmando-se na íntegra o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente com 4 UC de taxa de justiça.


Texto processado e revisto pelo relator, consignando-se o voto de conformidade da Ex.ma Juíza Adjunta, Conselheira Conceição Gomes.


SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 9 de Setembro de 2020


Manuel Augusto de Matos (Relator)

________

[1]  Do relatório do acórdão do Tribunal da Relação de Évora ora sob recurso.
[2]  Disponível, como os demais que se citarem sem outra menção, nas Bases Jurídico-Documentais em www.dgsi.pt.
[3]  Anna Zairi, Le Principe de la Spécialité de l'Extradition au Regard des Droits de l'Homme, p. 30, apud José Manuel Cruz Bucho e outros, Cooperação Judiciária Internacional, I, pág. 40 n. 71).
[4]  Ambos em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais.
[5]  CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 220 e Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais. 
[6]  Recursos em Processo Civil, Novo Regime (DL 303/2007, de 24-08), Almedina, 2008, p. 23, e Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014 – 2.ª Edição, Almedina, pp. 92-93.:
[7]  Et alii, Código de Processo Penal Comentado, 2016 – 2.ª Edição Revista, Almedina, p. 351.