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ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Sumário
I. O enriquecimento traduz-se na obtenção de um acréscimo patrimonial consistente num aumento do activo, na diminuição do passivo, na poupança de despesas, ou no uso de uma coisa ou no exercício de um direito alheio, podendo ser considerado na perspectiva de um “enriquecimento patrimonial” ou como um “enriquecimento real”, consoante o reflexo que o acto enriquecedor tenha na situação patrimonial do beneficiário. II. São requisitos do instituto do enriquecimento sem causa - a verificar cumulativamente - da obrigação de restituição fundada em injusto locupletamento, a verificação do enriquecimento de alguém, a carência de causa justificativa desse enriquecimento e ainda que o mesmo tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição. III. A ausência de causa justificativa do enriquecimento reconduz-se à constatação de que o enriquecimento nunca teve uma causa ou porque, tendo tido uma causa num momento inicial, a mesma deixou de existir. IV. Para que se constitua uma obrigação de restituir fundada no enriquecimento, não basta que uma pessoa tenha obtido uma vantagem patrimonial, à custa de outrem. V. É ainda necessário que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, quer porque nunca a houve, por não se ter verificado o escopo pretendido, ou, porque, entretanto, deixou de existir, devido à supressão posterior desse fundamento. VI. A falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição. VII. Cabe ao autor do pedido de restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos respectivos factos integradores ou constitutivos, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento. VIII. A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa tem por objecto (n.º 1 do art.º 479.º do Cod. Civil) aquilo que tiver obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor monetário correspondente, estando aquele que enriqueceu obrigado a pagar juros legais a contar da citação ou a partir do momento em que teve conhecimento da inexistência dos factos que suportem o seu enriquecimento ou da falta do efeito que se pretendia obter (alíneas a) e b) do art.º 480.º do mesmo diploma). (sumário da relatora)
Texto Integral
ACORDAM NA 1.ª SECÇÂO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA
I.Relatório
A… intentou a presente acção contra J… e M…, pedindo:
a) seja reconhecida e declarada a nulidade por falta de forma do contrato de mútuo celebrado entre o pai da autora e os réus e sejam estes condenados a restituir a quantia de €43.750 acrescida de juros de mora vincendos desde a citação até integral pagamento ou, subsidiariamente;
b) sejam os réus condenados a pagar-lhe a quantia de €43.750 acrescida de juros vincendos desde a citação até integral pagamento a título de enriquecimento sem causa.
Para o efeito, e em síntese, alegou o seguinte:
- é filha e a única herdeira de Na…;
- no dia 14/05/2008 o seu falecido pai e os réus outorgaram uma escritura de compra e venda nos termos da qual adquiriram pelo preço de € 87.500 o prédio rústico com a área de 58.508 m2 sito em …, freguesia de Marvila, descrito na Conservatória sob o n.º … e inscrito na matriz sob o artigo … da Secção RI e que, apesar de terem combinado que o valor da aquisição desse prédio seria repartido pelo casal de réus e por Na… em partes iguais, o pai da autora foi o único a assumir e concretizar o pagamento do preço, sem que os réus tenham alguma vez pago a sua parte do preço de aquisição, no montante de € 43.750;
- O montante de € 43.750 foi emprestado pelo falecido pai aos réus tendo em vista a aquisição da sua metade do prédio e o acordado entre ambos foi que o prédio seria para venda e, nesse acto, o pai da autora seria reembolsado pelos réus da aludida quantia;
- após a outorga da escritura acima aludida não conseguiram vender o prédio com a brevidade expectável e após o falecimento do seu pai os réus admitiram ser devedores de metade do preço, até que a autora lhes solicitou que redigissem um documento a confessar a dívida ou que colocassem o terreno à venda sob essa condição, altura em que acabaram por alterar a sua anterior posição, afirmando que nada lhe deviam.
Regularmente citados, ambos os réus contestaram a acção, em que sustentaram a ilegitimidade da autora para os demandar na presente acção e pediram a sua absolvição do pedido.
No sentido da absolvição do pedido, alegaram que:
- não foi celebrado qualquer contrato de mútuo entre os réus e o pai da autora;
- o pai do réu Júlio Coelho era arrendatário do prédio misto denominado … com a área de 71.960 m2, que após o seu falecimento o réu lhe sucedeu no direito ao arrendamento, que as proprietárias daquele prédio interpuseram uma acção com vista a fazer cessar o arrendamento e que, no âmbito dessa acção, o réu e as proprietárias do terreno firmaram um acordo nos termos do qual, para pagamento das benfeitorias feitas, aquele recebia uma parcela de terreno, continuava a ser rendeiro do prédio rústico identificado na petição e as proprietárias obrigavam-se a fazer-lhe uma proposta em futura venda por forma a acomodar o que ainda lhe fosse devido;
- quando as proprietárias do prédio identificado na petição inicial quiseram vendê-lo, informaram o réu J… de que a alienação seria pelo valor de € 200.000; no entanto, após negociações o preço final foi fixado em € 175.000 e, como o réu ainda era credor das mesmas, ficou acordado que metade do preço seria por compensação do seu crédito e o remanescente, no montante de € 87.500 em dinheiro;
- o pai da autora não estava envolvido no negócio e não tinha participado nas negociações, tendo sido unicamente o réu J… quem pagou o sinal de € 5.000 do contrato-promessa de compra e venda celebrado em Novembro de 2007 com as proprietárias do prédio. Porém, como o réu não dispunha de liquidez suficiente para pagar o remanescente do preço de € 87.500, propôs ao pai da autora que pagasse a metade do preço que ainda faltava liquidar com vista à posterior venda do prédio e à realização de uma mais-valia que seria repartida em partes iguais, tendo sido nessa sequência que o pai da autora procedeu ao pagamento da quantia de € 87.500aquando da escritura;
- elemento essencial do mútuo é a entrega do dinheiro à contraparte, que se toma seu proprietário e fica obrigado a restituí-lo, sendo que no caso o pai da autora nem sequer entregou qualquer quantia aos réus e emitiu o cheque junto aos autos a favor das proprietárias do terreno;
- para além de não ter existido qualquer mútuo, também não existe enriquecimento sem causa dos réus, sendo que este sempre estaria prescrito, conquanto o pai da autora não ignoraria o direito que lhe assistia e conhecia a pessoa responsável pelo (suposto) enriquecimento sem causa.
A autora exerceu o contraditório relativamente às excepções invocadas na contestação, pugnando pela sua improcedência.
Quanto à prescrição, disse que o seu pai faleceu em Novembro de 2016, que os réus confessaram ser devedores da quantia peticionada nos autos e que regularizariam a situação logo que vendessem o imóvel, apenas tendo dito nada dever quando instados a documentar a confissão de dívida, não tendo decorrido 3 anos desde essa data até à citação.
Foi proferido despacho saneador, em que se julgou improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa invocada, bem como despacho em que se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas de prova.
Indeferiu-se a reclamação que recaiu sobre o despacho de fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova.
Realizada audiência final, foi prolatada sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu os RR. do pedido.
A A. não se conformando com a sentença prolatada, dela interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
” 1- A A. vem interpor o presente recurso da sentença que julgou a acção e o pedido de condenação por litigância de má-fé totalmente improcedentes, e em consequência absolveu os RR. dos respectivos pedidos.
2 – A A. impugna a decisão de direito, e dois segmentos do julgamento da matéria de facto.
3- Atenta a matéria de facto provada, o Tribunal “a quo” considerou não ter ficado demonstrada a entrega de uma quantia com a correlativa assunção da obrigação da sua restituição, como defendia a A., pelo que negou o reconhecimento da celebração de um contrato de mútuo, nulo por falta de forma, e a correlativa condenação dos RR. na restituição da quantia entregue, tal como também era pedido.
4- Quanto ao pedido subsidiário de enriquecimento sem causa dos RR. com o correlativo empobrecimento da A. (enquanto herdeira de seu pai) o Tribunal também o negou pois, pese embora tenha conhecido o enriquecimento dos RR., e o correlativo empobrecimento da herança, considerou não ter ficado demonstrada a ausência de causa.
5- Todavia, da matéria de facto provada resulta que o R. varão identificou um negócio lucrativo de compra de um imóvel; porém como não tinha dinheiro para o mesmo, propôs ao pai da A. que entrasse nesse negócio, tendo sido este que pagou €. 82.500,00 (oitenta e dois mil e quinhentos euros) por conta do preço total no valor de € 87.500,00 (oitenta e sete mil e quinhentos euros) e mais resultando provado que foi o R. que pagou os € 5.000,00 (cinco mil euros) de sinal.
6 – O prédio está hoje inscrito quer no registo predial quer no registo matricial em comum a favor dos RR. e do autor da herança (pai da ora A.), sendo que o preço da respectiva aquisição, quase na totalidade, tal como provado, foi suportado pelo pai da A. entretanto falecido.
7 – A significar que de acordo com a matéria de facto provada os RR. viram o seu património enriquecido à custa do empobrecimento da herança que pagou o preço desse património.
8 – O prédio destinava-se a revenda, onde o autor da herança esperava ir buscar uma mais-valia, mas o que não sucedeu porquanto se deu a crise do imobiliário.
9 – O Tribunal ”a quo” aceita o enriquecimento dos RR. à custa do empobrecimento da herança, mas considera não haver causa justificativa, e daí o decidido, porquanto, de acordo com o tribunal “a quo” tal só acontecerá um dia que o prédio venha a ser vendido e a A. não tenha qualquer mais-valia ou se os RR. impedirem a venda.
10- Em primeiro lugar, e com o devido respeito, entendemos que face à matéria de facto provada, esta conclusão do Tribunal “a quo” é completamente contraditória e até imperceptível, o que desde logo torna nula a sentença nos termos do artigo 615º nº1 alínea c) do C.P.Civil, em segundo lugar, o Tribunal “a quo” parece confundir o conceito de mais-valia com o conceito de enriquecimento e empobrecimento. O que está em causa nos autos é que á custa do empobrecimento da herança se verificou um enriquecimento dos RR.
11- Por outro lado, o Tribunal “a quo” ignora totalmente os documentos juntos aos autos com a p.i. com os nºs 6 e 7, e donde resulta que os RR. não querem a venda do prédio se não forem aplicadas as regras da compropriedade; isto é recusam-se a restituir à A. o valor do património que sem causa justificativa está registado em seu nome, e o que motivou a presente acção.
12 – Independentemente da obtenção de mais-valia o que está demonstrado nos autos é o seguinte:
a)- Foi o autor da herança que pagou a quase totalidade do preço de um terreno, destinado a revenda, que não se concretizou, e que acabou por essa circunstância em ficar registado a favor do próprio e dos RR.
b)- Pelo que há aqui claramente um enriquecimento do património dos RR. (aumento do seu activo patrimonial), à custa do correlativo empobrecimento da herança (ou seja na exacta medida do empobrecimento desta).
c)- E sem qualquer causa justificativa face ao demonstrado nos autos
13- Os RR. interpelados para tal negaram-se a restituir à A. parte do preço do prédio pago pelo seu pai, sem qualquer causa registado a seu favor na proporção de metade, assim como se negaram a assinar documento em que essa restituição fosse efectuada no momento da venda do mesmo prédio.
14- Contrariamente ao decidido pelo Tribunal “a quo”, e em clara violação do disposto no artigo 473º do C. Civil, estão aqui reunidos todos os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa.
15- E ainda que se entendesse que se desconhece o valor actual do prédio para se apurar o eventual enriquecimento dos RR., tal como também é aflorado pela sentença recorrida, que sem causa justificativa surgem como comproprietários do mesmo, sempre se deveria relegar as partes para a liquidação de sentença, e não para a data da venda do imóvel, quando os RR. já afirmaram que só aceitam essa venda de acordo com a repartição do produto da mesma pelas regras da compropriedade, e até lá podem decorrer prazos prescricionais.
16- Posto isto, consideramos que face à matéria de facto provada, há desacerto jurídico na solução de direito que assim impugnamos.
