ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário


I - Os vícios previstos no artigo 615.º do CPC, que determinam a nulidade da sentença, não se confundem com as nulidades dos atos processuais previstas nos artigos 195.º e seguintes do mesmo Código.

II - Nulidades de processo são todos os desvios ao ritualismo processual prescrito na lei, com relevância para o exame e discussão da causa. As nulidades processuais consistem num desvio entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo processual seguido, e só se produzem quando a lei o declare ou quando tal falha possa influenciar o decurso da causa.

III – Uma questão de constitucionalidade formulada em reclamação para a conferência a arguir nulidades do acórdão que negou a revista não se pode considerar suscitada no momento processualmente adequado.

IV - O teor da alegada questão de constitucionalidade não está concebido em termos que vinculem o juiz a decidi-la, por falta de normatividade, pois remete para as idiossincrasias do caso concreto e para especificidades da ponderação da prova, não se revestindo da natureza geral e abstrata exigida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, nem sendo possível destacar dela um sentido normativo suscetível de ser aplicado a um número indeterminado de casos.

Texto Integral





Proc. n.º 3278/16.4T8GMR.G1.S1


Acordam, em Conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório


1. A recorrente AA, notificada do acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 2 de junho de 2020, que confirmou o acórdão recorrido e considerou improcedente a ação de investigação de paternidade, vem arguir nulidades do mesmo e suscitar a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 1871º, n.º 1, al. e) e n.º 2, do Código Civil (CC), por violação do disposto nos artigos 26º, n.º 1 e 36º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o que fez nos termos e com os seguintes fundamentos, que agora se transcrevem:
«1- Decide o acórdão recorrido que as nulidades imputadas à sentença que o acórdão da relação julgou inexistirem não podem ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Com efeito, expressamente se refere no acórdão produzido que “enquanto causas de nulidade de uma decisão, apenas é competente para as conhecer o tribunal ad quem, ou seja, o tribunal da Relação a quem cabe competência para declarar a nulidade da sentença de primeira instância e para a revogar, não o Supremo Tribunal de Justiça que exerce a sua competência apenas sobre o acórdão recorrido proferido pelo tribunal da Relação”.
Para além disso, defende ainda o acórdão que quanto às nulidades processuais invocadas pela recorrente em relação à prática ou omissão de atos processuais no decurso da tramitação do processo, no tribunal da primeira instância, “não é admissível qualquer pronúncia deste Supremo Tribunal, por extemporaneidade”. As duas afirmações constantes da decisão não são legalmente justificadas, e não se conhece justificação legal que possa caber-lhes, uma vez que dentro das regras de competência jurisdicente do Supremo não se encontra nenhuma que exclua a possibilidade de ser reapreciada a decisão sobre nulidades produzida na segunda instância, nem qualquer princípio de preclusão em relação à decisão de nulidades cometidas pelo tribunal de primeira instância e que não tenham transitado em julgado.
A decisão nesta parte afigura-se, assim, a enfermar da nulidade a que se refere o artigo 615º n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil, uma vez que não especifica os fundamentos de direito em que se deveria estribar.
Nestes termos deve conhecer-se da apontada nulidade, com a consequência de, a julgar-se inexistente justificação legal para aquelas decisões, ser produzida nova decisão que aprecie as nulidades em causa.

2- O acórdão, por outro lado, a partir da decisão sobre a matéria de facto produzida na segunda instância, entendeu acertado dizer que “um resultado de exclusão da paternidade não tenha valor absoluto”, mas isso não significa que se justifique a verificação da paternidade, por essa hipótese ser “quase nula”, conclusão que extraiu das declarações dos peritos em audiência de julgamento, uma vez que estes “reconheceram que o resultado de um exame de exclusão de paternidade não é em abstrato absoluto, mas esclareceram que no caso concreto, a hipótese de o reu ser de facto o progenitor biológico da criança era, na expressão de um dos peritos “quase nula””.
Analisando a questão sustenta o acórdão deste STJ, concordantemente com a posição do acórdão recorrido que “não se pode considerar provada a paternidade, independentemente da prova da exclusividade das relações sexuais entre a autora (mãe) e o réu (pretenso pai), uma vez que os exames hematológicos esclarecem que está excluída a paternidade do réu”, e daí que “tem de se entender que não era exigível ao tribunal da Relação exercer sobre a questão da exclusividade do relacionamento sexual os seus poderes de modificação ou de ampliação da matéria de facto, pois estaria a praticar um ato inútil”.
No entanto, ao justificar a decisão, nessa parte, o acórdão deste Supremo Tribunal considera que, de facto, não está excluída de todo a paternidade, uma vez que não é possível excluí-la em absoluto, mas não pode censurar o tribunal recorrido por excluir a paternidade, uma vez que esta é de excluir, embora com uma margem de erro quase nula, “para considerar que, mesmo sendo feita a prova da exclusividade das relações sexuais entre a mãe e o pretenso pai, sempre se estaria perante uma situação em que a paternidade do réu não poderia ficar estabelecida”, pois “a atribuição de um maior valor probatório a um parecer técnico jurídico quando comparado com a prova testemunhal, ao abrigo dos juízos de ponderação que as instâncias podem usar na livre apreciação da prova não é sindicável por este Supremo Tribunal”.
Essa decisão é manifestamente contraditória em si mesma, porque não pode considerar-se por um lado correta a decisão que exclui a paternidade e ao mesmo tempo considerar-se que a paternidade pode ser excluída, apesar de, embora numa hipótese remota, ela pudesse ser atribuída.
A recorrente não é a Virgem Maria.
Teve um filho, e esse filho foi gerado pela recorrente conjuntamente com um homem.
Não se conhece nem ninguém lhe apontou qualquer outro relacionamento sexual, para além do que teve com o réu.
Daí que, remota ou não, a possibilidade de o réu ser o pai do filho da recorrente, não pode deixar de ser-lhe atribuída a paternidade, porque foi o único homem que se relacionou sexualmente no período legal da conceção.
O artigo 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa prescreve que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, do desenvolvimento da personalidade, da capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”.
Por sua vez, o artigo 36 n.º 4 da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio de que “os filhos nascidos fora do casamento não podem por esse motivo ser objeto de qualquer discriminação”.
Congruentemente o Código Civil, no artigo 1871º n.º 1 al. e) estabelece o principio de que a paternidade se presume quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal da conceção, presunção que, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, só pode considerar-se ilidida se existirem dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado.
As dúvidas a que se refere o citado acórdão só podem ser as que resultem da possibilidade de existir qualquer “concorrência” de hipóteses de paternidade, não podem resultar de qualquer exame hematológico, conclua ele o que concluir.
Não é, por isso, possível excluir a paternidade de quem teve relações sexuais com a mãe no período legal da conceção, a não ser que, através de um juízo fundado na “exceptio plurium”, se demonstre que no mesmo período legal da conceção a mãe teve relações com outros homens.
A interpretação dada à referida norma do Código Civil, considerando ilidida a presunção não obstante se não provar, nem ter sido alegado, que a mãe do menor manteve relações de sexo com outro homem no período legal da conceção, viola, pois, a indicada norma constitucional que garante a todos os cidadãos à identidade pessoal.
Termos em que, conhecendo-se da apontada contradição, deve a decisão nessa parte ser também julgada nula, conforme o disposto no artigo 615º n.º 1 al. c) do Código de Processo Civil, nulidade que deve ser julgada por forma a ser produzida decisão que julgue legalmente impossível excluir a paternidade em termos absolutos, e, em consequência, julgar-se inconstitucional a interpretação dada ao artigo 1871º n.º 1 al. e) e 2, no sentido de que a presunção de paternidade se deve considerar ilidida quando, não obstante se não provar que a mãe manteve relações de sexo no período legal da conceção com mais nenhum homem, seja escassa a possibilidade de ser esse o pai da criança, em virtude do resultado de exames hematológicos que lhe atribuam uma hipótese de paternidade remota».

Cumpre apreciar e decidir.


II - Fundamentação

A reclamante vem arguir nulidades do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido nestes autos, que considerou improcedente a ação de investigação de paternidade, confirmando o acórdão recorrido. Alega que o citado acórdão padece de nulidade por falta de fundamentação de direito (artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil – CPC), na parte em que afirma que o Supremo não pode conhecer nulidades da sentença de 1.ª instância, nem de nulidades processuais alegadamente cometidas pelo tribunal de 1.ª instância. Entende ainda que o acórdão reclamado é nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615.º, n.º, al. c), do CPC), na parte em que considera, com base nas declarações dos peritos, que, por um lado, o exame hematológico não exclui em absoluto a paternidade e, por outro lado, não se pode considerar verificada a paternidade do réu, pois, no caso concreto, é “quase nula” a hipótese de o réu ser o pai.
Por último, coloca uma pretensa questão de constitucionalidade, segundo a qual, deve julgar-se inconstitucional, por violação dos artigos 26.º, n.º 1 e 36.º, n.º 4, ambos da CRP, a interpretação do artigo 1871.º, n.º 1, al. e), e n.º 2 do Código Civil, no sentido de que a presunção de paternidade se deve considerar ilidida quando, não obstante se não provar que a mãe manteve relações de sexo no período legal de conceção com mais nenhum homem, seja escassa a possibilidade de ser esse o pai da criança, em virtude do resultado de exames hematológicos que lhe atribuam uma paternidade remota».

Vejamos:

1. Relativamente à primeira questão, deve notar-se que, quando o Código de Processo Civil afirma, no artigo 615.º, n.º 1, al. b), que é nula a decisão que não especifica os fundamentos de direito, tal conceito de fundamentos de direito não inclui necessariamente a lei, mas também princípios fundamentais de direito, a jurisprudência e raciocínios jurídicos de lógica elementar.
O fundamento, segundo o qual uma decisão do Supremo Tribunal só se debruça sobre o reexame da decisão do Tribunal da Relação e não sobre a sentença do tribunal de 1.ª instância, é um princípio fundamental que resulta do objeto do recurso de revista, e que não carece, para a sua demonstração, que seja invocado um preceito legal para o efeito, dado o seu caráter óbvio e imediatamente decorrente da fixação do objeto do recurso. Como se afirma no acórdão 23-03-2000, Revista n.º 263/99, «O Supremo não conhece das nulidades cometidas na sentença da 1ª instância, mas das nulidades do acórdão da Relação». O mesmo se diga em relação ao princípio da preclusão das nulidades processuais, sendo orientação jurisprudencial dominante, como é por demais sabido, que, em regra, não podem ser conhecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça, pois os prazos de arguição são muito curtos e terminam em fases anteriores do processo (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30-06-2011, proc. n.º 527/05.8TBVNO.C1.S1). Os vícios previstos no artigo 615.º do CPC, que determinam a nulidade da sentença, não se confundem com as nulidades dos atos processuais previstas nos artigos 195.º e seguintes do mesmo Código. Nulidades de processo são todos os desvios ao ritualismo processual prescrito na lei, com relevância para o exame e discussão da causa. As nulidades processuais consistem num desvio entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo processual seguido, e só se produzem quando a lei o declare ou quando tal falha possa influenciar o decurso da causa. O regime destas nulidades encontra-se regulado nos artigos 195.º a 198.º e 200.º, fundamento legal que foi invocado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, agora reclamado, diferentemente do que afirma o reclamante.
O acórdão reclamado não deixou, portanto, de remeter para o respetivo regime legal, não tendo desenvolvido mais a questão, pelo facto de se tratar, por um lado, de uma questão que não lhe competia conhecer, e por outro, porque o acórdão recorrido a tratou com pormenor e rigor técnico, nada mais havendo a dizer senão remeter para a fundamentação desenvolvida pelo acórdão recorrido, à qual nada havia a censurar.

2. Relativamente à alegada contradição, supostamente suscetível de inquinar de nulidade o acórdão reclamado nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, entre o valor de um exame hematológico que exclui a paternidade, o qual, em abstrato, se reconhece não ser absoluto, e a afirmação dos peritos de que era quase nula a probabilidade de o réu ser o pai, está extensa e profundamente explicado no acórdão reclamado, com recurso a doutrina e a jurisprudência, que não se trata de contradição alguma, relevando apenas para o caso, como não podia deixar de ser, o grau de probabilidade que, em concreto, tinha o exame dos autos.
Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC que: "É nula a sentença [e também o acórdão] quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão". As premissas do silogismo judiciário têm de ser congruentes com a conclusão que delas tem de decorrer logicamente.
Segundo a jurisprudência:

«Há contradição entre os fundamentos e a decisão, quando estes dois aspectos cruciais da sentença, na sua sustentação, enfermam de um vício lógico insanável, através do qual se evidencie que a concreta fundamentação utilizada pelo julgador, seja ancorada na matéria de facto ou na matéria de direito, jamais poderia ter conduzido ao resultado alcançado que, assim, não pode ser considerado inteligível e coerente desfecho por estar inquinado de um vício no raciocínio lógico-dedutivo; ou seja, o caminho trilhado na via da fundamentação nunca poderia, de uma maneira lógica e razoável, desaguar naquele concreto resultado plasmado na sentença» (acórdão de 20-11-2012, processo n.º 176/06.3TBMTJ.L1.S2).

Verifica-se, pois, a nulidade em causa quando as premissas do silogismo judiciário a que se reconduz a sentença ou o acórdão não se coadunam com a conclusão que delas é extraída.
Mas não é o caso do acórdão reclamado, que não padece deste vício, nem de qualquer contradição lógica nos sues fundamentos.

Revejam-se, agora, alguns excertos da fundamentação do acórdão reclamado:

«Invoca ainda o recorrente que o acórdão recorrido, à semelhança da sentença, padece de ambiguidade ou obscuridade e ininteligibilidade, na medida em que, por um lado, aceita que o réu é excluído da paternidade, tal como consta do exame pericial junto aos autos, e, por outro lado, admite que os peritos esclareceram que a exclusão da paternidade não é absoluta devido a um fenómeno a que chamaram de “ocorrência de mutações”.
Contudo, compulsada a matéria de facto acerca dos exames periciais e do depoimento dos peritos em audiência de julgamento:
«13 - Resulta do Relatório Pericial de Investigação de Parentesco Biológico de fls. 182 e v.º, que “De acordo com os resultados obtidos, BB é excluído da paternidade de CC, filho de AA.”
14 - Resulta do Relatório Pericial de Investigação de Parentesco Biológico de fls. 253 a 254v.º, que “De acordo com os resultados obtidos, BB é excluído da paternidade de CC, filho de AA.
A identificação de haplótipos distintos do cromossoma Y em BB e CC, exclui a possibilidade de pertencerem à mesma linhagem paterna, ou seja BB é excluído da paternidade que lhe é atribuída no haplótipo do cromossoma Y.”.
15- Dada a ocorrência de um fenómeno raro que pode acontecer na transmissão do património genético de pai para o filho, os exames hematológicos podem dar um resultado de exclusão de paternidade biológica do primeiro em relação ao segundo, não obstante aquele ser efetivamente pai biológico deste.
16- Apesar do referido em 15), a quantidade de perfis genéticos que foram analisados aquando da realização das periciais identificadas em 11A), 13) e 14) e o número de perfis genéticos em que ocorre incompatibilidade genética entre Autor e Réu, a possibilidade deste ser pai biológico do Autor é praticamente nula». (realce nosso)
Desta matéria de facto, bem como da apreciação da fundamentação do acórdão recorrido, baseada nos depoimentos dos peritos, resulta que, não obstante a possibilidade, em abstrato, de ocorrência de mutação genética suscetível de provocar que um resultado de exclusão da paternidade não tenha valor absoluto e que o indivíduo excluído seja afinal o progenitor biológico, essa hipótese é “quase nula” no caso vertente em que foi utilizado um número elevado de marcadores genéticos.
(…)
O acórdão recorrido conclui, portanto, que: «(…)se é certo que assiste razão ao apelante quando sustenta que a prova produzida, impõe que se conclua que o resultado de exclusão de paternidade dados pelos exames hematológicos pode ter na sua base um fenómeno raro de mutação genética ocorrida na transmissão do património genético de pai para filho, já não lhe assiste razão quando pretende que essa circunstância está na base da exclusão da paternidade do apelado em relação ao apelante, antes pelo contrário, a prova produzida, impõe que se conclua que dado o número de perfis genéticos analisados nos exames hematológicos realizados e o número de perfis genéticos em que ocorre incompatibilidade genética entre o apelante e o apelado, a possibilidade deste ser pai biológico daquele é praticamente nula».(sublinhado nosso)

