FIANÇA
HIPOTECA
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
SUB-ROGAÇÃO
Sumário

I – O regime de liberação do fiador por impossibilidade de sub-rogação, previsto no art.º 653.º do C.Civil, tem aplicação aos casos de garantias associadas ao crédito como são as hipotecas, que por culpa do credor, se extingam.
II – Se em resultado de dação em cumprimento do imóvel hipotecado e consequente cancelamento das hipotecas, ocorreu extinção parcial da divida afiançada, não obstante o fiador ter ficado privado do direito a vir a ficar sub-rogado nessa garantia do crédito afiançado, caso venha a ser chamado a pagar, não ocorre a extinção total da obrigação de fiança, mas apenas a sua redução proporcional ao montante remanescente em dívida.
III – A não intervenção do fiador no negócio consistente na dação em cumprimento do imóvel hipotecado poderia fundamentar defesa excepcional do mesmo, à luz das regras da boa-fé, em sede dos presentes embargos de executado por ter sido accionado pelo credor para pagamento do remanescente em dívida, por exemplo, no caso de se sentir prejudicado por entender que o valor atribuído ao imóvel é substancialmente inferior ao seu real valor de mercado, e que por isso não pode ver o crédito afiançado ser totalmente satisfeito através daquele negócio.

Texto Integral

Apelação
Processo n.º 24370/15.7 T8PRT-A.P2
Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 2
Recorrente – B…, SA
Recorrida – C…
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Ana Lucinda Cabral
Desemb. Maria do Carmo Domingues

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)

I – Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que o B…, SA intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto contra D…, E… e F… para haver deles o pagamento da quantia de €9.502,83, dando para tanto à execução uma escritura de mútuo com hipoteca e fiança, veio F…, deduzir embargos de executado pedindo a extinção da execução contra si intentada.
Para tanto, alegou, em síntese, que o exequente, por força da dação em cumprimento que celebrou com os co-executados/mutuários autorizou o cancelamento das inscrições hipotecárias que garantiam o seu crédito, renunciando voluntariamente a tal garantia. O embargante não interveio na referida dação em cumprimento, nem dela teve conhecimento.
O contrato de mútuo bancário, com hipoteca e fiança, contém cláusulas contratuais gerais, das quais o embargante não foi informado, tendo assinado o referido contrato sem qualquer tipo de explicações, assim desconhecia o embargante o sentido e significado da cláusula de expressa renúncia ao benefício da excussão prévia, pelo que sempre julgou que, em caso de incumprimento dos mutuários, sempre seria pago pelo valor dos bens hipotecados pertencentes aos devedores e o cancelamento da hipoteca pelo exequente impediu o embargante de vir a ficar sub-rogado nesse direito.
Finalmente, desde Maio de 2014 a Maio de 2015, sempre que interpelado pelo exequente para pagamento de prestações, entregou a esta a quantia total de €2.602,44, sendo que desconhece como o exequente realizou a liquidação da quantia exequenda.

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Os embargos foram recebidos e citado o exequente, no prazo da contestação foi em 6.10.2016, proferido o seguinte despacho: “Notifique o embargante para, em 10 dias, esclarecer se atento o pagamento referido a fls. 73 do processo principal, mantém interesse nos embargos, ou se entende estar configurada a inutilidade da lide”. - Tal sucedeu porque nos autos de execução, o exequente, por requerimento de 18.07.2016, veio informar os autos que a AE havia transferido, com data de 17.06.2016, a quantia de €10.218,75, o que liquidou a quantia exequenda e juros e, consequentemente requereu que os autos executivos fossem mandados à conta.
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Em resposta ao supra aludido despacho, o embargante veio, em 10.10.2016, requerer o prosseguimento dos presentes autos e que fosse ordenada a restituição por parte da exequente à AE das quantias indevidamente entregues por esta.
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Foi, depois, proferido despacho a julgar extinta a instância dos presentes embargos. Mas o embargante inconformado com o mesmo, dele recorreu para este Tribunal, onde por Ac. de 14.12.2017 foi a apelação julgada procedente, revogada a decisão recorrida, e em sua substituição ordenou-se o prosseguimento dos regulares trâmites dos presentes embargos de executado
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Volvidos os autos à 1.ª instância veio o exequente apresentar contestação pedindo a improcedência dos embargos.
