I - O processo relativo à inibição e limitações ao exercício das responsabilidades parentais, regulado nos artigos 52.º a 59.º do RGPTC, tem natureza de processo de jurisdição voluntária, sendo-lhe também aplicável os artigos 986.º a 988.º do Código de Processo Civil.
II - Os interesses nele em discussão são objecto de decisão a proferir segundo um juízo de oportunidade ou conveniência e não de estrita legalidade.
III - A inibição do exercício das responsabilidades parentais em relação ao filho menor é uma medida de última ratio: só em situações em que os progenitores se comportem de forma grave e irreversível, colocando em risco, de forma grave, os interesses do menor podem ser inibidos do exercício das responsabilidades parentais relativamente a esse filho.
- D…,
- E… e
- F…,
todos identificados nos autos.
Para tanto invoca, em síntese, que o requerido se mostra há vários anos ausente da vida dos filhos, não tem paradeiro conhecido e não revela qualquer interesse pelos mesmos.
O requerido/progenitor foi citado editalmente, mostrando-se devidamente representado pelo seu Il. Defensor Oficioso, que veio apresentar contestação, na qual, em síntese, argumenta que não obstante se encontrar ausente, é desconhecido o motivo de tal ausência do requerido.
Foi determinada a realização de relatório social, que foi junto aos autos.
Concluído o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo o requerido do pedido.
2. Não se conformando com a mesma, dela interpôs a requerente recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, na firme convicção que a mesma eferma de nulidade, ao abrigo do disposto no art.º 195.º, do CPC., atenta o incumprimento de várias formalidades legalmente prescritas e que, em boa verdade, influenciam o exame e a decisão da causa bem como, de uma errada e insuficiente qualificação jurídica que serviu de base à decisão, a qual vai em sentido bem diferente daquele que, Vossas Excelências, elegerão, certamente, como mais acertada, depois da necessária reponderação dos pertinentes pontos da matéria de facto e de direito, e à luz dos meios probatórios disponíveis.
2. O objecto do presente recurso consubstancia-se na impugnação da decisão proferida pelo Tribunal a quo nos seguintes termos:
- o ter sido julgado improcedente por não provado o pedido formulado pela A.
3. Desde logo, salvo o devido respeito, jamais a ora Recorrente poderá concordar com o entendimento do Tribunal recorrido.
4. Desta forma, violou a Meritíssimo Juiza a quo uma das formalidades do artigo 3.º n.º 3 do C.P.C.
1. NESTES TERMOS, cumpre concluir que, atento o supra exposto a decisão, aqui em apreço é nula atenta a preterição de formalidades essenciais legalmente consignadas.
I – ERRO DE JULGAMENTO
II – VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SUBSTANCIAÇÃO –
Na verdade, aqui é exiguidade dos factos é manifesta, como se sabe, a causa de pedir consiste na alegação da relação material de onde o A., faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, na alegação dos factos constitutivos do direito.
Os mesmos não têm qualquer fundamento como em sede de Contestação se demonstrou, é o facto jurídico concreto de que procede o efeito jurídico que se pretende fazer valer com a acção. Nas palavras de A. Reis, in Comentários ao CPC, v. II, pag. 375, “a causa de pedir (...) não é o facto jurídico abstrato, mas o facto facto jurídico concreto de que emerge o direito que o A. se propõe fazer declarar”. E afirma ainda o mesmo A.: “hão-de expor-se os factos concretos em que se funda esse direito, os factos materiais que sejam suficientes para caracterizar e especificar a causa de pedir”. (C.P.C. Anot., V. II, p. 354.
III - DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO:
5. No seguimento daquilo que já supra melhor se mencionou, os fins do Processo Civil, resumidamente, são os de, em contraditório, determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, proferir o despacho destinado a identificar o objecto do litígio.
6. ACONTECE QUE, não obstante a existência de matéria controvertida, a Meritíssimo Juiz a quo, entendeu que os autos já possuíam todos os elementos necessários à decisão sobre o mérito da causa e, como tal, proferiu o respectivo despacho, proferindo decisão no âmbito dos presentes autos.
7. Porém, ao arrepio da lei, designadamente, ao abrigo do disposto no art.º 3.º n.º 3 do C.P.C., o Tribunal recorrido decidiu sobre o mérito da causa nem facultar às partes a discussão da matéria de facto e de direito.
