Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
PERDÃO
PANDEMIA
Sumário
De acordo com os elementos racional e sistemático de interpretação (atendendo à intenção legislativa de evitar a expansão da Covid-19 no meio prisional), o perdão previsto no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n,º 9/2020, de 10 de abril, não se aplica apenas a quem, verificados os demais requisitos legais, já esteja em reclusão à data da sua entrada em vigor, mas também a quem, verificados os demais requisitos legais, vier a estar nessa situação durante a vigência dessa Lei.
Texto Integral
Processo n.º 150/14.6GBILH.P2
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO:
Inconformado com o despacho proferido em 16/04/2020 no qual se decidiu indeferir, por manifesta falta de fundamento legal, a sua pretensão de que fosse declarada extinta, por perdão, a pena em que o mesmo foi condenando no âmbito dos presentes autos, nos termos do artigo 3º, nº 1, da Lei nº 9/2020, de 10 de abril, dele veio o arguido/condenado arguido B… maio interpor recurso nos termos que constam destes autos (ref.ª 10069226), que se consideram aqui reproduzidos, tendo formulado, a final, as seguintes conclusões (transcrição):
A/ Tendo o espírito que presidiu à Lei 9/2020 de 10 de abril sido evitar a propagaçãodovírus“Covid-19”nomeioprisional,operdãonelaconsagrado aplica-se a condenados por sentença transitada em julgado à data da sua entrada em vigor, quer estejam ou não recluídos, sendo, como se sabe, de menos risco um recluso estar infetado do que um condenado que entre após a sua entrada em vigor (dada a dimensão da propagação mundial da doença a essa data) para a prisão;
B/ Caso fosse intenção do legislador restringir a sua aplicação, apenas, a reclusos (o que, como se disse, dada o objetivo que se pretende – erradicar a entrada e propagação da doença no meio prisional, jamais se alcançaria com a sua aplicação, apenas, a esses) a Lei tê-lo-ia previsto. Não o tendo feito, não se vê porque razão se possa o aplicador da lei afastar do regime legal consagrado para os indultos e perdões de penas estabelecido na Lei geral;
C/ De modo a evitar a entrada e propagação da doença no meio prisional, esta interpretação é a única possível, padecendo, pois, de inconstitucionalidade a sua aplicação, apenas, a condenados reclusos;
D/ Beneficia, pois, o recorrente condenado, mas não recluído, do regime excecional do perdão consagrado na Lei 9/2020 de 10 de abril, por a sua condenação não ultrapassar a pena de 2 anos e, igualmente, por à data da entrada em vigor daquela a decisão de condenação já estar transitada em julgado.
O recurso foi regularmente admitido (ref.ª 111176242).
O Ministério Público veio responder nos termos vertidos nos autos e aqui tidos como renovados (ref.ª 10127417), concluindo no sentido de que deveria julgar-se improcedente o recurso apresentado, mantendo a decisão recorrida.
O Ex.mo PGA elaborou o parecer que consta dos autos, aqui tido como reproduzido (refª 13731088), através do qual preconizou que, caso não seja sumariamente rejeitado por ser manifesta a sua improcedência, deverá o recurso ser julgado não provido, confirmando-se o despacho impugnado.
No cumprimento do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o recorrente veio responder nos moldes insertos nos autos e aqui considerados como renovados (refª. 297660), para anotar que reiterava as conclusões de recurso e que o recurso deveria merecer total provimento.
Após exame preliminar, colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir, nada obstando a tal.
II – FUNDAMENTAÇÃO:
a) a decisão recorrida:
O despacho recorrido é do teor seguinte (transcrição):
I– O arguido B… maio veio requerer que este Tribunal declare extinta, por perdão, a pena em que o mesmo foi condenando no âmbito dos presentes autos, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril.
O Ministério Público promoveu o indeferimento do requerido por inexistência de fundamento legal para o efeito.
*
II– Cumpre apreciar e decidir.
A Lei n.º 9/2020, de 10 de abril veio prever um regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID -19, prevendo o seu artigo 1.º, n.º 1, al. a) um perdão parcial de penas de prisão, que concretamente se mostra positivado no artigo 2.º da predita Lei.
Na verdade, se analisarmos o regime de exceção assinalado, sem necessidade de grande esforço hermenêutico, concluiremos que o regime de perdão das penas de prisão só tem cabimento relativamente aos condenados que se encontrem em situação de reclusão, o que, objetivamente, não é a situação do arguido nestes autos.