Para tanto, alegou que que pela escritura de dação foi assumido pelos devedores principais que continuariam a liquidar os montantes em dívida, que a essa data ascendiam a €10.732,25; em virtude da realização da dação em cumprimento os fiadores ficaram beneficiados por verem drasticamente reduzido o valor da divida de que eram garantes.
Por outro lado, alegou que os fiadores deram o seu consentimento a quaisquer modificações de taxa de juro e às alterações de prazo, bem como mudanças de regime de crédito que viessem a ser convencionadas ente o banco credor e os devedores, mais declarando que a fiança se manteria enquanto subsistisse qualquer dívida de capital, de juros ou de despesas.
Mantém que a dívida é a que resulta da liquidação operada no requerimento executivo.
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Foi dispensada a realização de audiência prévia. Proferiu-se despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e elencaram-se os temas da prova.
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Por morte do co-executado/embargante procedeu-se à habilitação dos seus herdeiros, “in casuC….
Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença de onde consta: “Por todo o exposto, julgo procedentes os embargos e, em consequência, declaro extinta a execução de que estes são apensos”.
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Não se conformando com tal decisão dela veio o exequente/embargado recorrer de apelação pedindo que a sua revogação e substituição por outra que julgue os embargos improcedentes.
O apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1. A douta sentença ora em crise, fez uma errada interpretação do disposto nos art.º 644.º, 654.º e 648.º, todos do Código Civil.
2. O recorrido por escrituras de mútuo com hipoteca e fiança assumiu-se como fiador dos titulares dos mútuos com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia relativamente a dois créditos que foram concedidos pelo recorrente, respectivamente nos valores de €65.000,00 e de €18.000,00; nessa medida e de acordo com o exarado em escritura pública terá se ter em conta para aplicação do direito os seguintes considerandos:
1 - uma fiança constituída por documento autêntico e que respeita o disposto no art.º 627.º e 628.º do C.Civil.
2 - declaração expressa do recorrido através da qual renuncia ao benefício da excussão prévia de acordo com o disposto no art.º 638.º do C.Civil.
3. Resulta da matéria fáctica dada como provada que:
1 - Por escritura pública lavrada em 21.07.2010, D…, E… declararam ser “…donos e legítimos possuidores do prédio urbano composto de casa de um pavimento e quintal, sito na Rua … n.º .., freguesia e concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o n.º 3559/Valongo, inscrito na respectiva matriz sob o art.º 819, com o valor patrimonial tributário de €54.614, ao qual atribuem o valor de 72.300, inscrito a seu favor pela Ap.24/20041125”.
Mais declaram que sobre o referido “prédio urbano além das hipotecas registadas na dita conservatória, pelas inscrições Ap. 25/20041125 e Ap. 26/20041125, para garantia de dois empréstimos, nos montantes iniciais de sessenta e cinco mil euros e de dezoito mil euros, que por eles foram contraídos junto ao G…, S.A., encontrando-se actualmente em dívida responsabilidades vencidas e não pagas decorrentes dos referidos empréstimos, no montante global de oitenta e três mil trinta e dois euros e vinte e cinco cêntimos de capital e juros.
Que pela presente escritura e para pagamento parcial da mencionada dívida, quanto ao montante de setenta e dois mil e trezentos euros, os primeiros outorgantes dão em cumprimento ao G…, S.A. o identificado imóvel (…)”.
4. Face à assumpção e reconhecimento por parte dos devedores principais do valor da dívida e a sua situação de incumprimento perante o credor e atendendo a que a dação teve como objectivo a amortização da dívida afiançada, diminuindo pois substancialmente o valor das responsabilidades a regularizar, não poderá considerar-se contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo pela desoneração do fiador por impossibilidade de sub-rogação face á renúncia às hipotecas por parte do credor.
5. Aliás as hipotecas constituídas sobre o imóvel estavam registadas a favor do Banco credor aqui recorrente e foram constituídas para garantia do crédito deste e não do fiador/recorrido.
6. Por outro lado o fiador renunciou ao benefício da execução prévia, assumindo pois, a obrigação de principal pagador, e nessa medida por força do art.º 640.º a) do C.Civil foi afastada a subsidiariedade da fiança.
7. A dação em cumprimento é uma forma de extinção da obrigação e encontra-se regulada nos art.º 837.º e seg. do C.Civil, e ocorre quando o credor e o devedor acordam na prestação de uma coisa diversa da que é devida como forma de extinguir a obrigação, cumprimento esse que pode ser total ou parcial.