Mesmo tendo em conta que o tribunal recorrido aceitou, com base nos pareceres proferidos pelos peritos em audiência de julgamento, que os exames científicos de exclusão da paternidade não têm valor absoluto, e que existe uma possibilidade, ainda que quase nula, de o pretenso progenitor excluído ser afinal o pai, em virtude da ocorrência de mutações genéticas, tal não impõe ao tribunal recorrido que estabeleça a paternidade em relação ao réu com base numa probabilidade que se dirá ser, a esta luz, muito remota. E este Supremo Tribunal, ainda que aceitasse a tese do recorrente, não tem poderes para alterar o valor probatório atribuído pelo tribunal recorrido a estas declarações, pois estamos no domínio de prova sujeita a livre apreciação, não podendo o Supremo Tribunal substituir-se ao tribunal recorrido, nem para valorar de outra forma este meio de prova, nem para ordenar a repetição de novos exames, que substituíssem aqueles que já foram realizados, uma vez que foi feita nos autos uma segunda perícia, em relação à qual não se provou qualquer irregularidade, vício ou quebra de imparcialidade.
Tratando-se de prova pericial, é costume distinguir entre o juízo do tribunal sobre os factos que serviram de base à perícia e o juízo do tribunal sobre a validade científica das conclusões apresentadas. Neste último ponto, será, contudo, difícil, como afirma Guilherme de Oliveira (Estabelecimento da filiação, Petrony, 2019, p. 50), que o tribunal se afaste das conclusões científicas dos peritos, desde logo porque os juízes não têm uma competência técnica equivalente.
(…)
Contudo, entende-se ser normal, como também afirma Guilherme de Oliveira (Estabelecimento da Filiação, ob.cit., p. 50), que, «Nos casos típicos, em que nada se pode assinalar de anormal, é difícil que o tribunal se afaste das conclusões dos peritos, tal é a credibilidade dos laboratórios nacionais e o potencial técnico dos procedimentos, quer para a exclusão de um vínculo quer para a sua afirmação».
É certo que os peritos em audiência de julgamento reconheceram que o resultado de um exame de exclusão da paternidade não é, em abstrato, absoluto, mas esclareceram que, no caso concreto, a hipótese de o réu ser de facto o progenitor biológico da criança, era, na expressão de um dos peritos, “quase nula”. Neste quadro, o tribunal recorrido, valorando, no exercício do princípio da livre apreciação da prova, o “risco de erro” do exame, entendeu, que ele era de tal modo baixo, que decidiu não reconhecer a paternidade do investigado em relação ao investigante.
Entendeu, assim, o tribunal recorrido, de acordo com a premissa jurisprudencial de que a paternidade só deve declarar-se quando é altamente provável, que, em face do resultado do exame, a relação paterno-filial invocada pelo autor não reunia condições para merecer um juízo de probabilidade elevado. É esta a prática judicial nesta matéria, em que, não sendo possível apurar uma verdade, negativa ou positiva, 100% garantida, prevalecem juízos de probabilidade. Nas palavras de Guilherme de Oliveira (ob. cit., p. 227), «É preciso não exceder a margem de erro admissível; só deve declarar-se a paternidade do réu quando ela é altamente provável (…)».
Também a jurisprudência tem afirmado que o exame hematológico constitui neste tipo de processos autêntica «prova rainha», com virtualidade de excluir a possibilidade de o réu ser o pai do menor, ou, pelo contrário, praticamente garantir que o seria (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-06-2004. Proc. n.º 04A1974). Em relação aos exames científicos de paternidade, como se afirma no Acórdão citado, «As provas não têm que criar no espírito do julgador uma certeza para além de todas as dúvidas, mas tão só a probabilidade bastante da existência do facto, tendo em consideração as regras de experiência comum».
Tendo o Tribunal da Relação decidido com base em juízos de probabilidade, decorrentes das afirmações dos peritos ouvidos em audiência de julgamento, que afirmaram que a margem de erro do exame era quase nula, não existe qualquer obscuridade, ininteligibilidade ou ambiguidade no acórdão recorrido. As decisões judiciais de paternidade baseiam-se sempre em juízos de probabilidade e é compreensível para o cidadão comum que não esteja ao alcance do tribunal estabelecer a paternidade num caso em que o exame exclui a paternidade do réu. A margem de erro do exame, segundo os peritos, é quase nula, e seria sempre, de qualquer forma, uma margem infinitamente menor do que a possibilidade de erro do julgador em face da prova testemunhal.
Sendo assim, apesar de provada a coabitação entre a mãe do autor e o réu, durante o período legal de conceção, e de funcionar uma presunção de paternidade, ao abrigo do artigo 1871.º, n.º 1, alínea c), 2.ª parte e alínea e), decidiu o tribunal recorrido – de forma inteligível, clara e sem ambiguidades – que o resultado do exame pericial ilide essa presunção, devido à existência de dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado, nos termos do artigo 1871.º, n.º 2, do Código Civil».

Do exposto, resulta que não se verifica, nos termos exigidos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, qualquer contradição lógica entre os fundamentos e a decisão de não reconhecimento a paternidade, nem qualquer obscuridade ou ambiguidade na fundamentação, pelo que não padece o acórdão reclamado desta nulidade invocada pelo reclamante.

3. Relativamente à pretensa questão de constitucionalidade formulada pelo reclamante, importa dizer que a mesma não foi suscitada no momento processualmente adequado, na medida em que tendo sido esta interpretação aplicada também no acórdão recorrido, o reclamante devia tê-la colocado logo nas alegações de revista, o que não fez, não sendo a arguição de nulidades o momento adequado para tal.
Por outro lado, o teor da alegada questão de constitucionalidade não está concebido em termos que vinculem o juiz a decidi-la, por falta de normatividade, pois remete para as idiossincrasias do caso concreto e para especificidades da ponderação da prova, não se revestindo da natureza geral e abstrata exigida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, nem sendo possível destacar dela um sentido normativo suscetível de ser aplicado a um número indeterminado de casos.
Vejamos:
A pretensa questão de constitucionalidade reporta-se à interpretação do artigo 1871.º, n.º 1, al. e), e n.º 2, do Código Civil, no sentido de que a presunção de paternidade se deve considerar ilidida quando, não obstante se não provar que a mãe manteve relações de sexo no período legal de conceção com mais nenhum homem, seja escassa a possibilidade de ser esse o pai da criança, em virtude do resultado de exames hematológicos que lhe atribuam uma paternidade remota».

