I. A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, outrossim, para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.
II. Como decorre do art.º 1º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o art.º 4º do mesmo diploma enuncia, nas suas alíneas, a fracção do poder jurisdicional que pode ser exercida pelos tribunais administrativos e fiscais, introduzindo um sistema de enumeração positiva, embora de carácter exemplificativo, das matérias incluídas na jurisdição administrativa e fiscal, resultando, claramente, que, para a atribuição da competência aos tribunais administrativos e fiscais, importa, em princípio, que subjacentes aos aludidos litígios estejam relações jurídico-administrativas ou jurídico-tributárias e não questões de direito privado, importando sublinhar que a reforma do contencioso administrativo e fiscal aumentou o âmbito da respectiva jurisdição, reconhecendo-se que apesar de nas alíneas do art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais não se mencionar, concretamente, actos de gestão pública, daí não será legitimo concluir que não haja que ponderar se as situações prevenidas são, ou não, regidas por um regime de direito público ou de direito privado.
III. Instaurada demanda em que a Autora pede a condenação da Ré a pagar-lhe determinada quantia, a título de reembolso de quotizações pagas pela Autora à Segurança Social referentes ao valor de quotizações que corresponde à percentagem 11%, considerando o vencimento da Ré, cujo pagamento é da responsabilidade desta, mas que aquela teve de suportar em razão de sentença que reconheceu a existência de contrato de trabalho da Ré com a Autora, importando, além do mais, para cumprimento do sentenciado, que a Autora tivesse de regularizar a inscrição da Ré no Regime da Segurança Social, a exigir prévio pagamento da aludida percentagem de 11% sobre a remuneração, impõe-se concluir que o objecto da acção, não emerge de qualquer relação jurídica contributiva.
I – RELATÓRIO
1. A Unidade Local de Saúde da Guarda, E.P.E., instaurou a presente acção contra, AA, pedindo a sua condenação no pagamento do montante de €7.400,96 (entretanto corrigido para €7.401,11), a título de reembolso de quotizações pagas pela Autora à Segurança Social referentes ao período que medeia entre Outubro de 2009 e Maio de 2014, que corresponde à percentagem de 11%, considerando o vencimento respetivo, bem como de juros moratórios, à taxa legal, sobre aquela quantia, desde a citação e até integral pagamento.
2. Articulou, com utilidade, que por sentença do Tribunal de Trabalho foi reconhecida a existência duma relação laboral entre as partes e, na ação executiva que lhe seguiu, foi-lhe paga a quantia arbitrada na sentença, deduzida de IRS e taxa de segurança social da responsabilidade do trabalhador.
Por via da sentença, a Autora viu-se obrigada a pagar à Segurança Social todo o período contributivo de duração do contrato de trabalho, ou seja, os retroactivos desde o inicio do contrato de trabalho, condizente a 1 de Outubro de 2009, tendo pago integralmente, quer a parte que seria da sua responsabilidade, quer a da responsabilidade do trabalhador nas quotizações, isto é, 11% calculado sobre o vencimento de €1.201,48, valor, cujo reembolso aqui reclama.
3. Regularmente citada, contestou a Ré, invocando, desde logo, a exceção de incompetência material, sustentando a competência do Tribunal fiscal, com fundamento em que está em causa a interpretação e aplicação de normas respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública, que as contribuições para a Segurança Social têm natureza parafiscal, que o pedido feito pela Autora se insere no âmbito da relação jurídico-contributiva e visa assegurar, pela entidade empregadora, uma obrigação legal, concluindo, desse modo, não estarmos perante responsabilidade civil contratual nem extracontratual mas perante uma relação tributária.
4. A Autora respondeu no início da audiência prévia, pugnando pelo indeferimento da excepção.
5. O Tribunal de 1ª Instância proferiu despacho a julgar improcedente a excepção de incompetência material bem como da excepção de ineptidão inicial, também invocada, com o consequente prosseguimento da ação.
6. Inconformada com a decisão que julgou improcedente a exceção de incompetência absoluta, a Ré/AA interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal a quo conhecido do seu objecto, proferindo acórdão em cujo dispositivo foi consignado: “Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida”.
7. A Ré/AA insurgiu-se contra a decisão proferida em 2.ª Instância, interpondo revista, aduzindo as seguintes conclusões.
