COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS
SIMULAÇÃO
NULIDADE
Sumário

I - - da articulação ou concatenação do prescrito nos artigos 639.º e 640.º, ambos do Cód. de Processo Civil, resulta que, aquando da apresentação de pretensão recursória, o ónus principal a cargo do recorrente exige, pelo menos:
a indicação nas conclusões recursórias, com precisão, dos concretos pontos de facto da sentença que são objecto de impugnação, ou seja, cuja modificação é pretendida pelo recorrente, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto ;
a indicação expressa, na motivação ou corpo alegacional, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, ou seja, relativamente a cada questão de facto impugnada ;
II - não constando das conclusões recursórias apresentadas qualquer indicação, por mínima que seja, dos concretos pontos de facto da sentença apelada que são objecto de impugnação, isto é, dos pontos factuais que a Recorrente pretende ver modificados, e sendo certo que esta não permite o apelo a despacho de aperfeiçoamento, impõe tal omissão, nos termos da alínea a), do nº. 1, do artº. 640º, do Cód. de Processo Civil, a total rejeição da apelação interposta, relativamente à impugnação da matéria de facto ;
III – efectivamente, ocorrendo incumprimento do enunciado ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto recursório e das pretendidas consequências da impugnação da matéria factual, não deve este Tribunal substituir-se às Apelantes na concretização ou definição do objecto recursório ;
IV – a simulação, enquanto vício na formulação da vontade, preenche-se através da verificação de três requisitos ou pressupostos necessários, nomeadamente, a divergência ou antinomia entre a vontade real e a vontade declarada, o acordo simulatório entre declarante e declaratário e o intuito de enganar terceiros ;
V – resultando da factualidade provada a efectiva existência de uma situação de divergência intencional entre o teor do declarado nas escrituras públicas de compra e venda e a efectiva vontade das outorgantes, radicada num acordo simulatório celebrado entre ambos, bem como que ao outorgarem tais escrituras públicas agiram com intenção de enganar terceiros, designadamente o ora Autor, actuando contra os seus interesses e com o desiderato último de o prejudicar, necessariamente se terá que concluir pelo preenchimento daqueles pressupostos, conducente à declaração de nulidade, por simulação, daqueles contratos.

Texto Integral

ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
               
I – RELATÓRIO
1 – MA…, solteiro, residente no sítio das Casinhas, freguesia e concelho de Porto Santo, veio instaurar acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra:
- MG…, divorciada, com residência na Avenida …, Edifício …, nº. …. …ª Habitação, freguesia de Margaride (Santa Eulália), Várzea, Lagares, Varziela e Moure, concelho de Felgueiras ;
- AM…, residente na Rua …, nº. …, R/C, freguesia e concelho de Porto Santo,
deduzindo o seguinte petitório:
deve a presente acção ser declarada procedente, por provada e decretar-se:
a) a declaração de ineficácia da procuração utilizada na 1ª venda realizada a 03-11-2015, por estar revogada a procuração aí utilizada desde 03-02-20112, e;
Consequentemente,
b) a nulidade da referida 1ª venda e a nulidade da 2ª venda realizada a 02-12-2015, com todas as consequências legais.
Caso assim não se entenda:
c) a nulidade, por simulação absoluta, das identificadas compras e vendas, restituindo-se ao autor o imóvel, além das demais consequências legais;
d) ou, subsidiariamente, sejam condenadas solidariamente as rés, e com fundamento em enriquecimento sem causa, a restituir ao autor o imóvel indevidamente alienado e que actualmente se encontra em nome da 1º ré ou o valor correspondente em dinheiro, no montante de €104.000,00 (cento e quatro mil euros), acrescido dos juros de mora à taxa legal em vigor para o respectivo período, a contar da data da celebração da 1ª venda em 03-11-2015 até efectivo e integral pagamento do mesmo;
e) a condenação solidária das rés a pagarem ao autor uma indemnização por danos morais no valor de €4.000,00 (quatro mil euros);
f) o cancelamento de todos os registos a favor das rés ou de terceiros posteriores ao registo do imóvel do autor pela Ap. 512 de 03-03-2011”.