8. O recorrente mesmo tendo conhecimento que o crédito afiançado estava em incumprimento não procedeu voluntariamente á regularização dos valores em dívida, situação essa que a ter ocorrido poderia aí sim por força do pagamento efectuado conferir-lhe o poder legal de se sub-rogar na posição do credor.
9. Logo não se pode concluir que o recorrido/embargado viu afectada a sua obrigação de forma prejudicial com a realização da dação em cumprimento do imóvel, tanto mais que por via desta, viu o mesmo substancialmente reduzido o valor inicial que afiançou e que poderia ter sido sempre chamado a pagar na totalidade.
10. O recorrido não colocou em causa nem o valor atribuído ao imóvel para efeitos de dação, nem os valores referentes aos montantes em dívida.
11. O recorrente ao acordar com os devedores na entrega do imóvel como forma de pagamento de uma parte da dívida já vencida resultante dos contratos de mútuo afiançados pelo recorrido em nada prejudicou os direitos do fiador, tanto mais que este sabia que quando prestou a fiança, que o Banco mutuante tinha uma garantia adicional a garantir o crédito, que era a hipoteca constituída sobre o imóvel que foi objecto de dação em cumprimento parcial.
12. O recorrido na qualidade de fiador ao renunciar ao benefício de excussão e assumir-se como principal pagador, afastou o princípio da subsidiariedade da fiança o que desde logo implica que não possa criar expectativas legítimas e defensáveis, na manutenção da hipoteca sobre o imóvel, por dela não se poder fazer valer, por força do regime previsto no art.º 640.º do C.Civil.

A embargada juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela confirmação da decisão recorrida.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1. No âmbito da sua actividade de comércio bancário o exequente a pedido e no interesse dos 1.ºs executados, por escritura de mútuo com hipoteca e fiança concedeu-lhes um mútuo no valor de €18.000,00 a ser liquidado nos termos prazos e condições constantes da escritura junta como documento 1 anexo à execução e um outro no montante de €65.000,00.
2. Por escritura pública lavrada em 21.07.2010, D…, E… declararam ser “…donos e legítimos possuidores do prédio urbano composto de casa de um pavimento e quintal, sito na Rua …, n.º.., freguesia e concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o n.º 3559/Valongo, inscrito na respectiva matriz sob o art.º 819, com o valor patrimoniais/ tributário de €54.614, ao qual atribuem o valor de €72,300, inscrito a seu favor pela Ap. 24/20041125”.
Mais declararam que sobre o referido “prédio urbano além das hipotecas registadas na dita Conservatória, pelas inscrições Ap. 25/20041125 e Ap. 26/20041125, para garantia de dois empréstimos, nos montantes iniciais de sessenta e cinco mil euros e de dezoito mil euros, que por eles forma contraídos junto do G…, SA encontram-se actualmente em divida responsabilidades vencidas e não pagas decorrentes dos referidos empréstimos, no montante global de oitenta e três mil trinta e dois euros e vinte e cinco cêntimos de capital e juros. Que pela presente escritura e para pagamento parcial da mencionada divida, quanto ao montante de setenta e dois mil trezentos euros, os primeiros outorgantes dão em cumprimento ao G…, S.A. o identificado imóvel (...)
3. O exequente declarou aceitar a dação e aceitou cancelar as hipotecas que garantiam o seu crédito.
4. Naqueles contratos de empréstimo o embargante declarou “Que se constitui fiador e principal pagador das dívidas contraídas pelos mutuários, com expressa renúncia ao benefício da execução prévia”.
5. Das referidas escrituras públicas consta “Foi feita aos outorgantes a leitura e explicação do conteúdo deste acto”.
6. Em 02.01.2015 os devedores principais deixaram de proceder aos pagamentos.
7. O embargante não interveio na escritura pública id. em 2.
8. Desde Março de 2014 e até Março de 2015 o embargante efectuou pagamentos no valor global de €2.602,44.

Não se julgaram provados os seguintes factos:
1. O embargante apenas tomou conhecimento da realização da dação em pagamento aquando da citação para a execução.
2. O embargado explicou ao embargante o teor das cláusulas apostas nos contratos de mútuo.

III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
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Ora, visto o teor das alegações do apelante é questão a apreciar no presente recurso:
– Apurar qual a consequência jurídica adveniente do facto dos devedores e credor terem acordado o pagamento de parte da dívida através da dação em cumprimento do imóvel hipoteca e consequente extinção de tal garantia, na fiança dada pelo embargante aos devedores.