17- Todavia, também consideramos que há desacerto jurídico quanto ao julgamento da matéria de facto na medida em que omite nos factos provados o teor vertido nos documentos 6 e 7 juntos com a p.i. e que são essenciais para se perceber, contrariamente ao decidido, que os RR. impedem a realização da venda do imóvel insistindo num enriquecimento à custa do correlativo empobrecimento da herança. Donde se deve acrescentar o teor de tais documentos aos factos assentes.
18- Por último, no dia 07.11.2019, às 10 horas, 20 minutos e 55 segundos, foi ouvida a testemunha Jo…, cujo depoimento o Tribunal valorou como imparcial e credível, o qual ao minuto 5.51 do seu depoimento esclareceu o Tribunal que no funeral do pai da A. o R. varão informou a mesma que tinha contas a fazer com o pai, e que ficasse descansada que as faria consigo.
19- Por conseguinte, tal facto deveria ter sido dado como provado, ou seja, que no funeral do pai da A. o R. reconheceu que tinha contas para com o falecido, e por conseguinte eliminados os factos vertidos nas alíneas E) e F) dos factos não provados.
20-Esta alteração da matéria de facto provada, que se requer, por se entender ter havido erro na sua apreciação, repete-se, não é essencial para a decisão de direito que se contesta e que se entende deveria ter sido diferente da que foi proferida, mas ainda assim, tem a virtualidade de reforçar a posição da ora Recorrente na defesa da verificação de todos os requisitos do enriquecimento sem causa, pelo que se recorre da decisão de direito, e do julgamento e decisão da matéria de facto quanto a estes dois segmentos.
21- Finalmente e quanto ao pedido de litigância de má-fé: Sabemos que os Tribunais evitam esta condenação.
Porém, no caso em apreço, ela afigura-se-nos por demais evidente; senão vejamos:
Os RR. arquitectam toda a sua contestação na alegação de que o prédio foi adquirido por €. 175.000,00 (cento e setenta e cinco mil euros) tendo apenas sido paga a quantia de € 87.500,00 (oitenta e sete mil e quinhentos euros) dos quais €. 82.500,00 (oitenta e dois mil e quinhentos euros) pelo autor da herança, porquanto os RR. tinham direito a uma compensação dos proprietários do prédio do qual eram rendeiros – artigos 13º, 14º, 15, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 24º e seguintes da sua Contestação.
22- Em audiência de julgamento apurou-se contrariamente ao afirmado que os RR. já não eram rendeiros do prédio, e não tinham direito a qualquer compensação porquanto tudo isso tinha acontecido em tempos, mas terminado muito antes da data da aquisição do imóvel, e em transacção judicial que foi junta aos autos pela A., em pleno julgamento pois só então a descobriu, e na qual os RR. aceitaram, contrariamente ao que afirmaram na contestação, a caducidade do arrendamento.
23- Isto é, os RR. foram intervenientes nessa transacção em 2004, esconderam a mesma do processo, e afirmaram que eram rendeiros do prédio, quando isso já não era verdade, e que a outra metade do preço correspondente à que foi paga pelo pai da A. foi de igual modo paga por si, por compensação, quando nada disso se veio a demonstrar, antes pelo contrário. Ora, se isto não é má-fé, tal como prevista no artigo 542º do C.P. Civil, então o que é má-fé?
24- Donde, se considera que também neste segmento mal andou o Tribunal “a quo”, requerendo-se a alteração de decidido.
Nestes termos e nos mais de Direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., devem julgar procedente a presente Apelação e revogar o teor da sentença.
Assim decidindo, farão Vossas Excelências a costumada Justiça!”.
Os RR. apresentaram resposta às alegações, nas quais requereram a ampliação do âmbito do recurso.
Foram providenciados os vistos e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir. II. Objecto do Recurso
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC), importar decidir:
- da nulidade da sentença;
- da alteração da matéria de facto;;
- do enriquecimento sem causa;
- da ampliação do âmbito do recurso;
- da litigância de má-fé. III. Fundamentação
1.De Facto
Na sentença recorrida foram julgados: Provados os seguintes factos: 1. A autora é filha de Na…. 2. Na… faleceu em 06 de Novembro de 2016, sem testamento ou outra disposição de última vontade, tendo deixado a suceder-lhe unicamente a autora. 3. No dia 14 de Maio de 2008, M…, I… e Al…, na qualidade de vendedores, e Na… e os réus, na qualidade de compradores, outorgaram escritura de compra e venda no Cartório Notarial sito na Praceta Pedro Escuro, número dezoito, em Santarém, perante o notário Tiago Berrincha Travassos Relva. 4. Nos termos da escritura referida em 3), junta de fls. 23 a 29 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, M… e I… declararam vender a Na… e ao réu J… em comum e em partes iguais, o prédio rústico com a área de 58.508 m", sito em … freguesia de Marvila, concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o n." …da mesma freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo … da Secção R, actualmente artigo … da Secção … da União de Freguesias de Santarém, pelo preço de €87.500, conforme documento junto de fls. 23 a 29 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 5. O réu J… negociou a aquisição do prédio supra. 6. Mas não dispunha de liquidez para pagar a totalidade do preço e pela sua idade também não conseguia um empréstimo bancário. 7. E propôs ao pai da autora que entrasse no negócio consigo. 8. Para posterior revenda e realização de uma mais-valia. 9. O que o pai da autora aceitou. 10. O pai da autora e o réu eram familiares e amigos. 11. O pai da autora e os réus figuraram ambos na escritura de compra e venda como compradores, em comum, e figuram no registo predial e na matriz como comproprietários. 12. Por conta do preço referido em 4), o pai da autora efectutou o pagamento da quantia de €82.500, através do cheque bancário n." 1813450671, datado do dia da escritura, à ordem de M…. 13. Pese embora o referido em 9), o pai da autora e os réus não conseguiram vender o prédio por causa da crise do imobiliário. 14. O pai do réu J…, F…, era arrendatário do prédio misto denominado …, com a área de 71.960 m", sito na freguesia de Marvila, concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o n.º …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … secção E e na matriz predial urbana sob o artigo …, sendo proprietárias do mesmo M… e I…. 15. Após o falecimento do pai do réu, as proprietárias interpuseram uma acção tendo em vista cessar o direito ao arrendamento. 16. No âmbito de tal processo, o réu, M… e I… firmaram um acordo, nos termos do qual o réu recebeu em pagamento pelas benfeitorias que tinha feito, uma parcela de terreno que corresponde aos seguintes artigos: a) Prédio urbano com a área de 1.222 m2, sito na freguesia de União de Freguesias da Cidade de Santarém, concelho de Santarém, inscrito sob o artigo matricial …; b) Prédio rústico com a área de 1,090000 ha, sito na freguesia de União de Freguesias da Cidade de Santarém, concelho de Santarém, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo matricial n." …, secção IR. 17. Em Novembro de 2007, foi celebrado entre as proprietárias e o réu o contrato-promessa de compra e venda junto de fls. 78 a 81 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. 18. Com a assinatura do contrato-promessa o réu entregou às proprietárias, a título de sinal e princípio de pagamento, o montante de €5.000. E Não Provados: A) Para a concretização do negócio identificado em 4), o réu J… pediu verbalmente ao pai da autora que lhe emprestasse a quantia de €43.750, correspondente à sua metade do preço para aquisição do prédio. B) E ficou acordado entre o falecido pai da autora e os réus que o valor da aquisição do prédio seria repartido pelo casal e por aquele em partes iguais. C) Comprometendo-se os réus a devolver ao pai da autora aquela quantia quando vendessem o prédio. D) O pai da autora pagou a quantia de €5.000 aquando da celebração do contrato- promessa. E) Os réus sempre admitiram serem devedores de metade do preço pago pelo pai da autora. F) No funeral do pai da autora, os réus reconheceram dever metade do preço do prédio à autora e disseram-lhe que ficasse descansada porque logo que vendessem o prédio lhe pagariam. G) No âmbito do processo referido em 16) ficou ainda acordado que o réu continuaria a ser rendeiro do prédio rústico identificado em 4), amanhando-o e cultivando-o, bem como fazendo seus os frutos do mesmo. H) E ainda que, em futura venda, lhe seria feita uma proposta, por forma a acomodar o que lhe fosse devido. I) Quando as então proprietárias pretenderam vender o prédio identificado em 4), informaram o réu e acabaram por fixar o preço do negócio em € 175.000. J) Como o réu ainda era credor das proprietárias do terreno, ficou acordado que metade do preço seria por conta da compensação do seu crédito e o remanescente, no montante de € 87.500 em dinheiro. K) Mercê do referido em J) e 6) dos factos provados, o réu J… propôs ao pai da autora a compra de metade do imóvel pelo valor que ainda lhe faltava liquidar, de € 82.500. L) E ambos acordaram em repartir o valor que viessem a realizar com a venda em partes iguais. 2.O Direito 2.1. Da nulidade da sentença
Invoca a apelante a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, porquanto o “Tribunal ”a quo” aceita o enriquecimento dos RR. à custa do empobrecimento da herança, mas considera não haver causa justificativa, e daí o decidido, porquanto, de acordo com o tribunal “a quo” tal só acontecerá um dia que o prédio venha a ser vendido e a A. não tenha qualquer mais-valia ou se os RR. impedirem a venda, sendo esta conclusão do Tribunal “a quo” “face à matéria de facto provada, completamente contraditória e até imperceptível, o que desde logo torna nula a sentença nos termos do artigo 615º nº1 alínea c) do C.P.Civil”.
Vejamos:
Qualquer acto jurisdicional, nomeadamente uma sentença ou mesmo um despacho, pode atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra do qual é decretado e, então, torna-se passível de nulidade, nos termos do art.º 615.º, n.º 1 do CPC.
A este respeito, estipula-se no apontado normativo, sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença” que:
“1 - É nula a sentença:
(…)
c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.”
A decisão judicial é nula quando os seus fundamentos estiverem em oposição com a parte decisória, i.e., quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, logicamente, a uma conclusão oposta ou, pelo menos diferente daquela que consta da decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Ora, situação diversa da nulidade da sentença é a de saber se houve erro de julgamento, pois como se refere no Ac. do STJ de 21.05.2009[1] “Se a questão é abordada mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, há erro de julgamento, não “errore in procedendo”.
Na verdade, as causas de nulidade da decisão taxativamente elencadas no art.º 615.º do CPC visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o erro de julgamento, não estando subjacentes às mesmas quaisquer razões de fundo, motivo pelo qual a sua arguição não deve ser acolhida quando se sustente na mera discordância em relação ao decidido de facto e/ou de direito.
“A observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão. (…) E a verdade é que por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, (…)”[2].
Com efeito, “o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error júris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa”[3].
“É preciso não confundir o 'error in procedendo' com o 'error in judicando'. Há 'error in procedendo' se o juiz comete a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1, do art.º 668 [actualmente art.º 615.º] do CPC. O 'error in judicando' ou de julgamento dá-se quando o juiz decide mal, aplicando ou interpretando erradamente o direito, ou apreciando erradamente os factos.”[4]
Por outras palavras, o erro consiste num desvio da realidade factual ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
Não há que confundir erro de julgamento na matéria de facto ou errada interpretação do normativo aplicado com a oposição entre os fundamentos e a decisão, a que se refere o art.º 615.° n.° 1 al. c) do CPC.
E, no caso em apreciação, infere-se da alegação de recurso que a apelante discorda da fundamentação de direito, ou seja, a recorrente suscita questão que se prende com a inconformação com o julgado.
Tão-pouco se vislumbra que a sentença padeça de ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível. Não existe qualquer ambiguidade ou obscuridade e a sentença não é ininteligível. A recorrente entendeu a fundamentação de facto e de direito, apenas não se conforma com elas.
Não se vislumbra, pois, que haja qualquer contradição entre as premissas de facto e de direito e a decisão.
É manifesto que a decisão impugnada não se encontra ferida com o vício da nulidade que a recorrente lhe imputa.
A questão que eventualmente a recorrente pretende suscitar prende-se com a inconformação com o julgado, o que não integra, obviamente, a nulidade a que vimos aludindo.
Como se deixou já referido, atenta a forma como a recorrente impugna, nesta parte, a sentença recorrida, contrariamente ao que sustenta, não se trata de uma questão que seja reconduzível à existência de nulidade, mas de erro de julgamento pois, no ver da recorrente, a sentença recorrida errou ao ter concluído pela não verificação da causa justificativa.
