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CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
GRAVAÇÃO DE PROVA
INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
VALIDADE
EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Sumário
I – Se a conduta traduzida na gravação das palavras proferidas por outrem configurar um ilícito penal não poderá ser atribuído valor probatório à gravação, caso contrário será prova válida e sujeita à livre apreciação do julgador. II – O preenchimento, em abstracto, dos elementos constitutivos de ilícito criminal pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da culpa e, em consequência, pode ser considerada a gravação das palavras efectuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como válida a prova recolhida por esse meio. III – Entre nós tem sido entendimento jurisprudencial dominante que a elaboração de gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, já que o autor da gravação actua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude. IV – É o que sucederá nos casos em que a necessidade de protecção da vida privada dos intervenientes se mostra mitigada, já que contende com circunstâncias em que a coberto do foro íntimo do casal são praticados ilícitos criminais, tal como sucede, com frequência, nos crimes de violência doméstica.
Texto Integral
Processo número 308/16.3GAVFR.P2
Tribunal da Comarca de Aveiro,
Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 2
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
Nestes autos de processo comum coletivo com o número acima referido em que é arguido, B… (devidamente identificado nos autos), após audiência de julgamento, foi proferida sentença condenando o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº 1, al. b) e n.º 2, do Código Penal, na pena de dois anos e cinco meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos e cinco meses sujeita a regime de prova e subordinado ao cumprimento do programa de aquisição de competências pessoais e sociais, direcionado aos indivíduos condenados pela prática do crime de violência doméstica e à sujeição a tratamento médico especializado (com internamento, se necessário, por decisão do clinico responsável), de eventual problemática aditiva alcoólica com vista à desintoxicação e abstinência alcoólica, para o qual o arguido já deu o seu prévio consentimento. Mais foi o arguido condenado a pagar à ofendida, o valor de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais».
Desta decisão recorreu o arguido, tendo sido proferido acórdão desta Relação determinando o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do mesmo. Foi efetuado novo julgamento e, na pendência deste, foi indeferida a arguição de nulidade suscitada pelo arguido relativamente ao despacho que admitiu como meio de prova gravações que, no seu entender, eram gravações ilícitas.
Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da motivação apresentada as seguintes conclusões (transcrição):
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……………………………………. Quanto ao recurso intercalar:
Insurge-se o recorrente pela admissão da prova junta pela ofendida, consistente nos registos fonográficos que contêm gravações de conversas entre ambos havidas no domicílio conjugal, sem o seu conhecimento e autorização. Em consequência, entende que a prova em causa corresponde a prova proibida, não podendo ser utilizada nos presentes autos.
Vejamos se assiste razão ao recorrente.
Estabelece o artigo 125º do Código Penal que “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”.
A propósito de fotografias e gravações, determina o artigo 167.º do Código Processo Penal: “As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal”.
Por seu turno, as gravações ilícitas estão disciplinadas no artigo 199º, nº 1 do Código Penal, o qual preconiza o seguinte: “1 - Quem sem consentimento: a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas; é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. (…)”
Da conjugação destes normativos ressalta que a validade da prova questionada no presente recurso está condicionada à inexistência de atividade criminosa na obtenção da gravação.
Assim, se for de concluir que a conduta traduzida na gravação das palavras proferidas configura um ilícito penal não poderá ser atribuído valor probatório à gravação; caso contrário, será prova válida e sujeita à livre apreciação prevista no artigo 127.º do Código Processo Penal.
Contudo, o preenchimento, em abstrato, dos elementos constitutivos do ilícito criminal, pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da ilicitude ou da culpa, e, em consequência, pode ser considerada válida a gravação de palavras efetuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio.
Relativamente a esta questão, por ilustrativo, é pertinente salientar o segmento inserto no recente Acórdão desta Relação do Porto de 06/11/2019, que refere o seguinte: «As declarações obtidas extrajudicialmente, fora do processo normal de investigação, são válidas como meio de prova e ficam sujeitas, como qualquer outro meio, à livre apreciação do tribunal. Esta matéria tem suscitado muita controvérsia, levando a grandes debates doutrinais e jurisprudenciais. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, tratou bem cedo desta matéria seguindo de perto o debate suscitado na doutrina e jurisprudência alemãs. Vejam-se fls 242 e seguintes, desta monografia, editada pela Coimbra Editora em 1992, onde se aborda o tema das gravações ilícitas, não deixando de considerar o que ocorre nos crimes de extorsão, coacção, injúria, corrupção, fraude e outos tipos legais propensos à integração por esta via: como momento comum a estas situações sobressai um comportamento ilícito ou ao menos, eticamente censurável, por parte da pessoa cuja palavra é, sem o seu consentimento, gravada. Igualmente comum e consensual, entre a doutrina e jurisprudência, é o entendimento de que os autores destas gravações não devem ser criminalmente sancionados. Mas as divergências começam já a ganhar expressão em sede de enquadramento doutrinal da exclusão da responsabilidade penal. Enquanto uns privilegiam o efeito tipicidade, em nome da redução teleológica da área de tutela da norma incriminatória, outros consideram que só a doutrina da ilicitude e das causas de justificação detém as virtualidades para um ajustado enquadramento dos problemas.».
Entre nós, vem sendo entendimento jurisprudencial dominante que a elaboração de gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, já que o autor da gravação atua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude. - Neste sentido, vide Acórdãos da Relação de Coimbra de 24/02/2016, processo nº 2638/12.4TALRA.C1; da Relação de Guimarães de 29/04/2014, processo nº 102/09.8GEBRG.G2; da Relação de Évora de 29/03/2016, processo nº 558/13.4GBLLE.E1. E, ainda na mesma linha, se pronuncia o Tribunal desta Relação do Porto Acórdãos de 23/10/2013, processo nº 585/11.6TABGC.P1; de 27/01/2016, processo nº 1548/12.0TDPRT.P1 e de 06/11/2019, processo nº 457/17.0PAVFR.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
No caso em análise decorre dos autos que as gravações foram obtidas sem consentimento do arguido e não olvidamos que, contrariamente ao que sucedia nos acórdãos citados, os factos objeto de gravação dizem respeito ao foro da vida privada de arguido e ofendida. Não obstante, não se pode deixar de levar em consideração que o crime de violência doméstica, pela sua natureza de intromissão em relações familiares de grande proximidade contende, ele próprio, com a vida familiar íntima de todos os intervenientes.
Neste particular, a investigação, discussão e julgamento de crimes de violência doméstica frequentemente traz à luz questões do foro mais privado do casal, que necessitam de ser escrutinados e objetivamente analisados de modo a formar uma decisão justa. Coarctar ao ofendido num crime de violência doméstica, a possibilidade de gravar condutas agressivas por parte do respetivo agente, limitaria em muito a possibilidade de o mesmo apresentar meios de prova passíveis de corroborar as declarações por si prestadas. A situação é tão mais exacerbada se for tido em conta que o crime em apreço, não raras vezes, ocorre “entre quatro paredes”, sendo comuns as ocasiões em que a vítima não possui quaisquer outros elementos probatórios para além das suas próprias declarações.
Ademais, como acima se expendeu, a necessidade de proteção da vida privada dos intervenientes igualmente se mostra mitigada, já que contendem, precisamente, com circunstâncias em que a coberto do foro íntimo do casal, são praticados ilícitos criminais. Como assim, perante tais circunstâncias – como as decorrentes dos autos - surge justificada a gravação das palavras dirigidas pelo arguido à ofendida, sem o consentimento daquele, pois que, como expendido no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 28/11/2009, processo nº 22/09.6YGGLSB.S2 inwww.dgsi.pt «a proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (…) tem de ceder perante o interesse da proteção da vítima e a eficiência da justiça penal: a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime»
Daí, considerarmos que as gravações em causa não são violadoras do artigo 199.º do Código Penal, motivo pelo qual foram devidamente valoradas pelo tribunal a quo improcedendo, em consequência, o recurso intercalar interposto.
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Quanto ao recurso da sentença
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*** III – Decisão
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
- determina-se a correção da sentença nos termos supra referidos passando a constar na parte decisória da mesma ter o arguido B…, cometido um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº 1, alíneas b) e c) e n.º 2, do Código Penal,;
- condena-se o mesmo arguida na pena de dois anos e cinco meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova e subordinado ao cumprimento do programa de aquisição de competências pessoais e sociais, direcionado aos indivíduos condenados pela prática do crime de violência doméstica (Programa CONTIGO e/ou outros) e à sujeição a tratamento médico especializado (com internamento, se necessário, por decisão do clinico responsável), de eventual problemática aditiva alcoólica com vista à desintoxicação e abstinência alcoólica, para o qual o arguido já deu o seu prévio consentimento.
- Mais se condena o demandado B… a pagar à ofendida, o valor de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais;
- no mais, mantém-se a decisão recorrida.
Sem tributação (artigo 513º, nº 1 do Código Processo Penal)
Porto, 24 de setembro de 2020
(elaborado pela relatora e revisto por ambos os subscritores – artigo 94 nº2 do Código Processo Penal)