DIREITO DE PROPRIEDADE
SERVIDÃO DE PASSAGEM
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRÉDIO DOMINANTE
PRÉDIO SERVIENTE
Sumário


I - Pela sua natureza, a servidão de passagem tem a finalidade de constituir acesso desde a via pública até ao prédio, dito encravado, através de prédio vizinho.

II - Um prédio é encravado, quer quando se verifica a situação de encrave absoluto (o prédio não tem nenhuma comunicação com a via pública), quer quando se verifica a situação de encrave relativo (quando existe comunicação com a via pública, mas esta é insuficiente para aceder ao prédio em termos de fruição normal do mesmo).

III - O conceito e natureza das servidões legais de passagem foi evoluindo e adaptando-se à evolução, defendendo-se atualmente que, na concretização do que devam poder considerar-se os limites do direito de propriedade, a questão tem de ser colocada e abordada no âmbito da função social da propriedade privada.

IV - A servidão deve satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, com o menor prejuízo possível para o prédio serviente.

V - Na evolução do instituto e, na abertura dada pela redação do estatuído no preceito, art. 1550.º do CC temos que, apesar de os prédios dos autores (formam dois conjuntos prediais separados pelo prédio dos réus) terem acessos diferentes à via publica pode ter-se como de excessivo incómodo e até de dispêndio, o acesso de um para o outro, quando é necessário o seu cultivo (sendo idênticas as culturas e os trabalhos a realizar num e noutro dos prédios).

VI - É relevante o critério da proporcionalidade, devendo ser ponderado se o encargo provocado pela servidão no prédio serviente (o dos réus) se torna desproporcionado relativamente à utilidade que proporciona ao prédio dominante (os dos autores).

VII - Só faz sentido impor um encargo a um prédio, com os inerentes prejuízos, quando seja para facultar, a outro, otimização da sua exploração, um proveito de que ele carece.

VIII - Num sistema jurídico que assinala à propriedade uma função social, justifica-se a constituição de um encargo quando seja útil e necessário, ponderando as vantagens para o prédio dominante e o sacrifício para o prédio serviente.

Texto Integral



Proc. nº. 154/17.7T8VRL.G1.S2
Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real - Juízo Central Cível de Vila Real – Juiz 1

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.
- AA e mulher BB, residentes em ..., freguesia de ..., concelho de ..., instauram ação declarativa comum contra:
- CC e mulher DD, casados no regime da comunhão de adquiridos, moradores em …, freguesia e concelho do ...;
- EE, solteira, moradora na Rua …., ..., e
- FF, solteira, moradora nos …, ..., concelho de ...;
Pedindo que se declare:
A) Que eles, Autores, são proprietários dos prédios rústicos descritos no 1º item, alíneas A) e B) da petição inicial;
B) Que tais prédios, constituindo duas unidades agrícolas, embora não se mostrem todos encravados, pois tanto o …, como o conjunto dos seis que integram a unidade descrita em …. dispõem de acesso próprio - o primeiro, ao caminho público que liga … ao …, e o segundo, ao caminho de consortes que, vindo da estrada camarária de …, confronta diretamente com ele, na estrema sul do inscrito na matriz sob o artigo …, e nas estremas sul e poente dos inscritos sob os artigos … e … – não têm qualquer forma de comunicação entre si, estando separados pela faixa de terreno localizada na estrema poente do prédio dos Réus, inscrito na matriz sob o artigo …;
C) Que os referidos prédios dos Autores não dispõem de outro meio, através de terceiros, que seja mais curto, mais cómodo e o que menos dano causará aos Réus, de acederem uns aos outros, designadamente do … ao …, e vice-versa, senão através da faixa de terreno descrita no 3º item, localizada na estrema poente do prédio dos Réus, inscrito na matriz sob o artigo …;
D) Que os referidos prédios dos Autores se encontram em situação que lhes permite requerer que seja decretada por ali a constituição de uma servidão de passagem a pé e de carro, com a largura de 3 m e comprimento de 30 m a favor dos prédios referidos no 1º item, condenando-se os Réus a reconhecê-lo, e a manterem a referida faixa sempre livre e desembaraçada de pessoas e bens, de modo a permitir, por ali, livremente, o trânsito a pé e de carro, num e noutro sentido, dos prédios descritos em 1.B, através da estrema norte do …., como forma de acederem ao … e deste até àqueles.
Alegam para o efeito que são proprietários das duas unidades agrícolas que identificam, tendo ambas acesso direto a vias públicas, mas que não existe acesso direto entre essas suas duas unidades agrícolas que permita aceder de uma à outra; que tal acesso de uma unidade agrícola à outra pode ser feito de forma mais cómoda e mais curta através de uma faixa de terreno de um prédio dos réus que identificam; pelo que requerem a constituição de uma servidão de passagem a onerar esse prédio dos Réus.
Regularmente citados, apenas o primeiro Réu contestou, arguindo a exceção de caso julgado, e alegando que não se verificam os requisitos para a constituição de uma servidão de passagem a onerar o seu prédio, não dando consentimento para o efeito, pelo que conclui pela improcedência da ação, a julgar já no despacho saneador.
A exceção de caso julgado foi oportunamente decidida, tendo sido julgada improcedente.
Os autos prosseguiram os seus termos, vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de sentença que, julgando a ação parcialmente procedente:
a) Declarou que os Autores são proprietários dos prédios rústicos descritos no 1º item, alíneas A) e B) da petição inicial.
b) Declarou que tais prédios, constituindo duas unidades agrícolas, embora não se mostrem todos encravados, pois tanto o …, como o conjunto dos seis que integram a unidade descrita em … dispõem de acesso próprio - o primeiro, ao caminho público que liga ... ao ..., e o segundo, ao caminho de consortes que, vindo da estrada camarária de ..., confronta diretamente com ele, na estrema sul do inscrito na matriz sob o art. …, e nas estremas sul e poente dos inscritos sob os artigos … e … – não têm qualquer forma de comunicação entre si, estando separados pela faixa de terreno localizada na estrema poente do prédio dos Réus, inscrito na matriz sob o artigo ….
c) Declarou que os referidos prédios dos Autores não dispõem de outro meio, através de terceiros, que seja mais curto e mais cómodo, de acederem uns aos outros, designadamente do ... ao ..., e vice-versa, senão através da faixa de terreno descrita no 3º item, localizada na estrema poente do prédio dos Réus, inscrito na matriz sob o artigo …..
d) Julgou improcedente o pedido formulado sob a alínea D) do petitório dos Autores, no sentido de que assiste aos Autores o direito de verem constituída uma servidão de passagem, a onerar o prédio dos Réus, com as legais consequências, dele absolvendo os Réus.
Inconformados, interpuseram os Autores recurso de apelação, sendo decidido, pelo Tribunal da Relação, julgar improcedente o recurso, confirmando e mantendo a decisão impugnada.