O aludido vício de conteúdo a que se refere o art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC não se verifica, por conseguinte, na sentença recorrida, pelo que improcede o que, relativamente ao qualificado vício da sentença, consta das conclusões da alegação da apelante.
Destarte, é patente que a questão suscitada pela apelante não se se subsume a qualquer das nulidades previstas no art.º 615.º do CPC, mas antes ao error in judicando.
Desatende-se, assim, a nulidade em apreço. 2.2.Impugnação da decisão de facto
Como se colhe das conclusões do recurso interposto, a recorrente manifesta a sua discordância relativamente à decisão da matéria de facto e impetra a modificação do decidido quanto a esse aspecto.
Com efeito, o recurso interposto pela A. tem por objecto, para além do mais, a impugnação da decisão de facto, pugnando pelo aditamento ao quadro fáctico provado do teor dos documentos juntos com a p.i. sob os n.ºs 6 e 7 e, ainda, do seguinte facto: “No funeral do pai da A. o R. reconheceu que tinha contas para com o falecido”, devendo, em consequência, eliminar-se os factos vertidos nas alíneas E) [Os réus sempre admitiram serem devedores de metade do preço pago pelo pai da autora.] e F) [No funeral do pai da autora, os réus reconheceram dever metade do preço do prédio à autora e disseram-lhe que ficasse descansada porque logo que vendessem o prédio lhe pagariam.] do elenco factual não provado.
A Mm.ª Juiz a quo fundamentou a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“Os factos n." 1 e 2 tiveram-se por assentes com base na certidão permanente da sociedade autora junta de fls. 11 a 16 e da certidão da escritura pública de habilitação de herdeiros junta aos autos de fls. 19 a 21, cuja autenticidade não foi questionada.
Por seu turno, os factos n." 3 e 4 provaram-se mediante a junção da escritura pública de fls. 23 a 29, cujo teor estava assente entre as partes.
Concatenando as posições expressas pelas partes nos respectivos articulados (cfr. artigos
8. 11.0, 13.0, 20.0 e 22.0 da p.i. e 29.0, 30.0, 33.0, 35.0 e 38.0 da contestação), consideraram-se admitidos por acordo os factos n." 5 e 7 a 10 (art.? 574.°, n." 2 do CPC), sendo certo que nenhuma das partes discute a relação familiar e de amizade entre o pai da autora e o réu, que a aquisição do prédio que se discute nos autos tenha sido negociada pelo réu, nem tão-pouco que tenha sido este a propor ao pai da autora a compra de metade do prédio para posterior revenda, o que ficou acordado entre ambos - embora divirjam quanto aos termos do negócio de compra e venda, quanto à parte do preço que cada um suportou ou quanto aos efeitos e divisão do produto da venda que viesse a ser realizada, como adiante diremos.
Mediante a conjugação das certidões de fls. 141 a 150, 151 a 154 e 155 a 160 e as cadernetas prediais de fls. 74 e 75 e 76 e 77, provou-se que o pai do réu J… era arrendatário do prédio misto denominado …, com a área de 71.960 m", que após o seu falecimento as proprietárias do prédio interpuseram uma acção tendo em vista cessar o direito ao arrendamento e que nessa acção aquelas e o réu firmaram um acordo por via do qual qual este recebeu em pagamento pelas benfeitorias que tinha feito, uma parcela de terreno que corresponde ao prédio urbano com a área de 1.222 m2 inscrito sob o artigo matricial … e ao prédio rústico com a área de 1,090000 há inscrito na matriz predial rústica sob o artigo matricial n." … secção IR (factos n." 15 e 16).
A celebração entre as mesmas proprietárias e o réu do contrato-promessa junto de fls. 78 a 81 (facto n." 17), provou-se com base neste documento, cuja genuinidade das assinaturas e teor não foram postos em causa.
No mais, a convicção formou-se através de um exame crítico e conjugado dos documentos aos autos, das declarações de parte da autora e dos depoimentos das testemunhas, sempre considerando as pertinentes regras do ónus da prova (art.? 607.°, n." 5 do CPC).
Na medida em que a prova testemunhal e por declarações foi unívoca relativamente ao facto de réu J… ter proposto ao pai da autora a aquisição de metade do prédio que se discute nos autos por não ter disponibilidade financeira ou possibilidade de contrair um empréstimo para assegurar o pagamento da totalidade do preço, resultou pacificamente demonstrado o facto n." 6.
Quanto ao preço do negócio de compra e venda celebrado com as proprietárias do terreno e aos termos do acordo firmado entre o pai da autora e o réu J…, os meios de prova produzidos mostraram-se divergentes.
Antes de mais, há que dizer que os réus se defenderam por excepção alegando que o preço da compra e venda do prédio objecto dos autos ascendeu a €175.000 apesar de se ter feito constar da escritura o preço de €87.500.1 Ou seja, pretendem que o preço é simulado e apenas foi feito constar metade do preço a pagar no contrato-promessa e na escritura pública.
Porém, quanto à prova da simulação do preço pelos simuladores, decorre do art." 394.°, n." 1 e 2 do Cód. Civil que "é inadmissível a prova por testemunhas [ou, indirectamente, por presunção judicial nos termos do art." 351.° do Cód. Civil], se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos
1 No sentido da possibilidade de dedução da simulação por via de excepção para impedir o direito alegado, vide acórdão do STJ de 17/02/2005, processo n." 04B4360 disponível em www.dgsi.pt e acórdão do TRC de 1O/01/S0 naquele citado. particulares mencionados nos artigos 373. o a 379. o quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores."
A doutrina/ e a jurisprudência.' vêm entendendo que entre simuladores apenas é admissível prova testemunhal para a demonstração do acordo simulatório ou do negócio dissimulado se existir o chamado princípio de prova escrita, que tome verosímil a simulação (absoluta ou relativa) - como sucederá, p.e. se o comprador entrega cheque ao vendedor de montante superior ao declarado, se o contrato definitivo é diverso do contrato-promessa e o teor deste vai de encontro ao facto a provar, etc.
Tal exigência probatória acrescida visa evitar que a parte que queira infirmar o negócio possa destruir a eficácia do documento autêntico mediante uma prova insegura como a testemunhal, sendo certo que o simulador sempre terá a possibilidade de se munir com documento escrito que lhe permita vir a demonstrar a inexactidão da declaração, completando a prova de primeira aparência fornecida pelo documento com testemunhas ou presunções judiciais - possibilidade esta que não terão terceiros, a quem se permite total amplitude probatória, cf. n." 3 do art.° 394.0 do Cód. Civil.
Ora, no caso dos autos, seria admissível a prova por testemunhas de que o preço do negócio foi fixado pelas partes em €175.000, sendo €87.500 a compensar por conta de um crédito do réu sobre as vendedoras?
Não cremos.
- em primeiro lugar, na escritura púbica de OS/2008 junta de fls. 23 a 29 consta que o preço da venda é de €87.500 e não existe qualquer menção a uma eventual compensação, nem tão-pouco a um crédito do réu J… sobre as vendedoras (crédito este que, de resto, nem o próprio réu esclareceu a que título existia ou o montante a que ascendia, limitando-se a alegar no art.° 20.0 da sua contestação que lhe seria feita uma proposta "por forma a acomodar o que ainda lhe fosse devido");
- em segundo lugar, no contrato-promessa junto pelos réus de fls. 78 a 81, constata-se que em Novembro de 2007 o réu e as proprietárias do prédio que se discute nos nossos autos já tinham declarado que o preço do negócio ascenderia a €87.500, sendo a quantia de €5.000 paga na data da outorga de tal contrato-promessa e o remanescente de €82.500 no acto da escritura definitiva por meio de cheque visado;
- em terceiro lugar, o valor do cheque emitido a favor da vendedora na data da escritura definitiva corresponde integralmente ao valor remanescente mencionado no contrato- promessa;
- em quarto lugar, da leitura das certidões judiciais juntas de fls. 142 a 154 retira-se que no processo n." 403/95, em 25/02/2004, o réu reconheceu a caducidade do arrendamento e se obrigou a entregar às proprietárias o prédio que ocupava e englobava aquele que se discute nos autos até 31/03/2005, que, por sua vez, as proprietárias reconheceram assistir ao réu um crédito por benfeitorias no montante de €10.000 e ambas as partes acordaram na dação de uma parcela do prédio com a área de 10.892 m2 a desanexar ou destacar para pagamento das benfeitorias;
- em quinto lugar, da escritura de "divisão e dação em cumprimento" junta de fls. 155 a 160 extrai -se que o réu e as proprietárias do terreno concretizaram a venda a que se comprometeram na transacção judicial e o réu declarou extinta a dívida pelas benfeitorias donde nada mais teria a reclamar por conta de benfeitorias, tanto mais que até ficara acordado que se o prédio não fosse entregue até ao termo do mês de Março seriam antes as proprietárias a ficar com um crédito sobre o réu no montante de €1.000 por mês ou fracção no atraso da entrega.
Vistos os documentos enunciados, é patente que em nenhum deles se extrai uma prova de primeira aparência da existência de que o preço da compra e venda declarado na escritura pública de 14/05/2008 não corresponde à totalidade do preço acordado, não havendo, outrossim, confissão dessa simulação pela autora.
Como tal, como acima referimos, entendemos que não era possível a prova por testemunhas para a demonstração de que o preço da venda do prédio identificado nos autos ascendia a €175.000 e não aos €87.500 declarados na escritura.
Todavia, ainda que o fosse, sempre acrescentaremos que não resultou do depoimento de nenhuma das testemunhas que as proprietárias do prédio identificado na petição inicial e o réu tivessem fixado o preço da compra e venda em €175.000 e tivessem acordado na compensação de um eventual crédito no montante de €87.500: - N…, Jo…, Ar… e Jos… nada souberam esclarecer a propósito do preço da compra fixado entre o réu e as vendedoras; - S… disse que não assistiu à conversa do réu J… com as proprietárias e apesar de ter referido que ouviu aquele a dizer que havia negociado o terreno pela metade e faltava pagar a outra metade, o seu depoimento não mereceu qualquer crédito, não só por ter afirmado saber que Na… passou um cheque de €87.500 quando isso não encontra respaldo documental (já que o cheque apenas ascendia ao valor de €82.500), mas também pela falta de conhecimento circunstanciado dos factos ou espontaneidade, de que são exemplificativas as circunstâncias de a testemunha não ter sido segura ou precisa quando instada a reproduzir a conversa a que disse ter assistido, bem como de ter aludido prontamente à "confusão com o cheque" antes de alguém lhe ter feito qualquer questão relacionada com os meios de pagamento e mais adiante até acabou por revelar saber que o cheque era do B…, dando a entender que tinha tido conhecimento das posições das partes no processo e pretendia favorecer a versão dos réus; finalmente, disse que a indemnização de metade do preço do terreno seria só para sair, quando resulta da transacção junta aos autos que o réu se comprometera a sair contra a dação de uma parcela no valor de €10.000, o que já se mostrava concretizado;
- a testemunha Jos…, advogado do réu J… no anterior processo que o opôs às vendedoras do prédio que se discute nos autos, disse que naquele processo foi feito um acordo que englobava a totalidade do prédio, mas não adiantou nenhuma explicação plausível para nada constar a esse propósito no termo de transacção e ficou patente que o contrato-promessa apenas veio a ser formalizado mais de 2 anos volvidos desde a transacção judicial. Tendo em conta o depoimento desta testemunha e a circunstância de ter resultado do mesmo que o réu ficaria integralmente pago pelas benfeitorias com a parcela de cerca de 10.000 rrr' que as autoras do processo se obrigaram a transmitir-lhe e poderia vir a adquirir a outra parte do terreno caso entretanto arranjasse dinheiro para o efeito, o tribunal ficou persuadido de que as partes terão aventado a possibilidade de aquisição da totalidade do prédio caso o réu viesse a arranjar meios financeiros para tal e lhe terão dito por que montante estavam dispostas a vender-lho, mas aquilo que ficou definitivamente acertado e era vinculativo era unicamente o que constava da transacção, sendo de presumir que nenhum advogado minimamente sagaz e diligente acordaria em que o cliente reconhecesse a caducidade do contrato de arrendamento e se obrigasse a entregar um prédio livre e devoluto no prazo de um mês contra o pagamento de €lo.ooo (em dinheiro ou por entrega de parcela de 10.892 rrr') caso ainda tivesse a receber mais €87.500!;
- finalmente, a testemunha I… disse que o preço da venda foi o que foi feito constar da escritura e desconhecia as negociações por trás do negócio.
