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DECLARAÇÕES PRESTADAS INQUÉRITO
COARGUIDO ENTRETANTO FALECIDO
REPRODUÇÃO OU LEITURA EM AUDIÊNCIA
INADMISSIBILIDADE LEGAL
Sumário
I) Não estando legalmente prevista a possibilidade do falecimento do coarguido que prestou as declarações, quando a lei prevê expressamente essa situação para a prova em geral, no nº 4 do artigo 356.º do CPP, é porque o legislador não quis em circunstância alguma permitir a possibilidade de reprodução ou leitura em audiência de declarações prestadas anteriormente por coarguido entretanto falecido. II) Tal possibilidade é aliás incompatível com as regras sobre a produção da prova subjacentes ao julgamento em processo penal, pois impediria o contraditório direto, numo quadro de imediação e oralidade, no âmbito do direito a um processo equitativo, conforme prevêem quer o art.º 20.º, n.º 4, da Constituição da República quer o art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. III) Não se coadunando, sequer, com a regra do nº 4 do artigo 345.º, do CPP, que impõe expressamente a proibição da validade como meio de prova das declarações de um coarguido em prejuízo de outro coarguido sem efetivação em audiência do contraditório direto aí previsto, realizado através de perguntas do tribunal, advogados de assistentes e defensores ao coarguido – que prestou as declarações lidas ou reproduzidas – e respostas deste a essas perguntas.
Texto Integral
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães
Secção Penal
I. RELATÓRIO
No processo comum coletivo nº 539/12.5TABRG, do Juízo Central Criminal de Braga, da comarca de Braga, que são arguidos V. S., M. A., L. M., L. P., e X Truck & Bus Portugal, todos com os demais sinais dos autos, 1. em 27-02-2019 o Ministério Público requereu, abrigo do disposto no art.º 356.º, n.º 4,do Código de Processo Penal, a leitura das declarações de A. C., prestadas perante Magistrado do Ministério Público, por o mesmo ter falecido em 11-02-2017 (cf. Ref.ª 162313057), o que foi indeferido por decisão proferida em 18-03-2019 (cf. Ref.ª 162610802), com o seguinte teor:
«A Digna Magistrada do Ministério Público requereu a leitura das declarações de A. C. prestadas perante Magistrado do Ministério Público, cujos autos se encontram juntos de fls. 1588 a 1590, 2554 a 2573, 2574 a 2577. Para tanto argumentou que o mesmo faleceu em 11/02/2017 e que a sua leitura está legalmente prevista no artigo 356.º, n.º 4 do Código do Processo Penal.
Notificados para se pronunciarem, todos os arguidos se opuseram à leitura dessas declarações, pelos argumentos cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
Cumpre decidir.
A fls. 8058 dos autos consta que A. C. faleceu em -/02/2017. Durante o inquérito A. C. foi constituído arguido em 03/07/2012, tendo prestado declarações, nessa qualidade, perante Magistrado do Ministério Público, em várias ocasiões, designadamente nos dias 12 de Novembro de 2013 e 14 de Janeiro de 2016, encontrando-se os respectivos autos a fls. 1588 a 1590, 2554 a 2573, 2574 a 2577. Já antes o A. C. tinha sido interrogado pela Polícia Judiciária no dia da sua constituição como arguido e nos dias 4.07.2012; 6.07.2012; 10.07.2012; 9.08.2012; 14.01.2013; 11.03.2013; 28.05.2013; 17.10.2013, todos perante a Polícia Judiciária.
Em 30/12/2016, foi proferido despacho de arquivamento relativamente ao já identificado A. C., tendo sido requerida a abertura de instrução, também nessa parte.
No despacho de recebimento da abertura de instrução, foi proferida decisão, devidamente transitada em julgado, em que se declara que o A. C. não perdeu a sua condição de arguido – fls.6238 (despacho de 21/03/2017).
Na data do seu óbito ainda não tinha sido proferida decisão instrutória, tendo o procedimento criminal contra A. C. sido extinto pelo seu falecimento – despacho de fls.6238 (despacho de 21/03/2017). Ou seja, na data da sua morte A. C. ainda era arguido nestes autos. Não obstante, foi indicado para ser ouvido como testemunha.
O nosso legislador distingue as diversas posições processuais que as partes podem ocupar nos procedimentos criminais, atribuindo direito e deveres diferenciados.
Assim e nos termos do art.º 61.º do CPP são os seguintes os direitos e deveres do arguido:
1 - O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de:
a) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito;
b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte;
c) Ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade;
d) Não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar;
e) Constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor;
f) Ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar e, quando detido, comunicar, mesmo em privado, com ele;
g) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias;
h) Ser informado, pela autoridade judiciária ou pelo órgão de polícia criminal perante os quais seja obrigado a comparecer, dos direitos que lhe assistem;
i) Recorrer, nos termos da lei, das decisões que lhe forem desfavoráveis.
2 - A comunicação em privado referida na alínea f) do número anterior ocorre à vista quando assim o impuserem razões de segurança, mas em condições de não ser ouvida pelo encarregado da vigilância.
3 - Recaem em especial sobre o arguido os deveres de:
a) Comparecer perante o juiz, o Ministério Público ou os órgãos de polícia criminal sempre que a lei o exigir e para tal tiver sido devidamente convocado;
b) Responder com verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade;
c) Prestar termo de identidade e residência logo que assuma a qualidade de arguido;
d) Sujeitar-se a diligências de prova e a medidas de coacção e garantia patrimonial especificadas na lei e ordenadas e efectuadas por entidade competente.