Cremos que só esta interpretação converge com o escopo da previsão legislativa que se centra em impedir a propagação – apressada, insidiosa e imprevisível – do vírus denominado de Coronavírus – COVID19, que originou já o decretamento pela OMS de pandemia por COVID19, nos estabelecimentos prisionais, estando-lhe subjacente evidentes razões de ordem sanitária e de saúde públicas.
Pelo que, não tendo o arguido dado início à pena de prisão em que foi condenando nestes autos não se encontra a coberto da previsão legislativa supra enunciada, deverá, nessa medida, ser indeferida a sua pretensão por falta de fundamento legal.
O que decidirei.
*
III– Pelo exposto, pormanifestafaltadefundamentolegal,indefiroapretensãodo arguido.
*
b) apreciação do mérito:
Antes de mais, convirá recordar que, conforme jurisprudência pacífica[1], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, devendo sublinhar-se também que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma individualizada questão a tratar, tal como sucede no caso vertente.
*
Neste contexto, e em face daquilo que se apreende das efetivas conclusões trazidas à discussão pelo recorrente importa saber apenas se, apesar de não estar recluído, deverá ser-lhe aplicado o regime excecional do perdão consagrado na Lei 9/2020 de 10 de abril, verificados que estão os demais pressupostos.
Vejamos, pois.
O recorrente discorda do decidido, pois que entende, em suma, que, sendo o espírito que presidiu à publicação da Lei nº 9/2020, de 10/04, o de evitar a propagação do vírus “Covid-19” no meio prisional, o perdão nela consagrado deverá aplicar-se a condenados por sentença transitada em julgado à data da sua entrada em vigor, quer estejam ou não recluídos, sendo, como se sabe, de menos risco um recluso estar infetado, do que um condenado que entre após a sua entrada em vigor (dada a dimensão da propagação mundial da doença a essa data) para a prisão, sublinhando ainda que, caso fosse intenção do legislador restringir a sua aplicação apenas a reclusos, o que comprometeria o objetivo acima referido e aqui pretendido, a lei tê-lo-ia previsto e, não o tendo feito, não via razão para que o aplicador da lei possa afastar do regime legal consagrado para os indultos e perdões de penas estabelecido na lei geral.
Na resposta, e a coberto de adequadas citações, o Ministério Público sublinhou, em síntese, que, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário previsto e punido pelo artigo 291º, nº 1, al. b) do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, por sentença transitada em julgado a 10-05-2018, mas até agora não se apresentou para cumprimento da pena que lhe foi aplicada, tendo sido citado editalmente para se apresentar em juízo, no prazo de 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz, anotando depois que o perdão de penas consagrado no citado diploma legal não se aplica a condenados não recluídos e, em consequência, o perdão de penas requerido pelo arguido não lhe é aplicável, sendo que o princípio da igualdade impõe que se dê tratamento igual ao que é igual e tratamento diferente ao que é diferente.
Por seu turno, o Ex.mo PGA emitiu parecer através do qual veio anotar, também em suma, que não pode dizer-se que a interpretação do normativo aqui em apreço no sentido da sua não aplicação a condenados por decisão transitada em julgado, não reclusos, violaria os princípios constitucionais da igualdade[2] e da proporcionalidade, sublinhando depois que o que se pretendeu com o referido regime excecional foi, claramente, a flexibilização da execução das penas para quem está em reclusão, face às circunstâncias excecionais no âmbito da emergência de saúde pública ocasionada pela pandemia COVID-19, afastando desse regime aqueles que, no futuro, possam vir a recolher à cadeia, mesmo que em cumprimento de pena de duração igual ou inferior a dois anos, transitada em julgado à data da entrada em vigor da lei, como sucede no caso concreto, pois que, face à gravidade da situação pandémica e à forte possibilidade de disseminação da doença nos estabelecimentos prisionais, sem condições de controlo adequado, não lhe parece que subsistam dúvidas razoáveis acerca da necessidade, adequação e razoabilidadeda mediada legislativa em causa, quando aplicada aos cidadãos em situação de reclusão, pelo que se lhe afigura ser de afastar, liminarmente, também, a violação do princípio constitucional da proporcionalidade, contexto em que sustentou que se lhe apresentava de todo inviável a pretensão do recorrente, sendo manifesta a sua improcedência, pelo que propunha até que o recurso seria de rejeitar liminarmente.
Em resposta, o recorrente veio discordar da rejeição proposta e, a par, para reiterar as conclusões formuladas no recurso por si interposto.
Apreciando.
