REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO
VALOR DO INCIDENTE
Sumário

No incidente de incumprimento da prestação alimentícia o valor do incidente não é o total que resulta da soma das prestações concretamente incumpridas, correspondendo, pelo contrário, ao valor da própria causa principal que versa sobre o estado das pessoas (€30.000,00, mais €00,1).

Texto Integral

Proc n.º 2.601/19.4T8AVR-A.P1

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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
A 18.7.2019, B…, residente na Rua…, …, …, …. - … Porto, dizendo-se legal representante de C…, veio instaurar, ao abrigo do disposto nos arts. 41.º e 48.º do Regulamento Geral do Processo Tutelar Cível, contra D…, residente na Rua…, n.º .., …. - … Aveiro, incidente de incumprimento de alimentos relativo ao filho de ambos, C….
Para tanto alegou que no acordo de regulação o aqui Requerido ficou obrigado a pagar à requerente a quantia mensal de 400,00€ a título de alimentos para o filho, então menor, C…, por transferência bancária, até ao dia 8 de cada mês.
O Requerido, desde Fevereiro de 2019, inclusive, não tem liquidado a pensão de alimentos a que se encontra adstrito.
Desta feita, encontra-se em dívida a quantia global de 2.400,00€.
Na sequência do mencionado incumprimento, todas as despesas diárias imprescindíveis ao dia-a-dia do filho de ambos são suportadas integralmente pela Requerente.
O filho de ambos atingiu a maioridade em Janeiro de 2019, não auferindo qualquer rendimento, é um estudante exemplar, tendo sempre obtido excelentes resultados e encontrava-se inscrito ao tempo do requerimento inicial no 1º ano da Licenciatura de Gestão, na Universidade E….

A Requerente atribuiu ao incidente o valor de €30.000, 01.
Notificado para se pronunciar, o Requerido afirmou que, conforme resulta da acta de Conferência de Pais de 29 de Novembro de 2001, a pensão de alimentos do então menor C… seria de €380, 00, em 2019.
Mais afirmou desconhecer a situação atual do filho, tendo ainda afirmado que, mercê de ameaças da Requerente, ao longo de 17 anos o Requerido pagou a mais 22.460.00 euros.
Para além de que o requerido estava, como está, convencido que todo o dinheiro que pagou a mais chegaria para sustentar o filho enquanto este estude.
Mais alega que caso o C… continue a estudar com aproveitamento e sem capacidade de sustento de forma autónoma, o requerido estaria em divida, ao tempo do contraditório (14.10.2019), na quantia de 3420 euros (380X9meses) e não na quantia reclamada de quatrocentos euros/mês, valor esse que tem que ser compensado no crédito que o requerido tem sobre a requerente, pelo que nada é devido por aquele a qualquer título.

A 19.11.2019, foi junto pela Requerente aos autos o comprovativo que o seu filho C… frequenta o 2.º ano da licenciatura em Gestão, na Universidade E….

A 25.11.2019, foi proferido o seguinte despacho:
Ao abrigo do disposto nos arts. 297, nºs 1 e 2, 304, nº 1, 306 e 307 C.P.C., fixo no valor correspondente à utilidade económica do incidente, aferida pela soma das prestações de comparticipações de despesas, à data do requerimento inicial e alegadamente não pagos, que é de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros) - cf. arts. 297/1 e 2 e 304/1, parte final, do Código de Processo Civil.
Foi proferida sentença julgando procedente o presente incidente e fixando a quantia em dívida pelo Requerido ao seu filho, a título de prestações de alimentos vencidas até à data da propositura do presente incidente em 1.900,00 euros (mil e novecentos euros), sendo ainda devidas as vincendas.
Foram aí dados como provados os seguintes factos:
1. Por sentença proferida em 29/11/2001, foi fixada em €210,00 (então 42.000$00) mensais a pensão de alimentos a pagar pelo requerido ao seu filho, C… Casal, nascido em ../01/2001 (cfr. sentença de fls. 10/11 e assento de nascimento de fls. 4 dos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais).
2. O filho ficou a viver com a mãe, encontrando-se a estudar (declaração de fls. 19)
3. Desde fevereiro de 2019, que o Requerido não procedeu ao pagamento de qualquer prestação.

Deste despacho e sentença recorre o Requerido, visando a sua revogação com base nos argumentos que assim sintetizou:
A)
A não observância do princípio do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do CPC, no sentido de não lhe ser concedida a possibilidade de se pronunciar sobre o documento junto a fls. 19 (Ref.ª CITIUS n.º 24262715), ao abrigo do artigo 444.º do CPC, constitui uma nulidade processual, nos termos do disposto no artigo 195.º do CPC, porquanto, tratou-se de documento que veio a influenciar a factualidade dada como provada na posterior decisão da causa, devendo por isso, tal nulidade ser reconhecida e declarada, para todos os devidos e legais efeitos e, consequentemente ser a Sentença declarada nula.
B)
O valor do incidente de incumprimento do exercício das responsabilidades parentais deverá ser fixado, nos termos e para os efeitos do artigo 303.º, n.º 1 do CPC, pelo valor de €30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo), para todos os devidos efeitos legais, por se tratar de uma ação sobre o estado das pessoas, admitindo-se assim o presente recurso com o fundamento e para os efeitos do artigo 629.º, n.º2, al. B) do CPC.
C)
Também gera nulidade processual, nos termos do disposto no artigo 195.º do CPC, em violação do artigo 41.º, n.º 3 do RGPT, a não produção de prova requerida pelo ora Recorrente nas suas Alegações, no que concerne à confirmação das quantias transferidas ao longo destes anos, a título de pagamento (ainda que adiantado) da pensão de alimentos do filho menor de ambos, agora maior, e da titularidade da conta indicada pela progenitora, – que não se basta com as Alegações, por escrito, do Requerido mas sim carece da prova documental que o mesmo requereu ao Tribunal a quo que se produzisse - para, no que se viesse a decidir, fosse devida e profundamente apreciada, esclarecida e fixada, a matéria de facto provada e não provada, devendo por tal razão a nulidade ser reconhecida e declarada, para todos os devidos e legais efeitos, e, consequentemente ser a Sentença declarada nula, descendo os presentes autos à 1.ª instância e, consequentemente ser o Tribunal a quo ordenado a produzir a prova requerida pelo ora Recorrente nas suas Alegações.
D)
O Tribunal a quo errou na aplicação do Direito, porquanto não está em causa o instituto de compensação, violando artigo 2008, n.º 2 do CC.
E)
O mesmo é dizer que a sentença recorrida lavra em erro ao concluir pela subsunção dos factos ao instituto na compensação, nos termos do disposto no artigo 2008.º, n.º 2 do CC.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso não foi admitido em primeira instância por se entender que o valor fixado à causa o não admitia.

Foi apresentada reclamação pelo Requerido e, já nesta Relação, foi proferido despacho que decidiu ser admissível o recurso, primeiro quanto ao valor, sendo de relegar para segundo recurso os restantes temas.
No que aqui interessa, é assim o teor da decisão da reclamação:
A presente reclamação versa, logica e precedentemente, o despacho que não admitiu o recurso em função do valor do incidente de incumprimento das responsabilidades parentais.
Em tributo ao rigor, diríamos ter dois recursos distintos:
- Um relativo ao incidente do valor;
- Outro, o relativo ao recurso da sentença.
Cinde-se, pois, em dois momentos o recurso apresentado em primeira instância. Na verdade, deveriam ter sido apresentados dois recursos: um relativo ao incidente do valor e outro ao incidente de incumprimento das responsabilidades parentais.
Não foi assim que sucedeu, mas deve considerar-se serem dois e distintos os recursos.
Nenhum dos dois recursos foi admitido.
Assim, em primeiro lugar há que verificar se é de admitir o recurso quanto ao incidente do valor e, depois, fazê-lo subir e decidi-lo.
Em segundo lugar, uma vez decidido o recurso quanto ao incidente do valor, caberá, ou não, recurso da sentença final, recurso a distribuir posteriormente.
Vale, pois, neste momento, apenas apreciar a al. C) da presente reclamação, que é a de saber se deve admitir-se o recurso quanto ao valor.
Ora, antes de ser proferida sentença, foi proferido despacho sobre o incidente do valor.
O capítulo II do título III (Dos incidentes da instância) do Livro II (Dos actos processuais) do CPC respeita à verificação do valor da causa que deve ser atribuído não só à ação, mas também aos incidentes (art. 304.º CPC).
Nos termos do art. 296.º CPC, a toda a causa deve ser atribuído um valor e, nos termos do art. 629.º, n.º 2 b) CPC, é sempre admissível recurso das decisões respeitantes ao valor das causas ou incidentes.
Quer isto dizer que, nesta fase e para já, se admite o recurso do despacho que em primeira instância decidiu sobre o valor do incidente de incumprimento das responsabilidades parentais.
Quanto ao despacho que não admitiu o recurso de fundo – do incidente de incumprimento das responsabilidades parentais – é o mesmo declarado nulo por se ter pronunciado sobre um tema (do valor do incidente) que ainda não estava decidido definitivamente nos autos, nos termos do art. 195.º CPC.
Assim, ao abrigo do disposto no art. 643.º, n.º 6, CPC, determina-se ao tribunal de primeira instância a prolação de despacho que admita o recurso sobre o incidente do valor da causa, ordenando-se a sua subida a esta Relação.

Nesta Relação os autos correram Vistos Legais.

O tema do presente recurso é, tão-só, o do valor a fixar aos autos de incumprimento das responsabilidades parentais em ordem a apurar se deverá ou não, depois, e em primeira instância, ser admitido o recurso quanto à sentença.
Assim, o objeto do presente recurso é o despacho que, a 25.11.2019, fixou o valor do processo em €2.400,00.

Os factos que interessam à decisão da causa são os acima descritos e respeitantes ao iter processual.
Fundamentação de Direito
A questão decidenda consiste em saber se aos autos de incumprimento das responsabilidades parentais deve atribuir-se o valor dos autos principais (os que fixaram em primeiro lugar aquelas responsabilidades), correspondente a €30.000,01[1], conforme resulta do art. 303.º, n.º1 CPC[2], por se tratar de ação sobre estado de pessoas. Ou se, ao invés, deve fixar-se no valor correspondente à utilidade económica do incidente, aferida pela soma das prestações de comparticipações de despesas, à data do requerimento inicial.
As partes consideram dever ser a primeira a solução a adotar. A Requerente atribuiu esse valor ao processo e o Requerido propugna-o no recurso.
O Tribunal a quo entendeu ser a segunda a decisão a adotar em concreto.
Quid iuris?
Os presentes autos respeitam ao incumprimento das responsabilidades parentais fixadas nos autos apensos.
Trata-se, por isso, de autos de incumprimento a processar por apenso aos autos principais onde foram fixadas as responsabilidades parentais, nos termos do disposto no art. 41.º, n.º2 RGPTC.
No ac. RE, de 5.12.2019, Proc. 10197/18.8SNT-A.E.1 sumariou-se: “O processo de incumprimento do exercício de responsabilidades parentais constitui uma instância incidental, relativamente ao processo principal (de regulação das responsabilidades parentais), destinada à verificação de uma situação de incumprimento culposo/censurável de obrigações decorrentes de regime parental (provisório ou definitivo) estabelecido”.
Já na Coleção Formação Contínua do CEJ[3], procurando responder à questão sobre se no incidente de incumprimento da prestação alimentícia o valor do incidente é o total que resulta da soma das prestações concretamente incumpridas? Ou, pelo contrário, é o valor da própria causa principal que versa sobre o estado das pessoas (€30.000,00, mais €00,1), sendo, por isso, de aplicar o critério do art. 304.º n.º 1 do CPC, escreve-se:
“não se afigura que o incumprimento da obrigação de alimentos se reconduza ao conceito de questão incidental: a verdade é que se trata de uma questão nascida de uma decisão judicial transitada que encerra um processo. Não se está perante uma questão da decisão da qual depende a sorte do processo ou seja, a sua decisão final, e nessa medida tem um grau de autonomia que parece incompatível com a qualificação como incidente. Por outro lado, do confronto do art. 3.º, 1, c) R.G.P.T.C. e do art. 6.º, c) R.G.P.T.C. parece resultar que se trata de uma providência tutelar cível autónoma, tendo pressupostos privativos quanto à competência territorial. Note-se, aliás, que a lei prevê no art. 41.º, 4 R.G.P.T.C. que, na conferência, os pais podem acordar na alteração do que se encontra fixado quanto ao exercício das responsabilidades parentais, tendo em conta o interesse da criança. O âmbito do processo aberto por incumprimento da obrigação de alimentos pode, assim, extravasar em grande medida o seu objeto inicial, determinando uma alteração dos alimentos, do regime de contactos com o progenitor não residente e até da residência da criança.”
Por isso se conclui que “Todas as questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais têm subjacente uma mesma realidade de facto, são norteadas pelos mesmos princípios estruturantes e, nessa medida, deverão ser tratadas da mesma forma e com a mesma dignidade, o que se espelha na determinação do valor da ação”, de modo que “Entenda-se ou não o incumprimento da obrigação de alimentos como um incidente, (…) será sempre de afirmar que o valor da ação ou do incidente deverá ser o indicado no art. 303.º, 1 C.P.C. por se tratar de matéria que respeita ao estado das pessoas”.
Quer isto dizer que, não obstante estarem em causa apenas valores monetários concretos relativos ao incumprimento da prestação de alimentos, a verdade é que no incidente de incumprimento, os progenitores podem acordar sobre os termos de outros segmentos do regime das responsabilidades parentais e a esses termos, porque pertinentes ao estado das pessoas, não pode deixar de se considerar pertinente o valor que resulta do disposto no art. 303.º, n.º1, CPC.
Certamente isso não sucederia nestes autos, uma vez que o alimentando é já maior, mas a decisão a estabelecer para a questão deverá valer para todos os casos de incumprimento de responsabilidades parentais.
Assim, o valor dos autos de incumprimento de responsabilidades parentais em que estão em causa apenas alimentos corresponde a €30.000,01.
Coisa distinta é saber se, in casu, é admissível recurso da decisão que fixou a quantia em dívida pelo Requerido ao seu filho, a título de prestações de alimentos vencidas até à data da propositura do presente incidente em 1.900,00 euros.
De facto, há que distinguir, por um lado, o valor da ação que, sendo de €30.000,01, admitiria recurso ordinário, e, por outro, o valor da sucumbência.
Como se refere no ac. RE de 23.1.2012 (Proc. 2165/07.1TBPTM-K.E1): No incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, estando em causa apenas a pensão de alimentos, dever-se-á atender, para efeitos de admissibilidade de recurso, não apenas ao valor da acção (superior à alçada da Relação), mas também ao da sucumbência aferido em função do montante em dívida, já que não estão em causa direitos indisponíveis.
Do exposto resulta que deverá ser revogado o despacho de 25.11.2019 que decidiu assim: Ao abrigo do disposto nos arts. 297, nºs 1 e 2, 304, nº 1, 306 e 307 C.P.C., fixo no valor correspondente à utilidade económica do incidente, aferida pela soma das prestações de comparticipações de despesas, à data do requerimento inicial e alegadamente não pagos, que é de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros) - cf. arts. 297/1 e 2 e 304/1, parte final, do Código de Processo Civil, fixando-se o valor do incidente em €30.000,01. Mas esse facto não significa que, em primeira instância, se venha a admitir recurso da sentença, uma vez que, nos termos do art. 629.º, n.º1, CPC, o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal. É que a decisão impugnada não é superior a metade da alçada do tribunal de primeira instância.
Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar procedente o recurso relativo ao valor e, em consequência, revogar o despacho de 25.11.2019 que fixou o valor da ação em €2.400,00, fixando-o em €30.000,01.
Sem custas.

12.10.2020
Fernanda Almeida
António Eleutério
Maria José Simões
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[1] Art. 44.º da Lei 62/2013, de 26.8: 1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5000.
[2] Que dispõe: 1 - As ações sobre o estado das pessoas ou sobre interesses imateriais consideram-se sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais (euro) 0,01.
[3] Família e Crianças: as Novas Leis – Resolução de Questões Práticas, Janeiro de 2017, p. 54, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/eb_familia_criancas_as_novas_leis_resolucao_questoes_praticas.pdf