ABUSO DE DIREITO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário

1 – A cobrança de juros no prazo de 5 anos não corresponde a uma prescrição presuntiva, sujeita ao regime especial estabelecido nos artigos 312º e seguintes do Código Civil, mas de uma prescrição de curto prazo.
2 – Existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado
3 – São elementos constitutivos do instituto do enriquecimento sem causa o enriquecimento de um património e o correlativo empobrecimento de outro decorrentes do mesmo facto e a ausência de causa justificativa para a correspondente deslocação patrimonial verificada. O enriquecimento de alguém somente será injusto, dando por isso lugar à restituição dos valores recebidos, quando a entrega desses valores não seja determinada por uma causa justificativa.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo nº 820/19.2T8BJA-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Juízo Central Cível e Criminal de Beja – J2
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Por apenso à execução instaurada por “(…) – Sociedade de Titularização de Créditos, SA” contra (…), este veio este deduzir oposição à execução mediante embargos. Proferido saneador-sentença, o executado interpôs o competente recurso.
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Para tanto e em síntese, o executado alega que parte dos juros peticionados se encontram prescritos. Adicionalmente, afirma que o exequente reclamou o seu crédito no processo nº 0248201301007530 junto da Autoridade Tributária e adjudicou para si um bem por € 140.500,00, imóvel que avaliou em € 480.000,00 e assim deve entender-se que a dívida se encontra totalmente paga.
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Foi recebida a oposição à execução mediante embargos e determinada a notificação da sociedade exequente para contestar, tendo a exequente emitido posição quanto à matéria da prescrição dos juros e impugnado a restante matéria.
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Em sede de saneador-sentença, o Tribunal «a quo» decidiu julgar totalmente improcedente a oposição à execução mediante embargos de executado.
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Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«1º O presente recurso tem por objecto o despacho saneador-sentença proferido nos autos, que determinou totalmente improcedente a oposição à execução mediante embargos de executado.
2º Entendendo que a Prescrição de Juros, o Tribunal a quo não teve em consideração a data de 14/03/2013, em que o Embargado alega o seu crédito.
3º Sem conceder apenas por mera cautela de patrocínio se aduz, o Embargante impugnou os juros e despesas no valor € 53.519,54, desconhecendo que tipos de juros o exequente se refere.
4º O executado, ora Recorrente encontrava-se em dívida, após a Reclamação de Créditos no montante de € 109.500,00, pelo que o Tribunal a quo deveria ter considerado provado.
5º A dívida exequenda mão se encontrava vencida, pois, o Embargado não procedeu, juntos dos Embargantes, à interpelação quer do incumprimento quer da resolução do contrato.
6º Pelo que o Tribunal a quo deveria ter decidido a inexigibilidade da obrigação exequenda relativa aos juros de mora.
7º A enorme discrepância entre o valor do bem imóvel e o valor pelo qual este foi adjudicado e posteriormente vendido, existe um enriquecimento sem causa ou abuso de direito.
8º Pelo que a dívida exequenda encontra-se totalmente saldada, face ao valor atribuído ao imóvel de € 480.000,00.
9º Considerando que o imóvel foi adquirido pelo próprio credor hipotecário que posteriormente o vendeu a “(…), Lda.”, pelo preço de € 275.000,00.
Por todo o supra exposto, requer-se a V. Exa que se dignem dar provimento ao presente Recurso, revogando-se assim a Sentença recorrida e, em consequência, substituída por outra, que decida de acordo com o pedido do Embargante, ora Recorrente, seguindo este os seus termos.
Só assim se decidindo será cumprido o Direito, que V. Exas, com ponderação e saber, farão a costumada Justiça!». *
A parte contrária contra-alegou, manifestando posição no sentido da improcedência do recurso. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência de erro de direito, na avaliação da prescrição da obrigação de juros e na questão do pagamento integral da dívida, bem como do abuso de direito e do enriquecimento sem causa.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Factos provados:
Estão provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1) Por contrato de mútuo com hipoteca e fiança outorgado em 14/03/2013 a Caixa Económica Montepio Geral concedeu à sociedade “(...) – Materiais de Construção, Lda.” um mútuo no valor de € 250.000,00.
2) A sociedade recebeu o referido montante.
3) A referida sociedade comprometeu-se a reembolsar a quantia mutuada em 180 (cento e oitenta) prestações mensais, constantes e sucessivas, vencendo-se a primeira doze meses após a data do contrato e as restantes em igual dia dos meses seguintes.
4) O executado constituiu-se fiador e principal pagador do montante mutuado no âmbito do supra mencionado contrato, tendo renunciado expressamente ao benefício de excussão prévia.
5) Para garantia integral pagamento do capital mutuado, o embargante constituiu hipoteca a favor da embargada sobre um prédio urbano, destinado a armazém e actividade industrial, sito na Rua da (…), freguesia de Santa Maria da Feira, em Beja, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº (…) e inscrito na matriz urbana sob o art. (…).
6) A mutuária não pagou qualquer uma das prestações acordadas.
7) O mutuante reclamou o seu crédito no âmbito do processo executivo n.º 024820130100753014 que correu termos no Serviço de Finanças de Beja, encontrando em dívida, à data da Reclamação de Créditos (14/03/2013) o montante global de € 303.519,54.
8) No âmbito do processo de execução fiscal referido o imóvel objecto da garantia real foi adjudicado, em 15/10/2015, ao Banco mutuante pelo valor de € 140.500,00.
9) À data da propositura da execução encontrava-se em dívida:
· € 163.019,54 a título de capital;
· € 23.278,30 a título de juros de mora contabilizados desde 15/10/2015;
10) O Embargante foi citado para execução em 03/09/2019.
11) Por Contrato de Cessão de Créditos a embargada adquiriu uma carteira de créditos, entre os quais o exequendo, incluindo todos os direitos, garantias e acessórios inerentes ao crédito cedido.
12) A sociedade “(…) – Materiais de Construção, Lda.” encontra-se dissolvida e liquidada desde Outubro de 2017.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Da prescrição e do (não) ressarcimento total da dívida:
Os embargos de executado são uma verdadeira acção declarativa e que visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta de um pressuposto, específico ou geral, da acção executiva[1].
Entre outra argumentação, a presente oposição está centrada no entendimento de que os juros reclamados se encontram prescritos.
O decurso do tempo é especificamente causa de extinção ou perda de direitos, por inobservância do prazo para o seu exercício, sendo que a prescrição se destina a sancionar a negligência do titular do direito.
O tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas no domínio da prescrição tem assento nos artigos 296º a 327º do Código Civil e estão sujeitos a prescrição os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição (nº 1 do artigo 298º do Código Civil).
Diz-se prescrição quando alguém se pode opôr ao exercício dum direito pelo simples facto de este não ter sido exercido durante determinado prazo fixado por lei[2].
A obrigação de juros surge em consequência da obrigação de capital, visto que representa o rendimento dele: não se concebe, pois, sem uma obrigação de capital, podendo considerar-se uma obrigação acessória desta, no sentido em que não pode nascer ou constituir-se sem esta[3].
Os juros constituem frutos civis que o credor aufere como rendimento de uma obrigação de capital e caracterizam-se pelo vencimento periódico das respectivas prestações. Não constituem obrigação de juros as prestações que, tendo embora por base a entrega dum capital, não resultem do rendimento do mesmo.
Os juros são, assim, a compensação que o devedor paga continuadamente pelo uso ou simplesmente pela disponibilidade temporária de um capital constituído por dinheiro ou outras coisas fungíveis e que é expressa numa fracção previamente determinada ou determinável da quantidade devida[4] [5].
Manuel de Andrade afiança que a lei «estabeleceu curtos prazos para a prescrição dos créditos do merceeiro, do hoteleiro, do advogado, do procurador etc., etc., porque se trata de créditos que o credor adquire pelo exercício da sua profissão, da qual vive. Ao fim de um prazo relativamente curto o credor, em regra, exige o seu crédito, pois precisa do seu montante para viver. Por outro lado, o devedor, em regra, também paga estas dívidas dentro de curto prazo, porque são dívidas que contraiu para prover às suas necessidades mais urgentes»[6].
No caso deste tipo de prestação, como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, «não se trata, neste caso, de prescrições presuntivas, sujeitas ao regime especial estabelecido nos artigos 312º e seguintes, mas de prescrições de curto prazo, destinadas essencialmente a evitar que o credor retarde demasiado a exigência de créditos periodicamente renováveis, tornando excessivamente pesada a prestação a cargo do devedor»[7].