Começaremos por anotar que a própria novidade e o contexto excecional em que surge a lei aqui em discussão, ora restrita à parte respeitante ao perdão de penas, afasta-nos, quanto a nós, da preconizada manifesta improcedência, sendo prova evidente disso, o esforço argumentativo vertido no supra aludido parecer, a que de certa forma aludia o recorrente na sua resposta ao parecer, sendo certo que em matéria de interpretação das leis, é consabido, o artigo 9º do Código Civil já “obrigou” a que sobre um tal assunto muito se dissertasse, mormente ao nível doutrinário[3].
Adiante.
Passando agora à discussão do mérito inserto na tese recursiva, convirá começar por recordar que existe já alguma jurisprudência que se debruçou sobre esta temática, podendo concluir-se que existem, de momento, duas teses.
Uma delas sustenta que o perdão de penas a que alude o artigo 2º da Lei nº 9/2020, de 10/04, e desde que verificados os demais requisitos, obviamente, só é concedido a reclusos condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, ficando arredados da sua aplicação os condenados que
não tenham ingressado fisicamente em estabelecimento prisional, ou seja, que não estivessem já em cumprimento da pena[4].
A outra, partindo embora da mesma ideia-base, admite, contudo, que tal perdão, verificados que sejam os demais requisitos substantivos legais, pode ser igualmente aplicado a condenados que, no decurso da vigência daquela lei, venham a estar na situação de reclusão[5].
O essencial da argumentação comum daquela primeira tese radica, em suma, no regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, que a lei nº 9/2020, de 10/04, veio estabelecer, na e Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, aprovada em Conselho de Ministros de 02 de abril de 2020, que não deixa margem para dúvidas sobre as preocupações que conduziram à aprovação daquele supra referida lei e no Parecer nº 10/2020 do Conselho Consultivo da PGR, de tudo isso se retirando a ilação de que «Se uma interpretação gramatical do conjunto normativo vertido na Lei n.º 9/2000, enquanto nos números 1, 2, 4 e 7, do artigo 2.º se reporta invariavelmente a “reclusos”, não nos deixa margem para dúvida de que pressuposto primeiro da aplicação da específica medida de graça em que se traduz o perdão parcial de penas de prisão, aplicadas a título principal ou resultantes da conversão da pena de multa e/ou do não cumprimento da pena de multa de substituição, é a condição de recluso à data da respetiva aplicação, também uma interpretação sistemática e teleológica do diploma aponta inequivocamente no mesmo sentido – vide a referência, sem distinção quanto às diferentes medidas previstas, à “libertação” (artigo 8.º), ao “regresso do condenado ao meio prisional” (artigo 6.º), a atribuição da competência para a aplicação do perdão aos tribunais de execução de penas (artigo 2.º, n.º 8), entidade a quem cabe acompanhar, fiscalizar a execução das penas privativas da liberdade ou decidir da sua modificação, substituição ou extinção (cf. artigo 138.º do CEPMPL)[6] ».
Doutra parte, a segunda daquelas mencionadas teses, concordante com o que dimana da referenciada exposição de motivos da Proposta de Lei 23/XIV, que deu origem à Lei nº 9/2020, donde resulta que a preocupação visível e imediata do legislador é a de conter a expansão da doença no meio prisional, veio salientar a efetiva natureza excecional jurídica daquela lei, como é regra neste tipo de legislação, e que que, como tal, deverá ser interpretada[7], embora anotando que no caso acresce o facto de a mesma ter na sua génese a situação também excecional e única de pandemia até então vivida não só a nível nacional mas mundial, contexto em que se concluía depois que “… face ao teor do n.º 1, do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril (…), tendo sempre subjacente a mens legis da referida exposição de motivos e essencialmente o nº 2 do artigo 9º do Código Civil (…), não se vislumbra em que termos esta norma possa suportar a integração da situação dos arguidos condenados por decisão transitada em julgado mas que não se encontrem na situação de reclusão”.