Mercê do que antecede, ficaram por provar os factos I a L.
No que tange ao teor da transação judicial, valem mutatis mutandis as considerações tecidas a respeito da inadmissibilidade da prova testemunhal, atento o disposto nos artigos 394.°, n." 1,376.° e 221.°, n." 1 e 1250.° do Cód. Civil.
De todo o modo, também nesta parte nenhuma das testemunhas logrou corroborar a versão do réu, sendo que apenas a testemunha S… se pronunciou sobre esta matéria, mas sem merecer crédito: por um lado, como acima referimos, disse que ouvira dizer que a indemnização de metade do preço do terreno seria "só para sair" quando resulta da transacção junta aos autos que o réu se comprometera a sair contra a dação de uma parcela no valor de €lo.ooo, já concretizada à data da outorga do contrato-promessa; por outro lado, quando instado pela I. mandatária da autora a esclarecer se o réu já não tinha recebido uma indemnização das proprietárias e em que moldes foi celebrado o anterior negócio de aquisição de parcela de terreno com aquelas, a testemunha mostrou-se esquiva e afirmou que não sabia nada quanto ao terreno que o réu comprou antes e "só s [abia] que o pai tinha vivido no outro terreno", dando a entender que ou não tinha efectivo conhecimento dos factos ou pretendia ocultar o conhecimento de que na aquisição anterior já tinha sido levada em conta uma indemnização a que o réu teria direito.
De resto, não faz sentido que num contrato-promessa com vários considerandos prévios como o junto a fls. 78 a 81 não houvesse qualquer referência à compensação de um crédito do réu no preço a pagar, tanto mais que se o mesmo existisse nada impedia o réu de vir a reclamá-lo das proprietárias do terreno após lhe ser transmitida a propriedade do terreno que se discute nos autos e, repete-se, as vendedoras encontravam-se representadas por advogado nas negociações.
Por conseguinte, ficaram por provar os factos G e H.
Embora a autora tenha alegado que o réu J… pediu ao seu par que lhe emprestasse metade do preço do prédio declarado na escritura pública celebrada em 14/05/2008 e os réus se comprometeram a restituir-lha após a revenda do prédio a terceiros, a prova produzida sobre tal matéria não permitiu superar o estado de dúvida que se gerou quanto ao acordo que esteve na base do pagamento da quantia de €82.500 pelo pai da autora.
Vejamos.
A autora declarou que soube do negócio no dia em que o tio/réu Júlio o apresentou, precisando que foi depois de um almoço em família que o seu pai lhe contou que o tio lhe tinha apresentado um negócio por não ter dinheiro e ia entrar com ele no negócio, tendo sido a expressão do pai "vamos fazer isso".
Ainda que por diversas vezes tenha mencionado que o pai sempre lhe falou de ter emprestado dinheiro, ficou patente das suas declarações que não tinha qualquer conhecimento circunstanciado das negociações que precederam a outorga da escritura, nem ele lhe falou do que concretamente "emprestara": (i) começou por afirmar que o pai quando lhe falou do negócio "não [lh] e falou da proporção acordada, nem de pormenores"; (ii) no seu decurso explicou que à data frequentava a universidade, o negócio tinha sido entre o pai e o tio e não sabia como tinha sido pago o preço, apenas tendo ouvido do seu pai várias vezes depois da compra que com a venda do terreno ela "t[inha] de tirar pelo menos €l 00. 000"; (iii) instada a esclarecer o negócio proposto pelo tio e se este precisava de dinheiro para pagar a totalidade do terreno ou se falaram de cada um pagar metade e o prédio ficar para os dois disse que nada sabia sobre isso e "só s[abia] que o pai emprestou dinheiro ao tio"; e (iv) no velório do pai o réu disse-lhe que não lhe ia ficar a dever nada, mas nem nessa altura nem posteriormente lhe disse quanto lhe devia.
Por outro lado, mencionou que nas últimas conversas que teve com o pai sobre o terreno ele dizia que o que queria era reaver o dinheiro e se mostrava chateado por ter investido dinheiro e não o conseguir reaver, querendo que a C… ou a S… (filhas do réu) pedissem um empréstimo ou então que o terreno fosse vendido por forma a ele recuperar o investimento. No entanto, isso nunca sucedeu, foi referido pelas testemunhas que o pai da autora e o réu se tinham desentendido posteriormente por causa do negócio e a autora não relatou nenhuma conversa entre aqueles que deixasse sequer clara a finalidade do empréstimo que o seu pai pretendia que as filhas do réu pedissem (designadamente se queria que lhe fosse pago metade do valor do cheque).
Embora as declarações da autora se tenham mostrado genuínas na generalidade e se admita que tenha ouvido o tio a dizer ao pai que lhe daria metade do dinheiro, fica por perceber se estaria a referir-se ao dinheiro por aquele adiantado ou ao dinheiro que obtivessem com a futura venda, sendo certo que se estivesse a referir-se ao dinheiro adiantado fica ainda por perceber qual seria o retomo do investimento e a medida da divisão da mais-valia.
Finalmente, não se mostrou fiável a declaração da autora no sentido de que seu o pai teria pago a totalidade o preço do terreno, na medida em que, segundo a própria, aquele apenas lhe falou do cheque cuj a cópia se mostra junta a fls. 37 para comprovar o pagamento do prédio e nada lhe disse quanto à quantia remanescente de €5.000, paga a título de sinal e antecipação do pagamento do preço.
À semelhança da autora, também a testemunha Jo… atestou, de forma genuína e credível, que o falecido An… se arrependera do negócio nos moldes em que fez, porque ''foi ele que meteu o dinheiro, mas o terreno ficou em nome dele e do cunhado".
No mais, limitou-se a dizer que o falecido pai da autora comentava que o cunhado lhe tinha apresentado o negócio e que o terreno comprado seria para construção, nada tendo podido adiantar quanto ao montante que aquele pagou ou o motivo pelo qual acordara na aquisição em compropriedade de um prédio que ele pagou, ainda que aquele falasse sempre em €100.000 que havia de retirar da venda.
A testemunha N…, companheiro da autora, começou por explicar que começou a frequentar a casa do "sogro" em 2015 e acerca do prédio que se discute nos autos mencionou que num almoço aquele lhe contou que o tinha comprado por o cunhado lhe ter apresentado o negócio e não ter dinheiro, sendo a ideia deles construir ou vender; entretanto como veio a crise, pensou-se em vender o terreno e a ideia dele seria reaver o investimento e depois dividir os lucros se os houvesse.
Questionado sobre aquilo que o "sogro" teria a reaver, disse que o pai da autora não entrava em pormenores do negócio e só dizia à filha que se ele morresse ela tinha que receber €100.000.
Instado a esclarecer se falou com o réu sobre o negócio e sobre a restituição do dinheiro pago pelo pai da autora, mencionou que aquele dizia que tinha "uma força de €50.000" e, por isso, o preço da venda que viessem a fazer era para dividir em partes iguais.
Ainda que os depoimentos de Ar… e S… não se tenham afigurado espontâneos e credíveis, tendo perpassado dos mesmos algum ressentimento com o pai da autora por não ter incumbido o primeiro de fazer um estudo/projecto de urbanização, o certo é que nada referiram no sentido da celebração de um empréstimo entre o réu e o pai da autora e o primeiro mencionou que o preço que faltava pagar já só seria metade do terreno. Jo…, que dos familiares do réu arrolados como testemunhas foi quem mais genuíno se mostrou, apesar de não ter conhecimento circunstanciado dos factos, mencionou que o sogro lhe contara que as vendedoras tinham começado por lhe propor a venda da totalidade do terreno por €200.000, mais tarde conseguiu a redução do preço para €170.000 e aquele só não fez esse negócio sozinho por não ter dinheiro, já que na altura seria um bom negócio.
Finalmente, a testemunha Jos… disse que o réu lhe falou de um cunhado que ia entrar com ele no negócio e ficariam em igualdade de circunstâncias, mas nunca lhe falou de aquele lhe emprestar dinheiro. Mais disse que à data do negócio na zona do prédio em questão havia lotes de 500 rrr' a serem vendidos por €75.000, donde o negócio seria muito vantajoso.
Analisadas as declarações e depoimentos das pessoas acabadas de referir, ficámos com a nítida impressão que, como nenhuma das pessoas ouvidas na audiência de julgamento assistiu às negociações ou foi posta ao corrente daquilo que foi efectivamente negociado, cada uma delas relatou a percepção que tinha daquilo que lhe tinha sido transmitido - de que é ilustrativa a circunstância de a autora ter mencionado que o pai lhe indicara o sítio onde estava o cheque para provar que ele tinha pago a totalidade do terreno e a própria ter ficado surpreendida após a sua morte quando viu que afinal o cheque não era de €100.000 nem correspondia ao preço da venda; obviamente que se o falecido An… tivesse explicado à filha o que combinou com o réu antes de celebrar a escritura, o que pagou e a quantia exacta que lhe era devida, aquela saberia à data do óbito a que se referia o seu tio quando lhe disse que não ia ficar a dever-lhe nada e ia assumir as contas que tinha com o pai.
Ora, dizendo o pai da autora que tinha pago a totalidade do prédio, compreende-se que aquela e o companheiro tenham tido a percepção de que quando o mesmo se referia a reaver o investimento quisesse dizer que pretendia reaver a quota de metade que tinha pago em lugar do réu. Isso não significa, porém, que o acordado com o réu quando decidiu entrar no negócio tenha sido em emprestar-lhe metade do valor pago, para que ele lho restituísse, independentemente do desfecho do futuro negócio.
E há um elemento que nos suscita grandes dúvidas sobre o que foi acordado: a circunstância de o falecido falar do recebimento de €100.000 pelo negócio a várias pessoas (a autora, o seu companheiro e o amigo Jo…) quando o preço declarado na escritura era de apenas €87.S00.
Tal menção, aliada à circunstância de Jos… dizer que o preço constante da escritura era mais baixo do que o valor real do prédio e à circunstância de se ter extraído da globalidade da prova produzida que aquilo que se antevia como um bom negócio afinal não o foi, leva-nos a considerar plausível e até provável que o negócio tenha sido celebrado no pressuposto de obtenção de um lucro global que nunca se mostrou realizável e que permitiria ao pai da autora fazer sua a quantia de €100.000 e permitiria ao réu fazer sua quantia de ordem não apurada. Isso explicaria que o pai da autora não se tenha importado em que o prédio ficasse registado a favor dele e do réu em partes iguais e apenas se tenha arrependido do negócio que celebrou quando se deu conta de que não só não teria o retomo do investimento que desejava, mas até poderia perder o dinheiro que investiu.
Perante as dúvidas quanto ao acordo firmado entre o pai da autora e o réu J…, o teor do contrato-promessa de junto aos autos e a declaração de I… no sentido de que não conhecia o pai da autora e o preço do sinal foi pago aquando do contrato-promessa pelo réu, apenas se demonstraram os factos n." 11 a 13 e 18, quedando indemonstrados os factos A a D, já que o ónus da prova dos mesmos recaía sobre a autora (art.° 342.0, n." 1 do Cód. Civil e 414.0 do CPC).
Ainda que a autora tenha afirmado que no dia do velório do pai o réu lhe disse que não ia ficar a dever-lhe nada e ia honrar as contas que tinha com o falecido, deixou claro que aquele nunca concretizou que contas eram essas e quando arranjou um comprador para o terreno lhe disse que queria receber metade do valor oferecido.
Também N… afirmou que num primeiro momento em que disseram ao réu que queriam reaver o investimento aquele respondeu que não tinha dinheiro e mais tarde quando arranjou um comprador para o terreno dizia que tinha "uma força de €50.000" e, como tal, o preço da venda que viessem a fazer (e seria então de €100.000) era para dividir pelos dois.
Compaginando as declarações da autora com o depoimento da única testemunha que se pronunciou a propósito, não pôde dar-se como provado que os réus tenham reconhecido dever metade do preço do prédio declarado na escritura antes do falecimento do pai da autora e no funeral d do mesmo (facto E e F)”.
Importa desde já referir que o requerido aditamento dos factos enunciados pressupõe em primeiro lugar que os competentes factos tenham sido alegados pelas partes e em segundo lugar que se revelem essenciais para a resolução do litígio.
Por conseguinte, a impugnação da decisão de facto só tem razão de ser quando há deficiência de julgamento quanto à matéria de facto atinente aquele objecto, isto é, quando o tribunal “a quo” tenha deixado de tomar em consideração factos (alegados) que se revelem imprescindíveis para a resolução do litígio que é convocado a decidir.
Pretende a apelante que seja aditado ao quadro fáctico provado que “No funeral do pai da A. o R. reconheceu que tinha contas com o falecido”, estribando-se no depoimento de Jos…, aliás, certamente por lapso, porquanto não foi ouvida nenhuma testemunha com esse nome, pretendendo, antes, quicá, referir-se à testemunha Jo…, devendo, por isso, ser eliminados os factos E) e F) do elenco factual não provado.
Requereu, ainda, que seja aditado ao quadro fáctico provado o teor dos documentos juntos com a p.i. sob os n.ºs 6 e 7.
Ora, o facto que a A. pretende ver aditado, e como ela própria reconhece (cfr. art.º 53.º da minuta recursória), é irrelevante para a decisão da causa e jamais a sua inclusão determinaria a eliminação dos factos sob E) e F) do elenco factual não provado.
Com efeito, é por demais manifesto que ainda que tal matéria fosse aditada à factualidade provada tal não teria a virtualidade de eliminar os factos sob as alíneas E) e F), porquanto a A. não logrou provar que “Os RR. sempre admitiram serem devedores de metade do preço pago pelo pai da A.” e que “No funeral do pai da A., os RR. reconheceram dever metade do preço do prédio à A. e disseram-lhe que ficasse descansada porque logo que vendessem o prédio lhe pagariam”, sendo bem diverso o teor destes e daquele facto, pelo que o aditamento requerido pela A. jamais seria razão de exclusão daqueles dois referidos factos, que, por o A. não ter logrado prová-los foram, e bem, julgados não provados.
O facto, cujo aditamento se requer, não é obviamente facto essencial nuclear, mas, quando muito, facto instrumental.
Efectivamente, são factos principais aqueles que integram o facto ou factos jurídicos que servem de base à acção ou à excepção os quais se podem dividir em essenciais ou complementares (ou concretização dos que as partes alegado), sendo os primeiros aqueles que constituem os elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, e os segundos aqueles que, de harmonia com a lei, lhes dão a eficácia jurídica necessária para fazer essa actuação, deixando-se registado que se são complemento ou concretização dos essenciais, em boa verdade e rigor lógico não se podem provar os segundos sem que os primeiros o estejam.”
Relativamente aos factos instrumentais - ao contrário do que sucede quanto aos factos essenciais (à procedência da pretensão do autor e à procedência da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu), relativamente aos quais funciona o princípio da auto- responsabilidade das partes - o tribunal não está sujeito à alegação das partes, podendo considerar os que resultem da instrução da causa (al. a) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC).
Para Castro Mendes, factos instrumentais são "os que interessam indirectamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes"[5].
Anselmo de Castro define-os como "factos que não pertencem à norma fundamentadora do direito e em si lhe são indiferentes e que apenas servem para, da sua existência, se concluir pela dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção (constitutivos). Por outras palavras: têm apenas a função possível de factos-base de presunção, e, como tais, dada a sua função instrumental e auxiliar da prova, estão subtraídos ao princípio dispositivo"[6] .
Teixeira de Sousa refere-se-lhes como sendo "os que indiciam aqueles factos essenciais"[7], ou seja, são factos secundários, não essenciais, mas que permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais.
Numa distinção clara, Lopes do Rego escreve que “factos instrumentais definem-se, por contraposição aos factos essenciais, como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da acção e da defesa e, por isso mesmo, não carecem de ser incluídos na base instrutória, podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material”, enquanto que “factos essenciais, por sua vez, são aqueles de que depende a procedência da pretensão formulada pelo autor e da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu”.
“Para que os factos sejam instrumentais é necessário que tenham uma relação com os factos principais, de tal maneira que, a partir daqueles, se possa chegar a estes. Assim, determinados factos podem ser instrumentais numa acção e não o serem numa outra - serem até os factos principais ou serem factos irrelevantes".[8]
Com efeito, os factos instrumentais consistem naqueles que servem de base a presunções judiciais, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 349.º e 351.º do Cod. Civil, resultando, pois, do disposto no n.º 4 do art.º 607.º e al. a) do n.º 2 do art.º 5, ambos do CPC, que o tribunal deverá tomar em consideração os factos instrumentais e extrair deles as ilações em sede de presunções judiciais. Atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a alegação ou a prova dos factos essenciais ou complementares, os factos instrumentais não são, em regra, objecto de um juízo probatório específico.
Com efeito, só devem constar do quadro fáctico provado ou não provado os factos instrumentais mais decisivos para servir de base às presunções judiciais e que devam ser concretamente conjugados com determinados meios de prova.
“Por conseguinte, relativamente aos factos que apenas sirvam de suporte àafirmação de outros factos por via de presunções judiciais, para além de não se mostrar necessária a sua alegação (art.º 5º) e de poderem ser livremente discutidos na audiência final (cfr. os art.ºs. 410.º e 516.º), nem sequer terão de ser objecto de um juízo probatório específico. Em regra, bastará que sejam revelados na motivação da decisão da matéria de facto, no segmento em que o juiz, analisando criticamente as provas produzidas, exterioriza o percurso lógico que o conduziu à formulação do juízo probatório sobre os factos essenciais ou complementares”[9].
Ora, na espécie, à míngua de prova dos factos essenciais nucleares pertinentes, tal factualidade é inócua porque não permite aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais, que, repete-se, a A. não logrou provar e, obviamente, não se pode a partir deste chegar àqueles nem mesmo serve de suporte à afirmação de outros factos relevantes para a decisão da causa.
O aditamento de tal facto não só é irrelevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, como jamais teria a virtualidade de, per se, eliminar a factualidade vertida sob as alíneas E) e F) do quadro fáctico provado.
Ademais, como fizemos notar, a impugnação da decisão de facto tem um carácter instrumental face à decisão de mérito proferida, não se justificando a se, de forma independente e autónoma daquela.
“A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante”[10].
E, “(…) por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente”[11].
Improcede, pois, o requerido aditamento á factualidade provada.
Pretende a apelante, que seja aditado ao elenco factual provado o teor dos documentos n.º 6 e 7, juntos com a p.i.
Os documentos não são factos, mas meros meios de prova de factos, destinados a demonstrar a realidade de certos factos; os documentos não são mais do que escritos que corporizam declarações de ciência, pelo que na descrição da matéria de facto provada só há que consignar os factos eventualmente provados por esses documentos.
Os documentos, tal como o restante elenco de meios de prova, apenas servem para motivar os factos que se dão como provados, mas não podem, eles próprios, servir de factos, ou seja, figurar como factos, sendo incorrecto e ilícito dar um documento como provado. Assim, deve dar-se como provado o facto ou o conteúdo que está ínsito no documento. Depois, na motivação, é que se pode fazer, então, referência aos documentos e a quaisquer outros meios de prova.
Acrescentaremos ainda que na fundamentação de facto da decisão só podem ter assento os factos – a matéria produtora ou desencadeadora do efeito jurídico pretendido pela parte (e também só os factos podem ser objecto da instrução da causa e só eles são objecto d a decisão da matéria de facto).
"Factos", para esses efeitos, são, resumidamente, as "ocorrências concretas da vida real, bem como o estado, a qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas", englobando "não apenas os acontecimentos do mundo exterior, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo"[12].
Já por prova devemos entender “o pressuposto da decisão jurisdicional que consiste na formação através do processo no espírito do julgador da convicção de que certa alegação singular de facto é justificavelmente aceitável como fundamento da mesma decisão”[13].
Analisemos os documentos n.º 6 e 7, junto com a p.i.
O documento n.º 6 junto com a p.i. a fls. 38 é uma carta enviada pela I. mandatária da A. aos RR., dela constando: “(…) Fui mandatada pela Senhora D. A… e (…), com o intuito de junto de V. Ex.ªas. obter a devolução da quantia de € 43.750$00 (…), dinheiro que foi adiantado pelo falecido a vosso favor para compra do prédio rústico denominado “… ”, sito na freguesia de Marvilha, concelho de Santarém.~
Em alternativa aceita a minha constituinte que fique consignado em documento escrito, tal como acordado com o pai da mesma, que a referida quantia lhe será ressarcida, acrescida de juros, no momento da venda do imóvel, mais propondo esta que o mesmo seja de imediato posta à venda.
(…)
Por seu turno, o documento n.º 7 junto com a p.i., a fls. 39 trata-se de uma carta enviada pelo I. mandatário dos RR. à I. Mandatária da A., nos termos da qual:
“(…) Na qualidade de mandatário do Sr. J… serve a presente para acusar a recepção da sua carta (…), cujo conteúdo mereceu a melhor atenção.
Assim, e no que concerne ao aí exposto, informa a Ilustre Colega que o meu constituinte nada deve á sua constituinte, sendo que a pretensão da mesma só é explicável pela falta de informação quanto às condições que estiveram na base da aquisição do imóvel em apreço.
Nesta medida, e caso seja do interesse da sua constituinte, por forma a esclarecer as vicissitudes inerentes à compra e venda do imóvel, estou á disposição para a realização de uma reunião para o efeito.
Assinalo, contudo, que o meu constituinte apenas se dispõe a aceitar a venda do imóvel, no todo ou em parte, desde que a repartição do preço seja feita em conformidade com as regras da compropriedade.
(…)”.
Ora, se o teor das ditas cartas em nada relevaria para a decisão da causa, como é bom de se ver, a verdade é que deveremos chamar à colação a Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro, que aprova os Estatutos da Ordem dos Advogados.
Sob a epígrafe “Segredo profissional”, dispõe o art.º 92.º do EOA:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.”.
Resulta, pois do n.º 1 do citado normativo que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, prevendo-se nas várias alíneas do referido normativo, a título exemplificativo, situações, relativamente às quais o advogado está vinculado ao dever de segredo.
Por seu turno o n.º 2 da mesma disposição do EOA torna a vinculação ao dever de segredo abrangente a todos os profissionais forenses que no exercício das suas funções tenham tido alguma relação com o litígio, nestes termos: “A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.”.
De acordo com o n.º 3 da citada norma, o segredo profissional abrange ainda os documentos que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
O n.º 4 apenas permite a revelação de factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que verificados os seguintes requisitos cumulativos: i) que a mesma se revele absolutamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes; ii) que haja prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo.
Finalmente, nos termos do n.º 5 da mesma norma, os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
Como se refere num parecer perfilhado pelo Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, na sua reunião de 11 de Maio de 1992, publicado na Colectânea de Jurisprudência[14], citando Jacques Hamelin e André Damien[15], o segredo profissional do advogado não é estabelecido no interesse dos profissionais que recebem confidências, nem no interesse daqueles que desvendam essas confidências, mas sim no interesse público[16].
Conclui-se no citado parecer, que o bem jurídico subjacente à tutela do segredo profissional é o interesse social da confiança, a garantia da reserva da vida privada e a preservação da própria liberdade profissional do advogado, transcendendo a mera relação advogado/cliente.
“As normas que dispõem sobre o segredo profissional de advogado são unanimemente reconhecidas como sendo de interesse e ordem pública”[17], o que as torna insusceptíveis de afastamento por mera declaração de vontade das partes, já que o n.º 4 do art.º 92.º do EOA, apenas permite a revelação de factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que absolutamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente, impondo a prévia autorização do presidente do conselho regional.[18]
Os documentos, cujo teor se pretende seja aditado ao elenco factual provado, têm em comum as seguintes características: i) trata-se de cartas trocadas entre advogados das partes ou entre aqueles e estas; ii) reportam-se, no seu conteúdo, à questão em discussão na causa.