A prescrição de juros está prevista na al. d) do artigo 310º do Código Civil[8] e o prazo aplicável é de 5 (cinco) anos. Sobre este tema podem ainda ser consultados Vaz Serra[9], Aníbal de Castro[10] e Dias Marques[11].
Tal como consta da contestação e é alegado nas contra-alegações de recurso, nos autos principais, a exequente peticionou o montante de € 163.019,54 (cento e sessenta e três mil e dezanove euros e cinquenta e quatro cêntimos), a título de capital, e € 23.278,30 (vinte e três mil, duzentos e setenta e oito euros e trinta cêntimos), a título de juros de mora a contar da data de adjudicação do imóvel e que remonta a 10 de Maio de 2015, calculados à taxa legal de 4%.
Resulta dos autos que a embargada contabilizou juros moratórios desde 15/10/2015 e o embargante foi citado para execução em 03/09/2019. Assim, à data da citação, não estavam prescritos os juros aqui reclamados e, tal como contra-alega a sociedade exequente, trata-se assim de um «lapso na percepção dos valores peticionados pela Exequente».
Deste modo, a existir algum erro relativamente ao cálculo do capital em dívida e dos juros vencidos da pretérita reclamação de créditos, a questão deveria ter sido suscitada no âmbito da execução fiscal, tal como decorre do texto da sentença recorrida.
Aqui esse problema nem se coloca por apenas ter sido solicitado o pagamento de juros relativos a cinco anos e qualquer problema relacionado com a incorrecção da liquidação prévia da obrigação reclamada pela “Caixa Económica Montepio Geral – Caixa Económica Bancária, SA” junto da execução tributária não tem aqui cabimento.
Na presente execução não está em causa a liquidação anteriormente feita pelo credor em sede de reclamação de créditos, ao nível dos juros e das despesas. E, efectivamente, sem conceder, a ocorrer algum problema de imputação de pagamento o mesmo tem origem numa decisão transitada em julgado e insusceptível de revisão através do presente meio de impugnação.
Relativamente à questão de se considerar paga a dívida exequenda em consequência da adjudicação do bem objecto de hipoteca à embargada torna-se óbvio e transparente que, em termos matemáticos, o valor daquela adjudicação não se mostrou suficiente para garantir a liquidação integral da dívida exequenda e daí a propositura da presente acção executiva.
O valor da avaliação não tem a idoneidade para justificar a existência de uma causa extintiva da dívida e não é convocado qualquer argumento válido relativamente à existência de qualquer comportamento bancário falseador da realidade nem que tenha ocorrido uma qualquer prática comercial desajustada susceptível de fazer imputar na esfera jurídica do credor a assumpção da diferença existente entre o valor da venda e o da avaliação do prédio.
E é também entendimento uniforme que vale como interpelação a citação do devedor na acção executiva[12] [13], sendo que a comunicação relativamente à falta de pagamento ocorreu já aquando do chamamento do credor hipotecário e da subsequente venda do bem hipotecado na execução fiscal.
Na realidade, essa interpelação ocorreu de facto no âmbito do pretérito processo executivo e assim não pode o executado invocar que se está perante um cenário de desconhecimento do vencimento imediato das prestações bancárias não pagas.
É assim de concluir que a dívida reúne os requisitos de exequibilidade exigidos por lei e que os juros reclamados não se encontram prescritos.
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4.2 – Do abuso de direito:
Para além da bibliografia geral sobre o direito das obrigações, o conteúdo e abrangência do abuso de direito é tratado nas obras escritas por Vaz Serra[14], Coutinho de Abreu[15], Pedro de Albuquerque[16], Manuel de Andrade[17], Tito Arantes[18], Oliveira Ascensão[19], Américo da Silva Carvalho[20], Menezes Cordeiro[21] [22] [23] [24], Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier[25], Pires de Lima e Antunes Varela[26], Cunha de Sá[27] e Paulo Mota Pinto[28] e Baptista Machado[29].
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, conforme ressalta do disposto no artigo 334º do Código Civil.
Existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado[30] [31] [32] [33] [34].
O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do artigo 334º do Código Civil que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.