Por sua vez, o art.º 132.º, do C.P.P, com o título direito e deveres da testemunha dispõe o seguinte:
1 - Salvo quando a lei dispuser de forma diferente, incumbem à testemunha os deveres de:
a) Se apresentar, no tempo e no lugar devidos, à autoridade por quem tiver sido legitimamente convocada ou notificada, mantendo-se à sua disposição até ser por ela desobrigada;
b) Prestar juramento, quando ouvida por autoridade judiciária;
c) Obedecer às indicações que legitimamente lhe forem dadas quanto à forma de prestar depoimento;
d) Responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas.
2 - A testemunha não é obrigada a responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal.
3 - Para o efeito de ser notificada, a testemunha pode indicar a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.
4 - Sempre que deva prestar depoimento, ainda que no decurso de acto vedado ao público, a testemunha pode fazer-se acompanhar de advogado, que a informa, quando entender necessário, dos direitos que lhe assistem, sem intervir na inquirição.
5 - Não pode acompanhar testemunha, nos termos do número anterior, o advogado que seja defensor de arguido no processo.
Da leitura destes dois preceitos legais, resulta evidente que são bastante diferentes os direitos e deveres processuais dos arguidos e das testemunhas, sendo que um deles, que interessa de sobremaneira ao caso em apreço, consiste na obrigatoriedade das testemunhas responderem com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas e consequente responsabilização criminal pelo seu incumprimento, o mesmo não se passando com os arguidos, pois que apenas têm de responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas sobre a sua identidade. Ou seja e de modo resumido e simplista, os arguidos podem mentir, faculdade que está vedada às testemunhas.
Por causa do seu diferente estatuto e posição processual, o legislador diferenciou a leitura ou reprodução de autos e declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, consoante estejamos perante as declarações de uma testemunha ou declarações do arguido.
O artigo 356.º prevê o seguinte:
Reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações
1 - Só é permitida a leitura em audiência de autos:
a) Relativos a actos processuais levados a cabo nos termos dos artigos 318.º, 319.º e 320.º; ou
b) De instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas.
2 - A leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas só é permitida tendo sido prestadas perante o juiz nos casos seguintes:
a) Se as declarações tiverem sido tomadas nos termos dos artigos 271.º e 294.º;
b) Se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura;
c) Tratando-se de declarações obtidas mediante rogatórias ou precatórias legalmente permitidas.
3 - É também permitida a reprodução ou leitura de declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária:
a) Na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos; ou
b) Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias.
4 - É permitida a reprodução ou leitura de declarações prestadas perante a autoridade judiciária se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento.
5 - Verificando-se o disposto na alínea b) do n.º 2, a leitura pode ter lugar mesmo que se trate de declarações prestadas perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal.
6 - É proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.
7 - Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
8 - A visualização ou a audição de gravações de actos processuais só é permitida quando o for a leitura do respectivo auto nos termos dos números anteriores.
9 - A permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade.
Já o art.º 357.º, do C.P.P prevê o seguinte:
Reprodução ou leitura permitidas de declarações do arguido
1 - A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou
b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º
2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 7 a 9 do artigo anterior.
Da análise destes dois preceitos legais, facilmente se depreende que o legislador consagrou um regime especial ao arguido, previsto no art.º 357.º, do C.P.P., enquanto o art.º 356.º, se destina ao assistente, partes civis e testemunhas.
Por outro lado, há que referir que os dois preceitos legais supra citados foram introduzidos pela lei 20/2013, de 21/02, com entrada em vigor em 23/03/2013, que, quanto a esta matéria, contém uma disposição transitória que dispõe que “Aos processos pendentes na data da entrada em vigor da presente lei em que o arguido já tenha sido interrogado continua a aplicar-se o disposto no artigo 357.º do Código de Processo Penal na redacção da Lei n.º 48/2007, de 28 de agosto.”
Ora, a Lei 20/2013, de 21 de Fevereiro entrou em vigor no dia 23 de Março de 2013, sendo que o A. C. foi interrogado já em 2012, pelo que é evidente que, ao caso concreto, se aplica o artigo 357.º do CPP na redacção da Lei n.º 48/2007, de 28 de agosto, cuja redacção é a seguinte:
1 - A leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou
b) Quando, tendo sido feitas perante o juiz, houver contradições ou discrepâncias entre elas e as feitas em audiência.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 7 a 9 do artigo anterior. Porém, quer apliquemos a lei nova ou a lei antiga, a conclusão a chegar é idêntica e reside no facto de não haver previsão legal expressa para a situação sub judice.
Na verdade, o art.º 357.º, do C.P.P., aplicável às declarações do arguido prestadas em sede de inquérito ou instrução, não prevê expressamente esta situação, quer na sua redacção anterior, quer na introduzida pela lei 20/2013, de 21/02, sendo que pelos motivos que a seguir também exporemos, tal possibilidade não se encontra prevista na letra nem no espirito do legislador.
Por outro lado, o art.º 356.º, n.º4 do C.P.P. reporta-se a declarações de testemunhas, partes civis ou assistente e não às declarações do arguido que merecem um regime próprio, previsto no art.º 357.º, do C.P.P., motivado pela especificidade da sua condição processual.
Porém, a questão que se coloca é se perante este alegado vazio processual, podemos aplicar analogicamente o art.º 356.º, n.º4 às declarações prestadas em sede de inquérito por um arguido que por vicissitudes várias, não tenha sido acusado ou pronunciado e agora não possa comparecer em sede de audiência e discussão de julgamento. E referimos vicissitudes várias, uma vez que consideramos existirem situações semelhantes a esta designadamente um co-arguido que não tenha sido acusado ou pronunciado e entretanto tenha desaparecido, não lhe sendo conhecido o pardeiro ou um co-arguido que em virtude de doença degenerativa não consiga prestar declarações, etc.