Porém, ali se acrescentou seguidamente que a “prorrogação da vigência da Lei nº 9/2020 (leia-se, decorrente da nova redação introduzida ao artigo 10º da lei nº 9/2020, de 10/04, pela lei nº 16/2020, de 29/05), tem com certeza uma justificação/intenção legislativa, à qual não será alheia o estado de permanência da pandemia. O que nos leva a uma interpretação atualista (pois a Proposta do Governo parecia inicialmente apontar em tomada de medidas com um determinado limite temporal mais curto, mais imediato e bem delimitado no tempo) no sentido de que a mesma não só se aplicou e produziu efeitos imediatos quanto aos reclusos no momento da sua entrada em vigor, como será igualmente de aplicar a qualquer condenado com decisão transitada em julgado que adquira o estatuto de recluso durante a sua vigência, ou porque se apresentou (o condenado) voluntariamente no EP para cumprimento da pena de prisão ou porque foi detido e conduzido ao EP em consequência do cumprimento dos mandados de detenção para execução da pena (desde que se verifiquem os necessários requisitos substantivos exigidos)”[8].
Ainda adentro desta mesma tese, e em reforço, argumenta-se que do exame literal do texto do nº 1 do artigo 2º da lei nº 9/2020, de 10/04, “…não resulta a solução dos problemas de interpretação, desde logo porque o elemento literal, ainda que claro quanto à palavra em si (recluso é aquele que está preso), não delimita no tempo tal realidade”, pelo que, e sublinhando-se que seria determinante recorrer aos demais elementos de interpretação mencionados no já artigo 9º do Código Civil, haveria que “…considerar a interpretação lógico-sistemática, assim como a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica, bem assim a história da génese do preceito, que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e, finalmente, a interpretação teleológica” adiantando-se depois que “No que concerne ao elemento histórico, há que ter em devida conta os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência e, aqui, não vemos como não pode deixar de se reiterar que uma lei que prevê a aplicação de perdão deve sempre ser vista como lei excecional e temporária, com tudo o que isso implica, como já vimos, nos seus apertados limites”, e que “Por sua vez, em termos de interpretação lógico-sistemática, merece especial ponderação a circunstância da lei ora em causa ter surgido inserida numa legislação abundante e diversificada que visou responder a uma situação de emergência, na tentativa de obstar à expansão de determinada doença nos estabelecimentos prisionais durante um determinado período, no âmbito de uma pandemia, cujo termo se afigura, ainda hoje, incerto”.
Mais se sublinhou que a referenciada proposta do Governo parecia apontar no sentido de serem tomadas medidas para um determinado momento, bem delimitado no tempo, ou seja, apenas para o imediato, mas que se constatava que a versão final da sobredita lei 9/2020 tinha ido mais além de tal proposta ao estipular no seu artigo 10º que o momento da cessação da sua vigência, uma vez que, «…em termos sistemáticos, este artigo inculca a ideia de que a lei não visou apenas ser dirigida para o imediato, a quem já era recluso, mas pretendeu contemplar situações de futuros reclusos, pois consagra que a vigência da “presente lei” só cessará quando acabar a situação excecional de “prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV2 e da doença COVID-19”», ideia que veio a ser reforçada através da lei nº 16/2020,
de 29/05, que ao alterar o artigo 10º daquela lei veio afirmar que a mesma se mantinha em vigor, tal como ainda sucede, assim se afastando da doutrina e jurisprudências há muito existentes em sede de medidas de graça, precisamente porque atendeu “…às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo que estamos a viver, sem paralelo com outros momentos em que foram publicadas leis de amnistia”[9].
Ora bem.
Efetuado este périplo pelos fundamentos que, no essencial, alicerçam aquelas duas teses, cremos que é a segunda delas que melhor se compagina com a cabal interpretação da lei aqui em apreço.
Na verdade, e como não podia deixar de ser, o ponto de partida desta discussão há de radicar na letra da lei, pois que, como é sabido, não poderá sustentar-se interpretação que não tenha um mínimo de assento na lei, ou, nas palavras de Ferrara, “A interpretação literal é o primeiro estádio da interpretação. Efetivamente, o texto da lei forma o substracto de que deve partir e em que deve repousar o intérprete. Uma vez que a lei está expressa em palavras, o intérprete há de começar por extrair o significado verbal que delas resulta, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais”[10].
Ora, prevê-se no nº 1 do artigo 2º da Lei nº 9/2020, de 10/04, que “São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos”, a que ora nos ocupa, ou o equivalente em sede de remanescente de penas superiores (cfr. nº 2), bem como nas situações previstas nos seus nºs. 3 a 5.
Por seu turno, e no que ora importa reter, estipula o nº 7 daquela lei que “O perdão a que se referem os nºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei …”, ou seja, até 10/04/2020 (cfr. artigo 11º).
Daqui resulta claro que do texto legal dimana, como pressupostos objetivos, o montante máximo da pena como limite, que o perdão é concedido a reclusos e que a respetiva condenação tenha transitado em julgado até 10/04/2020.