O abuso de direito comporta duas modalidades: “venire contra factum proprium” e situações de desequilíbrio, estas com as “species” do exercício danoso inútil, da actuação dolosa e da desproporção grave entre o exercício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem. Tem como escopo principal impedir que a estrita aplicação da lei conduza a notória ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante[35].
Feita a leitura da factualidade provada e da matéria alegada nos articulados não se encontra aqui qualquer eco da existência de uma situação enquadrável na figura do abuso de direito. É certo que o imóvel objecto da garantia real foi adjudicado, em 15/10/2015, ao Banco mutuante pelo valor de € 140.500,00. Porém, a partir desse momento, era lícito ao credor actuar dentro dos poderes de disposição que lhe foi conferido pelo direito real adquirido. Como também seria legítimo que, em momento anterior ao da penhora, o devedor tivesse negociado o prédio por um valor superior àquele pelo qual o bem foi adjudicado e assim procedesse à regularização total ou parcial da dívida. Aliás, esse acto de negociação extrajudicial também seria virtualmente idóneo a permitir a liquidação antecipada da dívida garantida por hipoteca. Estamos aqui no domínio dos actos de comércio lícitos. Aliás, a venda foi concretizada pela credora inicial antes da cessão de créditos efectuada à aqui exequente.
Não merece assim qualquer reparo o raciocínio silogístico do Tribunal recorrido, quando afirma que «a cobrança do remanescente da dívida não consubstancia só por si um abuso de direito, ao contrário do que o embargante pretende fazer crer (veja-se neste sentido a título exemplificativo o Ac. do TRL de 12.12.2013, proc. n.º 23703/09.0T2SNT-B.L1-6, disponível em www.dgsi.pt). Assim, no requerimento inicial o embargante deveria ter alegado factos que, a resultarem provados, pudessem conduzir o Tribunal a concluir no sentido que pretendia e não ter-se limitado a tecer considerações vagas e genéricas sobre a questão».
Deste modo, também por esta via, carece de razão o fundamento de defesa apresentado.
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4. 3 – Do enriquecimento sem causa:
O princípio geral do enriquecimento sem causa consta no artigo 473º do Código Civil, segundo o qual «aquele que, sem justa causa, justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locuptou» (artigo 473º, nº1, do Código Civil).
A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (artigo 473º, nº 2, do Código Civil).
São elementos constitutivos do instituto em apreciação o enriquecimento de um património e o correlativo empobrecimento de outro decorrentes do mesmo facto e a ausência de causa justificativa para a correspondente deslocação patrimonial verificada. Dada a sua natureza subsidiária, a causa de pedir do enriquecimento sem causa cede perante os elementos constitutivos do incumprimento contratual derivada da responsabilidade civil obrigacional.
Menezes Leitão[36] refere que os pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa são: a existência de um enriquecimento, a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem e a ausência de causa justificativa para o enriquecimento. No plano jurisprudencial existe desde sempre uma sintonia absoluta com esta doutrina[37].
Para que a acção de enriquecimento sem causa proceda não basta que não se prove a existência de uma causa justificativa de atribuição patrimonial; é antes necessário que se prove a falta de causa de deslocação patrimonial, nos termos da regra geral sobre o ónus probandi estatuída no artigo 342º do Código Civil, por essa carência justificativa ser facto constitutivo de quem requer a restituição do indevido[38].
Para que haja lugar à condenação judicial na restituição do indevido, por força do enriquecimento sem causa, é irrefragavelmente necessário que se demonstre – mediante alegação e prova da respectiva factualidade – que a quantia que constitui a massa patrimonial deslocada do património do empobrecido para o do enriquecido não teve causa justificativa, designadamente por não ser devida em função de qualquer título ou acto válido e eficaz[39].
Não existe qualquer sinal de enriquecimento sem causa nos termos exigidos pelo direito nacional, uma vez que a venda subsequente da propriedade adjudicada ao credor hipotecária estava garantida pela existência de uma causa. E, além do mais, a pretensão de restituição do enriquecimento sem causa não poderia ser aqui concretizada por falta dos elementos de natureza processual necessários para o efeito.
Deste modo, todo o argumentário constante do recurso interposto não tem a virtualidade de alterar o juízo formulado pela Primeira Instância, mantendo-se assim a decisão recorrida.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas do presente recurso a cargo do apelante, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 05/11/2020
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário

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[1] Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pág. 143.
[2] Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, vol. II, AAFDL, Lisboa, 1986 (reimpressão), pág. 155.
[3] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/10/2014, in www.dgsi.pt.
[4] Vaz Serra, Obrigação de Juros, BMJ nº 55, págs. 159 a 170.
[5] Correia das Neves, Manual dos Juros, 3ª edição, Coimbra, 1989, págs. 14 e seguintes.
[6] Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 452.
[7] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pág. 280.
[8] Artigo 310.º (Prescrição de cinco anos):
Prescrevem no prazo de cinco anos:
a) As anuidades de rendas perpétuas ou vitalícias;
b) As rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagos por uma só vez;
c) Os foros;
d) Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades;
e) As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros;
f) As pensões alimentícias vencidas;
g) Quaisquer outras prestações periodicamente renováveis.
[9] Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, 1961.
[10] Aníbal de Castro, A caducidade, 3ª edição melhorada e actualizada, Petrony, Lisboa, 1984.
[11] J. Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, 7ª edição (com a colaboração de Paulo de Almeida), AAFDL, Lisboa, 1992.
[12] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22/11/2012, publicado em www.dgsi.pt.
[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/05/2012, disponível em www.dgsi.pt.
[14] Abuso de Direito (Em matéria de responsabilidade civil), Boletim do Ministério da Justiça nº 85, págs. 243 e seguintes.
[15] Do Abuso de Direito – Ensaio de um Critério em Direito Civil e nas Deliberações Sociais, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2006.
[16] Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em virtude de actos praticados no processo: a responsabilidade por pedido infundado de declaração da situação de insolvência ou indevida apresentação por parte do devedor, Almedina, Coimbra, 2006.
[17] Teoria Geral das Obrigações, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 1966.
[18] Do Abuso de Direito e da sua repercussão em Portugal, Ensaio Jurídico, Lisboa, 1936.
[19] O “abuso de direito” e o artigo 334º do Código Civil: uma recepção transviada, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano – no Centenário do seu Nascimento, vol. I, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2006.
[20] Abuso de Direito e Boa Fé em Propriedade Industrial, Direito Industrial, 5 v, Almedina, Coimbra, 2010.
[21] Da Boa Fé no Direito Civil, 4ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2011.
[22] Do abuso de direito: estado das questões e perspectivas, Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, nº 2 (set/2005).
[23] Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e culpa in agendo: estudo de Direito Civil e de Direito Processual Civil, com Exemplo no Requerimento Infundado da Insolvência, à luz do Código de 2004, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2011.
[24] Tratado de Direito Civil, vol. V, 2ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2011.
[25] Efeito Externo das Obrigações: abuso de Direito: Concorrência Desleal: a Propósito de Uma Hipótese Típica, separata da RDE, nº 5 (Jan-Jun. 1979), Coimbra, 1979.
[26] Código Civil Anotado, vol. IV, 4ª edição (revista e actualizada), Coimbra Editora, Coimbra, 1997.
[27] Abuso de Direito (reimpressão), Almedina, Coimbra, 1997.
[28] Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil, BFDUC, Volume Comemorativo (2003).
[29] Tutela da Confiança e venire contra factum proprium, Obra Dispersa, Scientia Iuridica, Braga, 1991-1993.
[30] Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/04/2008, in www.dgsi.pt e do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011, in www.dgsi.pt.
[31] Para Manuel de Andrade Teoria Geral das Obrigações, 3ª edição, pág. 63-64, «há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual».
[32] No enfoque de Vaz Serra, Abuso de Direito, in Boletim do Ministério da Justiça nº 85, pág. 253, o acto abusivo corresponde ao exercício dum direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na colectividade social. Só excepcionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede.
[33] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª edição, pág. 516, expressa opinião no sentido de que «para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito».
[34] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, pág. 299, entendem que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.
[35] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/10/2008, in www.dgsi.pt.
[36] Direito das Obrigações, vol. I, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 401.
[37] Por todos ver: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2015, in www.dgsi.pt.
[38] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/1977, in BMJ 272-196.
[39] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/05/2011, in www.dgsi.pt.