Começando pelo art.º 357.º, do C.P.P. convém referir que a alteração legislativa promovida em 2013 visou, para além do mais, alargar a importância das declarações do arguido em fases anteriores ao julgamento. Com efeito até então, “a quase indisponibilidade de utilização superveniente das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento conduzia, em muitos casos, a situações geradoras de indignação social e incompreensão dos cidadãos quanto ao sistema de justiça”, pelo que “impunha-se, portanto, uma alteração ao nível da disponibilidade, para utilização superveniente, das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento, devidamente acompanhadas de um reforço das garantias processuais” (professor Damião da Cunha “Aspetos da revisão de 2013 do CPP, algumas notas e apreciações críticas”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 23, nº 2, Abril-Junho 2013, p. 266.). Explicado de outra forma, a sociedade e a grande maioria dos operadores judiciários, estavam contra aquilo que se poderia designar por excesso garantistico que conduzia a situações totalmente contraditórias e geradoras de descrédito da justiça, como aquelas em que o arguido confessava em sede de inquérito e remetendo-se ao silêncio em sede de audiência de discussão e julgamento era absolvido, por falta de prova. Assim e para obstar a situações como essa, mas sem nunca postergar os direitos dos arguidos, procedeu-se à referida alteração legislativa, de molde a que as declarações do arguido prestadas anteriormente pudessem ser valoradas em sede de audiência de discussão e julgamento. No entanto, essa alteração não esqueceu nem postergou os direitos dos arguidos, estabelecendo como condição que as declarações tenham sido efectuadas perante autoridade judiciária e com assistência do defensor e que o arguido tenha sido informado nos termos e para efeito do disposto no art.º 141.º, n.º4 alínea b), do C.P.P.. Acresce ainda que o legislador não foi tão longe quanto se pedia e continuou a não admitir tais declarações, quando confessórias, como tendo força de confissão, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 344.º, do C.P.P. ficando sujeitas ao principio da livre apreciação da prova.
Esta reflexão sobre a alteração legislativa tem importância para percebermos do alcance do art.º 357.º, do C.P.P., pois que o que este preceito legal prevê e quer abarcar são as declarações do arguido relativamente a si mesmo e não relativamente a terceiros, estando este preceito relacionado com a protecção do seu direito ao silêncio e com o privilégio da não auto-incriminação. Ou seja, esta norma está pensada para as declarações do próprio arguido e não do co-arguido relativamente aos restantes arguidos, tendo a sua reforma visado impedir um apagão total das anteriores declarações do arguido, relativamente à sua conduta.
Já no que concerne a terceiros, nomeadamente à conduta dos outros arguidos, a ratio legislativa continua igual, sendo o co-arguido um terceiro muito especial, pois que a imputação de condutas e factos aos outros co-arguidos são muitas das vezes, liberatórias da sua, pelo que e tendo sempre em conta o seu especial interesse no caso e a sua não obrigação de dizer a verdade, facilmente se percebe que a interpretação e valoração dessas declarações se movem em terrenos muito difíceis.
Logo, o que queremos concluir é que o art.º 357.º, do C.P.P., que regula a leitura e reprodução das declarações do arguido anteriormente prestadas no processo apenas visa as declarações do arguido relativamente à sua conduta não visando a situação específica das declarações prestadas pelo co-arguido relativamente aos outros co-arguidos em sede de inquérito, pelo que a resposta à pretensão da Digna Magistrada do Ministério Público terá que ser analisada com base noutros preceitos legais.
Porém e antes de prosseguirmos com a nossa análise, há que esclarecer que não obstante estar indicado como testemunha, certo é que o A. C. foi sempre interrogado como arguido, pelo que as suas declarações foram sempre tomadas nessa qualidade, com os direitos e deveres daí resultantes.
Ora, conforme resulta do disposto no art.º 133.º, n.º1 alínea a), do CPP o co-arguido enquanto mantiver essa qualidade não pode ser ouvido como testemunha. Nos autos, o A. C. apenas perdeu a qualidade de arguido, pelo facto do processo penal contra ele ter sido extinto pela morte. Logo, debatemo-nos com um aparente beco sem saída, pois que se por um lado em vida não podia depor como testemunha, depois de morto não poderá naturalmente depor, sendo que transformar os seus interrogatórios em inquirições é algo que nesta altura não se nos afigura possível. E também não se nos afigura viável equiparar, para este efeito, uma inquirição a um interrogatório, pois que, apara além do mais, na inquirição a testemunha está sujeita ao dever de verdade (art.º 132.º, n.º1 do C.P.P.), o mesmo não se passando com o arguido no interrogatório, que apenas está sujeito ao dever de verdade no que concerne à sua identificação (art.º 141.º, n.º3 do C.P.P.).
Logo e transpondo estes ensinamentos para o previsto no art.º 356.º, n.º4 do C.P.P. e entendendo tal preceito como destinado às declarações dos intervenientes processuais que não o arguido, que beneficia da previsão própria prevista no art.º 357.º, do C.P.P. falece desde logo um dos pressupostos para a sua reprodução ou leitura e que consiste no simples facto de não estarmos perante uma tomada de declarações, mas sim de um interrogatório judicial que tem o seu regime próprio previsto no preceito legal supra identificado.
Por outro lado, e não regulando a lei expressamente o regime das declarações prévias feitas por um co-arguido entretanto falecido, como ocorre no caso das testemunhas nos termos do artigo 356.º, n.º 4 do CPP, poder-se-ia cair na tentação de recorrer à analogia, o que no caso também consideramos que não pode suceder, uma vez que esta regra, por ser excepcional à regra geral da imediação, da oralidade e contraditório, não é susceptível de aplicação analógica.
Por fim, poder-se-ia também entender que não obstante existirem previsões e mecanismos legais diferentes para arguidos e testemunhas, apenas este preceito visa a situação específica do falecimento, pelo que este preceito legal (art.º 356.º, n.º4 do C.P.P.) se deve aplicar indistintamente a declarações de testemunhas e de co-arguidos.