“I. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão que, apesar de reconhecer que a apreciação da pretensão formulada pela entidade patronal passa pela aplicação de normas respeitantes ao sistema de segurança social - nomeadamente para averiguar quais os montantes que se encontrariam a cargo do trabalhador, acaba por negar provimento ao recurso interposto pela recorrente por entender que a necessidade de aplicação de normas respeitantes ao direito administrativo ou fiscal, não é critério bastante para a atribuição da competência aos tribunais administrativos e fiscais, sendo ainda necessário que envolva uma relação administrativa ou fiscal, o que não é o caso.
II. O pedido formulado na presente acção - cujo objecto é a relação jurídica contributiva, da qual emerge uma obrigação da Recorrida (enquanto sujeito passivo da obrigação), pois, sem ela a Recorrida não teria fundamento legal para pagar as quotizações em causa nos autos - tem como pressuposto a regularização contributiva perante a Segurança Social, pelo que o efeito jurídico que a Recorrida pretende com a presente acção é a condenação da Recorrente no pagamento das quotizações à Segurança Social referentes ao período que medeia entre Outubro de 2009 e Maio de 2014, valor de quotizações essas, que correspondem à percentagem de 11%, tendo que, para o efeito, ser apreciado pelo tribunal a obrigação do seu pagamento de acordo com o Regime Contributivo do Sistema Previdencial de Segurança Social.
III. As quantias em apreço preenchem, pois, o requisito objectivo genérico da tributação, isto é, constituem matéria colectável, ou, usando uma terminologia tipicamente fiscal, são “objecto do imposto”.
IV. De facto, as entidades contribuintes são obrigadas a declarar à segurança social, em relação a cada um dos trabalhadores ao seu serviço, o valor da remuneração que constitui a base de incidência contributiva, os tempos de trabalho que lhe corresponde e a taxa contributiva aplicável (artigo 40º do Código Contributivo) e, para a determinação do montante das contribuições das entidades empregadoras e das quotizações dos trabalhadores, considera-se base de incidência contributiva a remuneração ilíquida devida em função do exercício da atividade profissional (artigo 44º do Código Contributivo).
V. A apreciação e decisão da presente causa envolve, pois, a necessidade de apreciar questões relacionadas com a relação jurídica contributiva, uma vez que será necessário apurar se as quotizações em questão (que a Autora diz que pagou e agora reclama da Ré) são da responsabilidade da Recorrente.
VI. Assim, é pelas “(…) regras constantes daquele acervo de direito público [Lei de Bases da Segurança Social e no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social] que se calcula o valor das contribuições” - Cfr. Ac. da RE, de25.03.2010, tirado no processo 628/07.8TAELV.E1 - o sublinhado é nosso -.
VIII. Sendo que “[a] dívida de contribuições à Segurança Social não emerge de responsabilidade civil contratual, nem emerge de responsabilidade civil extracontratual. O mesmo vale por dizer: não emerge de negócio jurídico celebrado entre a entidade empregadora e a Segurança Social, nem emerge de facto ilícito extra-negocial no sentido do disposto no artigo 483º/CC. Tem sim por fonte a própria lei, que se inscreve no direito público, (…)” designadamente na Lei de Bases da Segurança Social e no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social. A dívida de contribuições à Segurança Social não se rege pela lei civil. O regime da dívida e da sua cobrança obedece a regras específicas constantes desse acervo de direito público (…)” - Cfr. Ac. acima cit. - o sublinhado e destacado nossos -.
IX. As prestações exigidas na presente lide e juros emergem da relação contributiva que se estabeleceu entre a Segurança Social e a Recorrida, relação essa que está sujeita ao princípio da legalidade tributária, pelo que o cumprimento das obrigações que lhe subjazem se subordinam, quer nos seus pressupostos, quer nas suas consequências, às normas de direito administrativo-tributário pré-existentes à data da sua liquidação.
X. Com efeito, “este procedimento de liquidação é um momento insuprimível da relação jurídica tributária, decorrente do facto de que, para se determinar o montante da obrigação a cargo de cada um dos sujeitos passivos, teve de se levar a cabo um conjunto de operações. Sendo a liquidação uma operação necessária e co-natural com a obrigação tributária, dado o seu carácter de obrigação legal” (cf. DIOGO LEITE DE CAMPOS, Direito Tributário, 2.ª Edição, Almedina, p. 352) - sublinhado nosso -, o que significa que a exigibilidade das contribuições pressupõe que as mesmas se tenham tornado certas e líquidas, sendo o mesmo dizer que aquela exigibilidade se encontra dependente de um - necessariamente prévio - acto tributário de liquidação, concretizado no apuramento do quantum da obrigação contributiva.
