FARMÁCIA
TRESPASSE
SIMULAÇÃO DE CONTRATO
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
Sumário


I - Nos termos do art. 240.º do CC, o contrato simulado tem de revelar uma divergência entre a vontade real dos contratantes e a “vontade” exteriorizada através das respetivas declarações negociais; divergência essa que corresponde à execução de um acordo entre os contratantes no sentido de assim agirem para, desse modo, enganarem terceiros.
II - Cabe ao simulador que invoca a simulação do trespasse de um estabelecimento de farmácia, celebrado através de escritura pública, o ónus de provar os elementos reveladores da simulação do contrato (art. 342.º do CC), através dos meios probatórios legalmente admitidos, com as restrições à prova testemunhal constantes dos arts. 371.º e 394.º do CC.
III - O facto de, na vigência da Lei n.º 2125 (de 20-03-1965), o estudante de farmácia, que não completava a licenciatura no prazo legalmente estabelecido, ter trespassado um estabelecimento de farmácia, para evitar a caducidade do alvará, nos termos da Base III dessa lei, não é indício suficiente para demonstrar que o trespasse foi simulado. Também não é indício suficiente de simulação o facto de o herdeiro de um farmacêutico ter trespassado a farmácia, ao fim de dois anos, como lhe era imposto pela Base IV daquela lei, para evitar a caducidade do alvará.
IV - A prova de que um trespasse de farmácia foi realizado para evitar a caducidade do alvará (que decorreria da Lei n.º 2125) não significa que esse negócio tenha sido simulado, pois a sua realização constitui o cumprimento de uma obrigação legal. O trespasse que dá cumprimento a essa obrigação pode ser um negócio perfeitamente válido ou ser um negócio simulado. Mas a simulação terá de ser demonstrada pela prova de outros factos.

Texto Integral



Processo n. 666/14.4T2AVR-H.P1.S1

Recorrente: Massa Insolvente dePatrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Ldª”

Recorrida: AA

I. RELATÓRIO

1. AA, residente em …, propôs contra “Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Ldª” [sucedida por Massa Insolvente de Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Ldª, após declaração de insolvência] e BB [herdeiro habilitado da primitiva Ré, CC] ação declarativa com forma ordinária, pretendendo ver declarada a nulidade dos contratos de trespasse celebrados entre as partes e o cancelamento dos inerentes registos, efetuados com base na nulidade dos contratos decorrente da simulação.

2. Alegou que, em 1972, lhe foi adjudicado um estabelecimento de farmácia, estando na altura a autora inscrita na licenciatura de ciências farmacêuticas. Não tendo ainda a autora concluído aquela licenciatura, em 1980, celebrou com pessoa licenciada em Farmácia uma escritura de concessão de exploração do estabelecimento, que se prolongou por 21 anos, tendo em 2001 celebrado, com a mesma, contrato de trespasse, uma vez que foi notificada, pelo Infarmed, para proceder à regularização da farmácia, sob pena de caducidade do alvará. Todavia, não foi pago qualquer preço, tendo tal negócio tido em vista, unicamente, evitar aquela caducidade.

Tendo falecido aquela trespassária, a farmácia passou por herança para a sua mãe, tendo, após o período de dois anos, e porque aquela não era licenciada em farmácia, sido acordado com a primeira Ré mais um trespasse, em 2004, em que não foi pago preço, nem se pretendia transmitir a propriedade, visando-se apenas evitar a caducidade do alvará.

3. Os demandados contestaram, dizendo serem falsos os factos articulados na petição inicial, tendo a primeira Ré comprado e pago a farmácia, devendo a autora ser condenada como litigante de má-fé.

4. Realizado o julgamento, a primeira instância julgou a ação improcedente, e condenou a autora como litigante de má-fé.

5. Inconformada com essa decisão, a autora interpôs recurso de apelação.

6. O Tribunal da Relação do Porto decidiu: «julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, julgando nulos os negócios de trespasse mencionados nos factos provados em 5 e 7, determinando-se o cancelamento de registos que tenham sido efetuados com base em tais negócios

7. Discordando de tal decisão, a ré [Massa Insolvente de Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Ldª] interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes (extensas e repetitivas) conclusões:

«A. Foi proferida Decisão pelo Douto Tribunal da Relação do Porto, nos autos à margem identificados, tendo-se decidido pelo seguinte: “Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, julgando nulos os negócios de trespasse mencionados nos factos provados em 5 e 7, determinando-se o cancelamento de registos que tenham sido efetuados com base em tais negócios”.

B. Em primeiro lugar, a douta decisão de que se recorre entende, por um lado, que a douta decisão recorrida se baseia em considerações factuais que não estão provadas;

C. Uma vez que considera que os negócios de trespasse tiveram em vista, além de evitar a caducidade do alvará da farmácia, também manter a propriedade no seio da família;

D. Ora, entende que não só a simulação porventura prescindira desta segunda constatação, como a mesma não consta dos factos provados, mas apenas da motivação de facto.

E. Não pode a Ré /ora Recorrente concordar com tal fundamentação.

F. Assim, quanto à Manutenção da propriedade no seio da família DD: o facto de não estarmos perante factos dados como provados - nulidade da sentença - artigo 615.º n. 1 b), c) e d) do CPC.

G. As causas de nulidade tipificadas nas alíneas b) e c) do n. 1 do artigo 615º, aplicável por força do disposto nos artigos 685º e 666º, todos do Código de Processo Civil ocorrem quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão (al. b)) ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (c)).

 H. O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154º do Código de Processo Civil e impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstrata soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respetivo fundamento ou fundamentos (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 9.12.1987, in BMJ 372/369).

I. Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 668º

J. Nele foram discriminados e analisados criticamente os factos considerados provados no âmbito do julgamento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e proficientemente integrados dando-se cumprimento ao comando legal inserto nos artigos 662º, 607º nº 5 e 608º nº 2 do Código de Processo Civil

K. O acerto ou desacerto da respetiva decisão é questão diversa, que não cabe no campo dos vícios geradores de nulidade, mas no domínio do eventual erro de julgamento.

L. Não ocorre, por conseguinte, a invocada causa de nulidade previstas na al. b) do n. 1 do citado artigo 615º.

M. No tocante à causa de nulidade prevista na al. c) do n.1 do mesmo preceito, vem-se entendendo, sem controvérsia, que a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão.

N. Radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso.

O. Tecidas estas breves considerações e volvendo ao caso em análise, verifica-se que a douta decisão se baseia num argumento que, salvo devido respeito, não caracterizou qualquer situação evidenciadora da invocada contradição entre os fundamentos e a decisão insertos no acórdão recorrido, o qual está estruturado numa linha de argumentação – factual e jurídica – lógica, emergindo a decisão como a consequência natural e plausível dos fundamentos em que se alicerça.

P. São perfeitamente apreensíveis e claros quer o sentido da fundamentação, quer do segmento decisório do acórdão recorrido, os quais não se prestam a interpretações dúbias.

Q. A nulidade da sentença por falta de fundamentação não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final.

R. O que não se verifica no presente caso, uma vez que a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância refere claramente que estes negócios foram realizados com o propósito de evitar a caducidade do Alvará da referida farmácia, em respeito pelo disposto nas Bases III e IV da Lei nº 2125, de 20.03.1965, que impunham que os estabelecimentos de farmácia fossem titulados por farmacêuticos, motivo pelo qual não foi pago qualquer preço nos aludidos negócios.

S. Porém, pese embora o intuito destes negócios fosse legalizar a farmácia e manter a validade do respetivo Alvará, apenas em face desta factualidade, não podemos concluir pela simulação absoluta e consequente nulidade destes negócios, uma vez que não se provou que esse tenha sido o único propósito de tais contratos, e que as outorgantes nas respetivas escrituras reconheciam que a real proprietária da farmácia continuaria a ser a Autora.

T. Como resulta da motivação da matéria de facto – cfr. factos provados 8 a 15, aqueles negócios visaram, também, manter a propriedade daquela farmácia na família DD, constituída, numa fase inicial, pela Autora, seu irmão EE e a mãe destes, tendo sido, certamente por este motivo que, logo aquando da primeira escritura de trespasse, em que foi trespassária a Dra FF, esta outorgou procuração àquele EE que, assim, continuou a gerir aquele estabelecimento de farmácia.

U. A segunda escritura de trespasse, realizada já pela mãe da Dra FF, aqui Ré CC, sua herdeira, terá tido em vista repor a situação jurídica da farmácia, fazendo “regressar” a sua titularidade à família DD, desta vez na titularidade de uma sociedade unipessoal constituída pela sobrinha da Autora e filha do seu irmão EE, a Dra GG, única licenciada em farmácia que poderia assegurar a validade do respetivo Alvará.

V. Não pode decorrer, pois, dos factos atinentes à realização daqueles contratos, qualquer nulidade que tenha como consequência a restituição do estabelecimento de farmácia à esfera jurídica da Autora, como consequência típica da nulidade, prevista no art.º 289.º, n.º 1 do Código Civil.

W. Não estamos perante uma situação em que o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usou de fundamentos ou razões não invocados pelas mesmas.

X. O tribunal não conheceu questões de que não devesse conhecer ou usou de excesso de pronúncia suscetível de integrar nulidade.

Y. O tribunal limitou-se a dar como provado determinados factos, deu cumprimento integral ao disposto no art.713º do CPC, e ainda foi mais longe, pois que fundamentou, quer de facto quer de direito a decisão tomada

Z. Por falta absoluta de motivação deve entender-se ausência total de fundamentos de direito e de facto.

AA. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n. 2 do art. 668º” [in "Código de Processo Civil Anotado", V, 140].

BB. Deste modo, face à doutrina exposta, se conclui que a nulidade da sentença não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final.  

CC. Assim se a decisão proferida pelo Tribunal contiver, ainda que por remissão para a decisão recorrida, os elementos de facto e de direito suficientes para a declaração dos fundamentos da decisão final, não há falta de motivação

DD. Todas as questões, que se colocaram à consideração do tribunal, foram devidamente ponderadas, aduzindo-se, se não uma profícua e exaustiva fundamentação, pelo menos uma fundamentação bastante em face da comedida dificuldade da lide, de modo que a decisão recorrida não pode ser havida por não motivada.

EE. Isto posto, não se verifica qualquer eventual nulidade do ato decidido com base na nulidade prevista no art.615º do CPC.

FF. Em segundo lugar, dispõe o art.º 674.º, n. 3 do NCPCivil (Fundamentos da revista) – no que ao presente recurso de revista interessa – que o “erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”;

GG. É entendimento pacífico que, embora o STJustiça não possa sindicar a correção da reapreciação da prova efetuada pelas Relações, pode, no entanto, averiguar se o tribunal recorrido ao manter ou alterar a matéria de facto transitada da 1ª instância, violou ou não a lei processual que estabelece os pressupostos e os fundamentos em que deve mover-se a reapreciação da prova

HH. Ou seja: trata-se de saber, in casu, se o Tribunal da Relação do Porto ao exercer o seu poder-dever de reapreciação da matéria de facto que lhe foi solicitada em sede de apelação, se conformou ou não com a lei processual que regula tal matéria, isto é, se utilizou corretamente os poderes que, em matéria de facto, a lei lhe concede, ou se violou qualquer regra de direito probatório material.

II. Num e noutro caso, porque já se está no domínio de matéria de direito, o Supremo tem poderes para intervir, e é nesse âmbito que se insere o presente recurso. Assim sendo,

JJ. Repristinando o objecto possível do presente recurso de revista fundado na possibilidade correctiva determinada pelo n. 3 do art.º 674.º do NCPCivil verifica-se que a decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto no sentido de considerar que a matéria sobre a qual assentou a procedência da acção em 1.ª Instância não estariam dados como provados viola “…disposição expressa de lei que … fixe a força de determinado meio de prova.”. Porquanto,

KK. A decisão do Tribunal da Relação do Porto não procedeu à reapreciação da prova realizada nos autos, antes entendendo ignorar ostensivamente os elementos probatórios contidos nos autos e, com maior acuidade, os alcançados em audiência de julgamento, violando as normas invocadas;

LL. Alterando o critério probatório fundador usado pelo Tribunal de 1.ª Instância por, nas palavras do Venerando Juiz Desembargador Relator “não ser relevante” nem se justificar a descida dos autos para produção de prova complementar. Destarte,

MM. Assim procedendo o Tribunal da Relação do Porto violou princípios básicos processuais, e usou os poderes que lhe são conferidos pelo art. 662.° do NCPCivil, em desconformidade com os critérios legais nele definidos, violando assim e ainda o disposto neste mesmo dispositivo legal;

NN. A liberdade na apreciação das provas é uma liberdade vinculada, objectiva e necessariamente limitada, que carece de se justificar perante o próprio julgador e ser justificada perante as partes e terceiros

OO. E, não se tratando de um caso de excepção de prova legal, a livre apreciação da prova não é arbitrária, discricionariamente subjetiva ou fundada em mero capricho, devendo, outrossim, observância a regras de experiência comum, utilizando como método de avaliação da aquisição do conhecimento critérios objetivos, genericamente, suscetíveis de motivação e controlo – cfr. Acordão do TRCoimbra de 19.11.1996 proferido no Processo n.1165/96, in BMJ, n.495 p.93, disponível e consultável em www.dgsi.pt. Na verdade:

PP. Acresce que, efetivamente, a celebração das várias escrituras públicas teve por objetivo legalizar a situação da farmácia, com vista a evitar a caducidade eminente do Alvará, conferindo a aparência de legalidade da farmácia perante a entidade pública competente, à luz do disposto nas Bases III e IV da Lei n.º 2125, de 20.03.1965.

QQ. Mas não foi só!

RR. A verdade é que atendendo às várias escrituras de trespasse, o objetivo era de facto manter a farmácia no seio da família DD.

SS. E foi nesse seguimento e com esse intuito que a trespassária Dra. FF outorgou ao EE uma procuração irrevogável.

TT. Tal objetivo (manter a farmácia no seio da família) foi confirmado pela testemunha HH (Solicitador que foi contratado pela farmácia a pedido do EE) e que tratou das escrituras de trespasse da Dona AA (Recorrente) para a FF e da sua mãe, Dona CC para a GG.

UU. Este referiu que a celebração do contrato de trespasse da Dona CC para a GG (sócio-gerente da ora Recorrida) foi feita com a intenção de que a farmácia ficasse na família, que ficasse para a GG, e, por isso, até ficaram à espera que esta terminasse o curso de farmácia e se inscrevesse na respetiva Ordem.

VV. Adiantou ainda que houve uma proposta de compra e venda da farmácia, em 2001, no valor de 500 mil contos, dirigida ao EE, que, por sua vez, comunicou à sua irmã, AA, ora Recorrente, que lhe disse: “não se vende a farmácia, porque a farmácia é da família II”.

WW. Quando questionado sobre quem seria a família “II” àquela data, reconheceu ser “a AA, o EE, a GG e a irmã da GG”. “(…)

XX.A Autora apesar de a farmácia lhe ter sido adjudicada pelas razões acima aduzidas, nunca foi reconhecida ou agiu como exclusiva proprietária da farmácia.

YY. Pelo contrário, esta sempre se mostrou desinteressada e alheia à gestão dos assuntos inerentes à farmácia, gestão esta que sempre foi feita pelo seu irmão, EE.

ZZ. A Autora pouco tempo depois da adjudicação, em virtude do seu casamento, passou a morar em …, não tendo estabelecido, desde então, qualquer tipo de proximidade ou contacto com os assuntos da farmácia.

AAA. Actos estes que ficaram bem patentes no depoimento prestado pela testemunha.

BBB. E, ainda, no depoimento prestado pela Testemunha JJ

CCC. Para além deste desinteresse e falta de proximidade da Autora pela gestão e assuntos da farmácia, nunca, durante estes longos anos, tendo sido vista na farmácia, seja a trabalhar, seja de visita, outro facto, que ficou provado e que revela não ser um comportamento coincidente com o comportamento de um verdadeiro e exclusivo proprietário é o facto de terem sido realizados investimentos (de elevado valor) na farmácia, investimentos estes que não tiveram nem o aval nem qualquer outro tipo de participação da Autora.

DDD. Atente-se ao depoimento prestado pela testemunha KK: “corroboradas pelo EE que disse que, aquando da partilha por óbito do pai a farmácia ficou em nome da irmã AA apenas porque esta estava inscrita no curso de farmácia, embora a farmácia também lhe pertencesse a ele e à sua mãe, referindo ainda que na altura venderam propriedades que tinham no ... para pagar aos outros sócios a parte deles na farmácia”.

EEE. Deste modo, verifica-se que o Tribunal da Relação do Porto optou, não por reapreciar a prova produzida em sede de audiência de julgamento, conforme lhe foi submetido a julgamento em sede de alegações, mas antes desconsiderar tal prova, atendo-se unicamente à declaração de que a decisão de primeira instância não encontrava respaldo na matéria de facto dada como provada em 1.ª Instância.

FFF. Ao assim proceder, a decisão do Tribunal da Relação do Porto não procedeu à reapreciação da prova realizada nos autos, antes entendendo ignorar ostensivamente os elementos probatórios contidos nos autos e, com maior acuidade, os alcançados em audiência de julgamento, violando as normas invocadas;

GGG. Alterando o critério probatório fundador usado pelo Tribunal de 1.ª Instância por, nas palavras do Venerando Juiz Desembargador Relator “não ser relevante” nem se justificar a descida dos autos para produção de prova complementar. Destarte,

HHH. Assim procedendo o Tribunal da Relação do Porto violou princípios básicos processuais, e usou os poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º do NCPCivil, em desconformidade com os critérios legais nele definidos, violando assim e ainda o disposto neste mesmo dispositivo legal, o que deverá ser declarado.

III. A Autora pretende que seja declarada a nulidade dos contratos de trespasse celebrados entre as partes, nos termos do art. 240º n. 1 e 2 do C. Civil, com consequente cancelamento dos registos efectuados com base na nulidade dos contratos decorrente da simulação, nos termos do art. 8º n.1 C. Registo Predial e 289º n.1 e 291º do C. Civil, arrogando-se proprietária do estabelecimento de farmácia que foi objecto daqueles contratos (trespasse outorgado por escritura púbica no dia 00 de Outubro de 2001, em que foram outorgantes a Autora, como trespassante, e a Dra. FF, como trespassária; e trespasse outorgado escritura púbica no dia 00 de Fevereiro de 2004 em que foram outorgantes CC, como trespassante, e a Dra. GG, em representação da a sociedade Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, como trespassária), por os mesmos terem sido simulados.

JJJ. Tem sido doutrina e jurisprudência unânime, exige-se como requisitos do negócio simulado a verificação simultânea de três requisitos: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros (que não se deve confundir com o intuito de prejudicar).

KKK.O ónus da prova de tais requisitos, porque constitutivos do respectivo direito, compete, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil, a quem invoca a simulação.

LLL. Da factualidade provada nos autos resulta que, tendo sido adjudicada à Autora, por partilha, em 00 de Maio de 1972, o estabelecimento de farmácia melhor descrito nestes autos, terá a mesma, por escritura outorgada em 00 de Outubro de 2001, declarado trespassar esse estabelecimento comercial à Dra. FF.

MMM. Por sua vez, falecida esta Dra FF e sendo sua única herdeira a sua mãe, aqui Ré CC, esta, por escritura pública datada de 00 de Fevereiro de 2004, declarou trespassar à sociedade Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Lda, o mesmo estabelecimento de farmácia.

NNN. Estes negócios foram realizados com o propósito de evitar a caducidade do Alvará da referida farmácia, em respeito pelo disposto nas Bases III e IV da Lei nº 2125, de 20.03.1965, que impunham que os estabelecimentos de farmácia fossem titulados por farmacêuticos, motivo pelo qual não foi pago qualquer preço nos aludidos negócios.

OOO. Porém, pese embora o intuito destes negócios fosse legalizar a farmácia e manter a validade do respectivo Alvará, apenas em face desta factualidade, não podemos concluir pela simulação absoluta e consequente nulidade destes negócios, uma vez que não se provou que esse tenha sido o único propósito de tais contratos, e que as outorgantes nas respectivas escrituras reconheciam que a real proprietária da farmácia continuaria a ser a Autora.

PPP. Como resulta da motivação da matéria de facto, aqueles negócios visaram, também, manter a propriedade daquela farmácia na família DD, constituída, numa fase inicial, pela Autora, seu irmão EE e a mãe destes, tendo sido, certamente por este motivo que, logo aquando da primeira escritura de trespasse, em que foi trespassária a Dra FF, esta outorgou procuração àquele EE que, assim, continuou a gerir aquele estabelecimento de farmácia.

QQQ. A segunda escritura de trespasse, realizada já pela mãe da Dra FF, aqui Ré CC, sua herdeira, terá tido em vista repor a situação jurídica da farmácia, fazendo “regressar” a sua titularidade à família DD, desta vez na titularidade de uma sociedade unipessoal constituída pela sobrinha da Autora e filha do seu irmão EE, a Dra GG, única licenciada em farmácia que poderia assegurar a validade do respectivo Alvará.

RRR. Não pode decorrer, pois, dos factos atinentes à realização daqueles contratos, qualquer nulidade que tenha como consequência a restituição do estabelecimento de farmácia à esfera jurídica da Autora, como consequência típica da nulidade, prevista no art. 289.º, n. 1 do Código Civil.

SSS. O ónus da prova compete a quem invoca a simulação, nos termos do art.342.º, n.1 CCivil.

TTT. Pelo que teria a Recorrente que provar os requisitos exigidos para a simulação e não o fez.

UUU.O que resulta da factualidade provada nos autos é que tanto a escritura pública outorgada em 00 Maio de 1972, através da qual foi adjudicada a farmácia à Recorrente, por escritura de dissolução e partilha, como a escritura pública outorgada em 00 de Dezembro de 2001, declarando trespassar a farmácia à Dra. FF e, ainda, a escritura pública datada de 00 de Fevereiro de 2004, em que a Ré CC declarou trespassar à sociedade Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Lda.,

VVV. Tiveram todas como propósito evitar a caducidade do Alvará.

WWW. Não restou provado que esse tenha sido o único propósito, antes pelo contrário, e muito menos que as outorgantes nas respetivas escrituras reconheciam que a real proprietária da farmácia continuaria a ser a Dona AA, ora Recorrente.

XXX. Resulta, igualmente de forma bem patente, da motivação da matéria de facto que um dos principais propósitos de tais escrituras era, efetivamente, manter tal bem patrimonial no seio da família DD.

YYY. Razão pela qual se justifica que logo após a primeira escritura de trespasse, em que foi trespassária a Dra. FF, esta tivesse outorgado procuração irrevogável ao EE que continuou a gerir (como aliás sempre fez).

ZZZ. E que, posteriormente, realizada já pela mãe da Dra. FF, aqui Ré CC, sua herdeira, tenha sido realizada escritura de trespasse da farmácia para a sociedade unipessoal constituída pela sobrinha da ora Recorrente e filha do seu irmão, tendo em vista fazer “regressar” a sua titularidade à família DD.

AAAA. Estes negócios foram realizados com o propósito de evitar a caducidade do Alvará da referida farmácia.

BBBB. Porém, pese embora o intuito destes negócios fosse legalizar a farmácia e manter a validade do respetivo Alvará, apenas em face desta factualidade, não podemos concluir pela simulação absoluta e consequente nulidade destes negócios, uma vez que não se provou que esse tenha sido o único propósito de tais contratos, e que as outorgantes nas respetivas escrituras reconheciam que a real proprietária da farmácia continuaria a ser a Autora.

CCCC.  Não pode decorrer, pois, dos factos atinentes à realização daqueles contratos, qualquer nulidade que tenha como consequência a restituição do estabelecimento de farmácia à esfera jurídica da Autora, como consequência típica da nulidade, prevista no art.º 289.º, n. 1 do Código Civil.

DDDD. Ademais, a entender-se assim, sempre se considera verificar-se o invocado abuso de direito a que alude a Ré/Recorrente Massa Insolvente de Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Lda.

EEEE. Finalmente, entendeu a decisão que ora se recorre que não concorda com a posição da sentença de 1.ª Instância que paralisou os efeitos da simulação e da nulidade, aludindo ao abuso de direito porque os credores negociaram com a sociedade insolvente na expetativa de tal sociedade deter no seu património a farmácia.

FFFF. Não pode decorrer, pois, dos factos atinentes à realização daqueles contratos, qualquer nulidade que tenha como consequência a restituição do estabelecimento de farmácia à esfera jurídica da Autora, como consequência típica da nulidade, prevista no art.º 289.º, n.º 1 do Código Civil.

GGGG. A entender-se assim, sempre se considera verificar-se o invocado abuso de direito a que alude a Ré/Recorrente Massa Insolvente de Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Lda.

HHHH. A farmácia sempre foi apresentada e mantida no circuito comercial e jurídico como pertencente à família II, com a aparência de pertencer ao EE (ou “LL”, como sempre foi conhecido) e, como tal, como coisa aparentemente integrante do património deste último.

IIII. O EE desde sempre geriu a farmácia, após o decesso do seu pai, formalmente adjudicada à irmã, aqui Recorrente, cedida e trespassada à Dra. FF e depois já nos primeiros anos de vigência da sociedade Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Lda., para quem foi transmitida

JJJJ. Pelo que as vicissitudes inerentes à exploração, com constituição de passivo, são indissociáveis do próprio estabelecimento de farmácia, formalmente transmitida à sociedade insolvente em 00 de fevereiro de 2004.

KKKK. Foi com base nesta aparência da farmácia pertencer ao EE, criada pelo giro comercial, que os credores, de boa-fé, criaram legítimas expectativas de que a farmácia Óscar Alvim e respetivo Alvará constituíam património, primeiro da insolvente de quem se constituíram credores e depois da massa insolvente.

LLLL. Na verdade, sempre com todo o devido respeito e salvo melhor opinião, é indubitável a existência de abuso de direito na pretensão da A. em função da inerência do passivo da sociedade PATRÍCIA SOTTO MAYOR ALVIM – UNIPESSOAL, LDA ao exercício da actividade do estabelecimento comercial, seja antes, seja depois da declaração de insolvência

MMMM. Todos os credores são credores do estabelecimento comercial de farmácia e não são credores da insolvente, de per se, a título de contracção de crédito de qualquer outra natureza, como pretende fazer crer a decisão recorrida; mas antes incorporado no estabelecimento comercial de farmácia e em benefício exclusivo desta, do qual a A. se arroga proprietária.

NNNN. Querendo - veja-se a argumentação - assumir o activo, mas lavando as mãos, qual Pôncio Pilates, do passivo, o que se enquadra no mais elementar abuso de direito.

OOOO. Assim, o passivo constituído pela R. é indiscutivelmente um passivo do estabelecimento comercial, já que se tratam de créditos de fornecimentos de medicamentos para a farmácia, de empréstimos contraídos para a actividade da farmácia, de créditos laborais de trabalhadores da farmácia, ou seja, créditos emergentes da actividade exclusiva do estabelecimento comercial;

PPPP. Pelo que o reconhecimento do direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial teria sempre de resultar em assumir igualmente o respectivo passivo, sob pena de enriquecimento sem causa da A./recorrida em prejuízo da R./Massa Insolvente e dos seus credores.

QQQQ. Como tal, existe uma impossibilidade objectiva de reconhecimento da pretensão da A. sobre o estabelecimento comercial de farmácia.

RRRR. O exercício do direito da Recorrente à restituição da farmácia apresenta-se claramente ilegítimo, precisamente por se resolver num exercício que excede manifestamente (ostensivamente, grosseiramente, gritantemente) os limites impostos pela boa-fé.

SSSS. A lei não especifica qual a sanção ou consequência inerente ao exercício abusivo do direito, limitando-se a qualifica-lo como ilegítimo.

TTTT. A sanção ou consequência terá que ser encontrada caso a caso, mas sempre de modo a neutralizar eficazmente a anti-juridicidade desse exercício.

UUUU. No caso vertente, é óbvio que a neutralização só pode ser feita pela não restituição do estabelecimento à Recorrente, mantendo-se este afecto aos fins da insolvência.

VVVV. Não se admite, com o devido respeito que é muito, a decisão de que ora se recorre, uma vez que existe, pelo menos um acórdão no sentido contrário que dá razão à Recorrente.

WWWW. Nesse sentido, o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito do processo 3452/15.0T8VIS – D.C1.S1.

XXXX. Nestes termos, deve a decisão ora em crise ser revogada, devendo confirmar-se integralmente a sentença proferida em primeira instância, tudo com as legais consequências, julgando-se a improcedência integral da presente acção e ainda, cautelarmente, se assim V. Exas reapreciar a prova produzida em sede de audiência de julgamento.»

8. A autora/recorrida [AA] apresentou contra-alegações, nas quais defendeu a inadmissibilidade do recurso, bem como a sua improcedência.

II. ANÁLISE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. A admissibilidade do recurso:

A presente ação corre por apenso aos autos de insolvência de “Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Ldª”. Assim, como tem sido jurisprudência reiterada do STJ, não lhe é aplicável o regime específico de recurso previsto no art.14º do CIRE, mas sim as regras gerais do CPC, ex vi do art.17º do CIRE. Verificando-se que se encontram preenchidos os pressupostos gerais de recorribilidade, previstos no art.629º, n.1 do CPC, e que o acórdão recorrido revogou a decisão da primeira instância, em sentido desfavorável à recorrente, preenchem-se também os requisitos de admissibilidade da revista, previstos no art.671º, n.1 do CPC, pelo que o presente recurso é admissível.

2. O objeto do recurso:

O objeto do recurso é, em termos gerais, delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, para além das questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 608º, n.2, 635º, n.4, e 639º do CPC.

Assim, as questões a apreciar no presente recurso são as seguintes:

1ª-  Se existe violação de regras processuais na reapreciação da matéria de facto:

2ª- Se existe errada aplicação de regras de direito substantivo ou processual na decisão que considerou existir simulação dos contratos de trespasse;

3ª- Se existiu abuso de direito da autora.

 

3. A factualidade provada:

Foram os seguintes os factos dados como provados

1. No dia 00 de Janeiro de 1970, foi outorgada uma escritura pública no Cartório Notarial de ..., intitulada Constituição de Sociedade Comercial, da qual fazem parte nomeadamente os seguintes dizeres (cfr. doc. de fls. 9 a 18, aqui dado por reproduzido): (…) compareceram como outorgantes: Primeiro: MM, viúvo, farmacêutico (…). Segundo: Dr. NN, licenciado em Farmácia (…). Terceiro: Dr. OO, licenciado em Farmácia (…). O primeiro outorgante e os segundo e terceiro outorgantes maridos declararam: Que, pela presente escritura, constituem, entre si, uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, nos termos constantes dos artigos seguintes:

Primeiro: A sociedade adopta a firma “Óscar Alvim, Limitada”, tem a sua sede e estabelecimento na vila e concelho de ..., no Largo ..., e durará por tempo indeterminado, com início nesta data. Segundo: A sociedade tem por objecto a indústria e comércio de produtos farmacêuticos, e poderá explorar outras actividades permitidas por lei. (…).

2. Com data de 00 de Janeiro de 1947, foi emitido pelo Ministério do Interior/Direcção-Geral de Saúde/Serviços Técnicos o Alvará n. 564, relativo ao Exercício de Farmácia e Comprovação de Medicamentos, do qual fazem parte nomeadamente os seguintes dizeres (cfr. doc. de fls. 38, aqui dado por reproduzido): (…) foi concedida licença para funcionamento da farmácia Óscar Alvim, sita em ... (Largo ...), freguesia de ..., concelho de ..., distrito de ..., cuja instalação foi autorizada por despacho (…) datado de 00 de Janeiro de 1947. O proprietário da farmácia a que este alvará se refere Sr. MM e o farmacêutico director técnico ficam obrigados a cumprir as disposições legais que regulam o exercício da profissão farmacêutica e a venda de medicamentos. (…).

3. No dia 00 de Maio de 1972 foi outorgada no Cartório Notarial de ... uma escritura pública denominada: Dissolução de sociedade e partilha, da qual constam nomeadamente os seguintes dizeres (cfr. doc. de fls. 20 a 28, aqui dado por reproduzido): (…) E declararam: Que tendo resolvido dissolver a sociedade [referida em A)], de comum acordo, pela presente escritura, a dissolvem para todos os efeitos legais a partir desta data. Que procedendo à liquidação e partilha do património social é adjudicado à terceira outorgante, D. AA (aqui Autora) todo o activo e passivo da referida sociedade, no qual se compreende: a) o estabelecimento de farmácia e laboratórios instalado no edifício a seguir mencionado (…): e b) o prédio urbano, onde aquela farmácia se encontra instalada, sito na vila de ..., no Largo ... ou ..., com um pequeno jardim que lhe fica anexo (…).

4. No dia 00 de Março de 1980 foi realizada uma escritura pública no Cartório Notarial de ..., intitulada: Concessão de exploração de estabelecimento comercial, da qual fazem parte nomeadamente os seguintes dizeres (cfr. doc. de fls. 30 a 37, aqui dado por reproduzido): (…) compareceram como outorgantes: PRIMEIRO PP (…), que outorga como procuradora de AA (aqui Autora) e marido QQ (…). SEGUNDO: Drª FF (…) licenciada em Farmácia (…). E pela primeira outorgante, em nome dos seus constituintes, foi declarado: que os seus constituintes são donos e legítimos possuidores de um estabelecimento de farmácia denominado “FARMÁCIA ÓSCAR ALVIM”, instalado no rés-do-chão esquerdo do prédio sito no Largo ... ou Largo ..., da vila de ..., freguesia de ..., concelho de ..., que confronta do norte com estrada, do nascente e sul com RR, do poente com SS, inscrito na respectiva matriz sob o artigo setecentos e setenta e três, descrito na Conservatória do Registo Predial respectiva sob o número quarenta e seis mil setecentos e cinquenta e quatro (…). Que, pela presente escritura, cede à segunda outorgante a exploração do referido estabelecimento de farmácia, com o respectivo alvará número quinhentos e sessenta e quatro e mais licenças, e móveis, utensílios de balcão, armações e mais pertences, incluindo os artigos de comércio, mercadorias (…), nos termos e condições seguintes: PRIMEIRO a concessão de exploração é feita pelo prazo de um ano, com início em um de Janeiro do corrente ano, considerando-se prorrogado por sucessivos períodos de igual duração. PARÁGRAFO ÚNICO - O contrato pode ser denunciado ou resolvido nos casos previstos na lei, podendo também a denúncia ou resolução ser feita por qualquer das partes por meio de carta registada com aviso de recepção, expedida com a antecedência mínima de trinta dias antes do termo do seu prazo ou renovação contratual. SEGUNDO Por esta concessão a segunda outorgante pagará anualmente a importância de cento e vinte mil escudos, dividida em prestações mensais de dez mil escudos cada (…).

5. No dia 00 de Outubro de 2001 foi realizada uma escritura pública no Cartório Notarial de ..., intitulada trespasse de estabelecimento comercial, em que foram outorgantes a aqui Autora, como primeira outorgante, e a Dra. FF, como segunda outorgante, escritura essa da qual fazem parte nomeadamente os seguintes dizeres (cfr. doc. de fls. 41 a 44, aqui dado por reproduzido): (…) E pela primeira outorgante foi declarado: Que é dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial de farmácia, denominado “FARMÁCIA ÓSCAR ALVIM”, instalado na fracção autónoma designada pela letra “A”, a que corresponde o rés-do-chão esquerdo, destinado a comércio, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no Largo ..., na vila de ..., freguesia de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo 2.498; fracção essa que é pertença da sociedade Óscar Alvim Sociedade Imobiliária, Lda. (…) e pela qual não é paga qualquer renda; e farmácia a que corresponde o Alvará número quinhentos e sessenta e quatro, emitido em oito de Agosto de mil novecentos e cinquenta e um, pela Direcção Geral de Saúde, em nome dela primeira outorgante (…). Que, pela presente escritura e pelo preço de vinte milhões de escudos, que recebeu da segunda outorgante, a esta trespassa o seu atrás referido e identificado estabelecimento de farmácia, com todos os elementos que o integram. E pela segunda outorgante foi declarado que aceita o presente trespasse nos termos exarados.

6. No dia 00 de Outubro de 2001 foi realizada uma escritura pública no Cartório Notarial de ..., na qual interveio como outorgante FF, e da qual fazem parte nomeadamente os seguintes dizeres: (…) E por ela foi dito:  Que, com a faculdade de substabelecer, uma e mais vezes, nomeia e constitui seu bastante procurador EE (…) a quem confere os necessários poderes para trespassar, pelo preço e condições que entender convenientes a Farmácia “ÓSCAR ALVIM”, sita no Largo ..., na vila de ... ou onerá-la por qualquer outra forma, para gerir e administrar aquele estabelecimento por si ou por interposta pessoa, podendo para o efeito, praticar todos os actos que necessários forem (…) sem necessidade de prestar contas a ela mandante. E pela outorgante foi ainda declarado que, em virtude da presente procuração ser passada no interesse do mandatário, é irrevogável (…).

7. No dia 00 de Fevereiro de 2004 foi realizada uma escritura pública no Cartório Notarial da ..., na qual interveio como primeira outorgante a aqui e como segunda outorgante a Dra. GG, em representação da aqui Ré, escritura essa da qual fazem parte nomeadamente os seguintes dizeres (cfr. doc. de fls. 49 a 52, aqui dado por reproduzido):

(…) Disse a primeira outorgante: Que, é dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial de farmácia, denominado “Farmácia Óscar Alvim” (…).

Que, o mencionado estabelecimento comercial faz parte da herança de sua filha Drª FF, falecida no dia de Fevereiro de dois mil e dois, de quem é a única herdeira, conforme consta da escritura de habilitação de herdeiros (…). Que, dando cumprimento ao determinado na Base IV, ponto 1, da Lei 125 de 20 de Março de 1965, pela presente escritura trespassa o mencionado estabelecimento comercial à representada da segunda outorgante, com todos os elementos que o integram, pelo preço de cem mil euros, que dela recebeu. Pela segunda outorgante foi dito: Que, para a sua representada aceita o presente trespasse nos termos exarados. (…)

8. Dada a situação académica da Autora, então matriculada e a frequentar o curso de Farmácia, aquando da escritura referida em 3 (escritura de dissolução e partilha), foi contratada a Dra. FF, para exercer as funções de Directora Técnica da referida farmácia.

9. O contrato referido em 4 (cessão de exploração comercial a Dra FF) foi celebrado visto que na altura a Autora ainda não havia terminado o curso de Farmácia.

10. A escritura descrita em 5 (trespasse a Dra FF) foi celebrada com propósito de evitar a caducidade eminente do alvará referido em 2, na sequência de notificação que a Autora recebeu do INFARMED em Outubro de 2001.

11. E nos termos do acordado entre as outorgantes e a Autora, o preço referido nunca foi pago e foi outorgada a procuração descrita em 6.

12. A escritura descrita em 7 foi realizada com o intuito de evitar a caducidade iminente do Alvará descrito em 2.

13. E nos termos do acordado entre as outorgantes e a Autora, o preço referido nunca foi pago.

14. A celebração dos contratos descritos em 5 e 7 constituíram para todos os neles outorgantes um meio de conferir a aparência de legalidade da farmácia perante a entidade pública competente, à luz do disposto nas Bases III e IV da Lei 2125, de 20.03.1965.

15. A Autora bem sabe que é falso o referido em 8 a 14 dos factos provados e em 1 a 4 dos factos não provados.

(factos supervenientes) 

16. Por sentença proferida em 03/04/2014 foi declarada a insolvência de Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Ldª, com o NIPC 000 000 000 (cfr. sentença proferida nos autos a que os presentes foram apensados).

17. Nos autos de insolvência da Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Ldª foi apreendido o Alvará n. 564 emitido pelo INFARMED (cfr. auto de apreensão do apenso “E” dos autos).»

A segunda instância deu como provado o ponto n.1 dos anteriores “factos não provados”, com a seguinte redação:

 «O único propósito da escritura descrita em 5 (trespasse a Dra FF) foi evitar a caducidade iminente do alvará referido em 2.»

4. O direito aplicável:

Como supra referido, o objeto da presente revista consiste em saber:

-  Se existe violação de regras processuais na reapreciação da matéria de facto:

- Se existe errada aplicação de regras de direito substantivo ou processual na decisão que considerou existir simulação dos contratos de trespasse;

- Se existiu abuso de direito da autora.

4.1. Quanto à primeira questão, afirma a recorrente (de modo repetitivo, entre o ponto T e o ponto HHH das suas extensas conclusões) que o acórdão recorrido teria feito errada aplicação da lei processual (nomeadamente do art.662º do CPC) ao não ter dado como provado que o propósito dos trespasses era (além de evitar a caducidade do alvará) também o de manter a propriedade da farmácia na família DD; facto que resultaria da prova testemunhal.

Como emerge da interpretação conjugada dos artigos 662º, n.4, 674º, n.3 e 682 do CPC, a competência do STJ para se pronunciar sobre o julgamento da matéria de facto é muito limitada. Assim, o modo como o tribunal recorrido apreciou a prova testemunhal e formou a sua convicção não cabe em nenhuma das exceções previstas no art. 674º, n.3, pelo que tal matéria não pode ser alvo de revista.

Todavia, sempre se pode afirmar que dificilmente se compreende qual a importância da prova de tal facto para a posição da recorrente, pois nunca assumiria relevo normativo autónomo para efeitos de verificação dos pressupostos da simulação. O elemento a apurar para efeitos de demonstração da simulação é o de saber se existiu ou não o propósito de enganar terceiros. E, como se referirá no ponto seguinte, a demonstração dos elementos constitutivos da simulação sofre restrições em matéria de prova testemunhal.

  

4.2. Cabe, agora, apreciar a questão de saber se a decisão recorrida fez errada aplicação de regras de direito substantivo ou processual quando considerou que os contratos de trespasse da farmácia foram simulados.

 

 4.2.1. O tribunal recorrido fundou tal decisão nos termos que se transcrevem:

«Na situação dos autos, à A., em 1972, foi adjudicado um estabelecimento de farmácia. Encontrava-se a A. então matriculada e a frequentar o curso de Farmácias, que não concluiu no prazo fixado na lei, pelo que formalmente é resolvido conceder a exploração do estabelecimento a farmacêutica, mas sendo que a farmácia é gerida pelo irmão da A., pessoa que esteve sempre à frente do estabelecimento. E é depois, na eminência de caducidade do alvará, que em 2001 é celebrado um contrato de compra e venda do estabelecimento (o trespasse) com a mesma farmacêutica, negócio que teve apenas por finalidade evitar aquela caducidade, numa tentativa de desvio à proibição legal por via da qual a A. (irmão e mãe) estavam impedidos de serem donos formais de tal tipo de estabelecimento.

Este negócio é nulo porque as partes não quiseram comprar nem vender, mas apenas dar essa aparência perante o Infarmed.

A simulação é absoluta e, por isso, o negócio é nulo, podendo a simulação ser arguida entre os simuladores (art. 242.º CC) e existindo no caso um princípio de prova escrito – face ao disposto no art. 394.n.º 2 CC – centrado na procuração irrevogável outorgada ao irmão da A. para administrar a farmácia.

Desta nulidade já decorreria a nulidade posterior do negócio por via do qual a herdeira da aqui trespassária vendeu o estabelecimento a Patrícia Sotto Mayor Alvim, Unipessoal, Ldª. Com efeito, da nulidade do primeiro negócio resulta a ilegitimidade do tradens e uma invalidade sequencial do segundo negócio, pela venda a non domino.

 Porém, deu-se como provado que também este negócio foi efetuado para contornar a proibição legal, não tendo sido intenção das partes celebrar qualquer negócio real de trespasse.

A simulação tem, por isso, como efeito a nulidade do negócio (arts. 243.º e 289.º CC).

A sentença paralisou os efeitos da simulação e da nulidade, aludindo ao abuso de direito porque os credores negociaram com a sociedade insolvente na expetativa de tal sociedade deter no seu património a farmácia.

Não podemos concordar com esta posição.

Desde logo porque a ação foi proposta em 2009 e a insolvência só veio a ser decretada em 2014, isto é, pouco depois de a lei permitir à A. a titularidade formal da farmácia, veio esta propor a ação contra aquelas testas de ferro e o que se assinalou em primeira instância não é qualquer violação de um princípio de boa-fé inerente ao direito a invocar a simulação, mas a invocação de direitos de terceiro a que a A. é alheia.

Sequer pode aludir-se aqui a qualquer tutela da confiança centrada num venire contra factum proprium com base na ideia de que a A. atuara de forma a permitir às titulares formais qualquer investimento de confiança na ideia de que nunca alegaria a nulidade.

Dos factos dados como provados nada resulta que aponte em tal sentido e, mais do que isso, desses mesmos factos também não resulta qualquer investimento de confiança de quaisquer terceiros – mormente credores da empresa insolvente – na manutenção de uma simulação de fraude à lei mercê do decurso do tempo e da existência de negócios formais simulados.

Quer isto dizer que a ação deverá improceder, não sendo de condenar a A. (ou qualquer dos Rés) como litigante de má-fé.»

4.2.2. Estando em causa apurar a simulação de determinado negócio, a existência dessa intencional divergência entre a vontade e a declaração afere-se pela demonstração dos requisitos previstos no art.240º do CC.

Dispõe esta norma:

«1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.

 2. O negócio simulado é nulo

O contrato simulado revela, assim, uma divergência entre a vontade real dos contratantes e a “vontade” exteriorizada através das respetivas declarações negociais; divergência essa que corresponde à execução de um acordo entre os contratantes no sentido de assim agirem para, desse modo, enganarem terceiros.

Como afirmam Pedro Pais de Vasconcelos/Pedro Leitão Pais de Vasconcelos: “Na simulação é de crucial importância o pacto simulatório. Trata-se de um acordo, de um pacto, que tem como conteúdo a estipulação entre as partes da criação de uma aparência negocial, da exteriorização de um negócio falso, e a regulação do relacionamento entre o negócio aparente assim exteriorizado e o negócio real. A esta aparência negocial assim criada pode corresponder um negócio verdadeiro que as partes mantêm oculto ou pode também não corresponder a qualquer negócio[1].

A prova dos requisitos, cuja demonstração permite ao julgador concluir que se está perante um negócio simulado, cabe a quem invocar essa patologia contratual, como decorre da regra do art.342º do CC. Por outro lado, quando o negócio alegadamente simulado tiver sido celebrado através de documento autêntico, a simulação não pode ser demonstrada através de qualquer meio de prova, como decorre da interpretação conjugada dos artigos 371º e 394º, n.1 e n.2 do CC.

4.2.3. Para se concluir que o trespasse de uma farmácia foi simulado não basta ao julgador a perceção sociológica da aparência de alguns indícios de simulação, nem tão-pouco, o respaldo de ser o próprio julgador a admitir, no preâmbulo do DL n.307/2007, a existência de situações fictícias de propriedade de farmácias.

É necessário que, em cada caso concreto, o sujeito a quem a lei impõe o ónus da prova demonstre, inequivocamente, pelos meios legalmente determinados para o efeito, que se verificam os elementos constitutivos da simulação. Caberá, então, ao julgador reconhecer a presença de tal patologia negocial e decretar a nulidade do contrato, com as inerentes consequências legais (art.240º, n.2 do CC), da qual decorre a eliminação do efeito translativo (art.408º, n.1 e 879º do CC) que tipicamente corresponderia ao negócio declarado nulo (art.289º do CC). 

No caso concreto, incumbia à autora, por força do disposto no art.342º do CC, o ónus de provar os factos constitutivos da simulação.

Tendo os negócios, alegadamente simulados, sido celebrados através de escritura pública, cuja força probatória é fixada pelo art.371º do CC (fazendo prova plena dos factos aí atestados), a prova da existência de uma convenção contrária ao conteúdo de tal tipo de documento não pode assentar apenas em depoimentos testemunhais, dada a restrição estabelecida pelo art.394º do CC.

4.2.4. Da factualidade provada não se pode concluir que, entre a autora e as rés, tivessem existido pactos simulatórios destinados a concretizar trespasses fictícios com o objetivo de enganar terceiros. Não existindo confissão das rés, a prova da existência de tais pactos nunca poderia assentar exclusivamente em depoimentos testemunhais, dadas as limitações estabelecida pelo art.349º do CC (mas tal não está agora em discussão).

De qualquer modo, mesmo que se admita[2] que a prova testemunhal pode ser tomada em conta enquanto explicitação ou concretização de indiciária prova documental destinada a revelar o pacto simulatório, nunca no caso concreto a factualidade provada seria suficiente para se concluir pela inequívoca existência de simulação dos dois trespasses.

O acórdão recorrido entendeu que a procuração conferida (em 00.10.2001) pela trespassária do primeiro negócio seria um princípio de prova documental da simulação. Todavia, tal não se encontra factualmente sustentado. A referida procuração não foi conferida à autora (trespassante), mas sim a terceiro (irmão da autora). Por outro lado, de tal procuração constam poderes para gerir a farmácia, mas não consta da factualidade provada que esse procurador praticava, efetivamente, atos de gestão da farmácia.

Afirma-se no acórdão recorrido: «(…) a farmácia é gerida pelo irmão da A., pessoa que esteve sempre à frente do estabelecimento (…)». Todavia, tal afirmação não encontra suporte na factualidade provada; nenhuma prova foi feita de que esse procurador gerisse, efetivamente, o estabelecimento de farmácia em causa. Não podia, assim, o acórdão recorrido ter afirmado que a farmácia era gerida por aquele procurador.

Por outro lado, o facto de se ter provado que o primeiro trespasse foi celebrado com o propósito de evitar a caducidade do alvará (ponto 10 da factualidade provada) não encerra suficiência probatória para se concluir que existiu um negócio destinado a enganar terceiros. O facto de, na vigência da Lei n.2125 (de 20 de março de 1965), o estudante de farmácia, que não completava a licenciatura no prazo legalmente estabelecido, ter a obrigação de trespassar a farmácia, para evitar a caducidade do alvará, nos termos da Base III dessa lei, é, antes de mais, expressão do cumprimento de uma obrigação legal. O propósito de enganar terceiros tem de resultar da prova de outros fatores, que revelem essa intenção.

Nesta matéria, o acórdão recorrido revela, até, alguma ilogicidade entre o seu sentido decisório e o facto de ter acrescentado à factualidade provada o anterior “facto não provado”: «O único propósito da escritura descrita em 5 (trespasse a Dra FF) foi evitar a caducidade iminente do alvará referido em 2.»

Se o único propósito foi o de evitar essa consequência legal, dificilmente se pode concluir que o propósito do trespasse foi o de enganar terceiros, mantendo a farmácia, efetivamente, na propriedade da autora ou de qualquer outra pessoa.

4.2.5. Se a matéria de facto provada não é sólida quanto à prova da simulação do primeiro trespasse, menos o é ainda quanto à prova do segundo (ocorrido em 2004).

Importa ter presente (como consta do ponto n.7 da factualidade provada) que, entre o primeiro e o segundo trespasses, ocorreu uma transmissão mortis causa para a herdeira da primeira trespassária; facto que o acórdão recorrido ignorou completamente.

Durante dois anos, a herdeira da primeira trespassária foi a titular da farmácia, enquanto património recebido por herança da sua filha (falecida em 00.02.2002), o que (mesmo não sendo farmacêutica) lhe era permitido ao abrigo da Base IV da Lei n.2125.

Nenhuma prova foi feita de que, durante esse tempo, aquela herdeira fosse uma “testa-de-ferro” da autora ou de qualquer outra pessoa. E tal teria de ter sido provado para se poder concluir, como se concluiu no acórdão recorrido, que o segundo trespasse seria até uma transmissão a non domino.

O facto de se ter provado que a farmácia foi trespassada para evitar a caducidade do alvará, nos termos da Base IV da Lei n.2125, por ter decorrido o prazo de dois anos, não significa que tenha existido intenção de enganar terceiros.

Tal não significa que esse negócio tenha sido simulado, pois a realização do trespasse constituía o cumprimento de uma obrigação legal. O trespasse que dá cumprimento a essa obrigação pode ser um negócio perfeitamente válido ou ser um negócio simulado. Mas a simulação terá de ser demonstrada pela prova de outros factos.

Quanto a este trespasse, nada resulta da factualidade provada que pudesse sustentar a sua simulação. A trespassante, interveniente na escritura pública, é a própria herdeira, e não qualquer representante da autora, munido de uma procuração que eventualmente pudesse indiciar que as partes não pretendiam celebrar o negócio que se encontra documentado pela escritura pública e que, antes, pretendiam enganar terceiros.

4.2.6. Consta ainda da factualidade provada (pontos 11 e 13) que o preço dos trespasses não foi pago.

Não cabe aqui sindicar o modo como foi considerado provado (com base em prova testemunhal) que o preço não tinha sido pago (quando das respetivas escrituras públicas consta expressamente que tais pagamentos foram feitos), porque tal matéria não integra o objeto da presente revista.

Todavia, no que respeita à prova da simulação, tal informação não assume relevância probatória determinante para se aferir da patologia formativa do contrato. Nos termos do art.879º do CC, o pagamento do preço corresponde a um dos efeitos obrigacionais do contrato, mas essa falta de pagamento não impede a produção do efeito translativo, como resulta do art.408º, n.1 do CC. Nem, tão-pouco, permite a resolução do contrato, como estabelece o art.886º do CC[3]. Porém, sobre a relevância contratual de tal factualidade não cabe ao presente recurso pronunciar-se.

           

4.2.7. O acórdão recorrido parece ter-se baseado mais em perceções de ordem sociológica, respeitantes à existência de situações irregulares quanto à propriedade das farmácias, vigentes antes da entrada em vigor do DL n.307/2007 (e referidas no próprio preâmbulo deste diploma), do que na objetividade dos factos provados.

Na realidade, o simulador que invoca a simulação de um negócio, e sobretudo de um negócio realizado através de escritura pública, tem o ónus de provar que, inequivocamente, se verificam os requisitos próprios da simulação.

Como é sabido, a demonstração da simulação nem sempre é fácil. E não o é particularmente neste tipo de casos. Mas quem se propõe invocar tal patologia contratual tem de desenvolver um adequado trabalho técnico, munindo-se de todos os meios probatórios admissíveis, para provar que a realidade pactuada foi diferente daquela que se encontra contratualmente documentada.

Não o conseguindo fazer adequadamente, são-lhe imputáveis as consequências dessa falha probatória, como decorre do art.342º do CC.

*

 

4.3. Quanto à questão de saber se a autora agiu com abuso de direito ao invocar a simulação:

Tendo-se concluído que a autora não demonstrou, como era seu ónus, a existência de simulação dos trespasses, fica logicamente prejudicada a apreciação da questão de saber se ela agiu com abuso de direito (nos termos do art.334º do CC) ao invocar aquela simulação. Tal questão apenas assumiria importância decisória autónoma caso se tivesse provado que os trespasses tinham sido simulados. Nessa hipótese, importaria apurar se o comportamento da autora constituiria um “venire contra factum prorium”, o que, em caso afirmativo, conduziria a uma neutralização do seu direito, passando os trespasses a ser tratados como válidos. Tal tipo de hipótese, respeitante a um caso com contornos fácticos próximos do caso decidendo, já foi julgada procedente num recente acórdão do STJ – o Ac. de 17.04.2018 (relator José Manso Raínho), no processo n. 3452/15.0T8VIS-D.C1.S[4].

4.4. Em resumo:

O acórdão recorrido tem de ser revogado, quanto à matéria que foi objeto de conhecimento no recurso de revista, por não ter feito a correta aplicação do art.240º, nem do art. 342º do CC. Em consequência, não se declaram nulos os trespasses da farmácia (tendo estes produzido os inerentes efeitos translativos), pelo que fica a prevalecer, nesta matéria, a decisão da primeira instância, embora com diferente fundamentação.

O acórdão mantém-se vigente na parte que não foi objeto de recurso de revista, ou seja, naquela em que não condenou a autora como litigante de má-fé.

DECISÃO: Pelo exposto, acorda-se em considerar a revista procedente, revogando parcialmente o acórdão recorrido.

Custas na revista pela recorrente.

Lisboa, 09.07.2020

Maria Olinda Garcia – Relatora

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Teoria Geral do Direito Civil (9ª ed.), página 678
[2] Como admite Carvalho Fernandes, “A prova da simulação pelos simuladores”, in O Direito, n.124 (1992), pág.593 e seguintes.
[3] Como afirma Menezes Leitão, em tal hipótese, as ações do vendedor contra o comprador ficam restringidas à ação de cumprimento para cobrança do preço; Direito das Obrigações, Vol. III (9ª ed.) página 36.
[4] Entendeu-se nesse acórdão que: «Age com abuso do direito aquele (adquirente real) que, tendo adquirido de forma encapotada uma farmácia (por não ser farmacêutico), mas que, conluiado com outra pessoa (adquirente aparente), pretendeu que constasse da escritura de trespasse como adquirente essa pessoa (por ser farmacêutico), vem exigir da massa falida do adquirente aparente a restituição da farmácia, quando, ao longo de décadas, permitiu que tudo funcionasse na aparência como se fosse este último o proprietário, em decorrência do que contraiu dívidas e foi declarado insolvente. (…