Tanto basta para a sua integração na previsão legal do n.º 3 do art.º 92.º do EOA, onde se declara que “o segredo profissional abrange ainda os documentos que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo”[19].
São factos sujeitos a sigilo, nomeadamente, os factos de que o advogado tenha tido conhecimento, por informação do seu cliente (al. a) do n.º 1 do art.º 92.º do EOA), e os factos de que o advogado tenha tido conhecimento no âmbito de negociações malogradas (al. f) do n.º 1 do art.º 92.º do EOA).
Ora, na espécie, a A. juntou aos autos dois tipos de documentos: i) carta da I. mandatária da A., dirigida aos RR., com proposta para solução consensual e informação sobre o objecto do litígio; ii) carta trocada entre os I. mandatários da A. e RR., sobre o objecto do litígio.
Afigura-se particularmente insustentável, face ao princípio da confiança em que se deve estruturar a relação do advogado com o cliente e a contraparte, a junção aos autos pela ilustre mandatária da A., de carta que enviou aos RR., no âmbito de negociações anteriores à entrada da acção.
A mesma insustentabilidade deontológica transparece da divulgação de correspondência entre os advogados das partes sobre o objecto do litígio.
Concluímos, face ao exposto, que a junção aos autos dos documentos em apreço viola claramente o segredo profissional consagrado no art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
De acordo com o disposto no n.º 5 do art.º 87.º do EOA, os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
Ora, a correspondência em causa (cartas trocadas entre advogados das partes ou entre estas e os advogados) consiste em documentos juntos aos autos como meio de prova, pelo que tendo sido feita a junção de tais cartas sem a prévia autorização do presidente do conselho regional, exigida pelo n.º 4 do citado normativo do EOA e cabendo ao juiz avaliar a validade dos meios de prova não pode este tribunal ad quem aceitar tais meios de prova de forma acrítica, renunciando ao dever de apreciar a sua legalidade[20] (sendo certo que, ainda que tais meios prova fossem admissíveis, que não são, seriam manifestamente inócuos para a decisão da causa).
Destarte, a impugnação da decisão da matéria de facto requerida pela recorrente improcede na íntegra, mantendo-se intocada a decisão da matéria de facto. 2.3. Do enriquecimento sem causa
É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o seu objecto.
Ora, das conclusões das alegações do presente recurso, verifica-se que a questão que importa apreciar e decidir traduz-se em saber se no caso configurado na acção pela A./apelante ocorre ou não uma situação de enriquecimento sem causa por parte dos RR., e, em caso afirmativo, quais as consequências jurídicas daí a extrair na perspectiva da pretensão daquela ali formulada, ou seja, se os Recorridos deverão restituir-lhe a peticionada quantia de € 43.750,00.
A sentença recorrida concluiu pela inverificação do enriquecimento sem causa, absolvendo, por isso, os Recorridos do pedido de restituição formulado pela Recorrente, que se insurge contra tal veredicto, persistindo na argumentação de que se encontram preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa e, por consequência, pugna pela condenação dos Recorridos.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
Na verdade, fundando a A. a sua pretensão condenatória contra os RR no enriquecimento sem causa por parte destes, através da situação que configurou na acção, o êxito da mesma passa, desde logo, por saber se, no caso sub judice, se mostramou não preenchidos todos os requisitos do instituto do enriquecimento sem causa.
O enriquecimento sem causa constitui, no nosso ordenamento jurídico, uma fonte autónoma de obrigações e assenta na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia, encontrando-se na base deste instituto situações de enriquecimento sem causa, de enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia e tem a sua consagração legal no art.º 473.º do Cod. Civil, que dispõe: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (n.º 1) e que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” (nº 2).
A obrigação de restituir tem por objecto (n.º 1 do art.º 479.º do Cod. Civil) aquilo que tiver obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor monetário correspondente, estando aquele que enriqueceu obrigado a pagar juros legais a contar da citação ou a partir do momento em que teve conhecimento da inexistência dos factos que suportem o seu enriquecimento ou da falta do efeito que se pretendia obter (als. a) e b) do art.º 480.º do mesmo diploma).
Menezes Leitão[21] sustenta que a redacção do art.º 473.º do Cod. Civil impede o estabelecimento de um enquadramento unitário deste instituto, havendo que estabelecer uma tipologia de categorias (que elenca como o enriquecimento por prestação, o enriquecimento por intervenção, o enriquecimento por despesas realizadas por conta de outrem e o enriquecimento por desconsideração de um património intermédio) que permita enquadrar cada um dos casos. Propugna, pois, pela doutrina da divisão do instituto como forma de determinar a natureza dogmática do mesmo.
Como decorre do princípio geral ínsito no citado art.º 473.º, n.º 1, do Cod. Civil, e na esteira de Pires de Lima e Antunes Varela[22], a obrigação de restituição fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à coisa alheia pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes três requisitos: a verificação do enriquecimento de alguém, a carência de causa justificativa desse enriquecimento e ainda que o mesmo tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição[23].
O enriquecimento consiste, assim, na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, tanto podendo traduzir-se num aumento do activo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como, inclusive, na poupança de despesas.
Enriquecimento (injusto) esse que tanto poderá ter a sua origem ou provir de um negócio jurídico, como de um acto jurídico não negocial ou mesmo de um simples acto material.
O enriquecimento representa uma vantagem ou benefício, de carácter patrimonial e susceptível de avaliação pecuniária, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição e traduz-se numa melhoria da sua situação patrimonial, “encarada sob dois ângulos: o do enriquecimento real, que corresponde ao valor objectivo e autónomo da vantagem adquirida; e o do enriquecimento patrimonial, que reflecte a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efectiva (real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética)”[24]
Assim, o enriquecimento traduz-se na obtenção de um acréscimo patrimonial consistente num aumento do activo, na diminuição do passivo, na poupança de despesas, ou no uso de uma coisa ou no exercício de um direito alheio, podendo ser considerado na perspectiva de um “enriquecimento patrimonial” ou como um “enriquecimento real”, consoante o reflexo que o acto enriquecedor tenha na situação patrimonial do beneficiário[25].
Numa definição mais formal, e nas palavras de Antunes Varela[26] o enriquecimento será injusto quando, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, ele deve pertencer a outra pessoa.
Dado que a lei não define tal conceito, e dada a natureza diversa da fonte de que pode emergir, tal significa que o enriquecimento injusto terá sempre que ser apreciado e aferido casuisticamente, interpretando e integrando a lei à luz dos factos apurados.
A obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa, reconduzindo-se a ausência de causa justificativa do enriquecimento à constatação de que o enriquecimento nunca teve uma causa ou porque, tendo tido uma causa num momento inicial, a mesma deixou de existir. Por outras palavras, tratam-se de casos em que, como refere Menezes Leitão[27] o fim visado pela prestação não vem a ser obtido, o que se concretiza na inexistência da dívida que o prestante pretendia solver (condictio indebiti), na falta de verificação do efeito futuro pretendido com a prestação (condictio ob rem) e no desaparecimento da causa da prestação (condictio ob causam finitam).
Como ensina Antunes Varela[28], a noção de causa do enriquecimento difere segundo a natureza do acto do qual provém esse enriquecimento. Assim, se a atribuição patrimonial criadora de enriquecimento tem por base uma prestação, a causa é a relação jurídica que a prestação visava satisfazer.
É sabido que o conceito de causa do enriquecimento não se encontre definido e que a causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe deu origem.
Devendo, todavia, funcionar como directriz geral, em todos os casos, a ideia de que o enriquecimento carece de causa justificativa quando, segundo a lei, deve pertencer a outra pessoa.
Ou seja, e por outras palavras, o enriquecimento carecerá de causa sempre que o direito não o aprove ou consente, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, que legitime o enriquecimento.
A vantagem patrimonial obtida por alguém tem como contrapartida, em regra, uma perda ou empobrecimento efectivo de outrem, ou seja, ao enriquecimento de um corresponde o empobrecimento de outro, existindo entre esses dois efeitos uma “correlação, no sentido de que o facto ou factos que geram um geram também o outro. Numa palavra, enquanto o património de um valoriza, aumenta ou deixa de diminuir, com o outro dá-se o inverso: desvaloriza, diminui ou deixa de aumentar”[29].
Essa deslocação patrimonial, quando realizada, sem causa justificativa, obriga à restituição que tem por objecto o que for, indevidamente, recebido, ou o que for recebido, por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (art.º 473.º, n.º 2, do Cod. Civil). Prevêem-se aí, numa enumeração exemplificativa destinada a dar uma linha de rumo interpretativa, três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio in debiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto)[30].
Daí que se postule a necessidade de existência de um nexo (causal) entre a vantagem patrimonial auferida por um e o sacrifício sofrido por outro.
A noção de falta de causa do enriquecimento[31] é, contudo, muito controvertida e difícil de definir, inexistindo uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa. Perante tais dificuldades, há que saber, em cada caso concreto, “se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve”[32] ou, então, se “o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa”[33].
Pode, assim, dizer-se que “o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial”, hipótese em que a lei “obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o accipiens no dever de restituir o recebido”. Deste modo, operando-se deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa.
Por fim, é necessário que exista uma correlação entre o empobrecimento de um dos sujeitos e o enriquecimento do outro, que se exprime na circunstância de a vantagem patrimonial obtida por um resultar de um sacrifício económico comportado pelo outro. Tem-se, todavia, entendido que a relevância deste pressuposto deve ser minorada – tanto mais que pode ser dispensado nalgumas das modalidades de enriquecimento supra identificadas - no sentido de se reconduzir apenas à imputação do enriquecimento à esfera de outrem que não o enriquecido[34].
O benefício obtido pelo enriquecido deve, pois, resultar de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido.
Por sua vez, dispõe o art.º 474.º do Cod. Civil que “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
Resulta, pois, de tal normativo que a acção baseada nas regras do instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, só podendo a recorrer-se a ela quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reacção (o que, no fundo, funcionará como um novo pressuposto ou requisito legal para o recurso à acção de restituição com base no instituto do enriquecimento sem causa).
“A subsidiariedade da acção de enriquecimento tem, no entanto, de ser entendida em termos hábeis. Pode originariamente a lei não permitir o exercício da acção de enriquecimento, em virtude de o interessado dispor de outro direito e, posteriormente, facultar o recurso àquela acção, em consequência da caducidade desse direito”[35].
Por fim, dir-se-á que constitui entendimento claramente prevalecente no sentido de que, à luz do art.º 342.º, n.º 1, é sobre o autor (alegadamente empobrecido) que impende o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um daqueles requisitos, ou seja, de todos aqueles pressupostos legais que integram o referido instituto.
Com efeito, sendo o enriquecimento fonte autónoma da obrigação de restituir, embora subsidiária (art.º 474.º do Cod. Civil), a falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento terá de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformidade com as exigências das regras gerais sobre os ónus de alegação e prova (art.º 342.º do Cod. Civil). A mera falta de prova da existência de causa da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar também que efectivamente a causa falta.
Aqui chegados, analisemos então o caso em apreço à luz de tais considerações e dos factos apurados.
Resulta da factualidade provada que o pai do réu J…, F…, era arrendatário do prédio misto denominado …, com a área de 71.960 m2, sito na freguesia de Marvila, concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o n.º …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … secção E e na matriz predial urbana sob o artigo …, sendo proprietárias do mesmo M… e I….
Após o falecimento do pai do réu, as proprietárias interpuseram uma acção tendo em vista cessar o direito ao arrendamento.
No âmbito de tal processo, o réu, M… e I… firmaram um acordo, pondo fim ao litígio.
O R. J… negociou a aquisição do imóvel de que o seu pai era arrendatário e celebrou com as proprietárias, em Novembro de 2007, o contrato-promessa de compra e venda, tendo, por outorga do referido contrato-promessa feito a entrega aos promitentes vendedores, a título de sinal e princípio de pagamento, do montante de € 5.000,00.
