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SANEAMENTO DO PROCESSO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
MANIFESTAMENTE INFUNDADA
FALTA DE INDICAÇÃO DAS PROVAS
FUNDAMENTAM A ACUSAÇÃO
Sumário
A acusação que não contém a indicação das provas que a fundamentam deve ser rejeitada pelo juiz do julgamento, aquando do saneamento do processo, estando vedada a possibilidade de realizar convite ao aperfeiçoamento.
Texto Integral
Proc. n.º 459/17.7GBVFR.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2.
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito dos autos de Inquérito n.º 459/17.7GCFR, a correr termos na Comarca de Aveiro, 2.ª Secção do DIAP de Santa Maria da Feira, na sequência do despacho do Ministério Público, de 09-11-2018, que determinou a notificação da assistente B… para querendo deduzir acusação particular, posto que os arguidos dos autos eram seus progenitores e estava em causa a eventual prática de crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, do CPenal, veio aquela apresentar a peça que consta de fls. 120 a 122 dos autos, a qual, de acordo com o que ali fez constar, constituiria acusação particular e pedido de indemnização. Tal peça vinha acompanhada de sete fotografias.
Por despacho de 03-01-2019, o Ministério Público não acompanhou a acusação particular apresentada por não existirem nos autos indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime de dano.
Remetidos os autos para julgamento, foi proferido, em 17-04-2019, despacho de rejeição da acusação particular deduzida nos autos pela assistente, tendo ainda a Senhora Juiz do Tribunal a quo declarado o tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido de indemnização civil formulado.
*
Inconformada com esta decisão, recorreu a assistente, solicitando que o despacho recorrido seja substituído por outro que determine a rectificação da acusação particular ou a remessa do processo para julgamento, apresentando, nesse sentido, as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1. O artigo 283.º n.º 3 impõe os requisitos de conteúdo que qualquer acusação particular deve conter sob pena de nulidade.
2. A nulidade prevista na alínea d) do nº 3 do art.º 283º do Código de Processo Penal não é uma nulidade subsumível aos termos do art.º 119º do Código de Processo Penal – artigo taxativo.
3. Qualquer nulidade que não respeite a nenhuma alínea do art.º 119º do Código de Processo Penal, nem seja como tal cominada noutro artigo deste Código, fica sujeita à disciplinados artigos 120º e 121º do mesmo Código.
4. Assim, sendo a nulidade prevista no artigo 283º n.º3 do Código de Processo Penal uma nulidade sanável, seria sempre prerrogativa do Tribunal a quo a promoção da sanação desse vício mediante notificação ao assistente para apresentação de rol de testemunhas.
5. Consideramos que a decisão recorrida faz uma errada interpretação dos artigos 119º e 283º nº 3 do CPP na medida em que comina com uma nulidade insuprível a falta de apresentação do rol de testemunhas, fazendo também uma incorrecta interpretação da lei e dos princípios de direito subjacentes ao acto de convidar o assistente ao aperfeiçoamento da sua acusação.
6. A negação da possibilidade de convite à correcção, ao aperfeiçoamento ou à simples apresentação de um requerimento, por forma a cumprir com os requisitos meramente formais da acusação particular, implica a violação do direito de intervenção do assistente no processo penal, nos termos do n.º 7 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa.
7. Pelo que, deveria o Tribunal à quo ter ponvidado a assistente a suprir a nulidade sanável.
8. Caso se considere que a decisão constante do despacho se fundamenta no artigo 311.º n.º3 do CPP – acusação manifestamente infundada, (cfr refere o douto despacho na parte final) sempre se dirá o seguinte:
9. A verdade é que, a acusação particular não contêm prova testemunhal arrolada, no entanto foram juntos documentos, a saber: fotografias, que se tratam de outro tipo de provas - artigo 164º do CPP.
10. Pelo que, uma vez mais, não deveria o Tribunal à quo ter considerado a acusação particular manifestamente infundada.»
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção do despacho recorrido.
