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CONDENAÇÃO EM PROCESSO CRIME
PROVA
RESPONSABILIDADE CIVIL
ÓNUS DA PROVA
VALOR EXTRAPROCESSUAL DA PROVA
Sumário
Por força do regime previsto no art.º 623.º do C. P. Civil, a sentença penal que condenou o Réu, ora recorrente, pela prática de crimes de abuso sexual de menor, os factos que consubstanciam esses ilícitos criminais têm-se como provados na ação de responsabilidade civil contra ele proposta pela menor e sua mãe, recaindo sobre estas o ónus de provar os danos morais sofridos e o respetivo nexo de causalidade. (sumário do relator)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
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I. Relatório. M…, divorciada, residente na Avenida …, Grândola, por si e na qualidade de legal representante da menor, MI…, nascida em 16.01.2000, intentou a presente ação declarativa comum condenatória contra J…, casado, advogado, residente na Rua D. .., Grândola, pedindo a condenação deste a pagar à autora e sua representada as seguintes quantias: a) O montante de €30.00,00 (trinta mil euros), a favor da menor Mi… a título de indemnização por danos não patrimoniais; b) O montante de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), a favor da autora M…, a título de danos não patrimoniais; Quantias acrescidas dos juros vincendos, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que o Réu foi condenado por sentença, transitado em julgado em 4/3/2015, em processo criminal, processo n° 206/12.0T3GDL, que correu termos no extinto Juízo de Instância Criminal de Grândola, Comarca do Alentejo Litoral, na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, pela prática como autor material e na forma consumada de 3 (três) crimes de abuso sexual de criança, p.e p. pelos artigos 171. °, n.º l do Código Penal. E, em consequência desses factos, que enuncia, sofreram danos morais, cuja reparação pretende.
Citado, o Réu contestou, invocando várias exceções e impugnando os factos alegados, nomeadamente no que concerne aos danos invocados e respetivo nexo causal e arrolou prova, requerendo nomeadamente, com os mesmos fundamentos de carência económica, que seja oficiada a secretaria do extinto Juízo de Instância Criminal de Grândola da Comarca do Alentejo Litoral para que faculte aos presentes certidão do processo n.º 206/12.0T3GDL (que tem incorporado por apenso, nomeadamente, o inquérito n.º 222/08.6TAGDL) que contenha:
a) Fls. 2, 3, 8, 9, 10, 11 e 12 do dito apenso (denúncia que dá origem ao processo e declarações da menor perante o MP);
b) Fls. 20 a 22 do Volume I dos autos principais – (promoção do MP que ordena a apensação do inquérito previamente arquivado ao processo 206/12.0T3GDL);
c) Fls. 806 a 809 e 818 a 819 do Volume II de Transcrições do processo mencionado na alínea anterior;
Sobre este meio de prova, por despacho proferido em ata de audiência de discussão e julgamento, que teve lugar em 06 de setembro de 2019, foi lavrado o seguinte despacho: “No que se refere ao requerido quanto ao processo n.º206/12.0T3GDL, tendo presente a documentação já junta aos autos referente a tal processo e onde os elementos em causa terão sido ponderados, o Tribunal indefere o requerido”.
Inconformado com este despacho, o Réu veio interpor o presente recurso de apelação, formulando, após alegações, as seguintes conclusões:
A) Por despacho proferido em audiência de julgamento, decidiu o Tribunal a quo indeferir o requerimento de prova do R. formulado em sede de contestação, através do qual requeria que fosse oficiada a secretaria do processo crime à ordem do qual se mostra
recluído, para juntar a estes autos certidão contendo determinadas peças processuais [vide ponto iv) do requerimento probatório do R. em Contestação].
B) Tal requerimento era destinado à prova de factos alegados pelo R. na sua contestação, factos esses incluídos num dos temas da prova definidos em despacho saneador, a saber, “1. Conduta do Réu quanto à Autora Mi…, no âmbito dos factos reportados à sua condenação pelo abuso sexual da mesma.”
C) O R., na presente ação cível, propôs elidir a presunção decorrente da sua condenação no processo crime aludido, nomeadamente no que diz respeito aos concretos factos que ali lhe foram imputados na pessoa da ora A. Mi…, que são o pressuposto primeiro da verificação de qualquer situação de responsabilidade civil aquiliana que é o objeto desta ação.
D) O R. juntou à sua contestação civil, nestes autos, cópias simples de que dispunha do processo crime em que se mostrou condenado, contudo tais documentos, não sendo emitidos sob a forma de certidão, contendo o selo branco do Tribunal, não têm o efeito probatório de documentos autênticos de que o R. se pretende prevalecer, não confirmando o conteúdo que deles consta, antes estando sujeitos à livre apreciação da prova pelo Tribunal – artºs 370.º, n.º 1, 377.º, e 366.º, todos do CC.
E) Atenta a situação de precariedade económica do R. – comprovada pelo benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos para o processo – e de reclusão do mesmo, o não deferimento do requerimento probatório em causa impede objetivamente o R. de contraditar os factos alegados na PI, e de fazer prova dos por si alegados na contestação (máxime os artigos 72 a 72; 83, 84 85 e 86) o que colide com o princípio do contraditório (art.º 3.º, n.º 1 e 3. do CPC) e da igualdade (art.º 4.º do CPC).
F) Apenas com o deferimento da obtenção destes meios probatórios se garante um
processo justo e equitativo e um efetivo exercício do contraditório ao R., em plano de igualdade com as AA.
Termos em que, pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado provido, anulando-se a decisão proferida ora sindicada e, concomitantemente, ordenando-se ao Tribunal a quo que profira despacho que defira o requerimento probatório apresentado pelo R. em contestação (ponto iv) oficiando-se a secretaria do Tribunal de Grândola para junção dos elementos solicitados.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*** II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil, constata-se que a questão essencial a decidir consiste em saber se deve ser admitida a prova documental requerida pelo Réu na sua contestação.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. O recorrente interpôs recurso a decisão que rejeitou a prova documental requerida e acima mencionada.
Sustenta o recorrente que na sua contestação não se limitou a negar as consequências que os pretensos factos da sua autoria causaram nas AA. mas, ainda, a negar a própria verificação desses factos, apesar da condenação de que foi alvo em sede criminal e que é sustento da presente ação, ou seja, o R. pretendeu afastar a presunção ilidível de verificação daqueles factos – consubstanciadores, em abstrato, de responsabilidade civil – formada pelo trânsito em julgado da sentença condenatória criminal.
E acrescenta ser uma das questões a decidir neste litígio saber quais em concreto os factos pretensamente perpetrados pelo R. que são suscetíveis, ou não, de ter gerado danos indemnizáveis na pessoa das AA.
Entende, pois, que os concretos factos pretensamente praticados pelo arguido são essenciais para o Tribunal poder concluir as suas eventuais consequências na pessoa das AA., nomeadamente da então menor, razão pela qual requereu a junção aos autos de certidão do processo crime à ordem do qual se mostra em cumprimento de pena, nomeadamente contendo a transcrição das declarações da menor nos vários momentos processuais em que depôs, seja quando, num primeiro momento, negou quaisquer factos, seja quando, 4 anos depois, alterou o seu depoimento e relatou ao MP abusos seja, ainda, quando prestou declarações para memória futura, declarações que foram o único sustento do Tribunal criminal para sustentar a sua condenação.
Ora, é manifesto que a razão não está do seu lado.
Com efeito, está em causa nestes autos a responsabilidade civil do Réu/recorrente relativamente aos factos que cometeu e foi condenado criminalmente, ou seja, os factos concretos por si cometidos e pelos quais foi condenado como autor material e na forma consumada de 3 (três) crimes de abuso sexual de criança, p.e p. pelos artigos 171. °, n.° l do Código Penal, e em consequência desses factos os danos morais causados à menor e sua mãe, ora autoras.
Assim, importa ter presente o regime estabelecido no art.º 623.º do C. P. Civil ( = ao anterior art.º 674.º-A) , sob a epígrafe “ Oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória”, ao prever que “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração”.
Por sua vez, dispõe o art.º 624º do mesmo diploma que “A decisão penal transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário” (nº 1) e que tal “presunção prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil” (nº 2).
Decorre, sem margem para qualquer dúvida, desta última disposição legal, que transitada em julgado a decisão penal absolutória, fundada em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados, constitui presunção iuris tantum de inexistência desses factos.
Nesse sentido, e tendo em conta o disposto no art.º 350.º do C. Civil, dispensa aquele que tem a seu favor a presunção legal de provar o facto que a ela conduz (n.º1), funcionando como inversão do ónus probatório, na medida em que faz recair sobre a parte contrária a prova capaz de afastar o facto legalmente presumido (nº 2 ).