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De novo inconformados, vêm os autores apresentar recurso de revista, concluindo as alegações de recurso, nos seguintes termos:
IV – DAS ALEGAÇÕES REVIDENDAS
1ª O acesso pedonal e carral desde o ... ao ... e vice versa, ambos propriedade dos AA, pela extremidade poente do dos RR, inscrito na matriz sob o art…., propriedade dos RR - que é enorme, mas acaba ali, cf. docs juntos aos autos - em nada os afeta ou prejudica, não apenas pela exiguidade da respetiva área, 3mx30m, mas também por ter sido sempre inculta e em terra batida, sendo utilizado pelos AA e ante possuidores para os mesmos fins, pelo menos desde 1999 até outubro de 2015, ainda que o fizessem com licença dos pais dos Rdos, como decidido em ação anterior a esta, cf. sentença junta aos autos
2ª Os Rects nunca quiseram submeter ao contraditório os factos assentes nas als A), B), E), F), tendo o valor que têm e não outro, como parece ter-lhes sido inculcado na douta sentença, tanto mais que foram ab initio alegados nos itens 4º, 5º, 6º, 7º; 9º; 11º e 12º, todos da p.i. - não como integradores essenciais da causa de pedir e do pedido, mas como histórico dos antecedentes desta ação, o que, aliás, explica que os AA não hajam instado nenhuma das testemunhas por si arroladas sobre nenhum desses factos.
4ª A al. G), onde se exarou, com a relevância jurídica que se lhe inculca na economia da sentença, que “o trânsito apeado e carral se processa “com normalidade” pelo caminho de ..., inclusive com veículos ligeiros” haverá de ter-se por não escrita, ou, então, redigida com menção de factos concretos que objetivem a sua menção conclusiva, tendo em conta o teor do relatório de VNJQ, fotos e docs não impugnados pelo Rdo que neutralizam, claramente, a força de tal expressão, motivo porque não pode manter-se ali incólume a transcrição acrítica e sem qualquer fundamento, claro e objetivo, das vagas afirmações levadas pelo Rdo ao art. 8º da contestação, sobretudo quando as mesmas se mostram desmentidas pelas respostas dadas naquele relatório aos factos alegados pelo Rdo nos itens de 16º a 22º daquele articulado.
5ª Tal redação foi tida pela Mma Juiz como confirmada por “uma” testemunha que não identificou - uma de duas, todavia, das que depuseram em Juízo sobre tal questão -GG e HH - a quem a Mma Juiz concedeu, a esses, sim, incompreensível credibilidade, como se referiu na apelação e se vê da transcrição escrita dos seus depoimentos gravados - ainda por cima, omitindo-se na sentença factos reais e concretos que justificassem o uso da expressão “com normalidade” alegada pelo Rdo no art. 8º da contestação, transcrita acriticamente e sem qualquer fundamento, para aquela al. G dos factos provados, que deverá ser anulada ou retificada nos termos atrás sugeridos.
6ª Juízo aquele que, além de não passar de um mero conceito de direito, sendo, por isso, conclusivo, podendo tal caminho servir, quando muito, para o trânsito normal de carros de bois, que já não existem, ou para tratores potentes, mas não já para um veículo ligeiro ou mesmo pesado que não disponham de tração 4x4, e, menos, ainda, para o transporte seguro do pessoal, máquinas, alfaias, adubos, uvas, azeitona, e quejandos, atentos os “constrangimentos” a que se reporta o relatório “pericial” e fotos ali juntas.
7ª Não podia ter-se o caminho de ... como perfeitamente transitável, com normalidade, e, até para veículos ligeiros, quando a Mma Juiz nunca foi nem quis ir ao local, para compreender ou imaginar o penoso sacrifício por que tem passado o A. desde que se viu obrigado a ir por ali com a carrinha cheia de uvas, umas vezes, e com azeitona, outras, a derrapar perigosamente, tanto no verão como no inverno, sobretudo em determinados troços onde o declive das suas encostas é mais acentuado, só conseguindo rebocá-la até ao ponto mais alto com o auxílio de um trator mais potente que o seu, sem o que teria de descarregar no solo e levar tudo às costas até à estrada, como já lhe sucedeu.
8ª Na referida expressão, omitiu-se, ainda, a natureza e extensão das unidades agrícolas cujos donos, alegadamente, transitem pelo caminho de ... “com normalidade e, até com veículos ligeiros” bem como os concretos meios de acesso utilizados, formas de cultivo e colheita dos eventuais produtos, bem como onde vivem tais proprietários, para fazermos uma mínima ideia - do confronto com a situação concreta dos Rects - das distâncias que percorrem desde ... até aos supostos prédios, quanto tempo perdem no trajeto de ida e volta, para que o Tribunal pudesse decidir com algum critério, pois não podem comparar-se factos, grandezas e situações incomparáveis.
9ª Se o Rdo não era obrigado a referir tais elementos, não é menos correto afirmar que a Mma Juiz não podia transcrever para a matéria de facto assente uma expressão tão genérica nos termos em que aquele a referiu no art. 8º da contestação, minime quando a mesma se mostra de todo descaraterizada por falta de factos que justifiquem o uso de tal expressão, e, sobretudo, pela força que assumem, nesse contexto, tanto o relatório de VNJQ como as fotos e demais documentos que o ilustram.
10ª O Rdo não reclamou do relatório nem impugnou nenhum dos documentos que o integram, do que nem 1ª nem a 2ª instâncias colheram as implícitas consequências, sobretudo o Tribunal da Relação que não se terá apercebido também de que a Mma Juiz determinara a realização de uma VNJQ para averiguação dos factos alegados pelo Rdo nos itens de 16º-22º da Cont. - o que foi cumprido com todo o rigor pela Exma Perita -para, inexpectavelmente, ao final do contraditório, por despacho na Ata de 24.10.18, ref.ª ..., ter dispensado a inspeção judicial requerida pelas partes “...tendo em conta o Relatório da Verificação não Judicial Qualificada... considerando-a desnecessária”.
11ª Decisão que levou os Rects a intuir que o Tribunal não precisaria de mais provas para considerar o caminho de ... excessivamente incómodo e dispendioso, enquanto pretensa alternativa de acesso à estrada pública, convicção legitimada pela força de que se revestem os factos já assentes no saneador, os descritos no relatório e demais documentos de VNJQ, porquanto, sujeitos ao contraditório e podendo, por isso, ter sido objeto de impugnação, reclamação e até de recurso, não o foram.
12ª Estava vedado ao Tribunal emitir juízos em sentido contrário ao daqueles factos, por não estarem abrangidos pelas restrições das als c) e d) do art. 568º e do 574º-2, sob pena de incorrer, em violação desses normativos e na dos arts 607º-5, 608º-2 e 615º-1, do que tudo sai reforçada a ilação de que, apesar de o ... confinar em parte com o caminho de ..., a comunicação através dele com a estrada que liga essa povoação ao ..., revela-se insuficiente, - na aceção jurídica e com a amplitude que o atual intérprete do 1550º-2 do CC terá de inculcar-lhe - face aos constrangimentos do trajeto, à perda de mais de 2 horas de trabalho em viagens num e noutro sentido, ao desnivelamento e natureza do solo arenoso, à intensidade e dureza dos trabalhos agrícolas e ao uso diário de máquinas, veículos e alfaias, como provado nas als “C”e “D” da matéria assente.
