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INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
DECISÃO
RECURSO
Sumário
I - Apesar de estar em causa um valor patrimonial inferior a 2500 euros é admissível o recurso interposto pelo progenitor, num incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, por estar em causa o exercício de uma dimensão do poder paternal. II - A prova testemunhal só é relevante se a testemunha tiver conhecimento direto dos factos e não se limitar a reproduzir uma informação da parte. III - A junção de um talão multibanco, sem mais meios de prova e/ou informação, não pode comprovar a titularidade da conta para onde essa quantia foi transferida. IV - Em caso de incumprimento comprovado pode o tribunal determinar a aplicação do art. 48º, do RGPTC.
Texto Integral
Proc. nº 3082/05.5TBPVZ-G.P1
Sumário:
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1. Relatório
B… veio propor um Incidente de Incumprimento de Regulação das Responsabilidades Parentais contra C…, nos termos do qual foi proferida sentença que julgou procedente por provado o presente incidente e, em consequência condenou-o:
a. reconhecer a existência de incumprimento por parte do requerido, C… quanto à entrega da quantia global de € 2.281,20 € (dois mil duzentos e oitenta e um euros e vinte cêntimos), relativamente ao menor, D…;
b. em consequência, ordenar à entidade processadora do vencimento do requerido que passe a entregar directamente à progenitora, e para o mesmo IBAN e a partir de 10 de Janeiro de 2020 da quantia devida a título de alimentos vincendos acrescida da quantia de € 30,00 (trinta euros) para pagamento da dívida mencionada em a)
Inconformado com essa decisão veio o requerido interpor recurso, o qual foi admitido como de apelação, com efeito devolutivo.
Foi suscitada pelo MP a questão da inadmissibilidade do recurso, tendo para o efeito sido notificado o recorrente que se pronunciou conforme requerimento que antecede.
II. Foram formuladas as seguintes conclusões
I). Vem o presente recurso interposto da decisão proferida, com a qual o recorrente, com o devido respeito, jamais poderá concordar, pois foi-lhe totalmente negada a justiça que devia, e deve ser, aplicada ao caso em apreço.
II). Na apreciação da prova, o Tribunal é livre de formar a sua convicção desde que essa apreciação não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos.
III) Portanto este Tribunal adquem terá que verificar a prova porque o Tribunal aquo não valorou e apreciou corretamente a mesma, conforme infra se demonstrará e com a qual o Requerido e Recorrente C… não se pode, de forma alguma, conformar e impugna para os devidos e legais efeitos.
IV) Com efeito houve erro notório na apreciação de toda a prova carreada para o processo, seja na prova testemunhal, seja na prova documental.
V) Jamais deveriam ter sido dados como Provados os factos constantes dos pontos 7,8,9,10e11,supradescritosequeaquisedãoporintegralmentereproduzidosparaosdevidos efeitoslegais.
VI) Jamais deveria ter sido dada como Não Provada a factualidade constante da alegações do Requerido (“Nãoseprovaramquaisqueroutrosfactoscominteresseparaadecisãodacausa, nomeadamentequalquerdafactualidadeconstantedasalegaçõesdorequerido”).
VII) Portanto este Tribunal ad quem terá que verificar a prova porque o Tribunal a quo não valorou e apreciou corretamente a mesma.
VIII) Existiu, por parte da M.ma Juíza do Tribunal aquo,erronotórionaapreciaçãoda provadocumentalcarreadaparaoprocesso, porquanto as transferências bancárias feitas pelo Recorrente/Requerido, são documentos válidos para comprovar o efetivo pagamento quer das prestações de alimentos, quer das despesas do filho D…, sendo que a tal reporta-se o depoimento da testemunha E…, mãe do recorrente que nos anos de 2015 a 2017 procedeu aos referidos pagamento como resulta da transcrição da gravação do seu depoimento acima feito;
IX) Com o presente recurso pretende-se aferir qual o modo de pagamento válido, atento o vertido na sentença do Tribunal Recorrido de que “dosdocumentosjuntospeloprogenitornão sedescortinaqueosdocumentosjuntossereportemàsquantiaspeticionadasequeas transferênciasaídocumentadassereportemàspeticionadasnospresentesautos.
X) O douto Tribunalaquo não teve em conta, não analisou nem valorou corretamente quer os comprovativos das transferências bancária por multibanco da conta bancária do recorrente/requerido para a conta bancária da recorrida/requerente, juntas aos autos em 06/03/2019, com o articulado Alegações – Refª: 31765658, como docs. 1, 2, 3 e 4, quer os extratos da conta bancária do requerente/requerido juntos aos autos em 06/03/2019, com o articulado Alegações – Refª: 31765658, como docs. 5 a 17 (inclusivé), quer ainda os comprovativos das transferências bancárias da conta do recorrente/requerido C… para a conta bancária da recorrida/requerente B… por débito direto/multibanco juntos aos autos em 09/05/2019, com o Requerimento com a Refª: 32371714 referente aos pagamentos das prestações de alimentos do menor D… (vide gratiae docs. 1 a 4 e doc. 5).
XI) Por seu turno, a recorrida/requerente nada juntou que provasse o contrário ou alegou que na conta bancária, onde sempre recebeu e continua a receber a prestação de alimentos do seu filho tivesse efetivamente recebido valores diferentes ou, que simplesmente, não os tivesse recebido.
XII) Pelo que, os pagamentos feitos pelo recorrente para a conta bancária da recorrida são a título de prestação de alimentos, uma vez que, desde pelo menos 17/11/2005, que não existe qualquer tipo de obrigação ou compromisso entre recorrente e recorrida a não ser a decorrente do pagamento por aquele a esta da prestação de alimentos a favor do filho de ambos D….
XIII) Também não foi alegado pela recorrida/requerente a existência de qualquer outra dívida e/ou compromisso entre ambos, porque não existe, nem existiu.
XIV) Pelo que à data de 19/02/2019, o recorrente/requerido, aceitando os valores de atualização determinados na sentença recorrida é apenas devedor a título de prestação de alimentos do valor de€616,71 e não de €1.545,94.
Resumindo, os valores que o recorrente/requerido é devedor são: Ano de 2014: considerando a sentença de 20/03/2014 e os pagamentos feitos, o valor mensal de 149,81 € seria a pagar nos meses de Outubro de 2014 a Dezembro de 2014, pelo que tendo pago nesses meses o montante de € 125,00 apenas lhe falta pagar nesse ano € 74,43 (€449,43 (149,81x3) – € 375,00 (125,00 x 3) Ano de 2015: Considerando o valor a pagar no montante anual de € 1797,72 (€ 149,81 x 12) e o valor efetivamente pago de € 1.500,00 (€ 125,00 por mês) o montante em falta é de 297,72 (1.797,72 – 1.500,00); Ano de 2016: Considerando o valor a pagar no montante anual de € 1.800,06 (€ 150,05 x 12) e o valor efetivamente pago de € 1.575,00 (€ 125,00 x 9 meses + € 150,00 x 3) o montante em falta é de 225,06 (1.797,72 – 1.500,00); Ano de 2017: Considerando o valor a pagar no montante anual de € 1.810,32 (€ 150,86 x 12) e o valor efetivamente pago de €1. 820,16 € (€ 150,00x12), a quantia em falta é de € 10,82; Ano de 2018: Considerando o valor a pagar no montante anual de € 1.830,60 (€ 152,55 x 12) e o valor efetivamente pago de €1. 820,16 (€ 151,68x12), a quantia em falta é de € 10,44; Ano de 2019: Considerando o valor a pagar no montante anual de € 308,60 (€ 154,30 x 2) e o valor efetivamente pago de € 306,84 (€ 153,42x2), a quantia em falta é de € 1,76.