Ora, sem nos pronunciarmos a fundo da bondade desta interpretação, mas referindo de passagem que não concordamos com a mesma, sempre teríamos que concluir que nem assim a pretensão da Digna Magistrada do Ministério Público mereceria provimento, pois que não poderemos dissociar este preceito de outros preceitos e princípios estruturantes do nosso processo penal que impedem o efeito pretendido.
Na verdade, esta interpretação colide frontalmente com o disposto no art.º 345.º, n.º4 do C.P.P. que dispõe que não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos n.º1 e 2 deste preceito legal.
Este preceito legal, tem como base o princípio do contraditório que está expressamente previsto no art.º 327º do CPP e tem tutela constitucional expressa para o julgamento (art. 32º, nº5 CRP). Na verdade, os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao contraditório e a contraditoriedade abrange tanto a produção como a valoração de todas as provas. Acusação e defesa podem oferecer as suas provas, controlar as provas contra si oferecidas e discutir o valor e o resultado de todas elas. As provas que hão-de ser objecto de apreciação têm, assim, de ser discutidas no contraditório da audiência de julgamento e só estas valem para a decisão (art. 355º do CPP). O direito, reconhecido ao acusado, de “interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação” integra também o direito a um processo equitativo, previsto no art. 6º (nº 3/d)) da CEDH.
Ora, como já referimos a possibilidade de leitura de declarações de alguém que faleceu é uma faculdade prevista no art.º 356.º, n.º4 do C.P.P. e constitui uma compressão ao princípio do contraditório, pois os sujeitos processuais afectados não podem contraditar directamente. Porém, não deixa de ser a única via legal possível de compatibilização das finalidades do processo, sempre antagónicas, de salvaguarda dos direitos do arguido e de averiguação da verdade.
No entanto, e como já referimos a situação e posição processual da testemunha é diferente da situação de co-arguido, sendo compreensível a compressão do princípio do contraditório quanto à testemunha, o mesmo não sucedendo quanto ao co-arguido.
Com efeito e para além da existência de norma expressa nesse sentido (art.º 345.º, n.º4), temos igualmente que atentar na especificidade da condição de arguido e neste caso de co-arguido, para percebermos a essencialidade do contraditório nesta situação.
Na verdade e como co-arguido é notório o interesse do declarante na causa, pelo que as suas declarações, quando incriminatórias dos outros arguidos, têm que ser analisadas com muita cautela e ponderação.
Como o Supremo Tribunal de Justiça tem maioritariamente defendido, as declarações do arguido, sendo um meio de prova legal, podem e devem ser valoradas no processo, podendo, por si só, fundamentar a condenação do co-arguido, ou seja, mesmo que desacompanhadas de qualquer outro meio de prova, consabido que as declarações incriminatórias do co-arguido estão sujeitas às mesmas regras de outro e qualquer meio de prova, ou seja, aos princípios da investigação, da livre apreciação e do in dubio pro reo. O Tribunal deve, no entanto, ter um especial cuidado na valoração e apreciação das declarações incriminatórias” – cfr. Oliveira Mendes in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1101. Já Germano Marques da Silva considera que o valor das declarações do co-arguido «exige uma especial ponderação pelo julgador», sendo que Teresa Beleza afirma que “mesmo que o depoimento do co-arguido, não sendo, em abstracto, uma prova proibida no direito português, é no entanto um meio de prova particularmente frágil, que não deve ser considerado suficiente para basear uma pronúncia”.
No caso, o referido A. C. não pode responder em virtude da sua morte, pelo que essa impossibilidade física pode ser equiparável à recusa em responder.
Não havendo lugar ao contraditório, os restantes arguidos ficariam numa posição processual muito frágil, pois que não poderiam contrariar as declarações prestadas por alguém que podia mentir e com óbvio interesse na sua criminalização (dos arguidos), que poderia conduzir à sua desresponsabilização criminal. Neste caso é por demais evidente essa posição, no que concerne à parte activa da alegada corrupção, pois que por exemplo e para além do mais, a imputação de factos ao arguido L. P., poderia conduzir à exclusão da sua responsabilidade criminal.
Logo, é por demais evidente o interesse do falecido A. C. na causa e a essencialidade do contraditório das suas declarações.
A propósito desta temática não resistimos a transcrever parte do sumário do Acórdão do TRE de 17/03/2015, que os arguidos invocaram e que se aplica na íntegra ao caso em apreço:
“5.O art. 356º do CPP prevê a “leitura permitida de autos e declarações” em julgamento, tratando das declarações de assistente, de partes civis e de testemunhas, e o art. 357º do CPP regula a “leitura permitida de declarações do arguido” em audiência.
6.O co-arguido é um sujeito processual diverso do assistente, parte civil ou testemunha, mas ocupa a posição de “terceiro” relativamente ao arguido.
7.Para as declarações incriminatórias do co-arguido poderem valer, contra o arguido, em julgamento, tem este de ter a efectiva possibilidade de o poder contraditar em audiência, de exercer um contraditório pela prova, e não apenas um contraditório sobre a prova.
8.A ausência de respostas às perguntas do tribunal e/ou a solicitação do MP e da defesa, neutraliza em absoluto quaisquer efeitos da declaração incriminatória do co-arguido.
9.À situação de recusa em responder prevista no nº 4 do art. 345º do CPP deve equiparar-se a de impedimento de questionar (em julgamento), o que sucederá nos casos de ausência física do co-arguido, por morte ou outro motivo.
10.E se é certo que o art. 356º, nºs 4 e 5 do CPP, existindo acordo de todos os sujeitos processuais, permite a leitura em audiência de julgamento, de declarações prestadas em inquérito, perante órgão de polícia criminal, por pessoa entretanto falecida, essa permissão não pode abranger a leitura de declarações incriminatórias de co-arguido falecido.
11.Mesmo que lidas em audiência, tais declarações nunca poderiam contribuir para a condenação, por força do nº 4 do art. 345º do CPP, norma que consagra uma proibição de prova.”
Por fim, refira-se que o tribunal apenas está vinculado ao pedido e aos factos e nunca ao direito.
Nesta conformidade e por todo o exposto, os Juízes que compõem o Tribunal Colectivo decidem indeferir por unanimidade o requerido pela Digna Magistrada do Ministério Público, nomeadamente a leitura das declarações prestadas por A. C. perante Magistrado do Ministério Público, cujos autos se encontram juntos de fls. 1588 a 1590, 2554 a 2573, 2574 a 2577.
Notifique.»
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs em 26-04-2019 (cf. Ref.ª 8566501) (…)RECURSO INTERLOCUTÓRIO da decisão acabada de transcrever, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:
«1.
A. A. C. foi constituído arguido em 3/07/2012 e, nessa mesma data, pela primeira vez foi ouvido nos autos, tendo sido novamente e por diversas vezes ouvido nos autos, sempre na qualidade de arguido.
B. Foi ouvido na qualidade de arguido, advertido nos termos do art. 141.º, n.º 4, al. b) do C.P.P., e em diligência presidida por magistrada do Ministério Público em 12/11/2013 (fls. 1588 a 1590) e em 14/01/2016 (fls. 2554 a 2573 e 2574 a 2577), tendo na primeira sido ainda assistido por defensor.
C. Tendo perdido a qualidade de arguido com a prolação de despacho de arquivamento relativamente à sua pessoa (art. 57.º, n.º 2, a contrario do C.P.P.), A. C. foi reinvestido na qualidade de arguido por força da apresentação de requerimento de abertura de instrução contra a sua pessoa.
D. Tendo sobrevindo o seu óbito, o procedimento criminal contra A. C. foi declarado extinto, recolocando-o na qualidade de testemunha, como foi, e bem, indicado na acusação.
E Detendo A. C. a qualidade de testemunha, o regime aplicável à reprodução/leitura em audiência das declarações por si anteriormente prestadas nos autos é o previsto no art. 356.º do C.P.P..
F. A circunstância de o declarante não ter prestado juramento só tem e só pode ter a consequência de não poder fazer incorrer o declarante em responsabilidade jurídico-penal ao abrigo do disposto no art. 360.º, n.º 3 do C.P..
G. O que se reproduz em audiência é o conteúdo material de declarações, declarações estas que, independentemente de juramento prévio, estão sempre sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, inexistindo qualquer óbice à sua valoração pelo tribunal.
H. A apreciação das declarações prestadas em inquérito por quem então detinha a qualidade de arguido (ou por quem, por qualquer motivo, não prestou juramento) apenas releva no exclusivo domínio da valoração da prova com sujeição ao princípio plasmado no art. 127.º do C.P.P..
I. Tendo A. C. falecido, sem que haja perdido definitivamente a qualidade de testemunha em que foi indicado na acusação, encontrava-se, como se encontra, a reprodução das declarações pelo mesmo prestadas em inquérito autorizada e permitida face ao estatuído no n.º 4 do referido art. 356.º do C.P.P. (que não sofreu qualquer alteração significativa em decorrência da Lei n.º 20/2013), dado que tais declarações prestadas em 12/11/2013 e em 14/01/2016 o foram perante autoridade judiciária (cfr. fls. 1588 a 1590, 2554 a 2573 e 2574 a 2577).
J. Ao não proceder à leitura das declarações prestadas por A. C. em sede de inquérito, nos termos do art. 356.º, n.º 4 do C.P.P. – o qual tinha plena aplicação à situação em causa dos autos –, o tribunal a quo efectuou uma errónea interpretação do disposto no art. 356.º, n.º 4 do C.P.P., assim o violando.
K. O regime previsto no art. 357.º do C.P. é aplicável nas situações em que se proceda, em audiência, à leitura ou à reprodução de declarações prestadas por pessoa que esteja a ser julgada na qualidade de arguida. Era assim antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, e continua a ser assim, após tais alterações.
L. Não estando, como não estava, A. C. a ser julgado na qualidade de arguido, necessariamente o regime aplicável à leitura ou reprodução das declarações pelo mesmo anteriormente prestadas é o previsto no art. 356.º do C.P.P., e concretamente nos termos vertidos no seu n.º 4, onde tem total cabimento a situação em causa nos autos.
M. Mal andou o tribunal a quo ao não proceder à leitura das declarações prestadas por A. C. em sede de inquérito, nos termos do art. 356.º, n.º 4 do C.P.P., tendo efectuado uma errónea interpretação do disposto no art. 356.º, n.º 4 do C.P.P., o qual tinha plena aplicação à situação em causa dos autos, assim o violando.
N. Deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine que se proceda à leitura das declarações prestadas em sede inquérito por A. C. perante magistrada do Ministério Público, nos termos do art. 356.º, n.º 4 do C.P.P., e cujos autos constam de fls. 1588 a 1590, 2554 a 2573 e 2574 a 2577.
SEM PRESCINDIR…
2.
A. A. C. foi constituído arguido em 3/07/2012 e, nessa mesma data, pela primeira vez foi ouvido nos autos, tendo sido novamente e por diversas vezes ouvido nos autos, sempre na qualidade de arguido.
B. Foi ouvido na qualidade de arguido, advertido nos termos do art. 141.º, n.º 4, al. b) do C.P.P., e em diligência presidida por magistrada do Ministério Público em 12/11/2013 (fls. 1588 a 1590) e em 14/01/2016 (fls. 2554 a 2573 e 2574 a 2577), tendo na primeira sido ainda assistido por defensor.