Esta alegada interpretação normativa, não reúne as caraterísticas de generalidade e abstração, pois a sua aplicação depende de juízos casuísticos de ponderação da prova, que não são sindicáveis em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, na medida em que o nosso sistema não admite o recurso de amparo, nem a impugnação direta de decisões judiciais por violação de direitos fundamentais, nem o recurso de constitucionalidade é um contencioso de decisões.
Ainda que assim não se entendesse, o sentido normativo agora impugnado nunca violaria direitos fundamentais e princípios constitucionais, como o direito à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da CRP) e a proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP), por ser manifestamente inexigível, de um ponto de vista constitucional, ao julgador, quando interpreta e aplica a lei, que, sendo o resultado do exame hematológico a exclusão da paternidade, ainda assim estabeleça a paternidade por prova testemunhal acerca da ausência de coabitação concorrente durante o período legal de conceção. Desde logo porque é menos falível, em termos de probabilidade, uma prova científica do que a prova testemunhal acerca de um facto negativo, a qual tem vindo a ser abandonada pela jurisprudência pela circunstância de os exames disponíveis terem a virtualidade de fazer a prova positiva da paternidade com uma probabilidade próxima dos 100%. Os exames científicos que incidem sobre o facto biológico da procriação assumem um especial relevo e importância nas ações relativas à filiação, pois constituem o único mecanismo adequado a permitir a prova direta da paternidade. São, assim, desde a reforma de 1977, nos termos da lei, a prova rainha nas ações de investigação (artigo 1801.º do CC), quer para estabelecer a paternidade, quer para a excluir. Antes de ser possível utilizar exames científicos na investigação da paternidade, o estabelecimento deste vínculo de filiação resultava de uma conclusão judicial deduzida de determinados factos: a prova de relações sexuais entre a mãe e o pretenso pai durante o período legal de conceção e a demonstração que a mãe não tinha mantido relações de sexo com outro homem durante esse período, facto negativo que representava para o autor uma prova diabólica.
Contudo, conforme se exarou no acórdão reclamado:
«A prova da exclusividade das relações sexuais tinha um valor mais forte do que qualquer presunção, pois permitia demonstrar a causalidade da coabitação, sem suporte de exames de sangue. Contudo, esta exclusividade não era, em si mesmo, o verdadeiro facto constitutivo de que emergia a relação jurídica de filiação paterna, mas mero facto instrumental ou indiciário da procriação biológica. Estes factos indiciários da procriação biológica, como afirma Lopes do Rego («O ónus da prova nas acções de investigação da paternidade: prova directa e indirecta do vínculo de filiação», in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume I, Coimbra Editora, 2004, p. 783) eram em muitos casos «(…) demonstrados no processo através do uso, pelas partes, de factos instrumentais ou indiciários de segundo grau, tendentes nomeadamente à indireta demonstração da “exclusividade das relações”: o “bom comportamento” da mãe, o facto de esta ser considerada, no seu meio social, “mulher séria, honesta e bem comportada” – situando-se, aliás, tais “factos” no limite dos conceitos “valorativos” ou puras “conclusões”.» Contudo, estas considerações valorativas ou indagações dentro destes processos sempre foram preconceituosas e discriminatórias para as mulheres, implicando devassas da vida privada e alegações falsas de coabitações concorrentes, dependendo a declaração ou não da paternidade do réu apenas da convicção pessoal dos juízes em relação à prova testemunhal. Não está excluído, como entende Guilherme de Oliveira (Estabelecimento da Filiação, ob. cit., p. 214), que os tribunais continuem a seguir este método quando, por qualquer razão, não disponham de exames científicos. Mas, nestes autos foram feitos dois exames periciais (para além de um outro feito no processo de averiguação oficiosa, que também excluiu a paternidade), tendo as instâncias confiado no resultado dos exames e concluído que a coabitação entre a mãe do autor e o pretenso pai não foi causal em relação à procriação. Mesmo que se trate de um erro de julgamento, não tem este Supremo poderes para o corrigir, ordenando novo julgamento ou repetição da prova. Por outro lado, a verificação ou não do requisito da exclusividade das relações sexuais sempre seria matéria de exclusiva competência das instâncias, que não poderia ser reapreciada por este Supremo, nem alterada, em sede de outro recurso que o autor viesse a interpor contra outra decisão do Tribunal da Relação, que, conhecendo da impugnação da matéria de facto, considerasse a ação improcedente».

Por outro lado, sendo o conceito de dúvidas sérias acerca da paternidade do investigado um conceito indeterminado, de dimensão casuística, não se divisa qualquer inconstitucionalidade na fixação do seu sentido, de molde a aceitar que o resultado negativo de exames ilide a presunção fixada na alínea e) do n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil.
Como se afirma no acórdão reclamado:
«As “dúvidas sérias” resultam de circunstâncias que enfraquecem uma grande probabilidade de o réu ser o pai. Neste sentido, o estabelecimento judicial da paternidade através da presunção é compatível com uma dúvida acerca da paternidade, mas não é compatível com uma “dúvida séria”, que eleva o risco de erro judiciário para além do razoável. Ora, no caso vertente, os dois exames feitos no IML, nestes autos, deram um resultado negativo, ou seja, excluíram a paternidade. A valoração do resultado destes exames pelas instâncias é matéria de livre apreciação da prova não sindicável por este Supremo Tribunal, como vimos, e considerar que um exame, que exclui a paternidade, coloca dúvidas sérias sobre essa paternidade, não viola qualquer princípio ou norma de direito substantivo, ou qualquer critério probatório que competisse a este Supremo sindicar».

Pelo que, em conclusão, improcede esta pretensa questão de constitucionalidade suscitada na presente reclamação.


III – Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação.

Custas pelo reclamante.


Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, declaro que votam em conformidade os Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).

Supremo Tribunal de Justiça, 14 de julho de 2020


Maria Clara Sottomayor (Relatora)
Alexandre Reis
Pedro de Lima Gonçalves