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Em suma, por via da execução de que este é um apenso, o banco exequente concedeu aos co-executados dois empréstimos, e para garantia do pagamento do capital, juros e demais acordado relativamente a esses dois contratos de mútuo, os mutuários (co-executados) constituiram a favor do banco duas hipotecas sobre um seu prédio urbano, registadas na competente Conservatória do Registo Predial, pelas inscrições Ap. 25/20041125 e Ap. 26/20041125, e o ora embargante constituiu-se ainda fiador e principal pagador e assim responsável pelo pagamento das dívidas assumidas pelos mutuários, no âmbito desses contratos, renunciando ao benefício da excussão prévia.
Os mutuários entraram em incumprimento, e em 21.07.2010, os mesmos, por escritura de dação em cumprimento, entregaram ao exequente e para pagamento parcial da dívida que tinham à data com o banco (no montante total de €83.032,25), ou seja, relativamente ao montante de €72.300,00, o imóvel dado de hipoteca e acima referido.
O embargante não interveio na escritura pública de dação anteriormente referida.
Os mutuários entraram novamente em incumprimento.
O banco exequente deu à execução de que este é um apenso as escrituras de mútuo com hipoteca e fiança acima referidas, sendo que o pedido exequendo se reporta, alegadamente, ao valor remanescente e em dívida após a referida dação em cumprimento.
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A 1.ª instância veio a julgar os embargos procedentes, para o que considerou, além do mais, que: ”(…) No caso em apreço não ocorreu essa sub-rogação, como o admite o embargante.
O que o mesmo pretende é que se declare que tendo o credor renunciado às garantias reais por acto em que aquele não teve intervenção, o impediu de, cumprindo, se sub-rogar nos direitos que assistiam ao credor, nomeadamente no que respeita às garantias reais do crédito e, consequentemente, que ficou desonerado da obrigação, à luz do disposto no art.º 653.º, do C.C.
Prescreve o citado art.º 653º, do C.C. - Liberação por impossibilidade de sub-rogação - que “Os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem”.
(…)
É o que sucede no caso dos autos.
O embargante não interveio na dação, nem concordou com a renúncia à extinção das hipotecas que garantiam o pagamento da quantia exequenda.
O credor ao renunciar àquelas impediu que o credor, cumprindo, se sub-rogasse nos seus direitos e na garantia real, pelo que por aquela renúncia ocorreu a liberação do devedor a que se refere o art.º 653º, do C.C.
Procedem, pois, os embargos (...)”.
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Ou seja, em suma a 1.ª instância entendeu que não tendo o embargante fiador intervindo no negócio de dação em cumprimento do imóvel hipotecado e consequente extinção da dita hipoteca, nem com ele tendo concordado, viu por acto do credor impedido o seu direito de sub-rogação nos direitos que competiam àquele, incluindo a garantia real, em consequência de ser chamado a pagar a dívida afiançada.
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Todavia, e como quase tudo nesta vida, a situação não é assim tão simples ou linear.
Senão vejamos.
Como é sabido, a fiança é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do crédito deste sobre o devedor, cfr. art.º 627.º n.º1 do C.Civil. O trunfo da constituição de fiança reside no facto de à garantia geral do património do devedor acrescer a garantia especial do património de terceiro (fiador). No entanto, a fiança não é uma garantia real, não é dotada da característica e força da sequela, própria dos direitos reais absolutos, sujeitando-se, assim, às vicissitudes do património.
A fiança pode ser constituída por contrato ou por negócio jurídico unilateral. E por ela, o fiador garante ao credor o pagamento da dívida de outrem (devedor), obrigando-se pessoalmente no confronto com o credor: o garante, caso o devedor garantido não cumpra espontaneamente, põe à disposição do credor todo o seu património pessoal até ao montante da totalidade do crédito, ou seja, o fiador, que é um estranho à relação obrigacional já constituída ou subjacente, assume no confronto com o credor uma ulterior obrigação, acessória e solidária, relativamente à denominada principal, tendo por objecto uma prestação que normalmente corresponde e coincide com a assumida pelo devedor garantido.