Sintetiza os seus argumentos nas seguintes conclusões (transcrição):
«1. Incide o recurso na decisão que rejeitou a acusação particular deduzida pela assistente por manifestamente infundada ao constatar a omissão de apresentação de rol de testemunhas e prova dos factos descritos e subsumíveis ao crime de dano;
2. O conceito de acusação manifestamente infundada, inclui, nos termos da lei, para além do mais, a situação de ausência das “provas que a fundamentam”.
3. A omissão da indicação de prova dos factos enunciados na acusação particular deduzida cominada com nulidade no art.º 283, nº 3, al. d) do C.P.P., dada a estrutura acusatória que o processo criminal assume por imposição constitucional, não admite o aperfeiçoamento da acusação particular como impõe a absoluta imparcialidade do julgador e por não assegurar os direitos de defesa do arguido;
4. A rejeição da acusação com base na al. c) do nº3 do artº 311º do CPP, é de considerar se e quando for manifestamente infundada, por resultar evidente, a omissão do rol de testemunhas e/ou da prova dos factos, que é cominada com nulidade sanável da acusação – 283º, nº 3, al. d) do mesmo diploma.
5. A possibilidade conferida à assistente de corrigir a acusação, redundaria numa compressão desproporcional do direito de defesa do arguido;
6. Não se vislumbra que da decisão proferida e ora recorrida resulte a violação a que alude o recorrente o artigo 32º nº 7 CRP, como dos artigos 283º nº 3, d), 311º, nº 3, al. c) do CPP;
7. Inexistindo fundamento para a pugnada revogação da rejeição da acusação particular por manifestamente infundada, constatada a omissão de prova dos factos como da apresentação de rol de testemunhas, não se impondo ao juiz determinar o aperfeiçoamento da acusação da a estrutura acusatória que o processo criminal assume por imposição constitucional – art.º 32º nº 5 da CRP, sendo a decisão de manter nos seus exactos termos,
Considerando que a Douta Decisão recorrida se mostra conforme aos termos dos art.º 311º do C.P.P., 283º nº 3, d) e artigo 32º nº 7 da CRP, deve o recurso apresentado ser declarado improcedente, e, manter-se o teor da decisão no sentido da rejeição da acusação particular deduzida pela Assistente»
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá ser julgado improcedente, por entender, em consonância com a resposta apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, que a acusação particular padece de nulidade e não prevê a lei o seu suprimento.
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Notificados, os arguidos vieram manifestar que subscrevem integralmente o conteúdo do parecer do Ministério Público.
* II. Apreciando e decidindo: Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
A única questão que cumpre apreciar é a de saber se é incorrecta a decisão do Tribunal a quo que rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação particular apresentada pela assistente, por a mesma não conter as provas que a fundamentam.
Antes de passarmos à apreciação do recurso importa ter presente a decisão que constitui seu objecto, que é do seguinte teor (transcrição):
«A assistente B… veio deduziu acusação particular contra os arguidos C… e D… nos termos constantes de folhas 120 a 122.
* Questões prévias Da nulidade da acusação particular:
A acusação (artigo 283.º) constitui a charneira entre o inquérito e o julgamento.
Trata-se duma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo: a actividade do tribunal só pode ser exercida se um determinado conjunto de factos lhe for submetido por um órgão independente do julgador.
O artigo 283.º impõe (nº 3) que a acusação contenha, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) a indicação das disposições legais aplicáveis;
d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
g) A data e assinatura.
Tais exigências legais são aplicáveis à acusação particular deduzidas pelo assistente, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 285.º do Código de Processo Penal.
Vistos em traços largos o respectivo enquadramento jurídico importa agora analisar a acusação particular à luz de tais princípios.
Compulsada a acusação particular constante de folhas 120 a 122 constata-se que é totalmente omitida a identificação de qualquer testemunha, não indicando especificadamente a assistente qual a prova a produzir, nem requerendo sequer expressamente a tomada de declarações da assistente, sendo certo que é indubitável que a mesma tem de ser requerida, não bastando ser sujeito processual.