C. Tendo perdido a qualidade de arguido com a prolação de despacho de arquivamento relativamente à sua pessoa (art. 57.º, n.º 2, a contrario do C.P.P.), A. C. foi reinvestido na qualidade de arguido por força da apresentação de requerimento de abertura de instrução contra a sua pessoa.
D. As “situações geradoras de indignação social e incompreensão dos cidadãos” que estiveram subjacentes à alteração legislativa efectuada ao art. 357.º do C.P.P. surgem quanto à indisponibilidade do uso das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores do julgamento no seu todo, independentemente de as mesmas envolverem ou não outros co-arguidos.
E. Nos termos do art. 357.º, n.º 1, al. b) do C.P.P., a leitura das declarações terá necessariamente que ocorrer na sua plenitude e quanto a tudo o que foi declarado, e independentemente de o co-arguido que as prestou ter entretanto falecido, já que tais declarações, mais do que o visar da responsabilização de quem as prestou, visa a verdade material dos factos ocorridos, com o contributo que dessa forma possa advir para a sua plena descoberta.
F. Ao entender restritivamente o âmbito da leitura das declarações do arguido prevista no art. 357.º do C.P.P., o tribunal a quo confundiu o regime legal da permissão da sua leitura com o seu regime de livre apreciação enquanto meio de prova, sendo, indubitavelmente, um meio de prova válido, a apreciar livremente pelo tribunal ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, consignado no art. 127.º do C.P.P..
G. A restrição da entrada em vigor quanto à aplicação da nova versão do art. 357.º, n.º 1 do C.P.P. visa unicamente impedir a leitura das declarações prestadas por arguido perante juiz quando interrogado apenas e unicamente antes da entrada em vigor da lei, e quando tal leitura não fosse assente na existência de “contradições ou discrepâncias entre elas e as feitas em audiência”, dado que esta era a única situação então prevista. H. A norma do art. 4.º da Lei n.º 20/2013 pretende evitar a aplicação da nova versão aos interrogatórios já efectuados, não dispondo nem logrando aplicação no entanto quer quanto a interrogatórios, pela primeira vez, de arguidos, quer a novos interrogatórios, pois que de outra forma se não compreenderia a referência efectuada a “em que o arguido já tenha sido interrogado”, nem se divisando qualquer razão para diferenciar as situações em que são efectuados os interrogatórios pela primeira vez daquelas em que são realizados novos interrogatórios.
I. Apenas não há lugar à aplicação da nova versão do 357.º do C.P.P. nas situações em que o arguido já tenha sido interrogado e não o volte entretanto a ser com a observância dos formalismos ora impostos.
J. Nos casos como o dos autos em que, após a entrada em vigor da Lei n.º 20/2013, o arguido volta a ser interrogado, e nesse interrogatório, perante autoridade judiciária, o arguido é assistido por defensor e com a realização da advertência do art. 141.º, n.º 4, al. b) do C.P.P., a leitura de tais declarações é legalmente permitida a coberto do art. 357.º, n.º 1, al. b) do C.P.P..
K. De forma alguma é equiparável a morte à recusa de responder prevista no art. 345.º, n.º 4 do C.P.P., já que, em boa verdade, “não existe uma recusa a responder mas uma impossibilidade de efectuar as perguntas (contra interrogatório)”.
L. O regime previsto pelo art. 345.º do C.P.P. é relativo às declarações em audiência de julgamento de pessoa que esteja, no momento histórico em que produz declarações, a ser julgada e em que recusa responder a questões de outros arguidos, e não tem aplicação quanto às declarações prestadas nas fases processuais anteriores ao julgamento, desde logo em sede de inquérito.
M. Com efeito, o n.º 4 do art. 345.º do C.P.P. proíbe apenas e unicamente a valoração das declarações prestadas em audiência de julgamento (e não das declarações prestadas em momento processual anterior) por co-arguido que, no âmbito de tais declarações prestadas em audiência de julgamento, se recuse a responder a perguntas que entretanto lhe venham ser formuladas. N. Nas situações em que:
1) o declarante faleceu;
2) o declarante por qualquer outro motivo não está presente em audiência de julgamento;
3) o declarante, estando presente em audiência, não presta declarações;
as declarações prestadas anteriormente em sede de inquérito perante autoridade judiciária e cumpridos todos os formalismos legais (presença de defensor e advertência do art. 141.º, n.º 4, al. b) do C.P.P.) podem e devem ser lidas ou reproduzidas em audiência de julgamento, nos termos do art. 357.º, n.º 1, al. b) do C.P.P., sendo livremente valoradas e apreciadas pelo tribunal em estrita observância do disposto no art. 127.º do C.P.P., independentemente de, nessa sua livre valoração, as submeter a um crivo mais apertado.
O. “O princípio do contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo, em cross-examination. Exercer o contraditório é também (dir-se-ia mesmo, sobretudo) poder o sujeito processual (geralmente o arguido, mas podendo ser o Ministério Público ou o assistente) contraditar o depoimento desfavorável, oferecendo outros meios de prova que o infirmem ou ponham em causa a sua valia probatória e a sua eficácia persuasiva, nomeadamente pondo em crise a razão de ciência da testemunha ou a credibilidade do assistente ou do arguido”.
P. Resultando dos autos à saciedade que todos os sujeitos processuais tiveram acesso às declarações prestadas em sede de inquérito por A. C. pelo menos desde a notificação da acusação, onde estão elencados todos os autos de declarações, de tal forma que arguidos houve que requereram a abertura de instrução, todos os arguidos apresentaram contestação, …, com a leitura/reprodução efectiva a ser efectuada em audiência de julgamento das declarações prestadas em sede de inquérito mostrar-se-ia satisfeito o núcleo essencial do exercício do direito de defesa dos arguidos e bem assim do princípio do contraditório.
Q. “As declarações feitas pelo arguido em sede de interrogatório (…) a que foi sujeito na fase de inquérito, desde que observadas as mencionadas formalidades legais, podem ser utilizadas pelo tribunal na formação da sua convicção, mesmo que em relação aos co-arguidos” e independentemente de o declarante não estar presente em audiência de julgamento (desde logo por ter entretanto falecido) ou de o declarante não prestar declarações em audiência, estando sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, ainda que com um crivo mais apertado por parte do julgador.
R. Mal andou o tribunal a quo ao não proceder à leitura das declarações prestadas por A. C. em sede de inquérito, nos termos do art. 357.º, n.º 1, al. b) do C.P.P., tendo efectuado uma errónea interpretação do disposto no art. 357.º, n.º 1, al. b) do C.P.P., o qual tinha plena aplicação à situação em causa dos autos, assim o violando, violando de igual forma o disposto no art. 345.º, n.º 4 do C.P.P. e no art. 4.º da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, na interpretação que fez de tais disposições legais.
S. Deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine que se proceda à leitura das declarações prestadas em sede inquérito por A. C. perante magistrada do Ministério Público, com assistência de defensor e com observância da advertência legal, nos termos do art. 357.º, n.º 1, al. b) do C.P.P., e cujo auto consta de fls. 1588 a 1590.
DE TODO O MODO
3.
A. A leitura das declarações prestadas por A. C. em sede de inquérito, face ao seu decesso entretanto verificado, perfila-se essencial dado que, como resulta do próprio texto da acusação, o mesmo era “intermediário” dos arguidos X Truck Bus Portugal, Soc. Unip., L.da, e L. P. no pagamento de comissões aos arguidos V. S., M. A. e L. M..
B. A produção de prova requerida é verdadeiramente essencial para a descoberta da verdade, atento o papel assumido pelo falecido A. C. no pagamento das comissões e que resulta de forma límpida do próprio texto da acusação.
C. A não realização da diligência requerida implica a subsistência da nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d) do C.P.P., que não se poderá considerar sanada.
D. O despacho recorrido deverá ser substituído por outro que determine que se proceda à leitura de tais declarações.»
Este (…) recurso interlocutório foi admitido, com o regime e efeitos adequados, determinando-se que subiria a final, ficando, por isso, retido.
Responderam todos os arguidos, pronunciando-se no sentido da improcedência deste recurso.
O Ministério Público manifestou, no recurso do acórdão final, interesse neste recurso (retido) interposto da decisão proferida em 18-03-2019, como prescreve o art. 412.º, n.º 5 do Código de Processo Penal (cf. conclusão A).
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto proferiu fundamentado e douto parecer, no sentido do não provimento deste recurso interlocutório.
(…)
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
*
1. Questões a decidir
A) Recurso interlocutóriointerposto pelo Ministério Público em 23-05-2019 (cf. Ref.ª 8683948), da decisão proferida em 30-04-2019, na sessão da audiência de julgamento (cf. Ref.ª 163234358): - Aferir da legalidade da reprodução ou leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas em inquérito por A. C., já falecido no momento em que tal meio prova é requerido.
(…)
***
3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS
A) RECURSO INTERLOCUTÓRIO
[Interposto pelo Ministério Público em 26-04-2019 (cf. Ref.ª 8566501) da decisão proferida em 18-03-2019 (cf. Ref.ª 162610802), que indeferiu o requerimento formulado pelo Ministério Público, em 27-02-2019 (cf. Ref.ª 162313057)]
A questão suscitada neste recurso é a de aferir da admissibilidade legal da reprodução ou leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas em inquérito por A. C., entretanto falecido.
Vejamos.
As regras sobre a produção da prova subjacentes ao julgamento em processo penal encontram assento na Constituição da República, que sob a epígrafe «Garantias de processo criminal», estabelece nos n.os 1 e 5 do artigo 32.º:
«1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
[…]
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.»
Em concretização de tais garantias, o legislador ordinário materializou o lugar central da produção da prova em audiência de julgamento, na qual o juiz, de forma privilegiada, tem contacto direto com os intervenientes processuais e apreende as provas, sempre na dialética de um debate contraditório.
No artigo 355.º n.º 1, do Código de Processo Penal, num afloramento dos princípios da imediação, oralidade, contraditório e publicidade, encontramos a regra fundamental da proibição de valoração de quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência.
Surgindo como excecional, no nº 2 da mesma norma, a possibilidade de valoração de declarações e depoimentos prestados em fase anterior ao julgamento, sempre dependente de estarem reunidos os pressupostos dos artigos 356.º e 357.º, do mesmo diploma, que variam consoante os casos, em função de determinados fatores.
Um desses fatores é, desde logo, a qualidade/estatuto da pessoa que prestou o depoimento ou as declarações.
Revertendo ao objeto do recurso, as declarações de A. C. cuja leitura em audiência não foi consentida pelo Tribunal a quo, foram prestadas tendo ele a qualidade de arguido (cfr. autos de fls. 1588 a 1590, 2554 a 2573, 2574).
Efetivamente, durante o inquérito A. C. foi constituído arguido em 03-07-2012 e interrogado pela Polícia Judiciária nesse mesmo dia e, ainda, em 04-07-2012, 06-07-2012, 10-07-2012, 09-08-2012, 14-01-2013, 11-03-2013, 28-05-2013 e 17-10.2013. Prestou também prestado declarações, na mesma condição de arguido, perante Magistrado do Ministério Público, designadamente nos dias 12-11-2013 e 14-01-2016 (cf. fls. 1588 a 1590, 2554 a 2573, 2574 a 2577).