Alegou, em súmula, o seguinte:
- Por instrumento notarial lavrado a 20 de Novembro de 2007 o autor outorgou procuração à ré MG…, que lhe conferia, entre outros, poderes para vender imóveis ;
- Entretanto, a 03 de Fevereiro de 2012, o autor revogou aquela procuração, dando conhecimento desse acto, nesse mesmo dia, à ré MG… ;
- Acontece que esta sua irmã, à revelia do autor e contra a sua vontade, utilizou aquela procuração a 03 de Novembro de 2015, para vender à ré AM…, uma fracção autónoma pertencente ao autor ;
- Posteriormente, a ré AM… vendeu aquele fracção à ré MG… ;
- Na realidade, as co-rés nunca quiseram celebrar quaisquer negócios de compra e venda, estando ambas de má-fé, sendo tais negócios puramente fictícios ;
-  inexistindo quaisquer pagamentos, actuando as mesmas com o fim último de usurpar o imóvel ao autor ;
- A 2ª ré ao adquirir o imóvel do A., sem ter pago qualquer valor, enriqueceu a sua esfera patrimonial em € 104.000,00, com a consequente diminuição do património deste ;
- Ao tomar conhecimento de que as Rés tinham-lhe usurpado o seu único imóvel, o A. sofreu angústia, ansiedade e tonturas, ficando extremamente perturbado ;
- Tanto mais que, no dia 16/04/2016, teve conhecimento, por tabuleta afixada no local, que o seu imóvel, ora em questão, encontrava-se para venda.
Juntou vários documentos, tendo a acção sido proposta em 20/04/2016.
2 – Citados as Rés, vieram apresentar contestação, fazendo-o, em resumo, nos seguintes termos:
- pela Ré MG….:
· desconhece que o autor tenha revogado a aludida procuração, nunca lhe tendo sido comunicada tal revogação, nem de forma expressa ou tácita ;
· Enquanto procuradora nunca teve conhecimento directo ou indirecto de tal revogação nem ao menos tal conhecimento foi colocado à sua disposição por qualquer meio idóneo ;
· O autor bem sabe que nunca foi o real proprietário da fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo sob o nº … ;
· adquiriu a fracção em causa por permuta à firma “Construções Vila Baleira – Sociedade Unipessoal, Lda”, bem sabendo que o prédio urbano que permutou nunca lhe pertenceu mas sim à sua irmã, ora ré, MG… ;
· o que explica que o autor tenha emitido a referida procuração a favor da ré MG…, para que esta pudesse dar o destino que entendesse à fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo sob o nº … ;
· nunca houve qualquer divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, inexistindo qualquer simulação ;
· Nunca os negócios jurídicos em causa prejudicaram qualquer terceiro, pois, o autor bem sabe que nunca foi o real proprietário da referida fracção apesar de esta ter estado registada em seu nome, pelo que nunca poderia ter tido qualquer empobrecimento.
Conclui que a presente acção deverá ser julgada improcedente, por não provada e ser o autor condenado como litigante de má fé em multa e indemnização a favor da ré MG…, no montante de €10.000,00.
- pela Ré AM…:
· desconhece que o autor tenha revogado a aludida procuração, nunca lhe tendo sido comunicada tal revogação, nem de forma expressa ou tácita ;
· o A. bem sabe que nunca foi o real proprietário da fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo sob o nº …, a qual sempre pertenceu à ré MG… ;
· os negócios jurídicos em causa nunca prejudicaram qualquer terceiro, pois, o autor bem sabe que nunca foi o real proprietário da referida fracção apesar de esta ter estado registada em seu nome, pelo que nunca poderia ter tido qualquer empobrecimento.
Conclui, no sentido de ser julgada improcedente, por não provada e ser o autor condenado como litigante de má fé em multa e indemnização a favor da ré AM…, no montante de €5.000.,00.
3 – Por despacho de 03/11/2016 – cf., fls. 98 -, determinou-se a notificação do Autor para, querendo, exercer o contraditório relativamente às excepções invocadas nas contestações, bem como sobre a litigância de má-fé.
O Autor veio exercer o contraditório, conforme fls. 100 a 104, concluindo no sentido da improcedência das excepções invocadas e da peticionada condenação a título de litigância de má-fé.
4 – Foi realizada audiência prévia, conforme acta de fls. 157 a 161, tendo-se fixado o valor da causa, proferido saneador stricto sensu, fixados o objecto do litígio e temas da prova, apreciados os requerimentos probatórios e designada data para a audiência final.
5 – Procedeu-se à realização da audiência final de discussão e julgamento, respeitando os formalismos legais, como resulta das actas de fls. 267 a 271, 280, 281, 285 e 286.
6 – Posteriormente foi proferido sentença – cf., fls. 287 a 296 -, traduzindo-se o Dispositivo nos seguintes termos:
Em face do exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e consequentemente:
a) declara-se nulo, por simulação, o contrato de compra e venda celebrado no dia 03 de Novembro de 2015, através da escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Felgueiras, Livro 17-A, fls. 63 a 64v, tendo por objecto o direito de propriedade sobre fracção autónoma designada pela letra “B” unidade habitacional de tipologia T2, inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo ….º-B, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, localizado no sítio da Ribeirinha ou Vale do Touro, freguesia e concelho do Porto Santo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo sob o n.º …, com a consequente restituição do imóvel ao autor;
b) declara-se nulo, por simulação, o contrato de compra e venda celebrado no dia 02 de Dezembro de 2015, através da escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Felgueiras, Livro 18-A, fls. 4 a 5, tendo por objecto o direito de propriedade sobre fracção autónoma designada pela letra “B” unidade habitacional de tipologia T2, inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo ….º-B, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, localizado no sítio da Ribeirinha ou Vale do Touro, freguesia e concelho do Porto Santo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo sob o n.º …, com a consequente restituição do imóvel ao autor;
c) determina-se o cancelamento de todos os registos efectuados a favor das rés ou de terceiros posteriores ao registo daquele imóvel a favor do autor pela Ap. 512 de 03-03-2011;
d) absolve-se as rés do demais peticionado.
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Custas a cargo do autor (1/4) e das rés (3/4).
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Registe e Notifique”.
7 – Inconformadas com o decidido, as Rés MG… e AM… interpuseram recurso de apelação, por referência à sentença prolatada.
Apresentaram, em conformidade, as Recorrentes as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem, na íntegra):
“1º - Decorre da análise conjugada de toda a prova produzida, mormente de todos os depoimentos prestados que foi a ora Recorrente quem procedeu à realização e pagamento das obras realizadas na casa de sua mãe, sita em Casinhas.
2º - Como igualmente decorre de todo o acervo probatório que foi a ora recorrente quem suportou diversas dívidas contraídas pela sua irmã, JM…, assim como, quem procedeu ao distrate da hipoteca que recaía sobre o imóvel desta.
3º - Para além disso, de todos os depoimentos acima transcritos não se consegue aferir do interesse do ora Recorrido no apartamento objecto do negócio considerado como simulado. Antes pelo contrário, deles decorre o seu manifesto desinteresse pelo mesmo.
4º - Tanto assim é que, o ora recorrido outorgou procuração à ora recorrente conferindo-lhe os necessários poderes para vender o referido imóvel, o que a mesma fez sem que existissem quantias monetárias envolvidas.
5º - Juridicamente a posse é a exteriorização de um direito real que se define por dois elementos: o corpus (elemento material) e o animus (intenção de exercer um determinado direito real como se fora seu titular, nos termos do Artigo 1253º do Código Civil).
6º - Ora, foi a ora recorrente quem viveu no apartamento por si escolhido sem oposição de ninguém e com conhecimento do próprio recorrido que sempre manifestou perante terceiros que não tinha qualquer interesse no mesmo.
7º - Tanto assim é que, ao longo de mais de 7 (sete) anos, o ora recorrido ou restantes familiares nunca colocaram em causa tal situação, como se depreende dos vários depoimentos transcritos.
8º - E mais: Entre a revogação da procuração e a celebração dos negócios jurídicos em causa mediaram mais de 3 anos, o que atesta da boa-fé das ora Recorrentes, pois se existisse conluio ou intenção de prejudicar terceiros podiam tê-los celebrado há muito mais tempo.
9º - Acresce que o ora recorrido só habitou tal apartamento com a sua irmã, MG… e sua mãe, enquanto decorriam as obras suportadas pela ora recorrida na casa da mãe, no Sítio das Casinhas (essa sim, a que o ora Recorrido sempre considerou como sua).
10º - Tendo este, inclusivamente, manifestado perante o seu sobrinho, MJ…, já depois de tomar conhecimento que o apartamento não estava em seu nome que tinha ficado contente de estar tudo despachado, de não ter mais aborrecimentos.