Em reforço, o artigo 8º da mesma lei ainda confere aos tribunais de execução de penas a aplicação do perdão.
Texto inultrapassável e que, numa primeira análise, dá a ideia de que o legislador quis que o perdão fosse aplicado apenas a quem, para além da verificação dos demais requisitos nela previstos, estivesse em cumprimento da respetiva pena, pois que, é consabido, recluso significa “encerrado, que vive em clausura, preso, encarcerado”[11].
Porém, e considerando a delicadeza e importância daquilo que se pretende prevenir com a publicação daquela lei, e que, de resto, gerou até muita discussão à sua volta, cremos que o texto legal não poderá constituir aqui o elemento decisivo de interpretação, impondo-se recorrer aos demais.
Assim, importa ponderar, desde logo, a interpretação lógica ou racional, «…que remonta ao espírito da disposição, inferindo-o dos fatores racionais que a inspiraram, da génese histórica que a prende a leis anteriores, da conexão que a enlaça às outras normas e de todo o sistema”. No seio desta, deve tentar apreender-se a “ratio juris” da norma em questão, o seu fundamento jurídico, ou seja, as relações da vida para cuja regulamentação a norma foi criada, sem esquecer, se for esse o caso, a “occasio legis”, e tendo presente que “a ratio legis é uma força vigente móvel que anima a disposição, acompanhando-a em toda a sua vida e desenvolvimento”, o que significa que a disposição “…pode ganhar com o tempo um sentido novo e aplicar-se a novos casos” – interpretação evolutiva. A par, e porque o sobredito elemento racional é falível, não deverão esquecer-se os elementos sistemático, já que “O direito objetivo … não é um aglomerado caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, em que cada um tem o seu posto próprio”, e histórico, “…pois que a origem histórica da norma, associada ao seu desenvolvimento e transformações, constitui um precioso auxílio para a sua plena inteligência»[12].
Analisando tais vetores interpretativos, convém reter que as fontes da disposição aqui em apreço remetem-nos, basicamente, para a supra referenciada exposição de motivos da Proposta de Lei 23/XIV, que deu origem à lei nº 9/2020, sendo inequívoca a preocupação do legislador em, por esta via excecional, conter a expansão da consabida doença no meio prisional.
No entanto, cremos que a conjugação da “ratio juris” da norma em questão, ou seja, e relembrando o que acima ficou dito, o seu fundamento jurídico ou as relações da vida para cuja regulamentação a norma foi criada, na sua inelutável interação com a própria “occasio legis”, isto é, o preocupante e excecional contexto que esteve na sua génese e que, é consabido, ainda se mantém e, até, mais agravado, e ainda com o elemento sistemático, na perspetiva da leitura integrada da lei em questão, o que nos remete para o tal período de vigência da lei, que ainda perdura, tudo joeirado, obviamente, afasta-nos da interpretação de que a mesma só se aplicaria a quem já estivesse em reclusão à data da sua entrada em vigor, pois que, enquanto estiver em vigor, ou seja, enquanto a situação que a gerou se mantiver, pois é essa a preocupação que a alicerçou, deverá ser ainda aplicada a quem, entretanto, e verificados os demais requisitos, ditos substanciais, vier a estar recluso[13].
E cremos também que esta ilação, decorrente de uma cabal interpretação da lei em questão, não colide com as consabidas restrições que imperam em matéria de interpretação de leis de cariz excecional, tal como a presente, pois que aqui não está em causa uma qualquer interpretação analógica, em colisão com a previsão contida no artigo 11º do Código Civil, nem sequer extensiva.
Aqui chegados resta concluir pela manutenção do indeferimento do requerido, não por falta de fundamento legal, mas por inverificação, à data, da condição de recluso por parte do requerente, sem prejuízo da sua ulterior aplicação do pretendido perdão, se verificados os demais requisitos, caso o mesmo venha a ser detido para cumprimento da pena de prisão aqui em apreço.
*
Naufraga, pois, o recurso, o que implicará que o recorrente deva suportar as custas inerentes a um tal decaimento, tendo-se como adequado fixar em quatro UC a respetiva taxa de justiça (cfr. artigos 153º e 514º, do Código de Processo Penal, e4º, nº 2, al. c), 8º, nº 9 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais).