Por conseguinte, parece inelutável que a acusação particular é nula, não consignando sequer a assistente a lacónica fórmula de indicação da prova "a dos autos", ao arrepio do que estatui o transcrito inciso legal, donde se extrai, sem qualquer margem para dúvidas que a prova tem de ser expressamente indicada, como bem o demonstra a indicação sucessiva contida nas alíneas d) e) e f), que se referem à obrigação de identificação das testemunhas arroladas, à obrigação de identificação dos peritos e consultores técnicos e à obrigação de indicação expressa de toda a prova a produzir em julgamento, o que directamente nos remete não só para a proibição de uma indicação tabelar, como também para a inconsideração de toda a prova que especificadamente não é indicada.
Assim sendo, mais não resta do que determinar a sua rejeição, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 e na alínea c) do n.º 3, ambos do artigo 311.ºo do Código de Processo Penal, já que a acusação particular é manifestamente infundada porquanto não contém as provas que a fundamentam.
* Do pedido de indemnização civil
Nos termos do artigo 71.º do Código de Processo Penal e em conformidade com o princípio da adesão que aí se consagra, deve o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ser deduzido no âmbito do processo penal em que se aprecia a responsabilidade criminal emergente da infracção cometida.
Pressuposto da possibilidade de apreciação do pedido cível deduzido em processo penal é que o facto constitutivo da sentença condenatória em matéria de responsabilidade civil se possa incluir no âmbito do facto criminoso que é imputado ao arguido, de tal forma que, se não existirem ou simplesmente não se provarem os pressupostos da punição penal, a condenação em indemnização civil possa ainda subsistir sustentada na verificação dos pressupostos da ilicitude civil permitida pela apreciação da realidade factual em causa.
Em síntese: a dedução do pedido de indemnização civil pressupõe que no respectivo processo penal seja exercida acção penal com dedução de acusação com imputação de qualquer crime ao arguido que seja suporte do pedido cível, pois só assim este pode aderir à acção penal (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 02.12.93, Cl, T.V, pg.63 a 66).
Achando-se o pedido de indemnização civil tematicamente condicionado pelo objecto do processo, em face da rejeição da acusação particular deduzida, vedada se encontra à demandante a possibilidade de, nesta sede, obter dos demandados compensação pelos danos alegadamente sofridos em virtude da conduta dos arguidos.
Sendo, assim, o Tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido de indemnização civil formulado, o que, em conformidade se decide.
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Pelo exposto, nos termos que conjugadamente resultam do preceituado na alínea a) do n.º 2 e na alínea c) do n.º 3, ambos do artigo 311.º do Código de Processo Penal, por manifestamente infundada, decido rejeitar a acusação particular deduzida de folhas 120 a 122, pela assistente B… contra os arguidos C… e D….
Mais decido, julgar este Tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido de indemnização civil formulado de folhas 121 a 122, o que, em conformidade se decide.
Custas a cargo da assistente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, sem prejuízo do beneficio de apoio judiciário que lhe foi concedido [artigo 515.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal].
Sem custas cíveis [artigo 4.º, n.º 1, alínea n), do Regulamento das Custas Processuais].»
*
Vejamos.
Considera a assistente que a acusação que deduziu não é totalmente omissa quanto aos meios de prova pois com a respectiva apresentação juntou prova documental, designadamente fotografias.
Por outro lado, alega que a não indicação de prova testemunhal na acusação constitui nulidade sanável, contrariamente ao referido na decisão recorrida, sendo prerrogativa do Tribunal a sanação desse vício mediante notificação à assistente para apresentação de rol de testemunhas. O não reconhecimento desta possibilidade, acrescenta, implica a violação do direito de intervenção do assistente no processo penal, nos termos do n.º 7 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Quanto ao primeiro argumento, compulsada a acusação particular deduzida pela assistente, verificamos que na mesma não foi consignada uma palavra quanto a qualquer elemento de prova, seja ele que que natureza for, desde logo, testemunhal ou documental.