11º - Tendo presente os requisitos exigidos pelo Artigo 240º, nº1 do Código Civil para que se verifique a existência de negócio simulado, verificamos que, no caso dos autos, é manifesta a ausência da intenção de enganar terceiros.
12º - Pois o ora recorrido nunca exerceu qualquer acto de posse sobre o referido apartamento, nunca lá investiu qualquer montante, nunca lá habitou, nem sequer tinha as chaves do mesmo e nunca se sentiu prejudicado pelo facto de o mesmo já não se encontrar em seu nome.
13º - Tendo até ficado aliviado pela circunstância de o problema se encontrar resolvido pela outorga da procuração a favor da sua irmã, MG…, para lhe resolver o problema.
Por isso,
14º - É evidente que, no caso dos autos, decorre de todos os depoimentos prestados que não existiu qualquer intuito de enganar terceiros, sendo que essa intenção é crucial para que se considere verificada a existência de negócio simulado.
Ora,
15º - As Recorrentes vêm assim, igualmente recorrer da matéria de facto fixada, na medida em que indicaram ao longo do presente os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, nos termos da alínea A) do nº 1 do artigo 685º-B do C. P. C., referenciando os depoimentos, com menção expressa e precisa das passagens da gravação em que se funda, como exige o nº 2 do supra citado preceito legal.
16º - Pretendendo assim, as ora Recorrentes, que sejam valorados diversamente pelo Tribunal a quo, de molde a levarem à alteração da matéria de facto provada, considerando como não provado o conluio que se considerou existir entre aquelas, assim como, o intuito de enganar terceiros.
Pelo que,
17º - A douta sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que considere que não existe qualquer negócio simulado, declarando válidos e juridicamente eficazes os negócios celebrados entre AM… e MG…, julgando totalmente improcedente, por não provada, a ação intentada pelo A., ora Recorrido, contra as ora Recorrentes.
18º - A douta sentença recorrida violou os artigos 1251º e 240º do Código Civil e 685º- B do C.P.C.”.
8 – O Apelado/Recorrido Autor apresentou contra-alegações, referenciando, em súmula, o seguinte:
- compulsadas as alegações de recurso, “verifica-se não terem elas especificado os concretos pontos de facto consideravam incorrectamente julgados” ;
- efectivamente, nas alegações e conclusões recursivas, limitam-se a dizer que  ”as Recorrentes vêm assim, igualmente recorrer da matéria de facto fixada, na medida em que indicaram ao longo do presente os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, nos termos da alínea A) do nº 1 do artigo 685-B do CPC, referenciando os depoimentos, com menção expressa e precisa das passagens da gravação em que se funda, como exige o nº 2 do supra citado preceito” ;
- o que determina, conforme entendimento jurisprudencial, necessária rejeição dos recursos interpostos ;
- pois as conclusões são totalmente omissas, por não indicaram “por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada” ;
- desta forma, por menor que seja a exigência formal que se adopte, relativamente ao cumprimento do ónus do artº. 640º, do CPC, “e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal de recurso a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso” ;
- pelo que se impõe que a Relação rejeite o recurso relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto ;
- se por hipótese fosse conhecida a impugnação da matéria de facto, jamais a alteração poderia ocorrer nos termos pretendidos ;
- pois “diversos outros testemunhos e depoimentos produzidos em audiência de julgamento, fundamentam claramente a decisão proferida pelo tribunal recorrido” ;
- encontram-se plenamente preenchidos todos os requisitos para que se considere verificada a simulação absoluta dos contratos, tendo assim que reconhecer-se a sua nulidade ;
- procede, ainda, nos termos do artº. 636º, do Cód. de Processo Civil, à ampliação do âmbito do recurso, prevendo a necessidade de ser apreciado, a título subsidiário, o pedido formulado na alínea d), da petição inicial, fundado no enriquecimento sem causa.
Conclui, no sentido de ser negado provimento ao recurso e, caso tal não aconteça, prevenindo a necessidade da sua apreciação, requer, nos termos do artº. 636º, do CPC, que o Tribunal de recurso conheça do pedido formulado na alínea d), da petição inicial.
9 – As Recorrentes vieram apresentar resposta à ampliação do objecto de recurso, pugnando no sentido do mesmo ser julgado totalmente improcedente, por não provado.
10 – O recurso, bem como a ampliação do âmbito do recurso, apresentada a título subsidiário, conforme despacho de fls. 350, como apelação, com subida nos próprios autos, de imediato e com efeito meramente devolutivo.