XI. Assim, tendo tais contribuições a natureza parafiscal, os actos de apuramento do montante devido a título de contribuições (quer sejam praticados pela Recorrida, quer sejam praticados pela Segurança Social), constituem, inequivocamente, actos (de autoliquidação ou de liquidação, respectivamente) com natureza tributária, o mesmo é dizer que consubstanciam efectivos actos tributários.
XII. Apesar do conceito de relação jurídica administrativa não ter assento legal, já o mesmo não sucede com a relação jurídica tributária, daí que está mais do que consolidado o entendimento de que estamos perante questão fiscal quando a mesma diga respeito à interpretação e aplicação de normas legais de natureza tributária, ou seja, se refira a uma resolução autoritária que negue direito a não pagamento ou que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação dos encargos públicos do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que com elas estejam objetivamente conexas ou teleologicamente subordinadas.
XIII. Assim sendo, a presente acção, enquanto versa sobre a relação jurídica contributiva e apela à interpretação e aplicação de normas de natureza tributária – que a douta decisão recorrida acaba por reconhecer -, tem por objecto matéria que é da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal - Cfr. arts. 4º, nº´1, al. a), e 49°, nº 1, al. c) do ETAF -.
XIV. Violou o tribunal a quo o disposto nos arts. 64º do CPC e 80º, nº 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
TERMOS EM que deve julgar-se procedente o presente recurso, revogando-se, consequentemente, a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que julgue o tribunal de 1ª Instância incompetente para conhecer da acção em causa, com a consequente absolvição da instância da Recorrida, o que constitui uma decisão de JUSTIÇA.”
8. Não foram apresentadas contra alegações.
9. Foram dispensados os vistos.
10. Cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pela Recorrente/Ré/AA, consiste em saber se:
(1) Há fundamento para alterar a decisão recorrida que julgou improcedente a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, importando que se declare o Tribunal comum incompetente para conhecer da acção em causa, com a consequente absolvição da instância da Ré/AA?
II. 2. Da Matéria de Facto
A matéria de facto apurada é a que consta do relatório antecedente.
II. 3. Do Direito
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
II. 3.1. Há fundamento para alterar a decisão recorrida que julgou improcedente a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, importando que se declare o Tribunal comum incompetente para conhecer da acção em causa, com a consequente absolvição da instância da Ré/AA? (1)
Delimitado o objecto do recurso, passemos à questão vertida nas conclusões das doutas alegações da Recorrente/Ré/AA, e, nesta medida importará apreciar se, considerados os factos jurídicos apresentados em Juízo e a pretensão arrogada, a subsunção jurídica, deverá ser diversa da sustentada pelo Tribunal a quo, isto é, a questão que se coloca a este Tribunal de recurso é a de saber se o Tribunal comum, onde a acção foi proposta é, ou não, materialmente competente para conhecer do objecto da acção.
Importa desde já adiantar que a questão trazida a Juízo identifica-se, por completo, com aqueloutra por nós apreciada e relatada no Processo n.º 1212/18.6T8GRD-A.C1.S1, donde, seguiremos de perto tudo quanto a propósito da questão objecto desta revista (saber da competência para conhecer da presente demanda, ou seja, se pertence aos tribunais judiciais - e consequentemente, ao tribunal recorrido - ou aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal) consignamos no acórdão proferido no citado Processo n.º 1212/18.6T8GRD-A.C1.S1.
Vejamos.
A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, sendo que para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, impõe-se atentar à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.
Neste particular, sustenta Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, in, Manual de Processo Civil, 1987, página 197, o requisito da competência resulta de necessidade de se repartir o poder jurisdicional pelos vários tribunais segundo critérios diversos, destacando-se, no plano interno, o critério da especialização.
Estabelece o art.º 211º da Constituição da República Portuguesa “1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais”, o que, de resto, a lei ordinária acompanha - Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - Lei da Organização do Sistema Judiciário - ao prescrever no seu n.º 1 “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” e a Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho que aprova o actual Código de Processo Civil que no seu art.º 64º textua: “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, anotando-se, por outro lado, decorrer do art.º 212º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, donde, aos tribunais judiciais cabe, a título residual, julgar as acções que não competirem aos outros tribunais.