* III – DISPOSITIVO:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes desta Relação acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B… e, por consequência, decidem manter o indeferimento do requerido, não por falta de fundamento legal, mas por inverificação, à data, da condição de recluso por parte do requerente, sem prejuízo da ulterior aplicação do pretendido perdão, se verificados os demais requisitos, caso o mesmo venha a ser detido para cumprimento da pena de prisão aqui em apreço, tudo com as legais consequências e nos moldes sobreditos.
Custas pelo recorrente, fixando-se em quatro UC a respetiva taxa de justiça.
Notifique.
*
d.s.[14].
Porto, dia 21 de outubro de 2020
Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio
______________________ [1] Vide, entre outros no mesmo e pacífico sentido, o Ac. do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”. [2] Quanto à dimensão do princípio da igualdade, estriba-se na declaração de voto de Maria Lúcia Amaral, atual Provedora de Justiça, ao Ac. do TC nº 413/2014, DR nº 121/2014, Série I de 26/6/2014, citada pelo Desembargador Ernesto Nacimento, em despacho de 15/5/2020, proferido no Proc. nº 620/19.0PIVNG.P1 - 4ª, desta Relação. [3] Sendo exemplo disso a obra do Professor da Universidade de Pisa Francesco Ferrara, intitulada “Interpretação e Aplicação das Leis”, traduzida pelo Professor Manuel de Andrade e inserida na obra deste último denominada “Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, 3ª Edição, Arménio Salvado-Editor, Sucessor, Coimbra, 1978, pág. 139, obras aqui citadas por as termos como emblemáticas nesta matéria. [4] Neste sentido, vide os acórdãos do TRC, um datado de 30/09/2020 e relatado por Maria José Nogueira, outro datado de 14/10/2020 e relatado por Frederico Cebola (adjunto naquele), e um outro datado de 09/09/2020 e relatado por Rosa Pinto; no mesmo sentido, e embora tratando de questão diversa, vide o acórdão do TRL datado de 16/09/2020, relatado por Cristina Almeida e Sousa, todos a consultar in http://www.dgsi.pt. [5] Neste sentido, vide os acórdãos do TRC, um datado de 07/10/2020 e relatado por Luís Teixeira, e o outro datado de 30/09/2010, relatado por José Eduardo Martins, ambos a consultar in http://www.dgsi.pt. [6] Seguimos de perto a fundamentação inserta nos dois primeiros arestos citados na nota 4. [7] A este propósito chamou-se à colação o acórdão de Fixação de Jurisprudência de 25/10/2001, dali emergindo variada jurisprudênciada qual resulta que,atenta a sua natureza excecional, tais normas não comportam aplicação analógica, devendo ser interpretadas nos seus exatos termos. [8] Até aqui seguimos de perto a fundamentação inserta no 1º aresto citado na nota 5, relatado por Luís Teixeira. [9] Nesta parte seguimos de perto a fundamentação inserta no 2º aresto citado na nota 5, relatado por José Eduardo Martins. [10] Citação da Obra do Professor da Universidade de Pisa Francesco Ferrara, intitulada “Interpretação e Aplicação das Leis”, traduzida pelo Professor Manuel de Andrade e inserida na obra deste último denominada “Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, 3ª Edição, Arménio Salvado-Editor, Sucessor, Coimbra, 1978, pág. 139, obras que, tendo-as como paradigmáticas nesta matéria, aqui iremos seguir de perto. [11] Vide, Dicionário da Língua Portuguesa, J. Almeida Costa e A. Sampaio e Melo, 5ª edição, Porto Editora. [12] Citações de Francesco Ferrara, Ob. Cit., págs. 140 a 146. [13] Num sentido similar e, até, mais ampliado, foi publicado um trabalho no CEJ, a consultar in www.cej.mj.pt/ebooks – Coleção Caderno Especial, Estado de Emergência – COVID 19 – Implicações na Justiça 2ª edição de 09/06/2020, no qual se sustentou que “…o perdão beneficiará o recluso que, na data em que a lei entrou em vigor ou em qualquer um dos dias em que vigorar, vier a preencher a totalidade dos pressupostos, substanciais e temporais, de concessão do perdão, desde que com base em condenação transitada em jugado anteriormente e nunca para além do fim da sua vigência, nesta data ainda indeterminado. Trata-se, pois, de uma realidade dinâmica que poderá, não só, implicar uma libertação imediata de reclusos, como libertações diferidas no tempo da vigência da lei, como, ainda, o não ingresso de reclusos condenados em pena de prisão, por sentença já transitada à data da entrada em vigor do diploma, mas com mandados de detenção por cumprir”. [14] Texto escrito conforme o acordo ortográfico, convertido pelo lince, composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal).