CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
TIPO SUBJETIVO DE ILÍCITO
Sumário

Como é consabido, e no que tange ao tipo subjetivo de ilícito, o crime de desobediência exige o dolo, em qualquer uma das suas modalidades: direto, necessário ou eventual.
O dolo, pressuposto do crime de desobediência, preenche-se sempre que o agente não cumpre, de modo voluntário e consciente, uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.
Ora, o contexto vivencial do arguido, a sua dependência do álcool (na altura dos factos), as preocupações quotidianas do mesmo com vista à satisfação das necessidades elementares do seu agregado familiar, e, sobretudo, o modo como se apresentou na audiência de discussão e julgamento, prestando declarações sinceras e verosímeis, levam-nos à conclusão, como levaram o tribunal recorrido, de que o arguido agiu apenas displicentemente e desleixadamente, ou seja, que o arguido atuou com mera negligência.
Nenhum elemento de prova nos permite afirmar, com a certeza necessária, que o arguido atuou propositadamente, não querendo entregar a sua carta de condução.
Posto isto, é de concluir que no caso sub judice não estão preenchidos os elementos do tipo subjetivo do crime de desobediência pelo qual o arguido vinha acusado.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de processo abreviado com o nº 401/19.0T9STC, do Juízo Local Criminal de Santiago do Cacém (Juiz 1), o arguido HJGN foi acusado pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, al. b), do Código Penal.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida pertinente sentença, onde o tribunal recorrido decidiu:

“i. Absolver o arguido, HJGN, do crime de que vem acusado: um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348º, nº 1, b), do Código Penal.

ii. Consignar que não são devidas taxa de justiça nem custas pelo arguido, nos termos do artigo 513º, nº 1, a contrario, do Código do Processo Penal”.

*

Inconformado com a sentença absolutória, dela interpôs recurso o Ministério Público, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1.º Por sentença proferida a 06/11/2019, o tribunal a quo decidiu absolver o arguido HN pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido nos termos do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

2.º Não obstante, no decurso da audiência de discussão e julgamento, o arguido prestou declarações (gravadas entre 14h45m07s e15h14m12s e gravadas entre 15h20m10s e 15h25m28s), no âmbito das quais referiu, designadamente:

- Que lhe foi entregue uma guia de substituição que substituía a carta de condução e que lhe permitia validamente conduzir,

- Afirmou diretamente que sabia que tinha de entregar a mesma;

- Confirmou que, no momento da leitura da sentença, o Mmº Juiz de Direito lhe informou que, perante a falta de carta de condução, deveria entregar a guia de substituição ou qualquer outro título que validamente lhe permitisse conduzir;

- Referiu que sabia que tinha cerca de 10 a 15 dias para entregar tal título nos autos, e que não o fez;

3.º Apesar das declarações do arguido, o tribunal a quo deu como não provados os factos atinentes ao elemento subjetivo.

4.º Com efeito, considerou o tribunal a quo que o arguido agiu com negligência, ao invés de concluir que o arguido atuou com dolo.

5.º Destarte, ao desconsiderar as declarações prestadas pelo arguido, dando como não provados os factos 6 e 7 da acusação, concluindo que o arguido agiu com negligência, o tribunal a quo fê-lo à revelia das regras da experiência comum, violando o princípio da livre apreciação da prova, previsto nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, bem como o artigo 412º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal.

6.º Com efeito, as regras de convivência normal determinam que, ao admitir o arguido que tinha conhecimento de que a guia substituía a carta de condução, que devia entregá-la, conforme lhe foi transmitido pelo Mmº Juiz de Direito na leitura da sentença, sob pena de cometer um crime de desobediência, previsto e punido nos termos do artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, bem como, que o prazo de entrega, era, pelo menos de 10 a 15 dias, tem necessariamente de representar que, ao não agir em conformidade, praticava o aludido crime.

7.º Impõe-se assim a renovação da seguinte prova: declarações do arguido entre 14h45m07s e15h14m12s e entre 15h20m10s e 15h25m28s.

8.º Pelo exposto, entende o Ministério Público que as provas coligidas nos autos, concretamente as declarações de arguido, impunham decisão diversa da recorrida. Em resultado, deveriam os factos atinentes ao elemento subjetivo do crime por que vinha acusado o arguido terem sido dados como provados, procedendo-se, desse modo, à correção da sentença, constando como provados os seguintes factos:

“1º No âmbito do Processo Sumário nº 531/18.6GHSTC, que corre termos na Comarca de Setúbal – Juízo Local de Santiago do Cacém, por sentença proferida a 17.12.2018 e transitada em julgado a 29.01.2019, o arguido foi condenado pela prática, em 16.12.2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, nº 1, a), e 69º, nº 1, a), do Código Penal, numa pena de 110 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 meses.

2º No âmbito do processo sumário nº 540/18.5GHSTC, que corre termos na Comarca de Setúbal – Juízo Local de Santiago do Cacém, por sentença proferida a 17.01.2019 e transitada em julgado a 18.02.2019, o arguido foi condenado pela prática, em 25.12.2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, nº 1, a), e 69º, nº 1, a), do Código Penal, numa pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 ano.

3º O arguido esteve presente nos atos de leitura de ambas as sentenças, que decorreram, respetivamente, no dia 17.12.2018 e no dia 17.01.2019, tendo sido notificado das mesmas e pessoalmente advertido pelo Mmº Juiz de que tinha de entregar a sua carta de condução, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença, na secretaria deste Tribunal ou no posto policial da área da sua residência, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.

4º Não obstante, o arguido não entregou a sua carta de condução em nenhum dos referidos processos, mais concretamente, não entregou a carta no processo 531/18.6GHSTC até ao dia 08.02.2019, nem no processo 540/18.5GHSTC até ao dia 28.02.2019, nem nada disse nesses processos.

5º Assim, por despacho datado de 03.04.2019, proferido no processo 540/18.5GHSTC, foi ordenada a apreensão da carta de condução do arguido, diligência que ainda não se logrou concretizar.

6º O arguido compreendeu as referidas ordens que lhe foram dadas pelo Tribunal, sabia que as mesmas eram legítimas e provinham de autoridade competente, não tendo feito a entrega da carta de condução, sabendo que necessariamente iria produzir o resultado típico, conformando-se com o mesmo.

7º O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” .

9.º Assim, uma vez corrigida a matéria de facto, deveria o arguido ter sido condenado pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido nos termos do artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal.

10.º Com efeito, contrariamente ao sufragado pelo tribunal a quo, estão preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de desobediência, tendo o arguido atuado com dolo necessário, ao invés da conduta negligente pela qual se conclui na sentença ora recorrida.

11.º Tal conclusão decorre das declarações do arguido, que referiu que esteve presente nas suas leituras de sentença, tendo-lhe sido dito, pelo Mmº Juiz de Direito, que tinha de entregar qualquer título de condução válido, como a guia de substituição, e que não entregou a guia pois perdeu a mesma, mas que conhecia e sabia ter de entregar e, não obstante, o arguido não agiu junto do tribunal para solucionar a situação, sabendo que, desse modo, necessariamente, praticava o crime de desobediência conformando-se com tal resultado.

12.º Deve, então, o arguido ser condenado na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €6,00, perfazendo o montante total de €300,00, nos termos dos artigos 47º, nº 1, e 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, a que corresponde a prisão subsidiária de 33 dias, nos termos do artigo 49º, nº 1, do Código Penal.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:

a) Serem renovadas as declarações do arguido, nos termos do artigo 412º, nº 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal e, em consequência, ser corrigida a matéria de facto, considerando provada a matéria de facto atinente ao elemento subjetivo;

b) E, consequentemente, condenar o arguido pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido nos termos do artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o montante total de €300,00 (trezentos euros)”.

*

O arguido não apresentou resposta ao recurso.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que o recurso interposto merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Efetuado o exame preliminar e corridos os vistos, foi designada data para conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Uma questão, em breve síntese, é suscitada no recurso interposto pelo Ministério Público, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal: a impugnação alargada da matéria de facto (existência de prova quanto aos factos atinentes ao elemento subjetivo do crime em causa, factos que foram dados como não provados na sentença recorrida).

2 - A decisão recorrida.

É do seguinte teor a sentença revidenda (quanto aos factos - provados e não provados - e quanto à motivação da decisão fáctica):

“Factos provados.

“1º No âmbito do Processo Sumário nº 531/18.6GHSTC, que corre termos na Comarca de Setúbal - Juízo Local de Santiago do Cacém, por sentença proferida a 17.12.2018 e transitada em julgado a 29.01.2019, o arguido foi condenado pela prática, em 16.12.2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, nº 1, a), e 69º, nº 1, a), do Código Penal, numa pena de 110 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 meses.