A propósito da competência dos tribunais administrativos e fiscais, Gomes Canotilho de Vital Moreira, in, Constituição da República Portuguesa Anotada, página 814, em comentário ao aludido art.º 212º da Constituição da República Portuguesa defendem que “a competência dos tribunais administrativos deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns. A letra do preceito constitucional parece não deixar margem para excepções, no sentido de consentir que estes tribunais possam julgar outras questões, ou que certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros tribunais. Nesta conformidade pode dizer-se que os tribunais administrativos passaram a ser verdadeiros tribunais comuns em matéria administrativa”.
Acompanhando o princípio consagrado constitucionalmente no consignado n.º 3 do art.º 212º da Constituição da República Portuguesa, a lei ordinária - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, com sucessivas alterações, importando a consideração das disposições aplicáveis do aludido Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12/09, em razão da data da instauração da presente demanda, estabelece no respectivo art.º 1º “1- Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.
Como decorre do art.º 1º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o art.º 4º do mesmo diploma enuncia, nas suas alíneas, a fracção do poder jurisdicional que pode ser exercida pelos tribunais administrativos e fiscais, introduzindo um sistema de enumeração positiva, embora de carácter exemplificativo, das matérias incluídas na jurisdição administrativa e fiscal.
Do cotejo das enunciadas alíneas do art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais resulta, claramente, que, para a atribuição da competência aos tribunais administrativos e fiscais, importa, em princípio, que subjacentes aos aludidos litígios estejam relações jurídico-administrativas ou jurídico-tributárias e não questões de direito privado, importando sublinhar que a reforma do contencioso administrativo e fiscal aumentou o âmbito da respectiva jurisdição, reconhecendo-se que apesar de nas alíneas do art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais não se mencionar, concretamente, actos de gestão pública, daí não será legitimo concluir que não haja que ponderar se as situações prevenidas são, ou não, regidas por um regime de direito público ou de direito privado.
Ademais, cremos que do confronto das consignadas alíneas do art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, no que respeita às pretensões jurídicas a formular perante a jurisdição administrativa e fiscal, o legislador, cuidou não só de fazer sobressair, em algumas disposições, critérios objectivos, mas também considerou, em outras situações, critérios subjectivos ou orgânicos.
Relembrando que a competência em razão da matéria tem de ser aferida em razão dos termos em que o demandante configura a acção, a qual se define através do pedido, da causa de pedir e da natureza das partes, importará, necessariamente, para determinar a jurisdição competente para a respectiva apreciação, ponderar sobre os elementos objectivos da demanda, ou seja, a natureza da providência solicitada, a natureza do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, o facto ou acto donde resulta o invocado direito, outrossim, dos elementos subjectivos da acção, isto é, a identidade e a natureza das partes.
Revertendo ao caso sub iudice e sendo pacífico que a situação trazida a Juízo não se integra directamente no âmbito de previsão de quaisquer das alíneas a) a n) do n.º 1 do art.º 4º Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, impõe-se distinguir se a relação jurídica em discussão encerra uma relação jurídica administrativa ou fiscal, e como tal qualificada, de modo que se insira no âmbito de previsão da alínea o) do n.º 1 do art.º 4º Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (“1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a: o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.”).
Atenhamo-nos, para determinar a jurisdição competente para o conhecimento da causa trazida a Juízo, aos termos em que a Autora/Unidade Local de Saúde da Guarda, E.P.E. configura a acção tendo em consideração a pretensão jurídica formulada, os factos jurídicos donde emerge o pedido formulado, outrossim, tenhamos em devida conta a natureza das partes.
A Autora/Unidade Local de Saúde da Guarda, E.P.E., instaurou a presente demanda pedindo a condenação da Ré/AA a pagar-lhe a quantia de €7.401,11, acrescida de juros moratórios, a título de reembolso de quotizações pagas pela Autora à Segurança Social referentes ao período que medeia entre Outubro de 2009 e Maio de 2014, valor de quotizações essas que corresponde à percentagem 11% considerando o vencimento respectivo, cujo pagamento é da responsabilidade da Ré, suportado em razão da sentença proferida no Tribunal do Trabalho, reconhecida que foi a existência de contrato de trabalho da Ré com a aqui Autora que importou, além do mais, para cumprimento do sentenciado, que a Autora tivesse de regularizar a inscrição da Ré no Regime da Segurança Social, tendo por base a retribuição mensal de €1.201,48, sendo que para proceder a tal regularização teve também de proceder ao pagamento da percentagem que era da responsabilidade da Ré e que corresponde a 11% do valor auferido a título de vencimento, ou seja, o total reclamado na presente demanda de €7.401,11.
Configurada a demanda nos termos enunciados impõe-se concluir, sufragando o enquadramento jurídico vertido no acórdão recorrido, que o objecto da presente acção não emerge de qualquer relação jurídica contributiva.
O Tribunal recorrido apreendeu a real conflitualidade subjacente à demanda trazida a Juízo, cuidando de apreciar dos actos ou factos jurídicos donde emerge o direito que a Autora se arroga e pretende fazer valer, actos ou factos concretos e regularmente traçados na petição inicial apresentada em Juízo, tendo elaborado um aresto fazendo apelo a um enquadramento jurídico-normativo que sufragamos.
Assim, em conformidade com o disposto nos artºs. 56º n.º 1 da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro - que aprova as bases gerais do sistema de segurança social - os beneficiários e, no caso de exercício de actividade profissional subordinada, as respectivas entidades empregadoras, são obrigados a contribuir para os regimes de segurança social, dispondo o art.º 59º n.º 1 deste diploma que as entidades empregadoras são responsáveis pelo pagamento das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço, devendo para o efeito proceder, no momento do pagamento das remunerações, à retenção na fonte dos valores correspondentes.
Por outro lado, textua o art.º 10º n.º 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social - aprovado pela Lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro que: “A relação jurídica contributiva consubstancia-se no vínculo de natureza obrigacional que liga ao sistema previdencial: a) Os trabalhadores e as respectivas entidades empregadoras; b) Os trabalhadores independentes e quando aplicável as pessoas colectivas e as pessoas singulares com actividade empresarial que com eles contratam; c) Os beneficiários do regime de seguro social voluntário”.
E, de acordo com o prevenido no art.º 11º da consignada Lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro, a obrigação contributiva tem por objecto o pagamento regular de contribuições e de quotizações por parte das pessoas singulares e colectivas que se relacionam com o sistema previdencial de segurança social, correspondendo a uma prestação pecuniária que se destina à efectivação do direito à segurança social - art.º 12º da Lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro - .
No âmbito do regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, determina o art.º 39º da Lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro que as entidades empregadoras, para efeitos de segurança social, são consideradas entidades contribuintes e, segundo o disposto no art.º 42º do mesmo diploma, são estas entidades as responsáveis pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço, descontando nas remunerações dos trabalhadores ao seu serviço o valor das quotizações por estes devidas e remetendo esse valor, juntamente com o da sua própria contribuição, à instituição de segurança social competente.
Daqui decorre, e sem reservas o afirmamos, não haver dúvida de que a relação jurídica que se estabelece entre os trabalhadores e respectivas entidades empregadoras, por um lado, e o sistema previdencial da segurança social, por outro, tendo como objecto o pagamento das contribuições e quotizações devidas, é uma relação jurídica contributiva, como expressamente se diz no art.º 10º do citado Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e, no regime dos trabalhadores por conta de outrem, essa relação contributiva estabelece-se directamente entre o sistema previdencial da segurança social e a entidade empregadora, já que, nos termos da lei, a entidade contribuinte - que, como tal, é responsável pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço - é a entidade empregadora.
Damos como assente que os litígios emergentes dessa relação jurídica contributiva - relacionados com a regularização dessa relação e das prestações contributivas de natureza parafiscal - são da competência dos Tribunais Tributários, conforme tem sido entendido pelo Tribunal de Conflitos, neste sentido, Acórdão n.º 01/05 (de 29/06/2005); Acórdão n.º 03/06 (de 04/10/2006); Acórdão n.º 09/06 (de 19/10/2006); Acórdão n.º 014/07 (de 04/10/2007); Acórdão n.º 016/07 (de 17/01/2008); Acórdão n.º 015/08 (de 10/11/2009) e Acórdão n.º 052/18 (de 30/05/2019), in, http://www.dgsi.pt.
Todavia, contrariamente ao pugnado pela Recorrente/Ré/AA, o objecto da presente acção - delimitado pelo pedido e respectiva causa de pedir - não emerge dessa relação jurídica contributiva.
A presente demanda não foi instaurada pelo trabalhador contra a entidade patronal no sentido de obter a condenação desta a proceder à regularização das contribuições devidas à Segurança Social.
A presente demanda foi, isso sim, instaurada pela Autora, enquanto entidade empregadora, contra a Ré/AA, reconhecida judicialmente como sua trabalhadora, no sentido de esta ser condenada a pagar-lhe o valor das quotizações que eram da sua responsabilidade e que a Autora já havia pago à Segurança Social, isto é, de acordo com os factos alegados - que constituem a causa de pedir - a Autora, enquanto entidade contribuinte, já cumpriu a obrigação contributiva a que, nos termos da lei, estava obrigada perante a Segurança Social, e o que vem agora pedir é o reembolso dos valores que pagou e que deveriam ter sido descontados nas remunerações pagas à Ré/AA por corresponderem às quotizações da sua responsabilidade.
O que está aqui em causa é apenas o reembolso do valor que a Autora pagou e que era da responsabilidade da Ré/AA, não porque estivesse obrigada a pagá-lo à Segurança Social porque, de facto, essa obrigação/entrega apenas recaía sobre a Autora/Unidade Local de Saúde da Guarda, E.P.E., mas porque deveria ter sido descontado da remuneração que auferiu (desconto que a Autora não efectuou no momento do pagamento dessas remunerações) - e essa matéria já não se insere no âmbito da relação jurídica contributiva que se estabelece com o sistema previdencial da segurança social, sendo certo que a pretensão aqui formulada não visa a produção de qualquer efeito nesta relação contributiva.
Rematamos, realçando, que a demandante, Unidade Local de Saúde da Guarda, E.P.E., o que vem pedir nos presentes autos é o reembolso dos valores que pagou e que deveriam ter sido descontados nas remunerações pagas à sua trabalhadora, ora Ré/AA, daí que correspondam a quotizações da responsabilidade desta, o que, de todo, pode ser confundido com uma qualquer relação jurídica contributiva que a suscitar qualquer litígio emergentes da mesma - relacionados com a regularização dessa relação e das prestações contributivas de natureza parafiscal - importaria que o respectivo conhecimento fosse da competência dos Tribunais Tributários.
Os factos jurídicos donde emerge o direito que a Autora se arroga, regularmente traçados na petição inicial, nada tem a ver com a relação jurídica contributiva a estabelecer com o sistema previdencial da segurança social, salientando-se que a obrigação contributiva já foi regularizada, estando aqui em causa, apenas e só, os direitos e interesses da Autora/Unidade Local de Saúde da Guarda, E.P.E. e da Ré/AA, sem afectar os direitos e interesses do sistema previdencial da segurança social, pois, somente importa decidir sobre o reclamado direito ao reembolso do valor que a Autora pagou e que é da responsabilidade da Ré/AA.
E não se diga, como faz a Recorrente/Ré/AA que ao apelar-se à interpretação e aplicação de normas de natureza tributária para conhecimento da presente demanda, sempre encerrará a decisão a proferir matéria que é da competência dos Tribunais da jurisdição fiscal.
A este propósito sempre se dira que, naturalmente, a apreciação e decisão da presente causa envolverá a necessidade de apreciar questões relacionadas com a relação jurídica contributiva, uma vez que será necessário apurar se as quotizações em questão (que a Autora/Unidade Local de Saúde da Guarda, E.P.E. pagou e agora reclama da Ré/AA) são da responsabilidade da Ré/AA, mas isso não basta para conferir competência aos Tribunais Tributários, já que, conforme já adiantamos, o factor que determina a competência dos tribunais administrativos e tributários não é a circunstância de a decisão da causa envolver a necessidade de apreciar questões de natureza administrativa ou tributária, mas sim a circunstância de estar em causa um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa ou fiscal, o que, no caso, não acontece.
Tudo visto, concluímos que os factos jurídicos donde emerge o direito que a Autora se arroga e pretende fazer valer não relevam relações do exercício de poderes públicos, nem as mesmas são reguladas por normas de direito tributário, ao invés, por regras comuns de direito civil, ainda que se possam suscitar questões relacionadas com a relação jurídica contributiva, daí que a decisão do presente litígio não cabe aos Tribunais ficais, mas aos Tribunais comuns, importando dizer que a decisão recorrida não merece censura.
Na improcedência da argumentação trazida à discussão pela Recorrente/Ré/AA, nas suas alegações de recurso, e na decorrência do enquadramento jurídico normativo enunciado, a invocada excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, terá de ser julgada improcedente.
III. DECISÃO
Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente o recurso interposto pela Recorrente/Ré/AA, negando-se a revista.
Custas pela Recorrente/Ré/AA.
Notifique.
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Setembro de 2020
Oliveira Abreu (Relator)
Ilídio Sacarrão Martins
Nuno Pinto Oliveira
Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respectivo voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos, Ilídio Sacarrão Martins e Nuno Pinto Oliveira.