Posteriormente, em 30-12-2016, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento relativamente ao A. C., mas tal despacho não chegou a fazer “caso decidido” quanto a ele, por ter sido atempadamente requerida a abertura da instrução. Fase processual em que os autos ainda se encontravam quando, em 11-02-2017, ocorreu a morte de A. C., que foi a causa de extinção do respetivo procedimento criminal (cfr. despacho de 21-03-2017).
O que é demonstrativo de que A. C. manteve sempre no processo a qualidade de arguido, o que é impedimento para que, no seu âmbito, pudesse depor como testemunha, fosse relativamente a crimes em que estivesse a ser julgado conjuntamente, fosse por crimes em que não tivesse comparticipado de alguma forma na sua prática.
Esta condição de A. C. centra a questão da admissibilidade legal da reprodução ou leitura em audiência das suas declarações no âmbito restrito em que a lei tal permite, quando se trata de declarações de arguido.
Sobre a reprodução ou leitura em audiência de depoimentos e declarações prestados anteriormente regem os arts. 356.º e 357.º do Código de Processo Penal, o primeiro relativamente aos intervenientes processuais que não tenham a qualidade de arguido e o último exclusivamente para o arguido.
Prescreve atualmente este artigo 357.º do Código de Processo Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 20/2013, de 21-02:
«Reprodução ou leitura permitidas de declarações do arguido
1 - A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou
b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º.
2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 7 a 9 do artigo anterior.»
Por sua vez, o nº 4 do art. 345º, do mesmo diploma, proíbe como meio de prova as declarações de um coarguido em prejuízo de outro arguido quando o declarante se recusar a responder a perguntas nos termos do nº 1 e do nº 2.
É pois no âmbito de tais preceitos, da ponderação das regras sobre a produção da prova subjacentes ao julgamento em processo penal e da excecionalidade da possibilidade de valoração de declarações e depoimentos prestados em fase anterior ao julgamento, que tem de se avaliar da admissibilidade legal da leitura em audiência e valoração como prova das declarações prestadas no decurso do inquérito pelo coarguido A. C..
Conjugando as referidas normas legais e princípios processuais, a primeira constatação a fazer é que a previsão do art. 357.º do Código de Processo Penal não pode acobertar legalmente a pretensão da possibilidade de leitura em audiência das declarações do coarguido A. C., na medida em que:
- o seu prévio falecimento torna impossível a verificação do circunstancialismo da al. a) “a sua própria solicitação”;
- e o circunstancialismo da al. b), para além de não se verificar integralmente no caso, está previsto em termos tais que só se mostra compatível com as declarações do arguido e não de um coarguido, ou não se compreenderia a referência direta nele feita ao nº 4 do art. 141.º. Ao que acresce que tendo o coarguido entretanto falecido, haveria uma total impossibilidade de conjugação do teor daquela al. b) do art. 357.º com a regra inultrapassável do nº 4 do art.345, que impõe expressamente a proibição da validade como meio de prova das declarações de um coarguido em prejuízo de outro coarguido sem efetivação em audiência do contraditório direto aí previsto, realizado através de perguntas do tribunal, advogados de assistentes e defensores ao coarguido – que prestou as declarações lidas ou reproduzidas – e respostas deste a essas perguntas.
Não há pois norma legal que preveja, em quaisquer circunstâncias, a leitura em audiência de declarações prestadas em momento processual anterior, por coarguido entretanto falecido.
O falecimento da pessoa que prestou declarações encontra-se unicamente previsto para a prova em geral no nº 4 do art. 356.º, em termos que manifestamente que não se coadunam com a sua aplicação analógica ao caso de declarações de coarguido entretanto falecido, mormente quando essas declarações são incriminatórias de outro ou outros arguidos. Situação em que as regras legais e princípios processuais já invocados impedem frontalmente a dispensa do contraditório direto, numo quadro de imediação e oralidade, no âmbito do direito a um processo equitativo, conforme prevêem quer o art.º 20.º, n.º 4, da Constituição da República quer o art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Não se pode esquecer, como pertinentemente saliente nesta instância o Exmo Senhor Procuardor-Geral adjunto, no seu douto parecer, «que o arguido, porque visado, tem, na prestação das declarações, um conjunto de interesses não escamoteável, podendo pretender beneficiar de um estatuto de colaborador, particularmente no caso do crime de corrupção ─ cf. o art.º 374.º-B, do Código Penal─ ou mesmo concretizar um qualquer propósito de vingança, no caso até insinuado em algumas das resposta ao recurso do Ministério Público interposto do acórdão.»
Por outro lado, não tendo o legislador previsto a possibilidade do falecimento do coarguido que prestou as declarações, quando prevê expressamente essa situação para a prova em geral, no nº 4 do art. 356.º, é porque não quis em circunstância alguma permitir a possibilidade de reprodução ou leitura em audiência de declarações prestadas anteriormente por coarguido entretanto falecido.
De tudo assim decorrendo não só a inexistência de norma legal que permita a reprodução ou leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas em inquérito por A. C., como a incompatibilidade de tal possibilidade com as regras sobre a produção da prova subjacentes ao julgamento em processo penal.
Improcedendo o recurso interlocutório do Ministério Público.
* ***** *
III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em: 1.Rejeitar o recurso interlocutório interposto pelo Ministério Público em 23-05-2019 (cf. Ref.ª 8683948), da decisão proferida em 30-04-2019, na sessão da audiência de julgamento (cf. Ref.ª 163234358).
Sem tributação, por dela estar isento o recorrente.
(…)
*
Guimarães, 12 de outubro de 2020
(Elaborado e revisto pela relatora)
Fátima Furtado
Maria José Matos
(Assinado digitalmente)