2º No âmbito do processo sumário nº 540/18.5GHSTC, que corre termos na Comarca de Setúbal - Juízo Local de Santiago do Cacém, por sentença proferida a 17.01.2019 e transitada em julgado a 18.02.2019, o arguido foi condenado pela prática, em 25.12.2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, nº 1, a), e 69º, nº 1, a), do Código Penal, numa pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 ano.

3º O arguido esteve presente nos atos de leitura de ambas as sentenças, que decorreram, respetivamente, no dia 17.12.2018 e no dia 17.01.2019, tendo sido notificado das mesmas e pessoalmente advertido pelo Mmº Juiz de que tinha de entregar a sua carta de condução, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença, na secretaria deste Tribunal ou no posto policial da área da sua residência, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.

4º Não obstante, o arguido não entregou a sua carta de condução em nenhum dos referidos processos, mais concretamente, não entregou a carta no processo 531/18.6GHSTC até ao dia 08.02.2019, nem no processo 540/18.5GHSTC até ao dia 28.02.2019, nem nada disse nesses processos.

5º Assim, por despacho datado de 03.04.2019, proferido no processo 540/18.5GHSTC, foi ordenada a apreensão da carta de condução do arguido, diligência que ainda não se logrou concretizar.

6º O arguido está desempregado, apesar de fazer alguns “biscates”.

7º Vive com a mulher e três filhos menores.

8º O agregado subsiste do Rendimento Social de Inserção, no montante de cerca de 500 euros mensais, a que acresce a quantia de 200 euros a título de “abono de família” relativo aos filhos menores.

9º O arguido está abstinente de álcool desde há cerca de 1 ano, consumindo, antes disso, álcool em excesso.

10º O arguido possui diversas condenações criminais anteriores: por crime de roubo, praticado em 2013, em pena de prisão com execução suspensa; por crime de ofensa à integridade física qualificada, praticado em 2014, em pena de prisão com execução suspensa; e por crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, conforme acima referido (factos 1º e 2º), também em penas de prisão com execução suspensa.

Factos não provados.

“1º O arguido compreendeu as referidas ordens que lhe foram dadas pelo Tribunal, sabia que as mesmas eram legítimas e provinham de autoridade competente, não tendo feito a entrega da carta de condução por não o querer fazer.

2º O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Motivação da decisão de facto.

Os factos dados como provados basearam-se na prova documental junta aos autos e na prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento (declarações do arguido).

Quanto aos factos tidos como não provados, o tribunal baseou-se nas declarações do arguido prestadas na audiência de discussão e julgamento, o qual justificou a não entrega da carta de condução por não a ter na sua posse (tinha apenas uma “guia de substituição”, passada GNR na sequência de uma anterior “apreensão” da carta de condução, levada a cabo em processo de contraordenação) e, ainda, por desleixo, incúria e “falta de cabeça”.

Subjacente ao crime de desobediência objeto da acusação está a não entrega voluntária da carta de condução.

Ora, das declarações do arguido resulta, por um lado, que o arguido não tinha a “carta de condução” na sua posse (a mesma foi apreendida no âmbito de um processo de contraordenação) - mas apenas uma “guia de substituição” -, e, por outro lado, que o arguido “perdeu”, em sua casa, essa mesma “guia”, sendo certo que, desde então, o arguido nunca mais conduziu veículos automóveis.

Assim, e olhando a todo o contexto vivencial do arguido e às declarações do mesmo quando apreciadas na sua globalidade, o que, na verdade, os autos evidenciam é, fundamentalmente, uma situação de negligência e não de dolo.

Assinala-se ainda que o arguido tem modesta instrução.

Acresce que, subjacente à condenação tem de estar um juízo de certeza, não podendo restar quaisquer dúvidas sobre os propósitos e os motivos da conduta do arguido.

Face ao exposto, o tribunal entende que a atitude de o arguido não entregar a carta de condução foi fruto de uma situação de negligência, de desleixo, não se podendo concluir que o arguido, voluntariamente, ou seja, propositadamente, não quis entregar a carta de condução”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

Alega a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente que foi produzida prova suficiente quanto aos factos constantes dos artigos 6º e 7º da acusação (factos relativos aos elementos subjetivos do crime - e tidos como não provados em primeira instância -), pelo que tais factos devem ser dados como provados, e, consequentemente, o arguido deve ser condenado pela prática do crime de desobediência de que vinha acusado.

Cabe decidir.

A Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente, a fundamentar a sua pretensão, salienta, no essencial, algumas passagens das declarações do arguido, nas quais o mesmo declara que sabia que tinha de entregar a sua carta de condução, por isso lhe ter sido dito pelo Exmº Juiz que o condenou e, não obstante, o arguido não agiu junto do tribunal para solucionar a situação, sabendo que, desse modo, necessariamente, praticava um crime de desobediência, conformando-se com o resultado.

Porém, cabe a este tribunal ad quem proceder não só à análise dessas passagens das declarações do arguido salientadas pela Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente, mas também à ponderação de todas as outras que sejam relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, conforme disposto no artigo 412º, nº 6, do C. P. Penal.

Cumpre, como é óbvio, ponderar toda a prova produzida, ou seja, in casu, as declarações do arguido, vistas na sua globalidade complexiva.

Por outro lado, salienta-se ainda que não está afastada a possibilidade de nos socorrermos do princípio da livre convicção na apreciação/valoração da prova em causa.

À luz dos anteriores considerandos, perante o que vem alegado no recurso do Ministério Público, e após ponderação integral das declarações do arguido prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, e analisada também a prova documental junta aos autos, concluímos que a nossa convicção acerca dos factos sob julgamento não diverge daquela que o tribunal a quo alcançou e exprimiu na sentença recorrida.

Há que concretizar.

O arguido, de modo espontâneo, impressivo e verosímil, e além dos pontos salientados na motivação do recurso pela Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente, disse, na audiência de discussão e julgamento (naquilo que se nos afigura fundamental para a decisão):

“Quando me mandaram parar, a 25/12/2018, a GNR de Sines ficou com a carta, não tinha nenhuma carta para entregar.

Juiz: Onde está a sua carta?

Arguido: Acho que a carta de condução está no Tribunal.

Juiz: Em que processo, sabe?

Arguido: Assim de momento, não sei.

Juiz: Podia explicar um bocadinho melhor. Quando lhe tiraram a carta?

Arguido: Foi quando me mandaram parar, fiz o teste de alcoolémia.

Juiz: Em que processo? 540 ou 531. O primeiro foi por factos praticados a 16/12/2018 e o segundo em 25/12/2018.

Arguido: Penso ter sido a segunda fiscalização e tiraram-me a carta e deram-me uma guia, porque tinha umas multas, eu não tinha dinheiro para pagar e eles ficaram com a carta.

Juiz: Ficaram com a carta, nessa segunda vez?

Arguido: Sim, foi a última, penso que foi essa.

Juiz: Diz aqui que não entregou a carta nesse processo.

Arguido: Não tinha carta nenhuma para entregar, ficaram na hora com ela.

Juiz: Foi nessa fiscalização que lhe ficaram com a carta?

Arguido: a fiscalização ocorreu no dia de Natal. Ficaram com a carta porque me passaram multas, não tinha dinheiro para pagar na hora e ficaram com a carta.

Juiz: Porque ficaram com a carta?

Arguido: Porque passaram multas, eu acho que foi por causa disso, eu não tinha dinheiro para pagar e ficaram com a carta, mandaram para Setúbal e de Setúbal enviaram para Santiago do Cacém.

Juiz: Ficaram com carta nessa ação de fiscalização

Arguido: Sim, ficaram com a carta.

Juiz: Recebeu algum documento?

Arguido: Recebi uma guia e ficaram com a carta.

Juiz: O senhor nunca mais retomou a posse da sua carta?

Arguido: Não, até hoje não, já lá vai um ano. Eu acho que isto devia contar para inibição de conduzir.

Juiz: Não estamos a discutir a inibição de conduzir, estamos a discutir que o senhor não entregou a carta.

Arguido: Se eu tivesse a carta eu entregava, não tinha carta, quem ficou com a carta foi a GNR de Sines.

Juiz: Então ficaram com a carta. O senhor recebeu uma guia?

Arguido: Sim.

Juiz: Não a tem consigo?

Arguido: Não, se quer que lhe diga, nunca mais conduzi, não sei onde a pus, procurei, mas não a encontro.

Juiz: Foi no dia de Natal?

Arguido: Sim.

Juiz: Então foi no 540. O senhor tinha carta no momento da fiscalização?

Arguido: Tinha.

Juiz: Diz que aqui foi efetuada guia de substituição de documentos?

Arguido: Sim, foi.

Juiz: Terá ficado à ordem de algum processo de contraordenação?

Arguido: Não sei, só sei que me mandaram parar e tiraram-me a carta.