Não dispondo o R. J… de liquidez para pagar a totalidade do preço do imóvel prometido comprar e não conseguindo, pela sua idade, um empréstimo bancário, propôs ao pai da autora que entrasse no negócio consigo, para posterior revenda e realização de uma mais-valia, o que o pai da autora aceitou.
Em 14.05.2008, o falecido pai da A. e o R. J… adquiriram em comum e partes iguais, por compra a M…, I… e Al… o prédio rústico com a área de 58.508 m2, sito em …, freguesia de Marvila, concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o n.º … da mesma freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo … da Secção R, actualmente artigo … da Secção RI da União de Freguesias de Santarém, pelo preço de € 87.500.
Por conta do preço, o pai da autora efectuou o pagamento da quantia de € 82.500,00, tendo o prédio sido inscrito a favor do pai da autora e dos réus em comum e partes iguais.
O pai da A. e os RR. não venderam o prédio devido à crise do imobiliário.
Será, pois, à luz de tais factos que terá de se apurar se estão ou não verificados os requisitos/e ou pressupostos legais do instituto do enriquecimento sem causa.
Ora, da concatenação das considerações que expressámos sobre o instituto do enriquecimento sem causa com a factualidade provada, é preclaro que a A. não logrou provar, como lhe incumbia (n.º 1 do art.º 342.º do Cod. Civil) os pressupostos de que dependia a verificação de uma situação de enriquecimento sem causa.
Com efeito, não resulta da factualidade provada que o alegado enriquecimento dos RR. à custa do alegado empobrecimento do pai da A. seja injusto, desde logo porque a A. não provou a inexistência de causa justificativa para que o seu pai tivesse pago a quantia de € 82.500,00, enquanto que o R. pagara a quantia de € 5.000,00, e o imóvel tivesse sido comprado e registralmente inscrito em comum e partes iguais.
O que se apurou foi que o R. J… propôs ao pai da A. a compra de um imóvel, que já havia negociado, tendo até já celebrado contrato-promessa de compra e venda, desconhecendo-se, por completo, o que entre ambos foi acordado para que o pai da A. tivesse “entrado” no negócio com € 82.500,00 e o prédio ficasse inscrito em comum e partes iguais em nome de ambos, quando até o pai da A. era homem experiente em negócios de imobiliário. Era à A. que competia provar, segundo as regras de repartição do ónus probatório, a alegada falta de causa justificativa, o que não logrou fazer. O facto do imóvel estar inscrito em comum, em partes iguais, quando o pai da A. pagou € 82.500,00 e os RR. € 5.000,00 não releva, de per se, obviamente, para que se conclua pela inexistência de causa justificativa.
Daí que não se possa, desde logo, falar em enriquecimento injusto.
É que para que se constitua uma obrigação de restituir fundada no enriquecimento, não basta que uma pessoa tenha obtido uma vantagem patrimonial, à custa de outrem.
Não se pode assim, acompanhar a recorrente na sua pretensão de fazer derivar o direito à restituição da mera demonstração de uma deslocação patrimonial, desconsiderando os demais requisitos legalmente exigidos para existência da obrigação de restituir, designadamente a da falta de causa da deslocação.
Com efeito, resulta da factualidade provada que o pai da A. aceitou e celebrou o negócio naqueles referidos termos, com vista à revenda, de forma a obter lucro, o que é curial em qualquer negócio, tal como é do senso comum que qualquer investimento comporta sempre risco, sendo certo que tal revenda ainda não se realizou, o que poderá ocorrer a todo o tempo, estando a concretização dessa revenda na disponibilidade de A. e dos RR.
Como bem se refere na sentença recorrida “(…) repugna tanto ao direito a situação de alguém que enriquece sem causa justificativa e à custa de outrem, como a situação de quem faz um mau negócio e pretende repercutir no património de outrem a perda conatural ao risco que voluntariamente assumiu”
Com o respeito sempre devido, não se entende a afirmação da apelante, quando refere que: “É certo que o tribunal argumenta ainda que como o preço do prédio ascendeu a € 87.500,00 (…), e desse os R. apenas pagaram € 5.000,00 (…), como não se apurou o valor actual do prédio, não se pode concluir que tenha havido enriquecimento dos RR. Face à disparidade dos valores pagos, não faz qualquer sentido esta afirmação; mas ainda que assim fosse sempre haveria que remeter para liquidação de sentença esse enriquecimento dos RR. à custa do empobrecimento da A., o que o Tribunal não fez (…)”, quando na sentença recorrida, utilizando o tempo condicional se escreveu: “(…) seria de admitir o enriquecimento dos réus à custa da autora (…), posto que se tivesse apurado que o valor actual do prédio é superior àquele que eles despenderam na sua aquisição (…). Na verdade, ainda que o enriquecimento e o empobrecimento devam estar correlacionados, não se exige uma correspondência exacta entre um valor de um e o de outro. (…)” e mais à frente, onde se escreveu, em tempo futuro: ”(…) pela não realização do fim visado pela prestação (a realização da mais-valia que os próprios réus afirmam ser a finalidade do pai da autora com a entrega de € 82.500,00), poderá vir a falar-se do enriquecimento dos réus à custa da autora, mas apenas e tão-só se pela venda a autora não vier a receber a esperada mais-valia (ou se os réus impedirem tal resultado). Dito por outras palavras, se o pagamento de quantia superior àquela que caberia ao pai da autora por aplicação das regras da compropriedade teve em vista um lucro e não for possível obtê-lo com a venda poderemos estar perante a situação prevista na parte final do n.º 2 do art.º 473.º do Cod. Civil, desde que os réus venham a enriquecer, ou seja, a receber uma contraprestação material e juridicamente injustificada. Todavia, tal conclusão pressupõe a alegação e prova de que não se verificou a expectativa em que o pagamento assentou e a alegação e prova da medida do enriquecimento dos réus à custa da autora. Como refere Menezes leitão, no caso de enriquecimento por prestação, o receptor/beneficiário da prestação não responderá em caso de investimento falhados do dinheiro recebido, por não lhe ser aplicável o regime relativo à restituição do mutuário, apenas tendo de responder pelo valor remanescente no seu património, ou seja pelo enriquecimento subsistente”.
Ora, não se tendo provado o enriquecimento (injusto) não se vê como se poderia apurar o seu valor a liquidar em incidente próprio. Observe-se, ainda, que da leitura da sentença não se conclui que tenha sido julgado verificado o enriquecimento dos RR., tanto mais que ali se escreveu “Seria de admitir se…”, sendo certo que, ainda que assim fosse, a verdade é que a A. não provou, reitera-se, a inexistência da causa justificativa para os alegados enriquecimento e empobrecimento.
Não basta à A. repetir, de forma conclusiva, que inexiste causa justificativa, que o imóvel está registado em comum, sem justificação. Necessário era que tivesse provado a inexistência da causa justificativa, o que não fez.
Aqui chegados, como atrás já se referiu, não se pode dizer, por um lado, que ocorreu uma efectiva deslocação patrimonial em benefício dos recorridos em detrimento do falecido pai da Recorrente (ou melhor, à custa daquele), e, por outro, que se verificou um enriquecimento daqueles que, por ser substancialmente ilegítimo ou injusto, e por isso desaprovado pelo direito, deva implicar a obrigação de restituição da quantia peticionada.
Resulta cristalino que não estamos perante uma situação de enriquecimento sem causa.
É pois, manifesto que a acção, com fundamento no enriquecimento sem causa, pela falta de prova dos respectivos pressupostos teria de improceder, não assistindo, assim, jus à A. à restituição da quantia de € 43.750,00.
Por todas estas razões, resulta a improcedência das alegações que, ex adverso, compõem a minuta recursória, concluindo-se não merecer o recurso provimento, não se mostrando violado qualquer um dos preceitos invocados, sendo, ao invés, de concluir pela manutenção da decisão recorrida. 2.4.Da ampliação do âmbito do recurso
Conforme resulta do art.º 636.º do CPC, esta faculdade do recorrido é concedida, em primeiro lugar, quando, existindo uma pluralidade de fundamentos da acção, se pretende que o tribunal conheça do fundamento ou dos fundamentos em que a parte vencedora decaiu, para a hipótese do fundamento vencedor ser julgado procedente pelo tribunal de recurso (n.º 1).
Além disso, também permite ao recorrido requerer a ampliação do objecto do recurso, invocando, a título subsidiário, a nulidade da sentença ou impugnando a decisão sobre determinados pontos da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas (n.º 2).
Em todas estas situações apenas se permite que a parte recorrida amplie o objecto de conhecimento do recurso, prevenindo a hipótese deste poder ser julgado procedente, de modo a poderem ser ponderadas situações que na 1.ª instância não influenciaram a decisão tomada.
Ora, considerando a improcedência da apelação da Autora/Recorrente, fica prejudicada a pronúncia sobre a requerida ampliação do objecto do recurso, a qual, aliás, independentemente da verificação dos pressupostos de que depende a sua admissibilidade, constituía argumentação subsidiária. 2.5.Da Litigância de má-fé
Sustenta a apelante que os RR. litigaram de má-fé, já que “em audiência de julgamento apurou-se contrariamente ao afirmado que os RR. já não eram rendeiros do prédio, e não tinham direito a qualquer compensação porquanto tudo isso tinha acontecido em tempos, mas terminado muito antes da data da aquisição do imóvel, e em transacção judicial que foi junta aos autos pela A., em pleno julgamento pois só então a descobriu, e na qual os RR. aceitaram, contrariamente ao que afirmaram na contestação, a caducidade do arrendamento. Os RR. foram intervenientes nessa transacção em 2004, esconderam a mesma do processo, e afirmaram que eram rendeiros do prédio, quando isso já não era verdade, e que a outra metade do preço correspondente à que foi paga pelo pai da A. foi de igual modo paga por si, por compensação, quando nada disso se veio a demonstrar, antes pelo contrário”, pelo que “considera que também neste segmento mal andou o Tribunal “a quo”, requerendo-se a alteração de decidido.”.
Cabe desde já notar que a A. pediu a condenação dos RR. como litigantes de má-fé aquando das alegações na audiência final, fundamentando tal pedido na sequência das alegações produzidas pelo I. mandatário dos RR. nas quais apelou ao depoimento da testemunha Jos…, dizendo que a escritura de compra e venda não foi logo feita por questões de desanexação e tal era falso, pelo que não tendo sido alegada pelos réus na contestação tal factualidade e não fazendo parte do objecto do processo, secundando-se neste conspecto a fundamentação constante da sentença recorrida, bem andou o tribunal a quo ao indeferir o pedido de condenação dos RR. por litigância de má-fé, pelo que nenhuma censura há a fazer.
Diversa é agora a fundamentação invocada pela A.. e pese embora se trate de “questão nova”, porque de conhecimento oficioso, passaremos a conhecer desta pretensão.
Apreciemos.
O direito de acção constitui uma emanação do sistema de justiça pública – i.e. o monopólio estatal do exercício da função jurisdicional -, o qual tem como alicerce básico o estabelecimento da regra da proibição da autodefesa (art.º 1.º do CPC).
O direito de acção caracteriza-se por ser um direito de fazer agir o Estado para que, através dos tribunais, defina a posição jurídica concreta do requerente, cabendo àquele o dever de actuar (cfr. n.º 1 do art.º 20.º e n.º 2 do art.º 205.º, ambos da CRP e n.º 1 do art.º 8.º do Cod. Civil).
Essa definição respeitará o contraditório da contraparte (n.ºs 1 e 2 do art.º 3.º do CPC e impõe a demonstração dos pertinentes factos (n.ºs 1 e 2 do art.º 342.º do Cod. Civil).
Assim, apesar de a todo o direito substantivo corresponder uma acção (n.º 2 do art.º 2.º do CPC), o direito a accionar os órgãos competentes do Estado assume-se também como distinto do direito subjectivo que sustenta a pretensão do requerente, surgindo no conflito desencadeado por uma violação e ameaça de violação desse direito ou ainda pela incerteza relativamente àquele direito subjectivo .
E essa autonomia releva-se, desde logo, na circunstância de o direito de acção existir e funcionar sem que se saiba se o direito subjectivo subjacente existe e no reconhecimento de que, ressalvados os casos excepcionais de má-fé, o direito de acção/de defesa foi correctamente exercido, mesmo nas hipóteses em que, a final, se vem a reconhecer que o direito substantivo não existe[38].
É que, mesmo nos casos em que a acção/excepção improcede, não se pode, sem mais, afirmar que o direito de acção/de defesa foi exercido em termos abusivos. Por outras palavras, o recurso legítimo aos tribunais não é apenas consentido àqueles que inequivocamente tem a razão a seu lado.
Daí que a improcedência da acção apenas acarrete a condenação em custas (n.º 1 do art.º 527.º do CPC), isto é a responsabilização processual objectiva do vencido.
Porém, como sucede com qualquer direito, também o direito de acção/de defesa é susceptível de ser exercido em termos abusivos (cfr. art.º 334.º do Cod. Civil).
Tal conduta é sancionada através do mecanismo da responsabilidade processual subjectiva, i.e. da litigância de má-fé, sendo esta correntemente descrita como um afloramento do abuso de direito.
Decorre do n.º 1 do art.º 542.º do CPC que, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária se esta a pedir.
No n.º 2 do art.º 542.º do CPC, elencam-se situações que a lei entende integrarem o conceito de litigância de má-fé.
Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa, tiver praticado omissão grave do dever de cooperação, ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A primeira fattispecie enquadra os casos em que é deduzida pretensão com manifesta falta de fundamento fáctico ou jurídico, ao passo que a segunda prende-se com a violação do dever de verdade na alegação de factos que relevem para a acção ou para a defesa.
A doutrina tem considerado a má-fé de que trata o art.º 542.° do CPC sob dois aspectos: a má-fé material e a má-fé instrumental.
A primeira noção abrange os casos de dedução de pedido ou oposição cuja falta de fundamento se conhece e a alteração consciente da verdade dos factos ou a omissão de factos essenciais. A segunda noção diz respeito ao uso reprovável do processo, ou dos meios processuais, para conseguir um fim ilegal, para entorpecer a acção da justiça ou para impedir a descoberta da verdade.
Requisito necessário é, em ambos os casos, que a parte actue de forma dolosa (ou seja, com a consciência de não ter razão) ou com negligência grave.
Trata-se de uma inovação decorrente da entrada em vigor das alterações introduzidas pela Reforma de 1995/1996, operada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, a qual introduziu uma nova filosofia de colaboração, dando um especial relevo ao “(…) dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”(cfr. o respectivo preâmbulo).
Ou seja, os pressupostos subjectivos da litigância de má-fé alargaram-se e, por isso, quem actuar com negligência grosseira também pode e deve ser condenado como litigante de má-fé.
Porém, tem de ser uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação ou de censura e idêntica reacção punitiva.
Assim, entende-se que a actuação contrária à boa-fé será “temerária” sempre que a parte actue com culpa grave ou erro grosseiro (será “simplesmente imprudente” se a lide foi conduzida com culpa leve) ou “dolosa”, sempre que a parte viole intencionalmente aqueles princípios, i.e. sabia não ter razão e ainda assim litigou.
Os intervenientes processuais devem fazer do processo um uso correcto, o que passa, por respeitar princípios tão basilares como são dos da cooperação e da celeridade processual, sem os quais o processo não atinge o seu escopo: Resolução do conflito entre as partes, fazendo-se justiça.
Como ensina o Professor Menezes Cordeiro: “No direito processual – 1995/96 – valem o dolo e a negligência grave: não a comum. A jurisprudência, ainda que sublinhando o alargamento que a relevância agora dada à negligência (grave) significa, restringe esse alargamento às prevaricações substanciais; nas processuais – art.456º/2, d) – apenas relevaria o dolo. A própria negligência grave é entendida como “imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesto aos olhos de qualquer um” Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito e Culpa In Agendo”.
Ora, na espécie, é certo que os RR. alegaram na sua contestação a factualidade a que a A. faz menção na sua minuta recursória, factualidade que não lograram provar.
Do mesmo jeito, a A. alegou que o seu pai emprestou aos RR. a quantia de € 47.500,00, que os RR. no dia do funeral do pai da A., na presença de várias pessoas, confessaram que deviam aquela quantia ao falecido pai da A., factualidade que, do mesmo modo, não logrou provar.
É que a não prova de determinada factualidade não determina a prova do seu contrário.
Da falta de prova, e consequente improcedência seja da acção seja da excepção deduzida pelo R., não determina, sem mais, que a(s) parte(s) tenham litigado de má-fé. Necessário se torna é que as partes tenham agido dolosamente ou, pelo menos, com negligência grave, resultando prova nesse sentido.
No caso sujeito, não se vislumbra da factualidade provada que os RR. tenham litigado de má-fé. Quando muito, a sua actuação terá roçado a má-fé, mas não é enquadrável em qualquer uma das alíneas que compõem o n.º 2 do art.º 542.º do CPC.
Na espécie, à míngua de elementos que apontem em sentido diverso, não se divisa a litigância de má-fé por parte dos apelados e não ocorrendo os pressupostos objectivos ou subjectivos da condenação da apelante por litigância de má-fé, indefere-se o pedido formulado pela apelante.
As custas serão suportadas, porque vencida, pela Recorrente (n.º 1 e 2 do art.º 527.º do CPC).
IV.Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, consequentemente;
a) confirma-se a sentença recorrida;
b) indefere-se o pedido de condenação dos apelados por litigância de má-fé.
Custas pela apelante
Registe.
Notifique.
Évora, 22 de Outubro de 2020
Florbela Moreira Lança (Relatora)*
Elisabete Valente (1:ª Adjunta)**
Ana Margarida Leite (2.ª Adjunta)*
________________________________
- Sessão e conferência realizadas por meio de plataforma de comunicação remota, nos termos do aditamento ao ponto 4.1. do Plano de Contingência do Tribunal da Relação de Évora, de 16 de Março p.p., e da Divulgação n.º 3/20, de 18 de Março p.p., da Presidência deste Tribunal da Relação da Évora.
* Acórdão assinado electronicamente
** Atesto o voto de conformidade da Senhora Juíza Desembargadora Elisabete Valente, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, Florbela Moreira Lança
_______________________________________________
[1] Proferido no proc. n.º 692-A/2001.S1, acessível em www.dgsi.pt
[2] Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, pp. 117
[3] Assim, o Ac. do STJ de 30.09.2010, proferido no proc. n.º 341/08.9TCGMR.G1.S2, acessível em www.dgsi.pt
[4] Ac. do STJ de 30.09.2010, proferido no proc. n.º 341/08.9TCGMR.G1.S2, acessível em www.dgsi.pt
[5] Direito Processual Civil, 1968, II, pp. 208.
[6] Direito Processual Civil Declaratório, III, pp. 275-276
[7] Introdução ao Processo Civil, 1993, pp. 52
[8] Ac. da RC de 27.04.2004, proferido no proc. n.º 204/04, acessível em www.dgsi.pt
[9] Abrantes Geraldes, Sentença Cível, “Jornadas de Processo Civil” organizadas pelo CEJ, em 23 e 24 de Janeiro de 2014.
[10] Ac. da RC de 24.04.2012, proferido no proc. n.º 219/10, acessível em www.dgsi.pt
[11] Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12
[12] A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 406 e 407.
[13] Cfr., de João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, Lisboa, Edições Atica, 1961; pp. 741. Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova, Coimbra, Ed., 1992.
[14] CJ, Ano XVII, 1992, Tomo III, pág. 79.
[15] Les Règles de la Profession d’Advocat.
[16] O referido parecer, citado na sentença recorrida, surge na sequência de um acórdão da Relação do Porto, e em discordância com o mesmo, no qual se decidiu que, tendo sido a própria autora que indicou o advogado como testemunha, isso significa que o dispensou do segredo profissional.
[17] Ac. do STJ de 20.09.2007, proferido no proc. n.º 07B2224, acessível em www.dgsi.pt.
[18] No sentido da natureza de interesse e ordem pública do segredo profissional, veja-se ainda o acórdão do STJ de 27.05.2008, proferido no proc. n.º 07B4673, acessível em www.dgsi.pt.
[19] Nesse sentido, vejam-se os seguintes arestos: acórdão deste tribunal, de 20.01.1993, in CJ, Ano XVIII, 1993, Tomo 1, pág. 65; acórdão da relação de Lisboa, de 8.11.1990, in CJ, Ano XV, 1990, Tomo 5, pág. 109.
[20] Ac. do STJ de 22.06.1988, CJ, 1988, III, pp. 11 e Acs. da RL de 09.11.1995 e de 13.05.1999, respectivamente, em CJ 1995, Tomo 5, pp. 104 e CJ 1999, Tomo 3, pp. 96
[21] O Enriquecimento sem causa no Direito Civil, Almedina, Reedição, pp. 925 e ss.
[22] Código Civil Anotado, I, 3ª ed., pp. 427-431
[23] Assim ANTUNES VARELA, op. cit., pp. 480 e, entre outros, os Acs. do STJ de 02.07.1976, BMJ n.º 259, pp. 206 e de 24.01.1978, BMJ n.º 273, pp. 244
[24] Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, pp. 492- 493, e F.M. Pereira Coelho, O enriquecimento e o dano, separata dos anos XV e XVI da Rev. de Direito e Estudos Sociais, 2.ª reimpressão, Coimbra 2003, pp. 24 e ss e 36 e ss.
[25] Antunes Varela, op. cit., pp. 481- 482; no sentido em que é desnecessário um incremento patrimonial, bastando-se a lei com a verificação de uma aquisição específica, vide Menezes Leitão, O Direito das Obrigações, I, Almedina, 11ª ed., pp. 406
[26] Das Obrigações em Geral, I, Almedina Coimbra, 4ª ed., pp. 408
[27] Op. cit., pp. 863 e ss.
[28] Op. cit., pp. 483
[29] Cfr., neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Reimpressão, 2010, Coimbra Ed., pp. 197 e 198, e Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, pp. 495 e 496.
[30] Cfr, a este propósito, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Reimpressão, 2010, Coimbra Ed., pp. 205, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, pp. 505, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 2.ª ed., Almedina, pp. 395
[31] Cfr, sobre as várias noções e modalidades de causa, com relevância jurídica, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2012, 7.ª ed., pp. 263 a 271.
[32] Cfr., neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, págs. 199 e 200
[33] Cfr, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume I, 4ª edição, págs. 454 e sgts e Diogo Leite de Campos, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir e Enriquecimento, págs. 317 e 412.
[34] Assim Menezes Leitão, op. cit. pp. 836 e ss. e Leite de Campos, Enriquecimento sem causa e responsabilidade civil, ROA n.º 42, I, pp. 44 e 45
[35] Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., pp. 433
[36] Assim, entre outros, Acs. do STJ de 16.09.2008, de 20.09.2007, 14.07.2009, e de 14.05.1996, respectivamente, nos processos 08B1644, 07B2156, 413/09.2YFLSB, acessíveis em www.dgsi.pt, sendo o último na CJ, STJ, Ano III, Tomo 2, pp. 172 e Ac. da RC de 2008.12.2017, proc. n.º 278/08.1TBAVR.C1, acessível em www.dgsi.pt
[37] Cfr, neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª ed., revista e actualizada (reimpressão), Almedina, Coimbra, 2003, 482 e 483, nota (1), Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, pp. 501, nota (1), e, entre outros, os Acs. do STJ, de 24.04.1985, BMJ 346º, pp. 254, de 28.10.1993, proc n.º 083871, de 22.06.2004, proc. n.º 1688/04-1, de 25.11.2008, proc. n.º 08A3501, de 02.02.2010, proc. n.º 1761/06.97UPRT.S1, de 14.10.2010, proc. n.º 5938/04.3TCLRS.L1.S1, de 19.02.2013, proc. n.º 2777/10.6TBPTM.E1.S1, de 20.03.2014, proc. n.º 2152/09.5TBBRG.G1.S1 e de 29/04/2014, proc. n.º 246/12.9T2AND.C1.S1, acessíveis em www.ggsi.pt.
[38] Assim ANTUNES VARELA, RL.J n.º 3824, pp. 330