Em suma, a fiança concretiza-se no facto de um terceiro assegurar com o seu património o cumprimento de obrigação alheia, ficando pessoalmente obrigado perante o respectivo credor, cfr. art.º 627.º n.º1 do C.Civil. Tal responsabilização abrange, em princípio, todo o património do fiador, embora possa limitar-se a alguns dos bens que o integram, desde que tal redução seja convencionada nos termos do art.º 602.º do C. Civil.
Decorre do disposto no art.º 634.º do C.Civil, que “a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor”, de onde se conclui que a responsabilidade do fiador, salvo estipulação em contrário, cfr. art.º 631.º n.º 1 do C.Civil, se molda pela do devedor principal e abrange tudo aquilo a que ele está obrigado, não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo, cfr. art.º 798.º do C.Civil, ou a pena convencional que porventura se haja estabelecido, cfr. art.º 810.º do C.Civil.
A nossa Doutrina costuma apontar como características fundamentais deste instituto, a acessoriedade e a subsidiariedade.
Como referem Januário Gomes, in “Direito das Obrigações”, vol. III, pág. 79 a 119; Mário Júlio de Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, pág. 893, a acessoriedade, expressamente prevista no n.º 2 do art.º 627.º do C.Civil, tem as seguintes consequências essenciais:
i) a fiança está submetida à forma exigida para a dívida principal, cfr. art.º 628.º n.º 1 do C.Civil;
ii) a fiança não pode exceder a dívida principal, podendo, no entanto, ficar aquém desta; iii) caso exceda a dívida principal, a fiança não será nula, mas apenas redutível de acordo com a dívida afiançada, cfr. art.º 631.º n.ºs 1 e 2 do C.Civil;
iv) a nulidade ou anulabilidade da dívida principal provoca a invalidade da fiança;
v) se estabelecida para garantia de obrigações condicionais, cfr. art.º 628.º n.º 2 do C.Civil, constitui-se na dependência da mesma condição à qual se submete a obrigação que garante;
vi) extinta a dívida principal, fica extinta a fiança, cfr. art.º 651.º do C.Civil;
vii) o carácter civil ou comercial da fiança depende da natureza da obrigação principal.
Em suma, a fiança está moldada nos termos da dívida principal (moldada per relationem), ou seja, o fiador só é responsável pelo cumprimento da obrigação do devedor na medida em que, sendo o devedor responsável, ele assumiu o dever de cumprir especialmente conotado com o dever de cumprir do devedor.
Esta característica assenta na invocabilidade de excepções relacionadas com a obrigação principal e no âmbito das responsabilidades, cfr. art.ºs 637.º n.º1, 631.º n.º1 e 634.º. todos do C.Civil, e tem como fim a segurança ou garantia (não só do cumprimento da obrigação, como também na solvência do devedor), não se olvidando que representa um risco para quem a presta. Pois, como se referiu nos Acs. do STJ de 21.01.2014 e de 107.2008, ambos in www.dgsi.pt, todos os negócios envolvem um risco, embora aqui o risco seja grande porquanto o fiador pode ter que ser chamado a suportar um esforço de satisfação do credor, sem que lhe possa exigir qualquer correspectivo, impendendo sobre ele o ónus e esforço de obter junto do devedor, o valor que realizou sem ter a certeza da sua efectivação .

Quanto à subsidiariedade, concretiza-se no chamado benefício de excussão, traduzido no direito que assiste ao fiador, de recusar o cumprimento, enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal, cfr. art.º 638.º do C.Civil, salvo em certas hipóteses, uma das quais a de haver renunciado a tal benefício e, em especial, ter assumido a obrigação de principal pagador, cfr. art.º 640.º do C. Civil).
Mas, mesmo no caso de ter assumido a obrigação de principal pagador, continua a ser acessória a obrigação do fiador em relação à do devedor afiançado, com as inerentes consequências, designadamente a de poder opor ao credor os meios de defesa que compete o devedor, cfr. art.º 637.º do C.Civil, e a de ficar sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes forem por ele satisfeitos, cfr. art.º 644.º do C.Civil.
Daqui decorre que a obrigação do fiador é sempre acessória em relação à obrigação do devedor afiançado, assumindo, assim, a acessoriedade uma característica essencial da fiança. Isto é e em suma, pode e deve dizer-se que o que é essencial à fiança é a acessoriedade e não a subsidiariedade.
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Regressando ao caso em apreço, temos que o embargado, fiador dos mutuários, num contrato de mútuo bancário, pretende ser desonerado da obrigação de garantia por ele assumida, alegando que o credor adoptou comportamentos que o impede de ficar sub-rogado nos direitos do credor.
O direito à liberação do fiador por impossibilidade de sub-rogação encontra-se previsto no art.º 653.º do C.Civil. Aí se preceitua que os fiadores ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem. Ou seja, em qualquer situação em que a actuação voluntária, não necessariamente culposa, do credor tenha implicado o resultado de passar a ser impossível para o fiador, total ou parcialmente, a sub-rogação, nessa medida, total ou parcial, se extinguirá a responsabilidade do fiador.
Pois que para que ocorra esta liberação do fiador não é de exigir a actuação culposa do credor, mas apenas a voluntariedade do facto positivo ou negativo de que decorre a perda do direito. Esta perda tem de ser imputável ao credor, mas não depende de conduta culposa deste. Ou no dizer de Januário Gomes in “Assunção Fidejussória de Dívida”, pág. 925 “O facto positivo ou negativo do credor terá de ser um facto voluntário, não fazendo aqui sentido a exigência do carácter culposo da sua actuação. Independentemente de não estarmos em sede de determinação de responsabilidade civil do credor – caso em que a “busca” da culpa do devedor (no caso o credor) teria toda a razão de ser – o que é razoável é que o credor perca a vantagem da fiança na medida em que a perda do direito lhe seja imputável”.
E duvidas, não há, de que “direitos” a que se refere o art.º 653.º do C.Civil, “(…) tem aplicação aos casos de garantias associadas ao crédito como são as hipotecas, os penhores, os privilégios ou as fianças; o mesmo se dirá das posições activas de garantia e segurança decorrentes de uma penhora ou de um direito de retenção (…) Centrando-nos no âmbito de aplicação do art.º 653º, é irrelevante que o credor “feche os olhos” à gestão patrimonial do devedor ou mesmo à alienação de bens (…). Tais omissões do credor não põem em causa a consistência jurídica, mas apenas económica, do crédito. Pressupostos base de aplicação do regime plasmado no art.º 653º é que o fiador não possa ficar sub-rogado nos direitos do credor. Ora, nenhuma impotência patrimonial superveniente do devedor, impede que o fiador, cumprindo, fique sub-rogado na posição de credor”., cfr. Januário Gomes, in “Assunção Fidejussória de Dívida”, pág. 925.
Na verdade, o fiador que cumpre a obrigação do afiançado fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes forem por ele satisfeitos, cfr. art.º 644.º do C.Civil. Ou seja, o crédito transfere-se para ele com todas as garantias e acessórios, cfr. art.º 582.º n.º1, aplicável “ex vi” dos art.ºs 594.º e 593.º, todos do C.Civil. Trata-se de uma situação de sub-rogação legal.
Ora, numa solução que remonta ao direito romano denominada de - Benefitium Cedendarum Actionum - entende-se que se o credor é o responsável pela “perda” dos direitos que lhe assistiam, é razoável que o fiador se possa desonerar da obrigação assumida, uma vez que se a vier a cumprir, já não vai dispor dos meios necessários para obter do afiançado o que despendeu, uma vez que, por culpa do credor, se perderam os direitos em que deveria ficar sub-rogado.
In casu” o embargante imputa ao exequente (credor) o facto de ter cancelado as hipotecas que garantiam o pagamento dos créditos afiançados, tendo deixado de poder vir a dispor daquelas garantias, no caso em que foi chamado a pagar o crédito.
O n.º1 do art.º 686.ºdo C.Civil não define hipoteca, limitando-se a prever que ela “confere ao credor o direito a ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”. Em suma, e como sucede com todas as garantias reais, a hipoteca é constituída para garantia de um crédito.
O art.º 730.º do C.Civil indica-nos as causas de extinção da hipoteca, sendo a primeira a extinção da obrigação a que serve de garantia. Na verdade, constituindo a hipoteca uma garantia acessória, naturalmente que se extinguirá com a extinção da obrigação a que serve de garantia. Outra causa de extinção é a renúncia do credor, e apesar de a expressão “renúncia do credor” tanto poder reportar-se ao crédito, provocando a sua extinção; como à própria hipoteca, tornando o credor um mero credor comum, esta última será a melhor interpretação do texto legal, não determinando a remissão do crédito.
Todavia e apesar de não constar do rol do art.º 730.º do C.Civil, entendemos que pode ser também considerada como uma causa de extinção da hipoteca a expurgação da mesma no caso de transmissão dos bens hipotecados, cfr. art.º 721.º do C.Civil.
Como vimos, a 1.ª instância considerou que “in casu” o credor/exequente renunciou às hipotecas constituídas pelos devedores para garantia do pagamento dos montantes mutuados cfr. art.º 730.º al. d) do C.Civil.
Mas não sufragamos tal entendimento.
Senão vejamos.
Na verdade, não se pode olvidar que subjacente ao cancelamento das ditas hipotecas está um contrato de dação em pagamento, mediante o qual credor/exequente e devedores (mutuários) fixaram o montante de capital e juros em dívida, à data, em €83.032,25, e que para pagamento parcial (mas substancial) desse montante, ou seja, de €72.300,00, os devedores/mutuários deram ao credor/exequente o imóvel sobre o qual estavam constituídas duas hipotecas voluntárias como garantia do pagamento dos montantes mutuados.
Daqui decorre que na realidade as hipotecas extinguiram-se, não por renúncia do credor, mas pela extinção parcial da obrigação a que serviam de garantia, cfr. al. a) do art.º 730.º do C.Civil.
Dúvidas não há que o embargante/fiador, em consequência desse negócio alcançado entre credor e devedores/mutuários, e a que foi absolutamente estranho, deixou de dispor daquelas garantias reais, caso venha a ficar sub-rogado no direito principal do credor, não porque o credor a essas garantias tenha renunciado, mas sim porque o bem imóvel sobre o qual as mesmas incidiam foi dado em cumprimento ao credor para extinção parcial do crédito afiançado. Ou seja, a referida dação em cumprimento efectuou o seu propósito legal, isto é, através da prestação de coisa diversa operou a extinção, embora parcial, do crédito em apreço, sem que tenha havido recurso à garantia pessoal decorrente da fiança do embargante.
Desta forma, manifesto é de ver que o crédito afiançado ficou, ele próprio reduzido, na medida da extinção parcial da dívida inicial operada por via da dação em cumprimento.
Destarte, e por força da aplicação do preceituado no art.º 653.º do C.Civil, temos de concluir que não se pode verificar uma situação de liberação do fiador por impossibilidade de sub-rogação. O que sucede é apenas uma impossibilidade de sub-rogação parcial ao embargante/fiador (é impossível a sub-rogação relativa às garantias acessórias do crédito consistentes nas ditas hipotecas) mas quanto aos demais direitos essa sub-rogação mantêm-se possível. E por outro lado, não se pode olvidar que a própria obrigação afiançada se mostra reduzida em montante importante. Logo, a solução justa, adequada e proporcional é a redução proporcional da obrigação do fiador/embargante ao montante residual da dívida dos devedores após a realização da dação em cumprimento.
É certo que o fiador/embargante porque não interveio no negócio da dação em cumprimento se poderá sentir lesado com o valor que foi pelos ali contratantes, fixado ao imóvel objecto do negócio, se por exemplo se sentir prejudicado por entender que o valor atribuído ao imóvel é substancialmente inferior ao seu real valor de mercado, e assim prejudicou o fiador que viu o crédito afiançado não ser totalmente satisfeito através daquele negócio, estamos perante uma situação que poderia ser equacionada, à luz das regras da boa-fé, nos presentes embargos de executado, ou seja, quando o credor veio exigir do executado/fiador o pagamento da parte do crédito que ainda não se encontra satisfeita (como “in casu” a quantia de €9.502,83), defesa que o embargante não accionou, pelo que “sibi imputet”, mas não é motivo para que se declare extinta a fiança, ou seja, a completa liberação da obrigação assumida pelo fiador, nos termos do art.º 653.º do C.Civil, mas apenas a sua redução nos termos acima referidos.
Restam-nos pois revogar a decisão recorrida e em sua substituição julgar os presentes embargos de executado improcedentes, ordenando o prosseguimento normal da execução de que é um apenso.
Procedem as conclusões do apelado.

Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, e em sua substituição julga-se os presentes embargos de executado improcedentes, ordenando-se o prosseguimento normal da execução de que é um apenso.
Custas pela apelante.

Porto, 2020.10.13
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues