RECUSA DE JUÍZ
SUSPEIÇÃO
IMPARCIALIDADE
JULGAMENTO
ADIAMENTO
INDEFERIMENTO
Sumário

I - A recusa constitui um dos instrumentos reactivos, uma das vias para atacar a suspeição que existirá quando, face às circunstâncias do caso concreto, for de supor que existe um motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz se este vier a intervir no processo.
II - A recusa será assim um dos modos processuais, uma das cautelas legais, que rodeiam o desempenho do cargo de juiz, por forma a garantir a imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
III - A imparcialidade e isenção constituem dois princípios com prestígio constitucional, incluídos nas garantias de defesa - artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República, sendo objectivos a salvaguardar, de forma a permitir a decisão justa, a isenção, a independência, o distanciamento em relação à causa concreta submetida a juízo, a equidistância sobre o litígio a resolver.
IV - Como a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, o fundamento da «suspeição» deverá ser avaliado segundo dois parâmetros: um de natureza subjectiva, outro de ordem objectiva.
O primeiro indagará se o juiz manifestou, ou tem motivo para ter, algum interesse pessoal no processo, ficando assim inevitavelmente afectada a sua imparcialidade enquanto julgador.
O segundo averiguará se, do ponto de vista de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, a confiança na imparcialidade e isenção do juiz estaria seriamente lesada.
V - O indeferimento da pretensão apresentada pelo requerente no sentido do adiamento do julgamento não constitui, de nenhum modo, motivo sério de especial gravidade, segundo o senso e a experiência comuns, adequado a gerar a desconfiança sobre a minha imparcialidade.
VI - Como vem repetidamente afirmando a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, «as meras discordâncias jurídicas com os actos processuais praticados ou com a sua ortodoxia, a não se revelar presciente, através deles, ofensa premeditada das garantias de imparcialidade, só por via de recurso – se admissível – podem e devem ser manifestadas e não através de petição de recusa».

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I


1. AA, BB, CC E DD, vêm, «nos termos conjugados dos artigos 43.º n.º 3, 44.º e 45.º n.º 1 alínea a), do Código de Processo Penal, doravante CPP, deduzir INCIDENTE DE RECUSA DE JUIZ


Com os fundamentos seguintes (transcrição):

1. No âmbito dos autos de processo comum com intervenção do tribunal colectivo com o n.º 685/13.8JACBR., do Juízo Central Criminal de … – Juiz … do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foram os ora Requerentes condenados pela prática como co-autores materiais, em concurso real e na forma consumada, de oito crimes de tráfico de pessoas.

2. Inconformados com tal decisão, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra e em cuja peça requereram, no respectivo requerimento de interposição, nos termos do disposto no art.411º/5 do Código de Processo Penal, a realização de audiência para discussão das matérias melhor concretizadas naquela peça.

3. Tendo os autos sido distribuídos à … Secção do T.R.C., por despacho datado de 03/09/2020 foi designado o dia 16/09/2020, às 10:00 horas, para a realização da audiência de julgamento.

4. Sucede que, em requerimento datado de 07/09/2020, veio o Mandatário dos Arguidos, subscritor da presente peça, requerer a alteração da data da audiência de julgamento por incompatibilidade de agenda, na medida em que tinha já marcada audiência de discussão e julgamento do processo nº 2366/19.0…, que corre os seus termos no Juiz … do Juízo Central Criminal de Lisboa e onde representa o Arguido (preso preventivamente) – conforme documento que juntou com este seu requerimento.

5. Em respeito aos seus deveres deontológicos e legais (mormente nos termos do art. 151º do Código de Processo Civil), estabeleceu contacto com os Ilustres Colegas intervenientes nos presentes autos com o intuito de encontrar datas alternativas em que todos tivessem disponibilidade.

6. Mediante as disponibilidades que os Colegas lhe transmitiram e a sua própria disponibilidade, veio a indicar, como datas alternativas, os dias 01/10, 02/10 e 14/10 do presente ano – peticionando que se adiasse a audiência para qualquer um desses dias.

7. Por despacho datado de 08/09/2020, veio o Tribunal da Relação indeferir o requerido por diversa ordem de razões, as quais são manifestamente demonstrativas da falta de imparcialidade do Exmo. Sr. Juiz Desembargador EE, Presidente da … Secção do Tribunal da Relação de Coimbra.

8. Desde logo, resulta do referido despacho o seguinte:

“Embora a regulamentação do recurso e a orgânica dos tribunais superiores afaste a aplicação do n.º 4 do artigo 312.º, aceita-se, em casos pontuais, devidamente comprovados, a concertação de datas para audiência, mas sempre que daí não decorra o desrespeito do prazo

legal – 20 dias – previsto no já acima citado artigo 420.º, n.º 1.


Sucede que, no caso em apreciação, entre a data em que foi designado o julgamento (3 de Setembro de 2020) e as datas sugeridas pelo Recorrente medeia um prazo manifestamente superior ao considerado pelo julgador como razoável, circunstância que assume maior relevância se se tiver em conta, como não pode deixar de ser, a proximidade temporal do termo do prazo da medida de coacção de prisão preventiva em que se encontram três dos Arguidos/Recorrentes representados pelo Ilustre subscritor do requerimento em apreciação.”

9. Ora, no que à supracitada questão concerne, antes de mais, não se pode concordar que a disciplina do art. 155º do C.P.C., naquilo que se refere à compatibilização de agendas com os mandatários, não tenha aplicabilidade à audiência que, nos termos do art. 411º/5 C.P.P., se requereu…

10. Cabe também sublinhar que não se propôs uma data mais próxima daquela que estava agendada por incompatibilidade de agenda da Ilustre Colega Dra. FF, mandatária de um dos demandantes cíveis, visto que o ora signatário (bem como os demais mandatários constituídos) até tinha disponibilidade para o dia 23/09/2020 (que inicialmente se pretendia sugerir).

11. Mas, como dissemos acima, as datas a propor têm que resultar do acordo entre os diferentes mandatários e defensores constituídos…

12. Sendo certo que aquilo que o art. 421º/1 C.P.P. preconiza é que, aberta a conclusão ao presidente da secção, este designa a data para a audiência para um dos 20 dias seguintes.

13. Ou seja, a regra imposta é, APENAS, para esse agendamento inicial, nada impedindo que não possa vir a ser designada, nomeadamente por impossibilidade de comparência de um mandatário, data posterior a esses 20 dias!

14. Ainda se do art. 421º/1 C.P.P. constasse que, após aberta conclusão ao Presidente da Secção, este designa data para a audiência, “a qual se realiza nos 20 dias subsequentes” ou “que terá que se realizar nos 20 dias subsequentes”, poderíamos compreender a imperatividade desse hiato de 20 dias!

15. Agora com a redacção efectivamente conferida ao art. 421º/1 não se alcança porque é que a audiência, por fundado motivo, não possa realizar-se após aquele momento…

16. A única explicação para esta interpretação é justificar o injustificável: o estar a impedir-se um mandatário constituído de representar os seus clientes em juízo!

17. Apoiando-se no disposto no artigo 422º do C.P.P., vem o Exmo. Juiz Desembargador afirmar que “a falta de comparência de Advogado/Defensor na audiência de julgamento não é, em regra, motivo de adiamento. Só o será se o tribunal, ponderadas as específicas circunstâncias do caso, entender que a presença daquele é indispensável. Assim, a mera utilidade da mesma não é razão determinante do adiamento.”

- sublinhado nosso

18. Mais acrescentado que “Cingindo-nos ao caso concreto revelado pelos autos, embora a audiência de julgamento haja sido requerida pelo ora Requerente para discussão oral das questões suscitadas nas alegações do recurso – onde pontificam: (i) os descritos erros de julgamento em sede de matéria de facto dada como provada na sentença recorrida; (ii) a questão da verificação da co-autoria na prática dos crimes imputados aos arguidos; (iii) a (in)existência desses ilícitos penais; (vi) em qualquer caso, a problemática do quantitativo das  penas e suspensão da execução da pena única –, tais questões estão amplamente concretizadas na motivação e nas respectivas conclusões.

Definido, nestes termos, o âmbito das alegações a produzir no julgamento, não se revela essencial a presença na dita diligência de julgamento do Ilustre Advogado Requerente.”

- bold e sublinhado nossos

19. Salvo o devido respeito, não podem os Arguidos deixar de manifestar a sua total perplexidade pelo que ficou vertido nos excertos supracitados, sendo estes reveladores, sem margem de dúvidas, da falta de imparcialidade do Exmo. Sr. Juiz Desembargador EE.

Senão vejamos,

20. Da leitura do despacho sobre o qual nos debruçamos, outra conclusão não se pode retirar se não a de que, não só foi negada ao Mandatário a possibilidade de comparecer na audiência de julgamento, como foi desvalorizado por completo o seu papel como advogado.

21. O Advogado tem a função social de colaborar na boa administração da justiça, traduzindo-se num garante da liberdade e dos direitos dos cidadãos e sendo por isso imprescindível num estado de direito democrático.

22. Não é de resto por acaso que o direito a ESCOLHER o defensor se encontra constitucionalmente consagrado no nº3 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.

23. Ademais, não podemos perder de vista que, nos termos e para os efeitos da alínea c) do artigo 119º do C.P.P., deparamo-nos com uma nulidade insanável nos casos de ausência do defensor se a lei exigir a respectiva comparência.

24. Ora, nos termos do nº2 do artigo 421º, são sempre convocados para a audiência de julgamento na fase de recurso o Ministério Público, o defensor e os representantes do assistente e das partes civis.

25. Com efeito, não se pode senão ter por imparcial o juiz que desvaloriza por completo o papel do advogado constituído e escolhido pelos arguidos para os representar, ao afirmar expressamente que a sua presença não é essencial e, bem assim, negando ao arguido a plenitude do seu direito de defesa.

26. Advogado esse que, desde o início, se demonstrou disponível, fazendo questão de se deslocar a Coimbra para comparecer, não só nesta, como em todas as diligências concernentes ao processo que dá vida aos presentes autos, ainda que o seu escritório se situe em Lisboa.

27. Mais: é o Advogado constituído pelos Arguidos, que sempre os acompanhou e no qual sempre confiaram, pelo que, salvo o devido respeito pelos restantes colegas de profissão, assegurará a defesa dos seus Constituintes de forma ímpar.

28. Revelando-se assim de máxima importância a presença na diligência do mandatário escolhido pelos Recorrentes, contrariamente ao defendido no despacho em crise.

29. Assim a recusa na alteração da data da audiência, bem sabendo que com isso se impede o mandatário dos Arguidos de os representar em tal diligência significa, efectivamente, impossibilitar os Recorrentes de terem a melhor defesa possível – contrariamente àquilo que a lei lhes garante.

30. Mais: o despacho em causa desvaloriza ainda por completo a importância das alegações orais em fase de recurso, o que bem demonstra estar já predefinida uma orientação para decisão que, após, será tomada.

31. É que, apesar de o C.P.P. conferir ao recorrente a possibilidade de, oralmente, expor as suas motivações – assim lhe dando uma oportunidade de persuadir o tribunal de recurso quanto à bondade dos argumentos esgrimidos no recurso -, o que o Mm.º Desembargador que subscreveu o despacho que indefere o adiamento revela é que considera que essa audiência de pouco ou nada vale, pois que as questões que se pretendem discutir oralmente “estão amplamente concretizadas na motivação e respectivas conclusões”…

32. Não está por isso, salvo o devido respeito, o Exmo. Juiz Desembargador em condições de dirigir a audiência agendada para o próximo dia 16-09-2020 com um espírito límpido, isto é, imparcial, como se deseja que seja o de qualquer julgador, nos melhores interesses objectivos da causa e dos direitos de qualquer Arguido.

33. Diga-se que tal imparcialidade é uma exigência específica de uma decisão justa, despida de quaisquer pré-conceitos ou pré-juízos que os julgadores possam, a priori, ter já formado.

34. Nos termos do disposto no artigo 43º do Código de Processo Penal, a intervenção de um Juiz poderá ser recusada, quando houver o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade – cfr. n.º 1.

35. A recusa que se pretende ver deferida não se prende com qualquer traço subjectivo por parte do Exmo. Sr. Juiz Desembargador, uma vez que não há quaisquer indícios de interesses pessoais na causa.

36. Todavia, dir-se-á que a sua imparcialidade, in casu, falha o teste objectivo – que passa por determinar se o comportamento dos juízes, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a respectiva imparcialidade.

37. Parecendo-nos evidente que, da perspectiva do homem médio, estando já formada a convicção do julgador sobre o recurso dos aqui Requerentes e sobre as questões por estes suscitadas em tal sede, verifica-se séria e grave desconfiança a respeito da sua imparcialidade na direcção da audiência do dia 16/09/2020.

38. Razão pela qual se requer desde já seja admitido o presente incidente, julgando-se procedente o pedido de recusa do juiz atentos os fundamentos invocados – nomeadamente o perigo real de a sua intervenção no processo ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade –, sob pena da audiência que se acha agendada para o dia 16 de Setembro de 2020 ser desprovida de qualquer conteúdo e utilidade, uma vez que um dos juízes que se acha convocado para a dirigir formou e expressou já a sua convicção em momento anterior.


Termos em que se requer, mui respeitosamente, a V. Exas. se dignem julgar procedente por provado o presente incidente de recusa de juiz, e, em consequência, deferir a recusa do Exmo. Juiz EE, ordenando a distribuição do Recurso dos presentes autos para um colectivo composto por diferentes Juízes Desembargadores.


2. O Magistrado recusado pronunciou-se sobre o pedido, dizendo (transcrição):

Pronúncia sobre o requerimento de escusa, apresentado ao abrigo do n.º 3 do artigo 45.º do Código de Processo Penal

Estatui o art. 43.º do CPP:

«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir um motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º.

3. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

4. (…)».

No âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou, como princípio inalienável, constitucionalmente consagrado (cfr. art. 32.º, n.º 9 da CRP), o do juiz natural, pressupondo tal princípio que intervém no processo o juiz que o deva segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito.

Contudo, perante a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos do princípio do juiz natural, estabeleceu o sistema o seu afastamento em casos-limite, ou seja, unicamente quando se evidenciem outros princípios ou regras que o ponham em causa, como sucede, a título de exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício do seu múnus.

Subjacente ao instituto da recusa, encontra-se a premente necessidade de preservar até ao possível a dignidade profissional do magistrado visado e, igualmente, por decorrência lógica, a imagem da justiça, em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la, constituindo uma garantia essencial para o cidadão que, inserido num estado de direito democrático como o nosso, submeta a um tribunal a apreciação da sua causa.

Como decorre do teor literal do supra citado art. 43.º, n.º 1 do CPP, o juiz pode ser recusado quando a sua intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Analisada a imparcialidade do juiz nas diferentes perspectivas observadas do mundo exterior, surpreendem-se, complementarmente, duas dimensões distintas de a abordar e compreender: a subjectiva e a objectiva.

No plano subjectivo, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, o que ele pensa no seu foro íntimo perante um determinado acontecimento da vida real e se internamente tem algum motivo para o favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro. Nesta dimensão, impõe-se, em regra, a demonstração da predisposição do julgador para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão e, por isso, presume-se a imparcialidade até prova em contrário.

Porém, para se afirmar a ausência de qualquer preconceito em relação ao thema decidendum ou às pessoas afectadas pela decisão, não basta a visão subjectiva, sendo também imprescindível, como tem sido realçado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, relativamente à imparcialidade garantida no art. 6.º, § 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma apreciação objectiva, alicerçada em garantias bastantes de a intervenção do juiz não gerar qualquer dúvida legítima.

Na dimensão objectiva, em que são relevantes as aparências, que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça que seja mas também pareça ser, numa fenomenologia de valoração entre o “ser” e o “dever ser”[[1]], intervêm, por regra, considerações formais (orgânicas e funcionais), ligadas ao desempenho processual do juiz (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas do processo), e «todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si», devendo «ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz».[[2]]

O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar da valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e experiência do homem médio pressuposto pelo direito.

«A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão».[[3]]

Assim, para que a recusa seja concedida, o prisma a que se tem de atender não é o particular ponto de vista do requerente (isto é, a desconfiança que ele possa ter do juiz que vai julgar a causa), mas a situação objectiva que possa derivar de uma determinada posição do juiz em relação ao caso concreto ou a determinado sujeito ou interveniente processual, em termos de existir um risco real de não reconhecimento público da sua imparcialidade.

Por conseguinte, não relevam as meras suspeitas individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da recusa e o juiz, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal.


*


Tecido este argumentário dogmático, cingindo-me ao requerimento de recusa visando o signatário da presente informação, pouco há a dizer, já que por si fala o despacho que recusou o adiamento da audiência de julgamento, gerador do dito incidente.

Teve o Ilustre Requerente o louvável cuidado de “deixar de lado” a concepção sujectiva da imparcialidade do Juiz, acima juridicamente densificada.

Assentando a pretensão do Requerente na designada “visão” objectiva” da imparcialidade, não se evidencia, nem existe de todo, qualquer elemento ou circunstância, nomeadamente os descritos no requerimento em análise, que, na percepção da comunidade em geral, possa afectar a minha posição de Juiz Presidente da … Secção Criminal da Relação de Coimbra, rectius, a minha intervenção, na dita qualidade, na realização do julgamento designado para o próximo dia 16 de Setembro de 2020. A haver dúvidas dessa natureza, elas apenas podem estar na mente do Requerente. As discordâncias do mesmo quanto ao indeferimento do despacho que fez soçobrar a sua pretensão de adiamento do julgamento não constitui, de nenhum modo, motivo sério de especial gravidade, segundo o senso e a experiência comuns, adequado a gerar a desconfiança sobre a minha imparcialidade.