A lei indica expressamente (art. 311.º, n.º 3, al. c), do CPPenal) que deve ser rejeitada a acusação que não indicar as provas que a fundamentam.
Assim, é na própria peça que constitui a acusação que o Ministério Público ou os assistentes devem indicar, isto é, mencionar, descrever, as provas que pretendem sejam atendidas ou produzidas em julgamento.
O rigor que se pretende, e impõe, na apresentação desta peça processual, em ordem à efectiva defesa dos direitos dos arguidos – que têm direito a saber, com a máxima clareza e precisão possíveis de que factos são acusados, qual a qualificação jurídica que sobre os mesmos recai e que provas os sustentam – não é compatível com leituras intuídas ou interpretações implícitas da vontade da entidade acusadora.
Se a assistente queria inquirir testemunhas devia identificá-las. Se queria analisar e ponderar documentos devia indicá-los. Se queria prestar declarações devia requerê-lo.
Fazendo-o de modo expresso e não implícito.
Não tendo a assistente feito a indicação expressa de qualquer meio de prova na acusação que apresentou há que concluir que omitiu a indicação de provas que fundamentam a acusação, o que constitui causa de rejeição desta, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. c), do CPPenal.
No que concerne ao segundo argumento apresentado, verificamos da decisão recorrida que o Tribunal a quo em momento algum qualifica a nulidade a que alude o art. 283.º, n.º 3, do CPPenal como subsumível à disciplina do art. 119.º do CPPenal. Nem à desse preceito nem à dos arts. 120.º e 121.º do mesmo diploma legal.
O despacho recorrido centrou a sua apreciação no disposto no art. 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. c), do CPPenal e na consequência legal aí estabelecida para as acusações que não indiquem as provas que as fundamentem, sejam públicas, sejam particulares.
E a questão da natureza da nulidade prevista no art. 283.º, n.º 3, als. d), e) e f), ex vi art. 285.º, n.º 3, do CPPenal, não é determinante da solução a encontrar para a situação em análise.
Com efeito, é expressiva a jurisprudência que aceita que tal nulidade, na falta de indicação em contrário e perante a omissão de previsão no elenco do art. 119.º do CPPenal, é sanável, estando, por isso, sujeita à disciplina dos arts. 120.º e 121.º do mesmo diploma legal.
Mesmo que se reconheça essa natureza, é indiscutível que o legislador criou um regime sui generis para os vícios graves da acusação uma vez terminada a fase de inquérito e remetido o processo para julgamento sem que tenha havido instrução, realidade que a apontada jurisprudência reconhece.
Tal regime, previsto no art. 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, do CPPenal, determina que o juiz de julgamento, oficiosamente, e não mediante invocação, deva rejeitar a acusação sempre que a mesma de revelar manifestamente infundada, esclarecendo que neste conceito integra, entre o mais, as situações que correspondem à nulidade da acusação de acordo com o art. 283.º, n.º 3, als. a) a f), do CPPenal, isto é, a acusação não contenha a identificação do arguido, a narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam.
Ou seja, sempre que estão em causa casos extremos de invalidade da acusação, mas não todas as situações de nulidade da acusação previstas no art. 283.º, n.º 3, do CPPenal, como se viu, permite o legislador que o juiz do julgamento, na fase preliminar do saneamento do processo, portanto, antes de iniciar o julgamento e avaliar do mérito do processo, impeça o prosseguimento dos autos com a sujeição do arguido a um julgamento que irá acabar inevitavelmente em absolvição[2].
Mas esse saneamento é apenas possível no momento a que alude o art. 311.º, n.º 2, do CPPenal, pois passada essa fase, impõe-se que o julgamento prossiga até final, acabando por ser proferida decisão de mérito, que perante as deficiências a que alude o referido preceito somente poderá ser de absolvição.
Este regime é tributário da estrutura acusatória do processo.
Na verdade, o processo penal português assenta, por imperativos constitucionais (art. 32.º, n.º 5, da CRP), numa estrutura acusatória, embora mitigada pelo princípio da investigação, como transparece, por exemplo, do art. 340.º do CPPenal.
O próprio preâmbulo do Código de Processo Penal o anuncia, esclarecendo que «o Código perspectivou um processo de estrutura basicamente acusatória. Contudo - e sem a mínima transigência no que às autênticas exigências do acusatório respeita -, procurou temperar o empenho na maximização da acusatoriedade com um princípio de investigação oficial, válido tanto para efeito de acusação como de julgamento; o que representa, além do mais, uma sintonia com a nossa tradição jurídico-processual penal.»
Significa isto que o desenho que o legislador desenvolveu do processo penal distingue de forma muito clara a entidade a quem cabe investigar e acusar – o Ministério Público – e a entidade que decide – o Juiz –, assim procurando alcançar a máxima imparcialidade, objectividade e independência da decisão judicial.
No âmbito do processo penal, cabe, assim, ao Ministério Público delimitar a acusação, fixando o objecto de processo, o conjunto de factos que serão levados a julgamento (princípio do acusatório). E é dentro desses limites que o Julgador pode proferir uma decisão de condenação ou de absolvição.
O art. 311.º do CPPenal, respeitante ao saneamento do processo criminal remetido para julgamento, vinca de forma bem expressiva, fundamentalmente após as alterações introduzidas com a Lei 59/98, de 25-08, a separação decorrente do princípio do acusatório entre a entidade que acusa e a que julga.
Com efeito, de acordo o n.º 2 deste preceito:
«Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.»
O conceito de acusação manifestamente infundada deu azo a múltiplas interpretações, abrindo a porta a muitas decisões de rejeição baseadas na insuficiência dos indícios probatórios que constavam dos autos, o que representava uma óbvia fragilização do princípio do acusatório. Para obviar a tal situação, o legislador optou por clarificar o que actualmente consta do n.º 3 da norma, ou seja, que:
«Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.»
Ficou então claro que ao sanear o processo remetido pelo Ministério Público para julgamento estava vedado ao julgador rejeitar a acusação com fundamento na falta ou insuficiência de indícios probatórios, permitindo-se apenas, e tão-só, que a aquela rejeição ocorresse nas situações expressamente previstas neste preceito, todas de natureza meramente formal.
Assim, em consonância com a estrutura acusatória do processo penal, o juiz do julgamento não interfere na composição da acusação, actividade que compete em exclusivo ao Ministério Público, ou ao assistente nos casos de acusação particular, podendo ou rejeitá-la no contexto do art. 311.º, n.ºs 2 e 3, do CPPenal, caso padeça de graves deficiências, ou, prosseguindo o processo para julgamento apesar das falhas extremas da acusação que não foram detectadas, proferir, a final, decisão de absolvição.
Ao juiz do julgamento está vedada a possibilidade de determinar a reparação de uma acusação ferida de deficiência grave, como seja qualquer uma das que estão previstas no art. 311.º, n.º s 2 e 3, do CPPenal.
Nem a lei expressamente o permite, nem a estrutura acusatória do processo a autoriza.
Seguro é, assim, que se a acusação não contém a indicação das provas que a fundamentam (al. a) do n.º 2 e al. d) do n.º 3 ambos do art. 311.º do CPPenal) deve o juiz do julgamento, aquando do saneamento do processo, rejeitar a acusação, estando vedada a possibilidade de realizar qualquer convite ao aperfeiçoamento.
Esta temática, aplicada a uma situação em que estava em causa um requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, foi abordada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência n.º 7/2005, de 12-05-2005[3], segundo o qual:
«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.»
Também o acórdão n.º 35/2012 do Tribunal Constitucional, de 25-01, citando o seu acórdão n.º 636/2011, acolhe a posição de que não é possível no contexto ali em análise o convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução:
E o acórdão n.º 175/2013 do Tribunal Constitucional, de 20-03, fazendo apelo às decisões proferias nos acórdãos n.º 389/2005 e 636/2011, veio a decidir «Não julgar inconstitucional a norma resultante do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 283.º, nº 3, alíneas b) e c), do mesmo Código, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objeto fáctico da pretendida instrução».
E, como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-05-2012[4], como as exigências formais deste articulado [RAI], à primeira vista, até poderiam ser entendidas como inferiores à da acusação propriamente dita, pelo que a ratio decidendi é a mesma.
Neste mesmo aresto veio a consignar-se o seguinte entendimento (sumário), que corrobora a análise realizada na presente decisão:
«I. No conceito de acusação manifestamente infundada, a lei inclui, para além do mais, a situação de ausência das «provas que a fundamentam»;
II. A falta de indicação na acusação, das provas que fundamentam a prática pelo arguido do crime nela imputado, permite ao juiz de julgamento, uma vez recebidos os autos em fase de saneamento, rejeitar a acusação, por manifestamente infundada;
III. Verificada aquela omissão de indicação das provas, não é admissível convite para a suprir.»[5]
Idêntica posição foi assumida no acórdão da Relação de Évora de 29-11-2016[6], onde se consignou que (sumário):
«I - Deve ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida pelo assistente e remetida para a fase de julgamento, que não indique provas que a fundamentem.
II - Tal omissão não é passível de ser suprida por intervenção corretiva do Ministério Público que, ao aderir à acusação do assistente, indica meios de prova.»
Ou ainda no acórdão da Relação de Guimarães de 20-03-2017[7], que entendeu que:
«A falta de indicação na acusação das disposições legais aplicáveis pode, em fase de inquérito, ser atacada por via da arguição da respetiva nulidade dessa peça processual pelo respetivo interessado. Não o sendo, e transitando o processo para a fase de julgamento, sem que tenha sido requerida a abertura de instrução (como sucedeu relativamente à acusação em apreço nos autos), esse vício apenas pode levar à rejeição da acusação por manifestamente inviável nos termos do artº 311º, nºs 2, al. a), e 3 al. c), e já não à sanação da nulidade.»
Em suma, constatando-se, como ocorre no caso em apreço, que a acusação particular da assistente não contém a indicação das provas que a fundamentam – menção que não pode ser intuída a partir de elementos probatórios que constem dos autos –, não pode a mesma ser introduzida, reparando-se a acusação, por convite ao aperfeiçoamento formulado pelo juiz do julgamento.
Nenhuma censura merece, pois, o despacho impugnado ao decidir pela rejeição da acusação particular apresentada pela assistente, por a mesma se apresentar manifestamente infundada ao abrigo do art. 311.º, nºs. 2, al. a), e 3, al. c), do CPPenal, sem equacionar a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento.
Deve, assim, ser negado total provimento ao recurso.
* III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso apresentado por B… e em manter a decisão recorrida.
Custas pela assistente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça (arts. 515.º, n.º 1, al. b), do CPPenal e 8.º do RCP e tabela III anexa).
Porto, 13 de Maio de 2020
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
_________ [1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção. [2] Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª Edição, a pags. 790 e 791, em anotação ao art. 311.º, refere: “Já foi notado, com razão, que estes vícios se sobrepõem às nulidades sanáveis do artigo 283.º, n.º 3, als. a), b), c) (“sob pena de nulidade”), pelo que as ditas nulidades se convertem em matéria de conhecimento oficioso do tribunal (GERMANO MARQUES DA SILVA, 2000 b: 207 e 208). [3] Proc. n.º 430/2004 – 3.ª Secção (DR 212 Série I-A, de 05-11-2005). [4] Proc. n.º 1312/10.0PBOER.L1-5, acessível inwww.dgsi.pt. [5] Em igual sentido, acórdão da Relação de Coimbra de 09-05-2012, Proc. n.º 571/10.3TACVL–A.C1, acessível inwww.dgsi.pt. [6] Proc. n.º 156/15.8GAENT.E1, acessível inwww.dgsi.pt. [7] Proc. n.º 386/13.7GAVVNF- G1, acessível inwww.dgsi.pt.