XV) No que concerne às despesas de saúde e de educação, a A M.ma Juíza do Tribunal aquo também considerou tudo quanto foi peticionado pela recorrida, não tendo aceite como válido o pagamento, por transferência bancária feito pelo Recorrente/requerido C… nos autos;
XVI) Relativamente às despesas de farmácia a que aludem os itens a., b., c. do ponto a) do artigo 10º da petição inicial no montante global de € 36,44 não vêm acompanhadas do devido receituário médico, tendo sido impugnadas, o mesmo sucedendo com a despesa do F… a que alude o item b), do artigo 10º no valor de € 153,00 VII) Por sua vez, em relação à despesa no Hospital G… a que alude o item c. do aludido ponto c) e a que respeita o doc.7 junto com o requerimento inicial, não se reporta ao ano de 2018, mas sim ao ano de 2017, tendo o Requerido tomado conhecimento que se trata de consulta de psicologia e emissão de Relatório do Processo Clínico e solicitado o teor e conteúdo do Relatório por carta registada com A.R. de 30/11/2017 e enviada a 04/12/2017, que foi devolvida por não ter sido levantada pela progenitora, tendo o Recorrente insistido e enviado outra com o mesmo teor e conteúdo, por correio registado simples datada e enviada em 22/12/2017, juntas aos autos com a alegações como Docs. 29 e 30, solicitou o mesmo nos presentes autos e não foi atendido.
XVIII) Também em relação ao orçamento e despesas na H… a que aludem os itens a., b., c. e d. do ponto d) do artº 10º do Req. Inicial e a que respeitam os docs. 9, 10, 11 e 12, foram também impugnados pelo recorrente /requerido e dado conhecimento disso à Recorrida através carta enviada e datada de 30/01/2018 e junta como Doc. 31, de onde também resulta que tendo aquela despesa sido feita ao abrigo da Convenção SAD-PSP, deveria a Requerente juntar o valor da comparticipação daquele subsistema de saúde, o que também não foi feito nem atendido pelo Tribunal recorrido.
XIX) Não são certas, nem liquidas as despesas de saúde alegadas pela recorrida/ requerente, pelo que jamais o Tribunal recorrido deveria tê-las considerado como certas e líquidas.
XX) As despesas de Educação a que aludem os itens a), b), c) e d) do ponto II) do artigo 10º e a que respeitam os docs. 13, 14, 15 e 16 ao contrário do que consta da sentença do Tribunal a quo, não teve o recorrente/requerido anteriormente ao presente processo conhecimento das mesmas, nem nenhuma prova foi feita pela recorrida/requerente do seu envio.
XXI) Em relação às despesas de explicação do D… e ao solicitado pagamento de € 70,00 não juntou a Requerente/recorrida qualquer comprovativo de pagamento e a M.ma Juíza, erroneamente, considerou existir e condenou o Requerido a pagar.
XXII) Assim, a título de despesas de educação reconhece o recorrente ser devedor de € 177,33.
XXIII) A Douta Sentença do Tribunal recorrido, por não ter sido peticionado, jamais deveria ter decidido, como o fêz de “ordenaràentidadeprocessadoradovencimentodorequerido quepasseaentregardirectamenteàprogenitora,eparaomesmoIBANeapartirde10de Janeirode2020daquantiadevidaatítulodealimentosvincendosacrescidadaquantiade€ 30,00(trintaeuros)parapagamentodadadívidamencionadaema)”.
XXIV) Na verdade, o recorrente, mesmo reconhecendo haver divergências quanto aos critérios que do aumento do valor anual da prestação de alimentos, nunca deixou de pagar qualquer mensalidade a esse título. De facto, a referida decisão judicial penaliza-o duplamente, pois passou a ser visto aos olhos da sua entidade patronal como pessoa incumpridora e irresponsável, sendo alvo de desconfiança e comentários, o que compromete a sua atual relação laboral.
XXV) Violou, a douta sentença ora em crise, por erro de integração e interpretação, os artigos 342º, nº 1 e 2 e 362º, todos do Código Civil, bem como o artigo 48º, nº 1 da Lei n.º 141/2015, de 08/09 (RGPTC).
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Foi apresentada resposta pelo MP que concluiu nos seguintes termos:
1- O Recurso ora interposto da sentença proferida nos autos é inadmissível por força do disposto no artigo 629.º, n.º1, do C.P.C.
2- A douta sentença recorrida fez, no entendimento do Ministério Público, uma correcta avaliação e decisão da matéria de facto, à qual aplicou, numa subsunção jurídica irrepreensível, o adequado direito.
3- - Analisada com toda a atenção a alegação de recurso apresentada pelo recorrente, nenhum argumento relevante adianta no sentido de infirmar a profunda ponderação e inquestionável acerto da cuidadosa sentença que questiona.
4- Nos termos do artigo 342.º, n.º2, do C.C. é ao requerido que incumbia fazer prova de eventuais pagamentos realizados quanto aos montantes que foram reclamados e que se considerava não estarem pagos, o que o mesmo, salvo o devido respeito por opinião contrária não logrou realizar.
5- Tendo sido julgado provado o incumprimento nada mais restava ao Tribunal que fazer uso dos mecanismos do artigo 48.º do RGPTC para garantir o pagamento coercivo dos montantes em divida.
Deste modo, face a tudo quanto se deixou exposto, entendemos que deverão improceder as alegações apresentadas, devendo a douta decisão proferida nos autos ser mantida, assim realizando Vªs. Exª.s a costumada justiça.
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São as seguintes as questões a decidir:
1. Em primeiro lugar, a questão prévia, da admissibilidade do recurso.
2. Depois, caso seja necessário, determinar se os factos provados devem ou não ser alterados.
3. Em seguida, se ocorrer essa alteração, apurar se o montante em dívida é o pretendido pelo requerente.
4. Por fim, apreciar se podia ou não o tribunal notificar a entidade patronal do requerido.
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II – Questão prévia: da admissão do recurso.
Estamos perante um incidente de incumprimento das responsabilidades, na qual está em causa apenas o valor da prestação de alimentos cujo valor em litígio é inferior a metade da alçada do tribunal de comarca.
O MP alega que o recurso não deve, por isso ser admitido citando para o efeito uma decisão do TRL.
Decidindo
Com efeito o Ac do TRL de 10.10.2019[1], citado, defendeu que: “Em incidente de incumprimento da obrigação de alimentos não está em causa direito fundamental com proteção reforçada nos termos dos artigos 16.º a 18.º da Constituição. Em incidente de incumprimento da obrigação de alimentos, a admissibilidade do recurso da decisão que fixe as quantias em que o incumprimento se exprime está sujeita à regra da sucumbência”.
Todavia, no caso presente essa pensão alimentar deriva do incumprimento de responsabilidades referentes a um menor (nasceu em 2004), pelo que estamos, em rigor perante uma dimensão de um interesse não patrimonial.
Depois, e com maior importância, caso se limitasse o recurso à quantia patrimonial que no caso se visa apreciar (inferior à alçada deste tribunal), teríamos de defender uma posição diferente caso o recorrente fosse o menor e não o progenitor. Com efeito, essa mesma quantia material teria nesse caso de ser admitida em sede de recurso, pois, poderia por em causa o direito de vida condigna do menor e afectar assim a sua sobrevivência e crescimento. Ora, o direito de recurso não pode variar em função da qualidade subjectiva do recorrente no mesmo processo. Razão pela qual julgamos mais prudente efectuar uma interpretação global unitária no sentido da posição tradicional, segundo a qual, a recorribilidade é aferida pelo interesse processual em litígio que, in caso, assume a natureza de direito não patrimonial.
Por último, sempre se dirá sendo o direito de recurso uma dimensão do direito constitucional de acesso aos tribunais (art, 20º, da CRP), entre duas interpretações plausíveis este tribunal sempre optaria por aquela que permite de forma mais ampla o exercício desse direito. Na verdade, e como tem salientado o TEDH viola o art, 6º da convenção qualquer decisão ou prática que:
a) limite intoleravelmente [Ac TC 337/2000],
b) dificulte excessivamente [Ac TC 320/2002],
c) e imponha entraves burocráticos [Ac TC 80/2001] ou restrinja desproporcionalmente o direito ao recurso.
Admite-se, por isso o recurso interposto.
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III - Da impugnação da matéria de facto
Pretende o apelante a alteração da matéria de facto com base em dois meios de prova, por um lado os documentos que menciona e por outro o depoimento da testemunha sua sogra.
Saliente-se que nos termos do artigo 396.º do Código Civil a prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal.
E, dentro da tipologia de provas admissíveis a prova testemunhal é a mais frágil, por um triplo perigo. Em primeiro lugar, pelos erros involuntários devidos aos mecanismos de memória, depois, pelo perigo de infidelidade da percepção e da memória da testemunha voluntária, e por fim porque existe sempre o risco de parcialidade da testemunha que pode ter um interesse directo ou indirecto na causa[2].
Por causa disso, fazendo nossas as palavras do o Ac da RP de 21.3.2019 nº 342/10.7T6AVR-E.P1 (Judite Pires) afirma “deve o julgador colocar especial cuidado na avaliação e ponderação dos testemunhos prestados em audiência, valorando-os com um prudente senso crítico, pesando não apenas o seu sentido objectivo, mas ainda a forma como se manifesta”.
Ora, quanto ao depoimento testemunhal teremos de notar que a testemunha D. I… não pode comprovar qualquer realidade porque no seu depoimento revela não ter conhecimento directo de quaisquer factos, limitando-se a dizer que “sei que foi sempre paga a prestação do outro filho”. Ou seja, essa testemunha afirma uma realidade sem que saiba como teve conhecimento desse facto, se teve conhecimento porque lhe disseram (indirecto) ou por percepção directa (que sempre seria estranha, pois, é o apelante a dizer que os pagamentos foram efectuados por transferência). Ou seja, para ser credivel seria necessário que essa testemunha tivesse durante anos acompanhado o seu genro mensalmente ao multibanco para ver o processamento da transferência.
Depois, a mãe do apelante afirma também “que o seu filho sempre pagou a pensão”. Curiosamente é este a desmentir a sua mãe no seu articulado, pois, admite que pelo menos uma parte desta prestação não foi por si liquidada.
Note-se, porém, que a mãe do apelante não pode sequer dizer as datas especificas em que este não esteve a trabalhar demonstrando saber aquilo que o seu filho lhe disse. Ou seja, estamos perante um mero conhecimento indirecto. É certo que esta afirma que ficou com o cartão multibanco deste para efectuar as transferências e que nunca deixou de efetuar essas transferências. Mas note-se que a testemunha não consegue situar no tempo essas transferências (parece entender-se que dizem respeito apenas a 2015 pois depois “foram transferências directas”). Se assim for então esta testemunha até servirá para comprovar o não pagamento em causa, pois, são quantias devidas quando ela já não tinha o cartão multibanco e, cujo cumprimento não sabe e não pode comprovar.
Por fim, o depoimento dessa testemunha indica, de forma relevante, que a parte possui um meio documental simples e objectivo (documentos bancários) que comprovariam essa realidade, mas não o juntou.
Daí resulta que toda a prova testemunhal produzida (cuja audição foi realizada oficiosamente por este tribunal), nunca poderia, de forma credível, comprovar os alegados pagamentos, tanto mais quanto estes se referem a pagamentos realizados ao longo de um longo período de tempo e não apenas no período em que uma testemunha afirma ter efectuado directamente transferências. Note-se que, na parte final, que essa testemunha confirma ter feito pagamentos até ao final de 2017 e que as faturas médicas peticionadas dizem respeito ao ano de 2018.
Depois, os documentos juntos pelo apelante não são suficientes para comprovar essa realidade.
Com efeito, na sua motivação a decisão afirma: “Na verdade, dos documentos juntos pelo progenitor não se descortina que os documentos juntos e reportem às quantias peticionadas e que as transferências aí documentadas se reportem às peticionadas nos presentes autos”. Note-se aliás que na audiência foi proferido despacho a convidar a nova junção dessas peças por não serem legíveis.
Compulsando esses documentos juntos com a resposta do apelante vemos que são 4 talões de multibanco que demonstram uma transferência para uma conta cuja titularidade é (em si mesma) desconhecida.
O primeiro desses talões é de 2014 e o último de 2016 no valor de 148,76, 150, 150, e 150 euros respectivamente.
Os documentos 5 a 16 são extractos da conta do apelante que comprovam transferência para a requerente (esta surge aí identificada pelo nome).
Ou seja, o tribunal com base nos meios de prova produzidos (talões multibanco) não pode considerar que a decisão do tribunal a quo tenha sido arbitrária ou irracional.
Com efeito, com base nesses documentos, que note-se poderiam ter sido exibidos à apelada no decurso do seu depoimento de parte[3] realizado na mesma data, mas não foram, não podemos concluir que sejam transferências para a conta da apelada.
Logo, não é seguro que a não comprovação dessa realidade seja irrazoável.
Teremos ainda de salientar a atividade de análise da valoração da prova nesta instância deve respeitar os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, controlando de forma autónoma o julgamento efetuado, por forma divergir do anterior quando com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnado.
Como salienta Ana Luísa Geraldes[4] «mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade». (Porque) «o tribunal de 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si».
Nestes termos, não existe qualquer erro na apreciação de toda a prova produzida em julgamento, nem este tribunal pode atingir diferente convicção, pelo que entendemos que o recurso do recorrente, nesta parte, não merece provimento.
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4. Matéria de facto provada
1. D…, nascido a 25 de Fevereiro de 2004, é filho do requerente, C…, e da requerida, B….
2. No âmbito dos autos principais de divórcio que correram termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim sob o nº 3082/05.5TBPVZ por decisão datada de 17 de Novembro de 2005, transitada em julgado, foi judicialmente homologado o seguinte acordo:
a. “O menor fica entregue à guarda e cuidados da mãe a quem incumbirá o exercício do poder paternal;
b. O pai pagará a título de pensão de alimentos a quantia mensal de € 125,00 até ao dia 8 de cada mês através de transferência bancária para a conta da mãe do menor com o NIB ……………….. da J…, sendo a pensão actualizada anualmente de acordo com o coeficiente de actualização para as rendas de imóveis para habitação que for publicada por portaria.
c. O pai contribuirá com o valor correspondente a 50% das despesas extraordinárias que o menor tiver relativamente a despesas de saúde e educação contra recibo/factura exibido pela mãe”.
3. Por decisão datada de 22 de Junho de 2010 proferida no apenso B que correu termos no supra mencionado Juízo foi reconhecido o incumprimento quanto ao pagamento de € 452,58 até Junho de 2010 inclusive por parte do requerido.
4. Por decisão datada 20 de Março 2014 transitada em julgado proferida no apenso D os progenitores acordaram em baixar a prestação de alimentos para o valor de € 125,00 euros mensais enquanto perdurasse a baixa médica do progenitor comprometendo-se o mesmo a comunicar à mãe tal cessação e passando a pagar a prestação anteriormente fixada.
5. Por decisão datada de 16 de Julho de 2010 foi considerado infundado o pedido de redução da prestação de alimentos requerido pelo progenitor.
6. Por decisão datada de 20 de Abril de 2017, transitado em julgado, foi homologado o acordo mediante o qual o progenitor poderia estar com o menor sempre que se deslocar a Portugal, comprometendo-se a avisar a progenitora com pelo menos uma semana de antecedência dos períodos que se deslocar a este país; o progenitor poderá contactar com o menor por qualquer meio adequado à sua idade (telefone, telemóvel, Skype) sem prejuízo dos horários escolares, de lazer e descanso do mesmo; quanto às festividades mantem o acordado acordando ainda que o menor se deslocará a Inglaterra no período de férias que pertencer ao progenitor e este não possa vir a Portugal, devendo avisar a progenitora até início de Junho;
7. Á data da propositura do presente incidente encontram-se em dívida as actualizações respeitantes às pensões de alimentos, no montante global de 1.545,94 € (mil quinhentos e quarenta e cinco euros e noventa e quatro cêntimos).
8. A progenitora, ora Requerente, realizou as seguintes despesas de saúde:
a. fatura …. de 19/02/2018 da K…, no valor de 17,85€;
b. fatura …. de 29/03/2018 da L…, no valor de 5,25 €;
c. fatura …… da M…, no valor de 13,34 €;
b) F…: fatura n.º ……. de 12/04/2018 no valor de 153,00 €
c) Hospital G…:
a. Fatura ……, de 28/03/2018 no valor de 5,31 €;
b. Fatura ……, de 05/04/2018 no valor de 4,59 €;
c. Fatura ……, de 17/04/2018 no valor de 80,00 €;
d) H…: o menor D… tem necessidade de efetuar um tratamento ortodôntico, mediante a aplicação de aparelho fico inferior e superior, durante um período de 24 meses, o que implicará o pagamento da quantia de 2.500,00 €;
a. Fatura …., de 11/01/2018 no valor de 150,00 €;
b. b. Fatura …., de 07/09/2018 no valor de 75,00 €;
c. c. Fatura …., de 17/10/2018 no valor de 11,52 €;
d. d. Fatura …., de 17/10/2018 no valor de 600,00 €.
e. 9. A progenitora, ora Requerente, realizou as seguintes despesas de saúde:
f. a) Fatura ….., de 03/09/2018, da N…, no valor de 235,12€;
g. b) Fatura …., de 05/09/2018, da O…, no valor de 29,36 €;
h. c) Fatura …., de 13/09/2018, da O…, no valor de 59,07 €;
i. d) Fatura ….., de 28/09/2018, da O…, no valor de 31,11 €.
10. A Requerente deu conhecimento ao Requerido de todas as despesas acima indicadas, solicitando o respectivo pagamento, o que este se recusa a fazer.
11. Desde Janeiro do ano de 2018, que o Requerido se encontra a trabalhar em Portugal, na firma “P…, Lda”, com sede na Rua …, nº .., na Póvoa de Varzim, tendo auferido os seguintes vencimentos reportados aos seguintes meses: Fevereiro de 2018 - € 835,28; Março de 2018 - € 871,30; Abril de 2018 - € 854,62; Maio de 2018 - € 763,40; Junho de 2018 - € 830,94; Julho de 2018 - € 823,39; Agosto de 2018 - € 1.027,36; Setembro de 2018 - € 951,49; Outubro de 2018 - € 953,80; Novembro de 2018 - € 734,18; Dezembro de 2018 - € 1056,21; Fevereiro de 2019 - € 822,30; Março de 2019 - € 1.013,01; Abril de 2019 € 979,80; e Maio de 2019 € 816,66.”
Salvo o devido respeito não podemos concordar com o vertido nas conclusões do presente recurso.
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5. Discussão jurídica
A primeira questão suscitada (montante inferior da dúvida) encontra-se decidida com a fixação da matéria de facto, pois, o ónus da prova desse pagamento incumbe ao apelante nos termos do art. 342º, do CC e não foi efectuado.
Pelo que, não existem fundamentos para alterar a decisão proferida.
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Ad latere pretende ainda o apelante que seja anulada a decisão de notificação da sua entidade patronal a fim de ser obtido o pagamento coerctivo.
Esta questão reconduz-se a saber se, atendendo ao incumprimento efetivo de uma obrigação de alimentos a criança ou jovem, o tribunal pode usar imediatamente para o mecanismo previsto no artigo 48.º.
O Regime Geral do Processo Tutelar Cível (abreviadamente, RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro, regula o processo aplicável às providências tutelares cíveis e respetivos incidentes (cfr. artigo 1.º).
De harmonia com o disposto no artigo 3.º do RGPTC entre as providências tutelares cíveis conta-se a regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes.
No artigo 41.º desse diploma regula-se o incidente de “Incumprimento” do seguinte modo:
“1 - Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos”.
Por seu turno, o artigo 48.º dispõe que: “1 - Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte: a) Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública; b) Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário; c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários. 2 - As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las”.
Ora, in casu é evidente que o apelado não procedeu ao pagamento de quantias devidas a título de alimentos ao seu filho, pelo que se terá de aplicar o processo executivo especialíssimo do artigo 48.º do RGPTC.
Com efeito, a notificação da entidade patronal é uma mera consequência da constatação de que o apelante se encontra em inadimplemento da sua obrigação. [5]
Sendo que este não pode pretender decair no incidente declarativo sem ter as consequências executivas inerentes.
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6. Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 3.ª Secção Cível, em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, atento o seu integral decaimento.
Notifique e registe.
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Porto em 24 de Setembro 2020
Paulo Duarte Teixeira
Fernando Baptista
Amaral Ferreira
_____________ [1] No mesmo sentido, o s acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 23 de Janeiro de 2012 e de 24 de Setembro de 2015, proferidos, respectivamente, nos processos 2165/07.1TBPTM-K.E1 (RIBEIRO CARDOSO) e 1031/09.0TBPTM-B.E2 (RUI MACHADO E MOURA). [2] Cfr com mais desenvolvimentos Luís Pires de Sousa, Prova Testemunhal, 2016, 43 e segs. [3] Assim seriam uma confissão, devendo então ser reproduzidas na acta (art.° 463 do CCiv) e passando a valer como prova plena (art.° 358/1 do CCiv). [4] In «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609. [5] Cfr. por todos Ac da RL de 6.2.2020 nº 1642/19.6T8PDL.L1-2 (Castelo Branco).