Como vem repetidamente afirmando a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, «as meras discordâncias jurídicas com os actos processuais praticados ou com a sua ortodoxia, a não se revelar presciente, através deles, ofensa premeditada das garantias de imparcialidade, só por via de recurso – se admissível – podem e devem ser manifestadas e não através de petição de recusa»[[4]].

E como se decidiu no Ac. da Relação de Coimbra de 02-12-1996 [[5]] o simples receio ou temor de que o juiz, no seu subconsciente, já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum não constitui fundamento válido para a sua recusa.

Posto o que fica dito, afigura-se-me ser o requerimento de recusa manifestamente infundado.»


3. Com dispensa de vistos, atenta a situação de pandemia vigente, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.



II


1. O artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República proclama que «Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior». Assim se consagra, como uma das garantias do processo penal, o princípio do juiz natural ou legal, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e isenta.

Deverá intervir na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas. Numa outra formulação, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 9 de Novembro de 2011 (Proc. n.º 100/11.1YFLSB.S1): «o juiz que irá intervir em determinado processo penal é aquele que resultar da aplicação de normas gerais e abstractas contidas nas leis processuais e de organização judiciária sobre a repartição da competência entre os vários tribunais e a respectiva composição».

Este princípio, ou este juiz, só pode ser afastado em situações-limite, se a sua intervenção for susceptível de colocar seriamente em causa aqueles valores da imparcialidade e da isenção, valores com consagração no artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental.

2. Nos termos do artigo 43.º do CPP, a intervenção do juiz num processo pode ser recusada, ou pode ser autorizada a escusa por ele pedida, quando houver o risco de a sua intervenção ser considerada suspeita «por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade» (n.º 1).

Esta disposição prevê um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida a imparcialidade do juiz; como os impedimentos, tem uma função de garantia da imparcialidade.

A recusa constitui um dos instrumentos reactivos, uma das vias para atacar a suspeição.

Há suspeição quando, face às circunstâncias do caso concreto, for de supor que existe um motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz se este vier a intervir no processo.

A recusa será assim um dos modos processuais, uma das cautelas legais, que rodeiam o desempenho do cargo de juiz, por forma a garantir a imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.

A imparcialidade e isenção constituem dois princípios com prestígio constitucional, incluídos nas garantias de defesa - artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República, sendo objectivos a salvaguardar, de forma a permitir a decisão justa, a isenção, a independência, o distanciamento em relação à causa concreta submetida a juízo, a equidistância sobre o litígio a resolver.


3. Como a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, o fundamento da «suspeição» deverá ser avaliado segundo dois parâmetros: um de natureza subjectiva, outro de ordem objectiva.

O primeiro indagará se o juiz manifestou, ou tem motivo para ter, algum interesse pessoal no processo, ficando assim inevitavelmente afectada a sua imparcialidade enquanto julgador.

O segundo averiguará se, do ponto de vista de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, a confiança na imparcialidade e isenção do juiz estaria seriamente lesada.

Conforme refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «[a] imparcialidade pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo. O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjectivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção.

O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade»[6].

Sublinha ainda este autor que, «tratando-se de um tribunal colectivo, basta a parcialidade de um dos seus membros para inquinar toda a actividade do tribunal»[7].

«O princípio norteador do instituto da suspeição – lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 17 de Abril de 2008 (Proc. n.º 1208/08 - 3.ª Secção) – é o de que a intervenção do juiz só corre risco de ser considerada suspeita caso se verifique motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade – referenciada em concreto ao processo em que o incidente de recusa ou escusa é suscitado –, a qual pressupõe a ausência de qualquer preconceito, juízo ou convicção prévios em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão».

Como se lê no acórdão do STJ de 13-02-2013 (Proc. n.º 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1 – 3.ª Secção): 

«É evidente que a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só podem conduzir à sua recusa ou escusa quando objectivamente consideradas. Assim, o mero convencimento subjectivo por parte de um interessado processual, ou o desvirtuamento da conduta do julgador, extraindo consequências perfeitamente exógenas ao funcionamento do instituto, nunca terão virtualidade para o fazer despoletar.

Falamos de uma razão séria e grave, da qual ou na qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro). Visa salvaguardar-se um bem essencial na Administração da justiça que é a imparcialidade, ou seja, a equidistância sobre o litígio a resolver, de forma a permitir a decisão justa».