Juiz: Então e o senhor nunca mais viu a sua carta?

Arguido: Não.

Juiz: Tentou saber, sabe em que estado está o processo de contraordenação?

Arguido: Não sei, só sei que da última vez fiquei 1 ano e 4 meses sem poder conduzir. Foi o que me foi aplicado.

Juiz: foi no processo 540. Ficou de ser solicitada ao processo 531 a remessa a este processo 540 na eventualidade de se encontrar apreendido o título de condução, mas, em todo o caso, na primeira fiscalização ficou com o seu título de condução?

Arguido: Sim.

Juiz: Dessa primeira vez só foi autuado por causa do álcool. Não houve mais nada.

Arguido: Não, não, paguei a multa toda a prestações.

Juiz: Faz-se menção à guia. A guia não consta do processo, não consta aqui cópia dela.

Procuradora: Disse que a polícia o mandou parar e ficou com a sua carta, isso acontece quando o condutor pratica a contraordenação e não paga a coima. Portanto a polícia entregou-lhe uma guia de substituição?

Arguido: Sim, foi isso.

Procuradora: A polícia entregou-lhe uma guia de substituição?

Arguido: Sim, entregou.

Procuradora: E onde está a guia?

Arguido: Não sei, nunca mais soube dela, no outro dia já não sabia.

Procuradora: Essa guia de substituição substituía, portanto, a carta de condução, era o título válido para o senhor conduzir, porque não a entregou?

Arguido: Não me lembrei, eu andava com a cabeça não sei onde. E que nem sequer me passou pela cabeça. Esqueci-me mesmo completamente.

Procuradora: Sabia, tinha consciência, de que tinha de a entregar?

Arguido: Sabia, sabia. Sabia sim senhor.

Procuradora: E de momento não sabe?

Arguido: Não. Mas também não conduzo desde esse dia até hoje, porque não sabia da guia.

Procuradora: Sabia que devia entregar, mas esqueceu-se?

Arguido: Esqueci, não me passou pela cabeça”.

Ouvindo a gravação das declarações do arguido acabadas de transcrever, ponderando o grau de literacia do arguido (muito baixo), olhando ao contexto socioeconómico em que o mesmo está inserido (contexto que nos revela enormes fragilidades, desde logo atinentes à subsistência diária do arguido e do seu agregado familiar, agregado que, no fundo, não possui qualquer outra fonte de rendimento que não seja o RSI e o “abono” dos filhos), e avaliando tudo isso na sua globalidade e de forma racional e crítica, nada justifica a formulação de juízo valorativo, relativo à prova, diferente do assumido pelo tribunal de primeira instância, sendo de manter, nos seus precisos termos, a decisão aí proferida sobre a matéria de facto.

Também este tribunal ad quem, que está privado da imediação (importante para captar pormenores de expressão, de olhar, de maneira de estar, e outros, que ajudam a credibilizar ou não as declarações do arguido), procedendo à audição das declarações do arguido prestadas na audiência de discussão e julgamento, fica seguro da consistência e da correção da decisão de absolvição do arguido.

Como é consabido, e no que tange ao tipo subjetivo de ilícito, o crime de desobediência exige o dolo, em qualquer uma das suas modalidades: direto, necessário ou eventual.

O dolo, pressuposto do crime de desobediência, preenche-se sempre que o agente não cumpre, de modo voluntário e consciente, uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.

Ora, o contexto vivencial do arguido, a sua dependência do álcool (na altura dos factos), as preocupações quotidianas do mesmo com vista à satisfação das necessidades elementares do seu agregado familiar, e, sobretudo, o modo como se apresentou na audiência de discussão e julgamento, prestando declarações sinceras e verosímeis, levam-nos à conclusão, como levaram o tribunal recorrido, de que o arguido agiu apenas displicentemente e desleixadamente, ou seja, que o arguido atuou com mera negligência.

Nenhum elemento de prova nos permite afirmar, com a certeza necessária, e com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, que o arguido atuou propositadamente, não querendo entregar a sua carta de condução.

Posto isto, facilmente nos damos conta que no caso sub judice não estão preenchidos os elementos do tipo subjetivo do crime de desobediência pelo qual o arguido vinha acusado.

Assim sendo, o recurso interposto pelo Ministério Público não merece provimento, sendo de manter a decisão da primeira instância.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se, consequentemente, a douta sentença recorrida.

Sem custas.

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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 20 de outubro de 2020

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Laura Goulart Maurício)