Essa foi efetivamente a intenção do legislador, aquando da Reforma do Código de Processo Civil de 1995 (Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), expressando-o no respetivo preâmbulo nos seguintes termos: “No que se refere à disciplina dos efeitos da sentença, assume-se a regulamentação do caso julgado penal, quer condenatório, quer absolutório, por ações civis conexas com as penais, retomando um regime que, constando originariamente do Código de Processo Penal de 1929, não figura no atualmente em vigor; adequa-se, todavia, o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respetiva autoria” [1].
Como se entendeu no Acórdão do STJ de 13/11/2003, “o que está em causa nos arts. 674º-A e 674º-B), do C. P. Civil não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado. Essa definição é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido, invocável em relação a terceiros - isto é, em relação aos sujeitos no processo civil que não tenham intervindo no processo penal - em qualquer ação de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infração”.
Assim, podemos afirmar que a eficácia probatória da sentença penal condenatória transitada em julgado no processo civil em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração, nos termos do artigo 623º do CPC, traduz-se no seguinte: em relação a terceiros, aquela sentença constitui presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime. Decorre implicitamente desta norma, sob pena de não fazer sentido a ressalva dela constante quando se trate de terceiros, que, em relação aos próprios arguidos, os factos referidos na mesma norma devem ser considerados provados no processo civil [2][3].
Assim, e citando Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit. (Ibidem), “O caso mais frequente é o da ação de indemnização: provada, no processo penal, a prática dum ato criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na ação civil subsequente o ato ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade”.
Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, “C. P. Civil Anotado”, Vol. I, pág. 746, consideram que o regime previsto no art.º 623.º do CPC trata apenas o relevo a atribuir à mesma sentença relativamente a terceiros, pois que “A sentença penal condenatória do arguido constitui caso julgado contra o mesmo, o qual pode ser invocado noutra ação”.
E como é consabido, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art.º 341.º do C. C.).
Destarte, a sentença penal que condenou o Réu, ora recorrente, têm-se como provados os factos por ele cometidos, recaindo sobre as Autoras o ónus de provar os danos morais sofridos e o respetivo nexo de causalidade.
E assim sendo, é totalmente despicienda a junção aos autos dos documentos pretendidos do processo penal onde o recorrente foi condenado e relacionados com as declarações aí prestadas pela menor, contendo a transcrição das declarações da menor nos vários momentos processuais em que depôs, pois que, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, não podem ser questionados os factos pelos quais foi condenado, porque estão plenamente provados.
Dito de outro modo, as declarações da menor prestadas no âmbito desse processo, ainda que revelem algumas contradições, como refere o recorrente, são absolutamente irrelevantes, já que o Réu, aí arguido, foi condenado pelos factos que consubstanciam os crimes de abuso sexual de criança, visando os presentes autos determinar da existência de danos morais e respetivo nexo de causalidade, cujo ónus da prova recai sobre as Autoras.
E, por sua vez, cabe ao Réu fazer a contraprova, e não a prova do contrário, da existência de danos morais e respetivo nexo de causalidade.
Acresce que o recorrente juntou cópias desses documentos, que estão nos autos, e que não foram impugnados, sendo livremente apreciados pelo tribunal, o qual, se tiver dúvidas sempre pode solicitar certidão desses documentos.
Improcede, pois, a apelação.
Vencido no recurso, suportará o apelante as custas respetivas, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário – art.º 527.º/1 do C. P. Civil.IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas pelo apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Évora, 8 de outubro de 2020 Este Acórdão vai ser assinado digitalmente, pelos Juízes Desembargadores:
Tomé Ramião (Relator)
Francisco Xavier (1.º Adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2.º Adjunto) __________________________________________________ [1] ) Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 5ª edição, Coimbra, 1982, p. 239. Na verdade, a ação penal e a ação civil são reconhecidas e decisivamente distintas nos seus pressupostos fundamentais. Não há coincidência entre os pressupostos da culpa criminal e os pressupostos da indemnização civil. Nomeadamente: nem o ilícito criminal se confunde com o ilícito civil, nem a culpa criminal se pode confundir com a culpa civil, sempre, aliás, subsistindo a possibilidade de haver lugar a responsabilidade civil onde esteja de todo ausente a responsabilidade criminal, como será o caso da responsabilidade objetiva, pelo simples risco (cfr. Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pp. 186, 195 e 196) – cfr. citação do acórdão do STJ de 13.11.2003, proc. 03B2998, in www.dgsi.pt. [2] ) cf. Acórdão desta Relação, de 23/02/2017, proferido no processo n.º 268/11.7TBRDD.E1, no qual o ora Relator interveio como adjunto. [3] ) No mesmo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “ CPC Anotado”, Vol. 2.º, 3.ª ed. Pág. 763.