Constitui trave-mestra dessa imparcialidade, «para além da óbvia ausência de interesse pessoal na causa, uma objectividade consistente num afastamento isento face ao objecto do litígio e da decisão que o juiz é chamado a tomar», sendo que, como pondera RUI PATRÍCIO, que vimos citando, «a imparcialidade, enquanto atributo inarredável, poderá ser comprometida quando existe proximidade do julgador em relação aos factos sub judice, sendo certo que essa proximidade pode vir, entre o mais, de um conhecimento prévio sobre o processo ou de um conhecimento extraprocessual, capazes de gerar empatia ou emoção comprometedoras da isenção ou, pelo menos, geradoras de dúvida legítima por parte dos sujeitos ou intervenientes processuais e/ou da comunidade sobre tal isenção»[8].

Considera igualmente este autor, referenciando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que «a imparcialidade deve ser apreciada de um duplo ponto de vista: apreciação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal do juiz sobre o caso; e apreciação objectiva, destinada a determinar se existem no caso, ou não, dúvidas legítimas sobre tal isenção. Sendo certo que basta a falta de imparcialidade numa destas duas vertentes, para podermos dizer que a mesma está, num certo processo, colocada em causa. Apelando ao brocardo anglo-saxónico (atribuído ao Visconde Hewart), dir-se-ia também aqui, e com muita propriedade, que “justice must not only be done, it must be seen to be done”».

Sendo a imparcialidade sempre aferida no caso e de acordo com o circunstancialismo do mesmo, a “presunção” a favor da mesma, em qualquer das vertentes assinaladas, «fica posta em causa, não só quando existe interesse pessoal do juiz ou quando intervenções processuais concretas do mesmo mostram falta de isenção, mas também quando uma intervenção anterior com alguma intensidade a pode comprometer», ou quando, acrescenta «com ênfase» o mesmo autor, «intervenções ou manifestações extraprocessuais do juiz ou um conhecimento seu extraprocessual condicionante do caso são de molde a afastar a equidistância e/ou a gerar suspeita legítima sobre a mesma», sendo certo que, «dada a importância nuclear da imparcialidade, como enunciado prescritivo, e não meramente descritivo – a mera desconfiança fundada sobre a imparcialidade do juiz em certo caso basta para colocar em marcha os mecanismos do seu afastamento»[9].

Acompanhando o acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Novembro de 2012 (Proc. n.º 947/12.1TABRG-A.S1 – 5.ª Secção), «[o] princípio da imparcialidade, que tem sido objecto de uma larga reflexão pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, deve ser apreciado, segundo a óptica deste tribunal internacional, sob um duplo prisma: numa aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião, e numa apreciação objectiva, quanto a saber se o magistrado em causa oferece as suficientes garantias para repelir e excluir, a este propósito, quaisquer dúvidas aceitáveis. (Cfr. ac. STJ de 8-05-2003 - Proc. 1497/03-5  e de 13-04-2005 - Proc. 1138/05-3).

Segundo se acentuou neste último acórdão, “a imparcialidade objectiva apresenta-se como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o "ser" e o "parecer". Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objectiva, que poderia ser devastadora, e para não cair na "tirania das aparências" (cfr., Paul Martens, "La tyrannie des apparences", Revue Trimestrielle des Droits de L´Homme, 1996, pag. 640 [ ]), ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser.”

“A gravidade e a seriedade do motivo” – afirmou-se ainda – “hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que num interessado - ou, mais rigorosamente, num homem médio colocado na posição do destinatário da decisão possam razoavelmente suscitar-se dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão“».

4. Analisemos então o caso sub judice.

No âmbito de um recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra a ser julgado em audiência, conforme requerido pelo arguido, por despacho datado de 03/09/2020 foi designado o dia 16/09/2020, às 10:00 horas, para a realização da audiência de julgamento.

Por requerimento datado de 07/09/2020, veio o Mandatário dos Arguidos, requerer a alteração da data da audiência de julgamento por incompatibilidade de agenda, invocando que já marcada audiência de discussão e julgamento do processo nº 2366/19.0…, que corre os seus termos no Juiz … do Juízo Central Criminal de Lisboa e onde representa o Arguido (preso preventivamente) tendo estabelecido contacto com os seus Colegas intervenientes nos presentes autos com o intuito de encontrar datas alternativas em que todos tivessem disponibilidade.

Alega que, mediante as disponibilidades que os Colegas lhe transmitiram e a sua própria disponibilidade, veio a indicar, como datas alternativas, os dias 01/10, 02/10 e 14/10 do presente ano – peticionando que se adiasse a audiência para qualquer um desses dias.

Por despacho datado de 08/09/2020, foi indeferido o requerido porquanto:

«Embora a regulamentação do recurso e a orgânica dos tribunais superiores afaste a aplicação do n.º 4 do artigo 312.º, aceita-se, em casos pontuais, devidamente comprovados, a concertação de datas para audiência, mas sempre que daí não decorra o desrespeito do prazo legal – 20 dias – previsto no já acima citado artigo 420.º, n.º 1.

Sucede que, no caso em apreciação, entre a data em que foi designado o julgamento (3 de Setembro de 2020) e as datas sugeridas pelo Recorrente medeia um prazo manifestamente superior ao considerado pelo julgador como razoável., circunstância que assume maior relevância se se tiver em conta, como não pode deixar de ser, a proximidade temporal do termo do prazo da medida de coacção de prisão preventiva em que se encontram três dos Arguidos/Recorrentes representados pelo Ilustre subscritor do requerimento em apreciação.»

Alegam os Recusantes que a circunstância de o Senhor Desembargador Recusado afirmar que «a falta de comparência de Advogado/Defensor na audiência de julgamento não é, em regra, motivo de adiamento. Só o será se o tribunal, ponderadas as específicas circunstâncias do caso, entender que a presença daquele é indispensável. Assim, a mera utilidade da mesma não é razão determinante do adiamento» e que,

«Cingindo-nos ao caso concreto revelado pelos autos, embora a audiência de julgamento haja sido requerida pelo ora Requerente para discussão oral das questões suscitadas nas alegações do recurso – onde pontificam: (i) os descritos erros de julgamento em sede de matéria de facto dada como provada na sentença recorrida; (ii) a questão da verificação da co-autoria na prática dos crimes imputados aos arguidos; (iii) a (in)existência desses ilícitos penais; (vi) em qualquer caso, a problemática do quantitativo das penas e suspensão da execução da pena única –, tais questões estão amplamente concretizadas na motivação e nas respectivas conclusões.

Definido, nestes termos, o âmbito das alegações a produzir no julgamento, não se revela essencial a presença na dita diligência de julgamento do Ilustre Advogado Requerente.»

Concluindo que os trechos transcritos são «reveladores, sem margem de dúvidas, da falta de imparcialidade do Exmo Juiz Desembargador EE», pois que «não só foi negada ao Mandatário a possibilidade de comparecer na audiência de julgamento, como foi desvalorizado por completo o seu papel como advogado».

E que «a recusa na alteração da data da audiência, bem sabendo que com isso se impede o mandatário dos Arguidos de os representar em tal diligência significa, efectivamente, impossibilitar os Recorrentes de terem a melhor defesa possível – contrariamente àquilo que a lei lhes garante», afirmando ainda que:

[…] o despacho em causa desvaloriza ainda por completo a importância das alegações orais em fase de recurso, o que bem demonstra estar já predefinida uma orientação para decisão que, após, será tomada».

Conforme se considerou no Acórdão deste Supremo Tribunal de 26/2/04, proferido no processo n.º 4429/03 – 5.ª Secção, «a gravidade e seriedade do motivo de que fala a lei, hão-de ser aferidas em função dos interesses colectivos, mormente do bom funcionamento das instituições em geral e da Justiça em particular, não bastando que uma avaliação pessoal de quem quer (...) o leve a não confiar na actuação concreta do magistrado ou magistrados recusados».

A não ser assim, ver-nos-íamos confrontados a cada passo com pedidos de recusa motivados por suspeições mais ou menos devidas à particular susceptibilidade ou ao grau de tolerância de cada um ou mesmo à especial idiossincrasia de cada indivíduo. Com a agravante de que, num processo, o juiz tem de tomar atitudes que, ou por se dirigirem à disciplina da marcha processual, ou por se conexionarem com decisões que tem de tomar em ordem à solução dos problemas concretos que vão surgindo, frequentemente desagradam às partes ou aos sujeitos processuais intervenientes. Essas atitudes e tomadas de decisão revestem sempre um cunho de autoridade, ínsito à própria função (e com isto, excluímos, evidentemente, casos excepcionais de abuso dos poderes que a lei lhe confere), cuja firmeza fere muitas vezes a natureza especialmente sensível de certos intervenientes ou os seus interesses próprios, confundidos voluntária ou involuntariamente com os interesses da justiça, e assim esses intervenientes poderiam ser tentados a suscitarem o incidente da recusa, sem um real fundamento objectivo. Isto levaria, obviamente, à paralisia do sistema.

Por conseguinte, o motivo apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança.

A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição - art. 32.º n.º 9 - só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º 1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita».

Ora, os factos e fundamentos invocados pelos Recusantes são manifestamente insuficientes para determinar o afastamento do juiz recusado.

Na verdade, a recusa de juiz tem de assentar em motivo sério e grave que faça suspeitar da sua imparcialidade (artigo 43º, nº 1 do CPP) situação que manifestamente não ocorre.

Concordando-se com o Exmo Desembargador Recusado:

«Assentando a pretensão do Requerente na designada “visão” objectiva” da imparcialidade, não se evidencia, nem existe de todo, qualquer elemento ou circunstância, nomeadamente os descritos no requerimento em análise, que, na percepção da comunidade em geral, possa afectar a minha posição de Juiz Presidente da … Secção Criminal da Relação de Coimbra, rectius, a minha intervenção, na dita qualidade, na realização do julgamento designado para o próximo dia 16 de Setembro de 2020. A haver dúvidas dessa natureza, elas apenas podem estar na mente do Requerente. As discordâncias do mesmo quanto ao indeferimento do despacho que fez soçobrar a sua pretensão de adiamento do julgamento não constitui, de nenhum modo, motivo sério de especial gravidade, segundo o senso e a experiência comuns, adequado a gerar a desconfiança sobre a minha imparcialidade.

Como vem repetidamente afirmando a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, «as meras discordâncias jurídicas com os actos processuais praticados ou com a sua ortodoxia, a não se revelar presciente, através deles, ofensa premeditada das garantias de imparcialidade, só por via de recurso – se admissível – podem e devem ser manifestadas e não através de petição de recusa».

A questão aqui subjacente reside efectivamente na discordância manifestada pelo Recusante quanto ao indeferimento da sua pretensão de adiamento do julgamento.

Ora, como se tem considerado, não basta a simples discordância jurídica em relação aos actos processuais praticados por um juiz, que podem conduzir à impugnação processual.

Como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de 09-12-2004, proferido no processo n.º 4308/04 – 5.ªSecção, a simples discordância jurídica relativamente a tais actos processuais, podendo e devendo conduzir aos adequados mecanismos de impugnação processual, não pode fundar a petição de recusa, pois não basta um puro convencimento subjectivo por parte de um dos sujeitos processuais para que se verifique a suspeição.

Por outro lado, como bem refere o Magistrado Recusado, citando decisão jurisprudencial, «o simples receio ou temor de que o juiz, no seu subconsciente, já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum não constitui fundamento válido para a recusa», cumprindo sublinhar, de todo o modo e a este propósito, que do incidente processual de que emana este pedido de recusa não se pode manifestamente concluir «estar já predefinida uma orientação para a decisão que, após, será tomada».

Nestes termos, não estão provados factos que constituam motivo sério e grave para suspeitar da imparcialidade (e consequentemente afastar da causa) do juiz recusado, não se verificando, pois, o condicionalismo do artigo 43º, nº 1 do CPP.

Nesta conformidade, deve o requerimento de recusa ser indeferido por falta de fundamento bastante.



III


Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em:

a) Indeferir a recusa do Senhor Desembargador Dr EE requerida.

b) Condenar cada um dos Requerentes em custas com 3 UC de taxa de justiça.


Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Setembro de 2020


(Texto processado e revisto pelo relator que assina digitalmente)

Tem voto de conformidade da Ex.ma Conselheira Adjunta Conceição Gomes (artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio).


Manuel Augusto de Matos (Relator)

_______

[1] Cfr. Ac. do STJ de 13-04-2005, http://www.dgsi.pt/, proc. 05P1138.
[2] Idem, pág. 4.
[3] Ibidem, pág. 6.
[4] Ac. do STJ de 27-05-1999, proferido no proc. 323/99. No mesmo sentido, entre muitos, vejam-se os acs. do mesmo Tribunal, de 27-04-2005, 14-06-2006 e 27-07-2006, com os números 05P909, 06P1286 e 06P2554, todos publicados em http://www.dgsi.pt.
[5] In CJ de 1996, Tomo V, 92
[6] Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, pp. 128-130.
[7] Ob. cit., p. 130.
[8] “Imparcialidade e processo penal: três problemas”, Julgar, n.º 30, Setembro-Dezembro 2016, p.44.
[9] Loc. cit., p. 45.