13º Aliás, esse caminho por ... implica sacrifícios de que a douta sentença não se faz eco, ao ter como não excessivo incómodo e dispendioso o percurso alternativo por ali, tal revelando não terem sido levados em conta o teor integral do relatório e demais documentação junta aos autos, nem tão pouco o depoimento do Autor e das testemunhas, que mais não poderiam ter dito para o demonstrarem. (Cf. p.f, a título de exemplo, o do A., min.22:42 ao 23:54, o da testemunha II, min. 04:36 ao 04:53 e o de JJ- min.12:19 ao 12:27. “A gente para se mudar de baixo para cima com o trator, a carrinha tem de descarregar o trator em cima, em ..., porque a carrinha não vai a baixo carregada com o trator e subir para cima também não sobe.”
14ª Mas se a Mma Juiz, porventura, sentisse quaisquer dúvidas acerca desses factos e/ou da interpretação e rigor das respostas que ali abrangeram as questões suscitadas pelos RR nos arts de 16º a 22º, ou sobre a força dos documentos que as ilustravam, mais natural, mais justo e mais assertivo seria, proceder à requerida inspeção judicial, prova por excelência, em que seria posta em contacto direto e imediato com a realidade.
15ª O que se preteriu sem suporte legal, pois trata-se de um poder/dever vinculado à lei, e não meramente discricionário, que só poderá deixar de exercer-se se a diligência fosse tida por desnecessária ou inútil para a descoberta da verdade, caso em que Mma Juiz deveria ter fundamentado tal decisão em termos claros e muito precisos, para que dela pudessem as partes recorrer, se fosse caso disso. O que, efetivamente, sucederia se os fundamentos a invocar não se pautassem por razões lógicas e científicas que levassem o Tribunal a discordar das respostas documentadas no relatório (Cf., i.o, Ac.STJ de 19.4.1995,CJ, ano III,T 11,págs. 43 e 44; A. dos Reis, in CPC An. IV, Coimbra Ed.,1981, pág.05 e A. Varela, in Manual de Proc. Civ. 1984, Coimbra Ed., pág 585)
16ª Resta, nessa parte, sublinhar que se a Mma Juiz tivesse efetuado a requerida inspeção judicial, não só poderia manter como também reforçar a convicção que, pelos vistos, já formara antes, vendo-se os AA, por isso, confrontados com uma decisão-surpresa, que, de todo, não era espectável, pois caso a tivesse feito, não só teria evitado incorrer, como incorreu, em violação dos arts 3º-1, 5º-2 e 607º-4, do CPC como poderia ainda voltar atrás, infletindo-a no sentido que, então, sim, julgasse mais justo e mais correto.
17ª Mesmo admitindo que o intérprete não possa contornar a letra do art.1550º do CC, nada obsta a que se afiram os conceitos de “encrave relativo” e de “insuficiência de ligação à via pública”, pelas necessidades normais de acesso, ou seja, das relacionadas com a natureza das culturas a que os prédios em causa estão afetos, da forma como se procede à sua exploração e das despesas que acarretam, sendo certo que, no caso dos autos, os prédios dos Rects têm uma área global de cerca de 4 hectares de vinha da região demarcada do Douro, oliveiras e árvores de fruto.
18ª É, pois, possível calcular, aritmeticamente, ainda que com recurso à força da presunção judicial decorrente da quantidade, constância e frequência de serviços que uma exploração desta natureza lhes acarreta, bem como às despesas mínimas que terão de suportar na contingência de terem de recorrer ao acesso alternativo, atenta a natureza e constância dos trabalhos que tal tipo de exploração lhes exige – sobretudo, mostrando-se os parâmetros essenciais dessa função provados nas als “C”e“D”, relativamente às despesas de exploração, e nos itens 3º, 5º e 6º da mesma série, quanto às do percurso por ...
19ª Efetivamente, comparando os referidos factos com os das als B) e C) facilmente se constata pelas regras de vida e através de uma “regra de 3 simples”, ou mesmo “de cabeça”, que, por ..., sempre gastariam - no mínimo, com desgaste de pneumáticos, combustível e 2 horas de trabalho perdido, mas que têm de pagar ao pessoal, nas viagens de ida e volta por cada dia de trabalho - mais do décuplo das despesas que poderiam fazer se lhes fosse permitido transitarem do ... para o ..., e vice versa, pela extrema poente do …, tendo em linha de conta que, pela extrema poente do … só gastariam 10 seg.de carro e 30, a pé, assim se vendo, mesmo a olho nu, caso a ação viesse a proceder, a enorme discrepância entre os eventuais prejuízos para o Rdo, e os notoriamente comprovados, para os Rects (Cf Acs. TRC de 27/5/2014, e de 13/5/2014, proc. nº 4054/11.6TJCBR.C1)
20ª Cumprido se mostra, pois, indo mesmo além do disposto no art.412º do CPC, o onus probandi relativo à factualidade relevante do ponto de vista da demonstração do excessivo incómodo e/ou dispêndio em que assenta o reconhecimento do direito potestativo em causa, ainda que não cabal, atendendo à constante variação dos preços e dos valores relativos às despesas de exploração e à quantidade e venda dos frutos colhidos, cujo cômputo será sempre possível obter com base nos referidos elementos, objetivos e inalteráveis, que carrearam para os autos e lograram demonstrar.
21ª É, assim, enorme, a desproporcionalidade entre a desvantagem ou prejuízo de relevo que daí resultaria para o Rdo, enquanto comproprietário de uma nesga de terreno com 30 m de comprido - praticamente isolada do resto da Quinta, pois para além da linha que a define na sua extrema poente, nada mais ali possui – tendo ainda em conta que os AA apenas a usarão para vencerem a curtíssima distância que medeia entre o ... e o ..., mal se compreendendo, pois, que o Rdo obrigue os Rects a percorrer cerca de 20 Km por dia na viagem de ida e volta, quando poderiam fazê-lo por ali em 10 seg, de carro, e em 30, a pé
22ª De resto, nenhuns prejuízos se provaram - o Rdo, aliás, não os referiu, ao contrário dos Rects que, no art. 15º da p.i., alegaram expressamente a ausência de quaisquer danos, para aquele ou para o seu prédio - sendo certo que se algum dano dali lhe adviesse, sempre seria um minus em relação aos sofridos pelos AA - cf Acs.TRC de 27/5/2014, e de 13/5/2014, proc. nº 4054/11.6TJCBR.C, e de 10.12.2013, in Proc. 361/11.6T2AND.C1- mas que estes logo o indemnizariam, ainda que esse eventual dano não merecesse a tutela do direito.
23ª Não pode, assim. manter-se o fundamento de que se socorreu a Mma Juiz para julgar improcedente parte do pedido C) no sentido de que “se desconhece se o referido trajeto pretendido pelos AA seria ou não o que menos prejuízo causaria aos RR”, para, logo, se obtemperar que estes, “certamente, sofrerão menos danos caso não exista qualquer servidão a onerar o seu prédio”, por lhe estar vedado suprir a inércia do Rdo, pois recaindo sobre este, o ónus de contrariar os factos alegados pelos AA no 15º item da p.i., não o fez, pelo menos, na forma legalmente prevista, devendo ter-se tais factos por confessados, ou seja, que “...a faixa oneranda não é nem nunca foi cultivada, sendo desprovida de árvores, videiras ou quaisquer outros arbustos, sendo por isso de reduzido ou, mesmo, de nulo valor material...”