8. Ora, a audição das partes quanto à matéria de facto e de direito constitui uma formalidade legalmente imposta pelo artigo 3.º n.º 3 do C.P.C., cuja violação acarreta a nulidade da decisão o que, desde já se invoca, com todas as consequências legais daí decorrentes.
9. Deste modo, violou a Meritíssimo Juiz a quo um dos mais elementares princípios processuais, nomeadamente, o princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º n.º 3 do CPC.
10. Face ao exposto, não restam dúvidas de que a prolação da decisão é proferida com preterição de uma formalidade essencial e, que se encontra prescrita na lei, ou seja, foi a mesma efectuada sem que as partes tivessem oportunidade de se pronunciar em relação às questões de facto e de direito.
11. Em face disso e, uma vez que a omissão de tal formalidade influi no exame ou na decisão da causa, tal decisão é nula, atenta a violação do art.º 3º n.º 3 do CPC.
12. Assim sendo e, sempre com o devido respeito, a verdade é que, muito mal andou o Tribunal de que se recorre.
13. Em suma, não se conforma, de modo algum, a ora apelante com a douta decisão em crise, por entender que a decisão judicial proferida é, nula, atenta a violação de formalidades legais, conforme supra melhor se explanou, com todas as consequências legais daí decorrentes.
Termos em que se concedendo provimento ao recurso, deve revogar-se a sentença recorrida, em conformidade com as conclusões formuladas, com as legais consequências, fazendo-se a sã e habitual Justiça.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se:
- Ocorre erro de julgamento,
- Se verifica a existência de nulidade processual, nomeadamente por violação do princípio do contraditório;
- A sentença deve considerar-se nula.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Com interesse para a causa, em primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. Autora e Réu são pais dos menores:
- Menor: D…;
- Menor: E….
- F….
2. O exercício das responsabilidades parentais dos menores encontra-se devidamente regulado nos autos principais e apenso A, por decisão judicial homologatória proferida em 23-01-2013 e transitada em julgado.
3. Tendo ficado fixado, além do mais, a residência dos menores D…, E… e F… em casa da mãe, designadamente na Rua …, n.º .. - frente, …, Valongo;
“As responsabilidades parentais de particular importância serão exercidas em conjunto pelos progenitores, cabendo à progenitora com quem os menores residem habitualmente o exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente dos filhos.”
4. Após a regulação do poder paternal, o R. nunca mais procurou os filhos, nem manifestou qualquer preocupação pelo seu destino.
5. Apesar de saber que os menores se encontram com a progenitora, o R. não mais os procurou ou visitou, nem sequer telefonou no sentido de saber do seu estado, não demonstrando qualquer afecto pelos filhos.
6. O requerido, em data não concretamente apurada, foi residir para Inglaterra e aí teve morada em …, .. …, Birmingam …, pelo menos no ano de 2011, encontrando-se, actualmente, em paradeiro desconhecido.
7. O agregado familiar dos menores é constituído pela progenitora, a sua filha G…, de 1 ano de idade, e as crianças dos autos, F…, D… e E….
8. O agregado reside num apartamento de tipologia 3+1, adquirido com crédito à habitação, referenciado com condições de habitabilidade.
9. A progenitora trabalha como Empregada de Loja na perfumaria “H…, Lda.
10. B… trabalha por turnos e ao fim de semana, sendo que a perfumaria onde trabalha está inserida num centro comercial. No momento, e por motivos da pandemia covid-19, encontra-se em situação de Lay-Off.
11. São os seguintes os Rendimentos do agregado familiar:
€740,00 Rendimentos de trabalho*
€100,00 Pensão de alimentos de G…
€303,44 Prestações familiares de G…
Rendimentos a favor da(s) criança(s):
€202,28 Prestações familiares
€308,42 Pensão de alimentos**
*Valor médio mensal variável conforme subsídios por trabalho noturno e domingos.
**O valor da pensão de alimentos está a ser pago pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM).
12. São as seguintes as despesas mensais mais significativas (valores aproximados): Agregado familiar:
€205,00 – prestação da casa e seguros associados
€ 26,00 - condomínio
€120,00 – consumos de água, luz e gás
€ 59,14 – tv cabo e internet
€ 50,00 – combustível
€ 96,00 – prestação de crédito ao consumo;
Específicas da(s) criança(s) em causa:
€170,00 – centro de estudos do D… e da E…
€ 30,00 – propina da escola da F…
€ 5,00 – medicação de E….
Acrescem despesas anuais com óculos para a F… e aquisição de lentes de contacto semestralmente, no valor de €30,00.
13. A progenitora não tem qualquer tipo de comunicação com o progenitor, sabendo apenas que residirá em Inglaterra.
14. No contexto escolar F… é caracterizada como uma jovem tímida e educada, mantendo um bom relacionamento com o grupo de pares e professores. É uma aluna assídua e pontual. Apresenta resultados escolares razoavelmente bons, e sempre que necessário, para colmatar alguma dificuldade existente, tem apoio individualizado com o professor da disciplina. A Encarregada de Educação é a progenitora, a qual esteve presente na reunião do início do ano lectivo.
15. Ao nível da saúde F… apresenta problemas de visão, necessitando de usar óculos e lentes de contacto.
16. D… é um aluno assíduo, acontecendo, por vezes, não ser pontual no primeiro tempo da manhã, sendo, contudo, a responsabilidade do atraso do Centro de Estudos que assegura as suas conduções para a escola. Apresenta cuidados pessoais e leva sempre lanche. Ao nível das aprendizagens escolares é caracterizado como um aluno com capacidade para obter melhores resultados se trabalhasse e se concentrasse mais, tendo obtido no 2.º período do presente ano lectivo, um nível inferior a 3 na disciplina de Educação Musical, dois níveis 4 às disciplinas de Educação Física e TIC, e nível 3 às restantes disciplinas. Foram elaboradas Acomodações Curriculares. É um aluno bem-comportado, com sentido de responsabilidade, que gosta de dar o seu parecer e com sentido de humor, sendo percepcionado como um jovem feliz e tranquilo.
17. No contexto escolar E… é caracterizada como uma criança bem-disposta, extrovertida e sociável. É uma aluna pontual e assídua. Vai sempre asseada e leva o lanche da manhã e da tarde. É bem-comportada e respeita os colegas e os adultos. Ao nível das aprendizagens, apresenta bons resultados em todas as áreas escolares. É uma aluna interessada, participativa e empenhada em esclarecer e superar as suas dúvidas. Tem um bom ritmo de trabalho e apresenta os seus cadernos diários organizados e com boa apresentação. A Encarregada de Educação é a progenitora, que acompanha o percurso escolar da sua educanda, mas nem sempre comparece na escola, quando solicitada, por incompatibilidade de horários. É percepcionada uma boa relação entre a criança e a progenitora bem como com os irmãos e com os avós. Ao nível da saúde E… padece de doença rara de origem genética – febre mediterrânica familiar – sendo acompanhada na consulta de Reumatologia Pediátrica, no Hospital ….
18. Todos os menores são acompanhados pelo Médico de Família no Centro de Saúde ….
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Segundo o n.º 1 do artigo 1878.º do Código Civil, “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”.
Deste preceito decorre que as responsabilidades parentais devem ser exercidas na prossecução do “interesse dos filhos”, e nos casos em que é demandada a intervenção do poder judicial, este deve decidir assegurando igualmente o interesse do menor, ainda que o faça em prejuízo dos pais ou de terceiros[1].
As responsabilidades parentais constituem uma resposta, a dar por quem está mais próximo da criança e por isso também melhor habilitado a conhecer as suas necessidades, a uma situação de imaturidade (física, emocional, psíquica) decorrente da menoridade.
Cabe, assim, aos pais, em primeira linha, desempenhar esse papel protectivo, exercendo os poderes funcionais que integram as responsabilidades parentais, zelando pelo desenvolvimento integral da criança, proporcionando-lhe alimentação, afecto, condições de saúde, de educação, de segurança, promovendo a sua autonomia e independência.
Como é afirmado por Filipa Daniela Ramos de Carvalho[2], “o interesse do menor, embora se consubstancie numa dificuldade prática acrescida, resultante da indeterminação do critério, absorve ou deve absorver todas as orientações vertidas no Código Civil, nomeadamente os artigos 1878º (segurança, saúde, sustento e autonomia do menor), 1885º, nº1 (desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos), 1878º, nº2 (opinião dos filhos). Outrossim, a natureza dos processos de regulação das responsabilidades parentais como processos de jurisdição voluntária atribuem ao juiz um papel fundamental na adequação, in casu, das orientações legais sobre o conteúdo do exercício das responsabilidades parentais e o critério do interesse do menor”, que, assim, conclui: “Deste modo, é da intercepção entre as orientações legais e das orientações jurisprudenciais que se alcança, paulatinamente, um conteúdo do conceito indeterminado em questão”.
Note-se que se as responsabilidades parentais são “...um direito de ambos os pais, cujo papel insubstituível é reconhecido constitucionalmente, não menos importantes são os direitos dos filhos [...] a serem protegidos quer pelos pais, como naturais protectores, quer pelo Estado, que, pelo controlo da autoridade paternal, deverá, quando for caso disso, substituir-se aos pais (que não o conseguiram ser) na procura efectiva da realização integral da criança”[3]
Segundo Hugo Manuel Leite Rodrigues[4], “...o art. 69.º CRP garante aos menores a protecção da sociedade e do Estado contra o abandono, a discriminação e a opressão e ainda contra os abusos de autoridade familiar (e como poderemos ver o legislador ordinário prevê sanções para o abuso no exercício das responsabilidades parentais nos arts. 1915.º e 1918.º [...]”.
De acordo com o n.º 6 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa, “Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial”, lembrando Hugo Rodrigues[5] que “...as restrições a este princípio estão previstas na lei, podendo ser decretadas apenas por decisão judicial (neste sentido veja-se os arts. 1915.º e 1918.º) [...]”.
Estabelece, com efeito, o n.º 1 do primeiro daqueles normativos que “A requerimento do Ministério Público, de qualquer parente do menor ou de pessoa a cuja guarda ele esteja confiado, de facto ou de direito, pode o Tribunal decretar a inibição do exercício das responsabilidades parentais quando qualquer dos pais infrinja culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou quando, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, não se mostre em condições de cumprir aqueles deveres”.
Também o artigo 52.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro prevê que “O Ministério Público, qualquer familiar da criança ou pessoa sob cuja guarda se encontre ainda que de facto, podem requerer a inibição, total ou parcial, do exercício das responsabilidades parentais quando qualquer dos pais infrinja culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou quando, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, se não mostre em condições de cumprir aqueles deveres”.
Citando Tomé Ramião, sustenta a sentença recorrida: “Sendo as responsabilidades parentais um poder funcional, o seu exercício não é livre, mas vinculado e controlado, pelo que em certas situações graves e no interesse e protecção da criança, poderá ser limitado ou mesmo inibir-se os pais do seu exercício.
(...)
De acordo com o preceito, a inibição pode ser decretada quando qualquer dos pais infrinja culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou quando, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, se não mostre em condições de cumprir aqueles deveres.
A privação do exercício das responsabilidades parentais gera uma carga negativa ou ‘infamante’, pelo que os tribunais, em regra, só a aplicarão em casos de muita gravidade, pois nem sempre a inibição se revela como a medida mais adequada à situação, que poderá reclamar outras reacções menos radicais.
(...)
A valoração da incapacidade dos progenitores para exercerem as responsabilidades parentais assenta basicamente em dois factores: por um lado, na culpa imputável aos progenitores pela violação dos deveres para com os filhos e, por outro, na averiguação da gravidade do prejuízo para estes resultantes dessa violação.
Por isso, são pressupostos da inibição:
- A violação dos deveres para com os filhos;
- Que essa violação seja culposa;
- Que dela resultem graves prejuízos para os filhos.
Importa, por isso, averiguar da existência de culpa (em sentido lato), ou seja, se a violação dos deveres lhes é imutável, em termos de censura ético-jurídica, bem como da gravidade do prejuízo resultante dessa violação. E, independentemente de culpa, quando os pais, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, se não mostrem em condições de cumprir aqueles deveres – parte final do preceito”[6].
E como se retira do acórdão da Relação de Coimbra de 17.05.2016[7], “Competindo aos progenitores zelar pela saúde e segurança dos filhos, prover ao seu sustento e dirigir a sua educação, em tudo tendo a sua actuação de se pautar e conformar pelo critério único e fundamental do interesse do filho menor, a inibição das responsabilidades parentais só pode ser decretada quando se perfilar uma situação de violação grave e culposa de algum ou alguns dos assinalados deveres, daí resultando grave prejuízo para o filho [...].
A inibição é uma medida de última “ratio”, pelo que a verificar-se uma situação de perigo para a segurança, saúde, formação moral e educação do filho menor sempre cumprirá indagar se o regime prevenido no art. 1918.º não constitui remédio adequado, em ordem a preservar no progenitor o exercício das responsabilidades parentais”.
A requerente, progenitora dos menores E…, F… e D…, veio, através da acção que interpôs contra o requerido, progenitor das mesmas crianças, pedindo que o tribunal decrete, quanto a este, a inibição das responsabilidade parentais dos filhos menores de ambos, invocando, para o efeito, o paradeiro desconhecido do requerido e a falta de interesse dele para com aqueles filhos.
O tribunal negou-lhe, porém, tal pretensão, por considerar que a factualidade apurada era insuficiente para justificar a aplicação de uma medida tão radical como a inibição das responsabilidades parentais, ou mesmo a limitação dessas responsabilidades.
Não se conformando com tal decisão, veio a requerente impugná-la por via recursiva, apontando as razões da sua dissonância.
1.1. Erro de julgamento.
Como resulta das conclusões de recurso, a apelante imputa à sentença “erro de julgamento”.
Se no corpo das alegações começa a recorrente por sustentar que “Os documentos juntos aos autos, são suficientes para por em causa a matéria de facto dada como provada e não provada”[8], logo acrescenta, porém, com base em factos considerados provados pelo tribunal recorrido: “Situação que, salvo melhor opinião, consubstancia nulidade que acarreta a anulação dos atos subsequentes, máxime da douta sentença proferida e, que foi já requerida”.
E no ponto 4. das conclusões, após mencionar que “violou a Meritíssimo Juiza a quo uma das formalidades do artigo 3.º n.º 3 do C.P.C.”, adianta que “a decisão, aqui em apreço é nula atenta a preterição de formalidades essenciais legalmente consignadas”, apontando, de seguida, o “Erro de Julgamento” como causa da nulidade que invoca.
As alegações/conclusões são, a propósito do convocado erro de julgamento, absolutamente ininteligíveis, confundindo conceitos inconfundíveis e que, pela sua natureza distinta, deviam ser tratados como tal.
1.2. Da violação do princípio da substanciação.
Alegando ser manifesta a exiguidade dos factos, argumenta a recorrente que “os mesmos não têm qualquer fundamento como em sede de Contestação se demonstrou”, passando, sem qualquer nexo de ligação entre aquelas afirmações e por insondáveis razões, a dissertar sobre a causa de pedir, citando, para o efeito, o Prof. J. Alberto dos Reis.
De toda a forma, sempre importará referir que a factualidade transposta para a sentença é claramente mais completa do que a alegada por requerente[9] e requerido, tendo acertadamente o Sr. Juiz se socorrido dos poderes oficiosos que o processo de jurisdição voluntária lhe consentia.
1.3. Da violação do princípio do contraditório.
Afirma a recorrente ser nula a sentença de que recorre por ter sido omitida a audição das partes quanto à matéria de facto e de direito, com violação de formalidade legalmente imposta pelo artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
O princípio do contraditório constitui pilar estruturante do direito adjectivo português, com expressa consagração constitucional. Assim:
O artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa reconhece a faculdade de participação dos interessados na tomada de decisões que lhes digam respeito, salvaguardando, deste modo, o seu direito de defesa ou o de serem ouvidos.
O mesmo princípio encontra ainda expressão na letra do artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil ao estabelecer que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
A letra do preceito corresponde, no essencial, à do antecedente artigo 3.º, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, cujo preâmbulo justifica deste modo a relevância reconhecida ao princípio do contraditório: “significativo relevo foi dado à tutela efectiva do direito de defesa, prevendo-se que nenhuma pretensão possa ser apreciada sem que ao legítimo contraditor, regularmente chamado a juízo, seja facultada a oportunidade de deduzir oposição.
[...] Afirmam-se como princípios fundamentais, estruturantes de todo o processo civil, os princípios do contraditório, da igualdade das partes e da cooperação e procuram deles extrair-se consequências concretas, ao nível da regulamentação dos diferentes regimes adjectivos.
Assim, prescreve-se, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a proibição de prolação de “decisões surpresa”, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, e aplicando-se tal regra não apenas na 1.ª instância mas também na regulamentação de diferentes aspectos atinentes à tramitação e julgamento dos recursos”.
Como destaca Fernando Pereira Rodrigues[10], “desde sempre traduzido no brocardo latino de que nemo condemnat sine auditur (ninguém se condene sem ser ouvido), o princípio do contraditório proíbe que o tribunal resolva um conflito de interesses que lhe tenha sido colocado sem que proceda à audição da parte contra a qual tal conflito venha a ser resolvido.
Não sendo de descurar que “esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes são naturalmente objeto de discussão antes da decisão, sem que o facto de a parte que as tenha levantado não ter exercido o direito de resposta (desde que este lhe tenha sido facultado) implique falta de contraditoriedade. Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso).”[11].
Vejamos, então, se foi violado tal princípio ou se foi omitida formalidade que a lei prescreva.
A Secção V do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) disciplina o ritualismo do processo relativo à Inibição e limitações ao exercício das responsabilidades parentais, o qual tem natureza de processo de jurisdição voluntária[12].
Os interesses nele em discussão são objecto de decisão a proferir segundo um juízo de oportunidade ou conveniência e não de estrita legalidade, dispondo o julgador amplos poderes inquisitório, podendo investigar livremente os factos, coligir as provas, recolher as informações que entenda por convenientes, admitindo as provas que lhe sejam requeridas também em função do que entenda por necessário – artigo 986.º do CPC.
De acordo com tais disposições, o procedimento de regulação das responsabilidades parentais tem natureza de processo de jurisdição voluntária, sendo-lhe, como tal aplicável as regras gerais previstas para os processos desta natureza nos artigos 986.º a 988.º do Código de Processo Civil.
Prescreve o n.º 2 do artigo 54.º do RGPTC que “com a petição inicial e a contestação, as partes devem arrolar testemunhas e requerer quaisquer outras diligências de prova”.
A requerente não indicou na petição inicial qualquer meio de prova, testemunhal, documental ou outra, a produzir antes de ser proferida sentença.
O requerido, através do seu defensor nomeado, requereu na contestação que fosse a requerente ouvida em depoimento de parte.
Após ter sido admitido o requerido depoimento de parte da requerente, mas limitado à matéria alegada na contestação e nos limites do artigo 361.º do Código Civil, a 12.2.2020 proferiu-se o seguinte despacho:
Tendo já sido realizadas as diligências pertinentes tendentes ao apuramento do paradeiro do requerido e não sendo requerida a realização de qualquer concreta diligência nesse sentido, os autos prosseguirão agora para a realização de audiência de julgamento – art.º 55º nº 1 do RGPTC.
Assim, determina-se a realização de relatório social, nos termos previstos no art.º 21º e 55º nº 1 do RGPTC, incidindo nas condições de vida das crianças e seus progenitores.
Junto o ordenado relatório social, foi designada data para a realização da audiência de julgamento, de que as partes foram notificadas, no decurso do qual o patrono do requerido prescindiu do depoimento de parte da requerente, e, não tendo sido requeridas quaisquer diligências probatórias, passou-se de imediato à fase de alegações orais, após o que foi encerrada a diligência tendo seguidamente sido proferida sentença.
Prescreve o artigo 55.º, nº 1 do RGPTC que “Se o processo houver de prosseguir, efetuam-se as diligências que devam ter lugar antes da audiência de discussão e julgamento e que o juiz considere necessárias, nos termos do artigo 21.º”.
Ora, no caso, para além do depoimento de parte da requerente, de que o requerido viria a prescindir em audiência, as partes não requereram quaisquer outras diligências probatórias.
Tendo sido ordenada a realização de relatório social, que já se encontrava nos autos, e não se afigurando ser necessária qualquer outra diligência de prova, nada obstava que fosse designada e se realizasse a audiência de julgamento, conforme determinado no citado despacho, de resto em conformidade plena com as normas processuais aplicáveis, prevendo o n.º 2 do referido dispositivo legal que “Realizadas as diligências previstas no número anterior, tem lugar a audiência de discussão e julgamento, no prazo máximo de 10 dias”.
Foi, assim, o princípio do contraditório garantido e não foi omitido qualquer acto ou formalidade susceptível de influir no exame ou na decisão da causa que, a configurar-se, poderia gerar nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil[13].
Se a acção de inibição das responsabilidades parentais já justificava alguma perplexidade pelos termos em que foi proposta pela requerente, que nem sequer indicou ou requereu no articulado inicial qualquer meio de prova – omissão que não viria sequer a suprir ao longo do processo -, os argumentos recursivos[14] de que se vale para impugnar a decisão proferida, pedindo a sua revogação, continuam a justificar a mesma perplexidade, porventura de forma agravada.
Improcede, consequentemente, o recurso, mantendo-se a sentença impugnada.