24ª Daí que, dando-se por não escrito tal fundamento, deverá ter-se aquele pedido C) como integralmente provado, sob pena de violação dos arts 342º-2 do CC, e 572.b), 573º e 574º do CPC - cf, ainda, o Ac RC, de 10.12.2013, in Proc.361/11.6T2AND.C1 - pormenor que à Mma Juiz e à Relação terá passado despercebido, o que arrasta consigo a total procedência do 3º suporte do pedido principal.
25ª Acresce que, recaindo sobre o Rdo o onus probandi de tal argumento, não vemos que o haja alegado e, muito menos, provado nos autos quaisquer factos ou danos materiais nesse sentido, pelo que, ao concluir-se desse modo, mostram-se ambas as instâncias incursas na nulidade prevista nos arts 608º-2 e 615º-d) do CPC, conhecendo de questão que a parte a quem tal aproveitaria não alegou nem provou.
26ª O R. seguramente atido à força aparente do jus utendi et abutendi a que sempre se ateve, olvidando que tal direito não é absoluto, não só reconheceu a inexistência de quaisquer danos para o seu prédio - tacitamente, por via da cominada “confissão” dos factos alegados no art. 15º da p.i. - como aceitou, expressamente, cf art. 2º da cont. e ao final das contra-alegações, que “a travessia carral e pedonal pelo seu prédio, porque mais curta e mais cómoda, seria até benéfica e conveniente ao prédio dos AA”.
27ª Ao nível do respetivo conteúdo e dos limites objetivos do direito de que aquele se arroga enquanto comproprietário do …, reconhece-lhe a lei, sem dúvida, tal qualidade, na justa medida em que tal direito se revele necessário à preservação das utilidades que o mesmo lhe proporciona, mas não já quando o único argumento a que se arrima é essa mesma qualidade de que se prevalece para justificar a sua oposição ao pedido dos Rects, pois aí, como se decidiu no Ac RC de 10.12.2013, in Proc.361/11.6T2AND.C1, encontra-se limitado pelo instituto do Abuso de Direito.
28ª Sobre essa mesma temática tem vingado desde há anos na jurisprudência desta nossa Suprema Instância, v.g. o douto Ac. STJ, de 14-02-2013, onde se considera que «na concretização do que devam poder considerar-se os limites do direito de propriedade, a doutrina vem defendendo que a questão tem de ser colocada e abordada no âmbito da função social da propriedade privada”. Nesse mesmo sentido, pode ler-se, também, P. Lima eA. Varela, in CCAn.1987, vol. I. Pág. 300
29ª Esta postura do Rdo vê-se ainda asperamente censurada pelo douto Ac STJ de 07/02/2008, in proc. nº 07B3934, onde se considera que “a figura do Abuso do Direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmos.
Nestes termos e nos melhores, de direito, que, estamos certos, não deixarão de suprir-se, deverá a presente Revista ser aceite, e, depois, procedendo-tanto no que tange à reapreciação da matéria de facto, até onde for possível, como no que respeita às questões de direito que serviram de leitmotif à sua interposição, revogando-se as decisões recorridas, e julgando-se esta ação procedente, fará este Tribunal Supremo inteira JUSTIÇA.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Este Coletivo conheceu do recurso de revista em termos gerais, abordando as questões respeitantes a:
- Violação do caso julgado formal;
-Improcedência do recurso de apelação, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto;
Sendo decidido:
a)- Não conhecer do recurso de revista com fundamento na alegada violação de caso julgado;
b)-Julgar o recurso de revista improcedente no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto;
Quanto ao mais, verificando-se que o acórdão da Relação confirmava, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão da 1ª Instância, foram os autos remetidos à Formação a que alude o art. 672, nº 3 do, do CPC, para verificação dos invocados pressupostos da revista excecional, sendo deliberado por esse Coletivo, admitir a revista excecional.
Dispensados os vistos cumpre apreciar e decidir.
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Nas Instâncias foram julgados como provados e não provados os seguintes factos:
i) considerou provado que:
1. Os Autores são donos de sete prédios rústicos de vinha da região demarcada do Douro, sitos no lugar das ..., freguesia e concelho do ..., todos com inscrição matricial e registral a seu favor, sendo que:
A - O primeiro, inscrito na respetiva matriz sob o art. ..., encontra-se descrito na CRP sob o nº …. e ali registado sob AP. 5 de 2005.7/8.
B - Os restantes seis – por serem imediata e sucessivamente contíguos entre si e pertencerem ao mesmo dono – formam uma só unidade agrícola registada na CRP sob Ap. 2013 de 2011/03/24, com as menções matriciais e registrais ao diante indicadas, por ordem da respetiva contiguidade topográfica e atento o sentido norte-sul:
a - Matricial, sob o art. …, e registral, nº …
b - Matricial, sob o art. …, e registral, nº …
c - Matricial, sob o art. …, e registral, nº …
d - Matricial, sob o art. …, e registral, nº …
e - Matricial, sob o art. …, e registral, nº …
f - Matricial, sob o art. …, e registral, nº ….
2. A nascente destes, possuem os Réus um outro - em regime de compropriedade e na proporção de 4/6 para os 1°s, 1/6 para a 2ª e 1/6 para a 3ª - sito no mesmo lugar de ..., também rústico de vinha da região demarcada do Douro e de cultura arvense de sequeiro, inscrito na matriz sob art….. e descrito na CRP sob N° ....
3. Entre a estrema sul do ... e a estrema norte do ... apenas medeia uma faixa de terreno que integra a estrema poente do prédio dos Réus, com 30 metros de comprimento por 3 metros de largura, em terra batida e no mesmo plano das estremas sul e norte daqueles dois.
4. Residindo os Autores em ..., seja qual for o prédio ou prédios a que pretendam dirigir-se, têm que se deslocar sempre até ao ..., incontornavelmente, sendo que, a partir daquele lugar, para alcançarem, a pé e/ou de carro, os descritos em 1.B, bastar-lhes-á tomarem a estrada camarária que liga aquele lugar à povoação de ..., que abandonam ali, para fletirem a poente, seguindo depois por um caminho de consortes cerca de 80 metros, ao cabo dos quais entram no 113-A descrito em 1.B-c), passam pelo … e deste para o ....
5. Uma servidão de passagem a pé e de carro pelo … dos Réus, mais precisamente pela faixa de terreno descrita no 3º item, permitiria aos autores acederem ao ... quando se encontram na extremidade norte do ..., e vice-versa, pela forma mais cómoda e mais curta, bastando-lhes percorrer os 30 metros que separam aqueles seus dois prédios, o que conseguem, à vontade, em 10 segundos, de carro, e em 30, se apeados.
6. Se para acederem ao ... forem obrigados a ir por ..., porque terão de partir sempre, do ..., tomar a EN 2 que liga esse lugar a ... e ao chegarem a ..., fletirem para sul, seguindo depois pelo caminho que leva ao ..., para alcançarem, finalmente, a extremidade poente do ..., ao cabo de 1.100 m, percorrem, ao todo, ou seja, desde o ... até este prédio, 6,6 Km.
A. Foi outorgada uma escritura pública, em 9.06.99, entre KK e mulher, então donos do ..., e LL e mulher, então donos dos ..., … e …, que ali fora designada como de “constituição de servidão”.
B. Em finais de 2007, os Autores viram-se impedidos de passar pelo prédio dos réus, pois, ao chegarem ao cabo do ..., pretendendo atravessar a faixa de terreno descrita com vista a poderem aceder ao ..., constataram que a mesma se encontrava ladeada por dois esteios em ferro, a suportarem um cadeado a obstruir a passagem de carros e de pessoas, pelo que logo removeram aquele artefacto, continuando a transitar por ali, por ser esse o trajeto mais cómodo e mais curto.
C. Para prosseguirem no ... com as tarefas em que andavam ocupados na unidade agrícola descrita em 1.B – quase sempre com máquinas, pessoal, adubos ou produtos químicos fitossanitários já preparados, i.é, já misturados nos tambores e barris, no estado líquido – ao chegarem ao cabo, ou seja, à estrema norte do ..., se não puderem transitar deste para aquele pela faixa dos Réus descrita em 3, ver-se-ão os Autores obrigados a voltar para trás com carros, máquinas, produtos, trabalhadores, bebidas e prezigo, e terem de repercorrer 1,4 Km de ... ao Peso, mais 6,6 Km, desde aqui a ..., e seguir pelo caminho público do ..., num total de 8 km, quando lhes bastava atravessarem em 10 segundos o …, de sul para norte, para chegarem ao ....
D. Porque estamos no coração do Douro, a produção de fruta, azeite e a cultura vitivinícola são predominantes, e onde os tratamentos fitossanitários, por isso, são frequentes, bem como a rega do bacelo, da enxertia nova, as podas, cavas, escavas, redras, colheita e transporte de uvas, azeitonas, frutas e dos mais diversos produtos agrícolas exige um aturado e contínuo esforço.
E. No âmbito da ação com processo sumário n.º 220/08.0TBPRG – J2, que correu termos pela Instância Local de ..., os Autores peticionaram contra os aqui Réus o reconhecimento e declaração de existência de uma servidão de passagem a pé e de carro, constituída por usucapião, materializada na faixa de terreno referida no art.º 3º da petição inicial, a onerar o prédio rústico dos Réus identificado no art.º 2º da petição inicial (art.º 73-A) e em benefício do seu prédio rústico identificado no art.º 1º-B (art.º ...).
F. Tal ação judicial foi julgada improcedente, com a consequente absolvição dos Réus dos pedidos aí formulados, cuja sentença final aí proferida transitou devidamente em julgado.
G. O caminho público de ... é utilizado por vários proprietários, nomeadamente confinantes com o prédio rústico dos Autores, que por aí processam com normalidade o trânsito apeado e carral.
ii) considerou não provado que (vão numerar-se para melhor identificação, utilizando-se a numeração romana para evitar a confusão com os “factos assentes” ):
I) Os anteriores donos do prédio com o artigo matricial ..., sempre passaram, a pé e de carro, durante mais de 30 anos, num e noutro sentido, ou seja, os donos do ... pelo ..., e os donos deste, pelos descritos em 1-B-a),b),c), o mesmo continuando os Autores a fazer desde que compraram o ... em 2005, convencidos de que lhes assistia tal direito, a pé e de carro, como lhes fora afiançado pelos vendedores.
II) À data da celebração da escritura referida em A., a constituição de servidão já continha os requisitos probatórios mais do que suficientes ao seu reconhecimento judicial por usucapião, pois há mais de 30 anos que já dava recíproca serventia - a uns e a outros e de uns para os outros, i.é, ao ..., …, ..., … e ….
III) Só não tendo intervindo os anteriores donos, ao tempo ainda vivos e com quem mantinham as melhores relações de vizinhança, porque a estrema poente daquele prédio, presumida e logicamente, já estava onerada por uma servidão da mesma natureza, embora com apenas 3 m de largo, bastante, aliás, pois naquela faixa o seu trajeto é muito curto e em linha reta, ao passo que nos demais é curvilíneo e os veículos que por ali passavam com cargas, precisavam de maior largura para o descrever.
IV) E a prova de que toda a gente reconhecia os anteriores donos do ... e os dos descritos em 1.B como legítimos titulares do direito de transitarem num e noutro sentido, a pé e de carro, pela faixa de terreno descrita no 3º item está no facto de o terem sempre feito, ao longo de mais de 30 e de 40 anos, e nunca ninguém lhes ter levantado quaisquer objeções, incluindo os anteriores donos do …, enquanto vivos, e os próprios 1ºs Réus, que ali vivem e por ali andam diariamente, sem nunca os terem proibido de passar por lá, prática que nunca ninguém desrespeitou até finais de 2007.
V) A faixa oneranda não é nem nunca foi cultivada, sendo de reduzido ou, mesmo, de nulo valor material, atendendo a que o metro quadrado deste tipo de terreno, na ótica expropriativa, não excede os 60 cêntimos.
VI) O percurso pela estrada acarretará aos autores imensas despesas e perdas de tempo, o que os tem desmotivado de continuarem a granjear o ....
VII) O trajeto pela estrada mostra-se descabido, sendo mesmo desumano, obrigar os autores a percorrer, escusadamente, 6,6 Km acrescidos de 200 metros medidos com fita métrica, quando lhes bastava atravessar o …, para acederem ao ... pelo ....
VIII) Para além de que, indo com cargas, pelo caminho de ..., só podem fazer esse percurso de carro, com segurança, em veículos de tração às 4 rodas, pois desenvolve-se em plano descendente de norte para sul, com acentuado declive de 20º, é em terra batida, cheio de curvas, socalcos e muito escorregadio, sobretudo desde outubro a abril, período mais pluvioso do ano, em que o piso se torna tão resvaladiço que é necessário ir retirá-los das lamas, empurrá-los e/ou rebocá-los até à E.N., trabalhos e dificuldades que os Autores já sentiram, após o indeferimento da providência cautelar Nº 125/16.0T8PRG-J2.
IX) E o pior está ainda para vir, sobretudo nas fases da poda, escava, levanta, tratamentos fitossanitários, vindimas e colheita da azeitona, quando acabam os trabalhos em que andam ocupados nos prédios descritos em 1.B e pretendem continuar com os mesmos no ..., ou vice-versa, ao passo que, já se disse, atravessando pela faixa dos Réus descrita em 3, bastam-lhes 30 segundos.
X) É raríssimo e quase impossível de acontecer, planear os respetivos trabalhos de forma a executá-los em dias diferente, pois trata-se de operações que têm de ser seguidas, porque executadas por máquinas e pessoas, sem parar, a não ser para abastecerem de combustível e produtos químicos, aquelas, e estas, para se alimentarem – sempre as descritas condicionantes persistiriam.
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Conhecendo:
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações – artigo 635, nº 4 e 639, nº 1, do Código de Processo Civil – as questões suscitadas pelos recorrentes relativas ao recurso de revista excecional, e que cumpre apreciar, conforme salientado pela Formação, são:
- “As razões pelas quais os AA. pretendem aceder a este Supremo Tribunal de Justiça, malgrado verificação da dupla conformidade, centram-se essencialmente na interpretação e aplicação do art. 1550° do CC, acerca da delimitação do conceito de prédio encravado, e na introdução da figura do abuso de direito, no sentido de onerar os RR. com a cedência de uma passagem pelo seu prédio, a fim de facilitar ao A. o amanho dos seus prédios que com aquele confinam”.
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Como já referido no acórdão que incidiu sobre a impugnação da matéria de facto e conhecido em termos de revista normal, os recorrentes, nesta ação e neste recurso não pretendem constituir uma servidão para um seu prédio encravado, mas antes pretendem constituir uma passagem entre dois prédios seus, de um para o outro através do prédio (ou faixa de terreno do prédio) dos réus. Ou como se lhe refere o acórdão recorrido, “a servidão que se pretende constituir assume, na situação em presença, a natureza de um atravessadouro, já que configura um mero atalho, destinando-se apenas a encurtar distâncias entre os dois prédios”.
E como refere a Formação, “Se é verdade que cada uma das parcelas prediais dos AA. tem acesso direto à via pública, as especificidades do caso concreto justificam que se aceda ao terceiro grau de jurisdição”.
Estaremos perante um caso de encrave relativo, de comunicação insuficiente com a via pública?
Estatui o art. 1550 do Cód. Civil com a epigrafe -Servidão em benefício de prédio encravado-, que:
“1. Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.
2. De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio” (sublinhados nossos).
Pela sua natureza, a servidão de passagem tem a finalidade de constituir acesso desde a via pública até ao prédio, dito encravado, através de prédio vizinho.
Como se lhe refere P. de Lima e A. Varela in Código Civil anotado, anotação ao art. 1550, “num primeiro momento, trata-se de um simples direito potestativo, que confere ao respetivo titular a faculdade de constituir uma servidão sobre determinado prédio, independentemente da vontade do dono deste”.
E dilucidando a questão que suscitam, acerca do que é “um prédio encravado”, salientam que pode verificar-se a situação de encrave absoluto (o prédio não tem nenhuma comunicação com a via pública), ou de encrave relativo (quando existe comunicação com a via pública, mas esta é insuficiente para aceder ao prédio em termos de fruição normal do mesmo).
E ensinam estes professores que “pode dizer-se que a lei considera encravado (para o efeito de lhe conceder a servidão legal de passagem) não só o prédio que carece de qualquer comunicação com a via pública (encrave absoluto), mas também aquele que dispõe de uma comunicação insuficiente para as suas necessidades normais e aquele que só poderia comunicar com a via pública através de obras cujo custo esteja em manifesta desproporção com os lucros prováveis da exploração do prédio ou com as vantagens que ele proporciona (encrave relativo)”.
Havendo quem acrescente o excessivo incómodo na comunicação com a via pública.
No caso vertente alegam os recorrentes a insuficiência da atual passagem para as necessidades de exploração dos prédios, bem como o excessivo incómodo que será ter de utilizar a atual passagem, que implica andar quilómetros e demora de tempo na deslocação dos trabalhadores e máquinas, quando é possível fazê-lo andando 30 metros pela extrema do prédio dos réus e por local em que o prejuízo é mínimo.
Entendeu-se na 1ª Instância que, “para verem proceder a sua pretensão, e uma vez que não há qualquer dúvida de que o prédio dos autores não é encravado absolutamente, já que confina com a via pública, cabia aos autores alegarem e provarem não só a comunicação insuficiente com a via pública do prédio com o artigo matricial ..., como também o excessivo incómodo ou dispêndio que para si resulta da utilização dessa comunicação. Não lograram provar nem uma nem outra das situações”.
E acrescenta a sentença que, “Para acederem ao seu prédio através desse caminho têm os autores que percorrer, no total, admitamos, cerca de 8 km!
Quando, passando pelo prédio que tem donos, os réus, os autores podiam comodamente percorrer apenas algumas dezenas de metros, em poucos segundos.
Ora, se por um lado não se pode, de forma alguma, considerar excessivo incómodo ou dispêndio ter que percorrer 8 km para aceder a um prédio, por outro lado, também não se pode, de forma alguma, considerar que isso é motivo para onerar um prédio de outrem, limitando a plenitude do seu direito de propriedade, para simples comodidade de um terceiro”.
E salienta o acórdão da Relação que, “Assim considerado, como tem de se considerar, impõe-se concluir que nem o prédio inscrito na matriz no artigo ..., nem o inscrito no artigo ... podem ser havidos como prédios total ou parcialmente encravados.
Vistas as coisas como os Apelantes as configuram, o que pretendem é que sobre o prédio dos Apelados se crie um atalho que lhes facilite o trânsito de um daqueles seus prédios para o outro, para que, estando a trabalhar num deles, lhes seja fácil e rápido aceder ao outro, deste modo evitando as perdas de tempo e os incómodos que resultam da necessidade de efectuarem o (reconhece-se que longo) percurso descrito em C. dos “factos provados”.
Não são, pois, razões de imprescindibilidade da servidão para a normal fruição dos prédios que justificam a sua constituição, mas essencialmente a comodidade dos Apelantes.
Ora, da noção do conceito de servidão resulta que não há, actualmente, servidões pessoais - encargos impostos a um prédio em proveito exclusivo de pessoas -, muito embora sejam as pessoas, os donos do prédio dominante, os titulares do direito de servidão, e sujeitos passivos os donos do prédio serviente, isto porquanto somente as pessoas podem ser titulares ou sujeitos de direitos, como se extrai do artº. 67º., do C.C..
(…)
A necessidade da servidão deve, pois, ser aferida não pela ponderação dos comoda do proprietário do prédio dominante mas tão somente pela relação entre os prédios e a via pública.
Ora, a servidão que se pretende constituir assume, na situação em presença, a natureza de um atravessadouro, já que configura um mero atalho, destinando-se apenas a encurtar distâncias entre os dois prédios”.
E matéria de facto provada, com relevância, temos:
3. Entre a estrema sul do ... e a estrema norte do ... apenas medeia uma faixa de terreno que integra a estrema poente do prédio dos Réus, com 30 metros de comprimento por 3 metros de largura, em terra batida e no mesmo plano das estremas sul e norte daqueles dois.
5. Uma servidão de passagem a pé e de carro pelo … dos Réus, mais precisamente pela faixa de terreno descrita no 3º item, permitiria aos autores acederem ao ... quando se encontram na extremidade norte do ..., e vice-versa, pela forma mais cómoda e mais curta, bastando-lhes percorrer os 30 metros que separam aqueles seus dois prédios, o que conseguem, à vontade, em 10 segundos, de carro, e em 30, se apeados.
6. Se para acederem ao ... forem obrigados a ir por ..., porque terão de partir sempre, do ..., tomar a EN 2 que liga esse lugar a ... e ao chegarem a ..., fletirem para sul, seguindo depois pelo caminho que leva ao ..., para alcançarem, finalmente, a extremidade poente do ..., ao cabo de 1.100 m, percorrem, ao todo, ou seja, desde o ... até este prédio, 6,6 Km.
C. Para prosseguirem no ... com as tarefas em que andavam ocupados na unidade agrícola descrita em 1.B – quase sempre com máquinas, pessoal, adubos ou produtos químicos fitossanitários já preparados, i.é, já misturados nos tambores e barris, no estado líquido – ao chegarem ao cabo, ou seja, à estrema norte do ..., se não puderem transitar deste para aquele pela faixa dos Réus descrita em 3, ver-se-ão os Autores obrigados a voltar para trás com carros, máquinas, produtos, trabalhadores, bebidas e prezigo, e terem de repercorrer 1,4 Km de ... ao Peso, mais 6,6 Km, desde aqui a ..., e seguir pelo caminho público do ..., num total de 8 km, quando lhes bastava atravessarem em 10 segundos o …, de sul para norte, para chegarem ao ....
D. Porque estamos no coração do Douro, a produção de fruta, azeite e a cultura vitivinícola são predominantes, e onde os tratamentos fitosanitários, por isso, são frequentes, bem como a rega do bacelo, da enxertia nova, as podas, cavas, escavas, redras, colheita e transporte de uvas, azeitonas, frutas e dos mais diversos produtos agrícolas exige um aturado e contínuo esforço.
Configurarão estes factos uma situação de encrave relativo suscetível de implicar a constituição de servidão de passagem entre os prédios dos autores e a onerar o prédio dos réus?
Verificar-se-á uma situação de comunicação insuficiente para as necessidades normais de exploração, e consequente fruição, dos prédios dos autores?
O art. 1543 do Cód. Civil dá-nos a noção referindo que “Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”.
O conceito e natureza das servidões legais de passagem foi evoluindo e adaptando-se à evolução, defendendo-se atualmente que, na concretização do que devam poder considerar-se os limites do direito de propriedade, a questão tem de ser colocada e abordada no âmbito da função social da propriedade privada.
Como refere o Ac. do STJ de 15-11-2012, proferido no processo nº 279/07.7TBMRA.E1.S1, “O direito de passagem e estacionamento em propriedade alheia, consagrado na lei, prevalece apenas se o direito de propriedade, analisado nas suas vertentes económica e social, não se lhe sobrepuser”.
E, Luís A. Carvalho Fernandes, in "Lições de Direitos Reais", 1997, pág 183, refere: "a propósito da delimitação negativa do conteúdo dos direitos reais, quando se questiona o conteúdo do direito de propriedade, cabe sem dúvida averiguar desde logo o conjunto das faculdades atribuídas ao proprietário; mas cabe também apurar as restrições postas ao seu exercício e decorrentes de várias causas, em que avultam a função social da propriedade e a necessidade de tutela de interesses alheios, que podem ser de ordem pública e privada".
“As servidões surgiram no direito romano como forma de permitir uma vantagem especial na exploração de um prédio rústico, através da afetação de alguma ou algumas das utilidades deste último” – Menezes Cordeiro Direitos Reais, vol. III, ed. Policopiada da AAFDL, 1978, pág. 361 e seguintes, aí referindo que de acordo com a doutrina romanista, as servidões começaram por ser típicas, passando no período de Justiniano a ser livremente criadas pelos titulares dos prédios interessados.
As servidões estabelecem-se entre pessoas, mas em primeira linha encontra-se a ligação entre prédios, referindo este professor a fls. 365 que, “a servidão deve traduzir uma utilidade real de um prédio em favor de outro permitindo, objetivamente, a transferência das qualidades naturais de um prédio para o outro”. Objetivamente a servidão amplia as qualidades naturais do prédio dominante.
Conforme art. 1565, nº 2 do CC, o regime geral consiste em que, a servidão deve satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, com o menor prejuízo possível para o prédio serviente – referindo Menezes Cordeiro a fls. 380 que, “domina, pois, o princípio, do melhor aproveitamento económico possível quer do prédio dominante, quer do prédio dominado”.
E o Ac. da Rel. de Co., de 19-12-2018, no proc. nº 306/11.3TBCDR.C1, refere que “3- O encrave é relativo quando corresponde às situações em que o prédio poderia ter comunicação à via pública, mas apenas com excessivo incómodo ou dispêndio e às situações em que a comunicação do prédio com a via pública é insuficiente.
4- O preenchimento deste conceito legal (comunicação insuficiente com a via pública) terá que ser aferido através da definição daquelas que são as necessidades normais do prédio face à afetação que, em dado momento, lhe está atribuída e à exploração de que está a ser objeto, pelo que a comunicação à via pública será insuficiente se o acesso de que dispõe não permite a normal utilização e exploração do prédio, tendo em conta a sua afetação e a concreta exploração que dele está a ser efetuada” (sublinhado nosso).
Já supra se referiu o art. 1550 do CC, com a epigrafe “servidão em benefício de prédio encravado”, donde resulta a distinção entre encrave absoluto e encrave relativo, por referência a não terem comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivos incómodos ou dispêndio.
E, da evolução histórica do instituto começando, pelas servidões tipificadas na lei, temos que na vigência do Código de Seabra havia autores (Dias Ferreira e Cunha Gonçalves) que defendiam a necessidade do encrave ser absoluto, para dar lugar à constituição de “servidão legal”.
Assim que, na evolução do instituto e, na abertura dada pela redação do estatuído no preceito, art. 1550 do CC temos que, apesar de os prédios dos autores (formam dois conjuntos prediais separados pelo prédio dos réus) terem acessos diferentes à via publica pode ter-se como de excessivo incómodo e até de dispêndio o acesso de um para o outro quando é necessário o seu cultivo (sendo idênticas as culturas e os trabalhos a realizar num e noutro dos prédios) porque, como provado, “estamos no coração do Douro, a produção de fruta, azeite e a cultura vitivinícola são predominantes, e onde os tratamentos fitosanitários, por isso, são frequentes, bem como a rega do bacelo, da enxertia nova, as podas, cavas, escavas, redras, colheita e transporte de uvas, azeitonas, frutas e dos mais diversos produtos agrícolas exige um aturado e contínuo esforço”, tendo agora de fazer a deslocação de máquinas (que por norma são lentas) e todo o demais necessário incluindo os trabalhadores agrícolas, “num total de 8 km, quando lhes bastava atravessarem em 10 segundos o …, de sul para norte, para chegarem ao ...”.
É relevante o critério da proporcionalidade, devendo ser ponderado se o encargo provocado pela servidão no prédio serviente (o dos réus) se torna desproporcionado relativamente à utilidade que proporciona ao prédio dominante (os dos autores).
No caso, a par das vantagens já referidas para a exploração do prédio dominante, também resulta provado, facto nº 3, que, “Entre a estrema sul do ... e a estrema norte do ... apenas medeia uma faixa de terreno que integra a estrema poente do prédio dos Réus, com 30 metros de comprimento por 3 metros de largura, em terra batida e no mesmo plano das estremas sul e norte daqueles dois” (sublinhados nossos).
Sobre o critério da proporcionalidade, de ser superior o benefício para o prédio dominante que o prejuízo para o prédio serviente, se refere no Ac. da Rel. de Évora, de 12 Jun. 2019, Processo 797/17, “A constituição de servidões legais de passagem tem como razão justificativa a circunstância de o encrave absoluto ou relativo frustrar o aproveitamento prático do prédio e tem subjacente um juízo de proporcionalidade entre as vantagens advenientes da constituição da servidão para o titular do prédio encravado e o sacrifício imposto ao titular do prédio afetado com a servidão”. E acrescenta que, “constituída a servidão, ela pode extinguir-se por vários motivos, sendo um deles a desnecessidade. Ou seja, para a sua constituição a lei usa um critério de utilidade e, para a sua extinção, um critério de necessidade”.
Sendo a utilidade da servidão razão suficiente para a sua constituição legal, a sua inutilidade (desnecessidade) também tem que ser razão suficiente para a sua extinção, o que equivale a admitir que utilidade e desnecessidade constituem as duas faces do instituto servidão de passagem.
Embora seja imanente e essencial à servidão que a mesma traga proveito ao prédio dominante, tendo em conta o critério referido, da proporcionalidade, esse proveito tem de ser justificado, face à dimensão do encargo (ónus) que resulta para o prédio serviente e à utilidade/proveito que proporciona ao prédio dominante - Ac. da Rel. de Coimbra, de 13-05-2014, no proc. nº 4054/11.6TJCBR.C1.
Nesta hipótese, há que efetuar um juízo de proporcionalidade, atualizado sobre os interesses em jogo, com um mínimo de prejuízo para o prédio serviente (no caso a passagem far-se-á por uma faixa em terra batida).
Só faz sentido impor um encargo a um prédio, com os inerentes prejuízos, quando seja para facultar, a outro, otimização da sua exploração, um proveito de que ele carece.
Nos direitos reais e, por conseguinte, no direito de propriedade, é essencial a realização do seu exercício em benefício da sociedade, porque está limitado pelo fim social ou económico desses direitos, como decorre dos preceitos constitucionais relativos à propriedade privada -arts. 61, nº 1 e 62 da CRP e, do instituto do abuso de direito -art. 334 do CC.
No caso vertente, como referimos e sustentamos, temos que em relação aos prédios dos autores se verifica um encrave relativo e, nessa medida, apenas com comunicação insuficiente com a via pública, mas com direito a constituir um novo acesso, que tenha subjacente um juízo de proporcionalidade entre as vantagens advenientes da constituição da servidão para o titular do prédio encravado e o sacrifício imposto ao titular do prédio afetado com a servidão, sendo certo que é pelo local apontado, o lugar mais indicado para a passagem, o local por onde pode ser constituída a servidão legal.
Num sistema jurídico que assinala à propriedade uma função social, justifica-se a constituição de um encargo quando seja útil e necessário, ponderando as vantagens para o prédio dominante e o sacrifício para o prédio serviente.
Reconhecida a função social do direito de propriedade, não é desproporcionada e desadequadamente sacrificado com a servidão a onerar o prédio dos réus, face à enorme vantagem económica por ela trazida à exploração dos prédios dos autores.
Refere o Ac. da Relação de Coimbra, de 10-12-2013, no proc. nº 361/11.6T2AND.C1, “O direito de propriedade deve ser encarado não apenas sob uma perspetiva subjetiva, em que releve apenas o interesse egoístico do seu titular, mas como categoria objetiva ou económico-social em termos de o interesse abstrato, potencial e eventual não poder excluir a atividade de outrem (terceiro entidade pública ou privada) que assuma interesse manifestamente relevante”.
Os recorrentes também invocam a seu favor o instituto jurídico do abuso de direito, citando o Ac. STJ de 07/02/2008, no proc. 07B3934, que refere, “...a figura do Abuso do Direito surge como um modo de adaptar o Direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo”, e no mesmo sentido o Ac. STJ de 18.12.2008, proc. 08B2688.
O abuso de direito “é o exercício do poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em aberta contradição, seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé; bons costumes) que em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento” - A. Varela, RLJ, 114º, pág. 75.
Mas o instituto do abuso de direito apenas só deve ser invocado, e ser considerado e ponderá-lo (mesmo oficiosamente) quando estejamos perante situações não previstas na lei e que sejam ofensivas da consciência social, nessa altura, vigente.
Sendo o instituto do abuso de direito de aplicação subsidiária, apenas se impõe ao intérprete considerá-lo, quando não haja solução adequada de Direito estrito.
O que não se verifica no caso, porque os factos provados enquadram uma real situação de encravamento relativo dos prédios dos autores.
Tendo em conta o exposto, temos que há-de ser julgada procedente a revista.
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Sumário elaborado nos termos do disposto no art. 663 nº 7 do CPC:
I- Pela sua natureza, a servidão de passagem tem a finalidade de constituir acesso desde a via pública até ao prédio, dito encravado, através de prédio vizinho.
II- Um prédio é encravado, quer quando se verifica a situação de encrave absoluto (o prédio não tem nenhuma comunicação com a via pública), quer quando se verifica a situação de encrave relativo (quando existe comunicação com a via pública, mas esta é insuficiente para aceder ao prédio em termos de fruição normal do mesmo).
III- O conceito e natureza das servidões legais de passagem foi evoluindo e adaptando-se à evolução, defendendo-se atualmente que, na concretização do que devam poder considerar-se os limites do direito de propriedade, a questão tem de ser colocada e abordada no âmbito da função social da propriedade privada.
IV- A servidão deve satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, com o menor prejuízo possível para o prédio serviente.
V- Na evolução do instituto e, na abertura dada pela redação do estatuído no preceito, art. 1550 do CC temos que, apesar de os prédios dos autores (formam dois conjuntos prediais separados pelo prédio dos réus) terem acessos diferentes à via publica pode ter-se como de excessivo incómodo e até de dispêndio, o acesso de um para o outro, quando é necessário o seu cultivo (sendo idênticas as culturas e os trabalhos a realizar num e noutro dos prédios).
VI- É relevante o critério da proporcionalidade, devendo ser ponderado se o encargo provocado pela servidão no prédio serviente (o dos réus) se torna desproporcionado relativamente à utilidade que proporciona ao prédio dominante (os dos autores).
VII- Só faz sentido impor um encargo a um prédio, com os inerentes prejuízos, quando seja para facultar, a outro, otimização da sua exploração, um proveito de que ele carece.
VIII- Num sistema jurídico que assinala à propriedade uma função social, justifica-se a constituição de um encargo quando seja útil e necessário, ponderando as vantagens para o prédio dominante e o sacrifício para o prédio serviente.
Decisão:
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de revista, e:
1- Revoga-se parcialmente as decisões das Instâncias e, declara-se:
D-) Que os referidos prédios dos Autores se encontram em situação que lhes permite requerer que seja decretada por ali a constituição de uma servidão de passagem a pé e de carro, com a largura de 3 m e comprimento de 30 m a favor dos prédios referidos no 1º item, condenando-se os Réus a reconhecê-lo, e a manterem a referida faixa sempre livre e desembaraçada de pessoas e bens, de modo a permitir, por ali, livremente, o trânsito a pé e de carro, num e noutro sentido, dos prédios descritos em 1.B, através da estrema norte do ..., como forma de acederem ao ... e deste até àqueles.
2- No mais, mantêm-se as decisões das instâncias.
3- Custas pelos recorridos.

Lisboa, 08 de setembro, de 2020

Fernando Jorge Dias – relator

Nos termos do art. 15-A, do Dl. nº 10-A/2020 de 13-03, aditado pelo art. 3 do Dl. nº 20/2020 atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.
Maria Clara Sottomayor – 1ª adjunta
António Alexandre Reis – 2º adjunto