11 - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
*
II – ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas ;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação das recorrentes Apelantes que se define o objecto e se delimita o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto dos interpostos recursos.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento das seguintes questões:
1. da IMPUGNAÇÃO da MATÉRIA de FACTO, o que implica, prima facie, conhecer DA EVENTUAL PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE AQUELA, com eventual REAPRECIAÇÃO DA PROVA (inclusive a GRAVADA) ;
2. seguidamente, aferir acerca dos efeitos daí decorrentes para a SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS, o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA, nomeadamente:
a) da alegada inexistência de negócio simulado, por não preenchimento do requisito do intuito de enganar terceiros ;
3. Da AMPLIAÇÃO do OBJECTO do RECURSO, nos termos do nº. 1, do artº. 636º, do Cód. de Processo Civil, a implicar o conhecimento, a título subsidiário (em caso de provimento do recurso interposto), do pedido subsidiário fundado no enriquecimento sem causa, formulado sob a alínea D) do petitório.
Aprioristicamente, na ponderação do teor das contra-alegações apresentadas, conhecer-se-á, como QUESTÃO PRÉVIA, acerca da requerida rejeição do recurso interposto, relativamente á impugnação da matéria de facto, por alegado não cumprimento do prescrito no artº. 640º, nº. 1, alíneas a) e c), do Cód. de Processo Civil.
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QUESTÃO PRÉVIA: do aparente incumprimento do disposto no artº. 640º, nº. 1, do Cód. de Processo Civil, conducente à rejeição do recurso interposto
Em sede de contra-alegações, referencia o Apelado/Recorrido que nas alegações de recurso apresentadas as Recorrentes não especificaram os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, em violação do prescrito na alínea a), do nº. 1, do artº. 640º, do Cód. de Processo Civil.
Tal omissão é não só patente nas Conclusões apresentadas, como ainda ao longo do corpo alegacional, o que determinará, nos termos legalmente previstos, a necessária rejeição do recurso, enunciando vária jurisprudência do STJ nesse sentido.
Acrescenta ser total a omissão, pois não existe qualquer indicação, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, dos que impugna e dos que pretende que “sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada”.
Pelo que, por menor que seja a exigência formal que se adopte, relativamente ao cumprimento do estabelecido nas alíneas a) e c), do nº. 1, do artº. 640º, “sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal de recurso a substituir-se ao recorrente na concretização do objecto do recurso”, pois incumbe ao recorrente a indicação precisa, nas conclusões, “do que pretende do tribunal «ad quem», como corolário não só do princípio do dispositivo, como também da auto-responsabilização das partes”.
Conclui, no sentido de dever ser rejeitado o recurso relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Decidindo:
Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados da Relação, estatuindo que:
“ 1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo, plasmado no artigo 640º do mesmo diploma, o qual dispõe que:
“ 1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º” (sublinhado nosso).
Presentemente, o sistema vigente nas situações em que o recurso de apelação envolve a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica que “relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos”.
E, ainda que “em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”.
Acrescentando, ainda, dever ainda o Recorrente deixar “expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente” (sublinhado nosso).
Pelo que deve ocorrer rejeição, total ou parcial, do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto, sempre que se verifique “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº. 1, al. a))”, servindo igualmente esta especificação “para delimitar o objecto do recurso”.
Bem como deve ainda ocorrer igual rejeição, total ou parcial, na “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”.
Assim, ainda que se reconheça dever interpretar-se tais exigências legais à luz de um necessário critério de rigor, como consequência ou decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, se “em lugar de uma sincopada e por vezes estéril localização temporal dos segmentos dos depoimentos gravados, o recorrente optar por transcrever esses trechos, ilustrando de forma mais completa e inteligível os motivos das pretendidas modificações da decisão da matéria de facto, deve considerar-se razoavelmente cumprido o ónus de alegação neste campo. A indicação exacta das passagens das gravações não passa necessariamente pela sua localização temporal, sendo a exigência legal compatível com a transcrição das partes relevantes dos depoimentos” [2].
Acrescenta, todavia, o mesmo Ilustre Conselheiro, importar que “não se exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador”. E, citando douto aresto do STJ de que foi Relator [3] aduz ser “necessário que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640º seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material”, aludindo, ao nível do Supremo Tribunal de Justiça, a uma “tendência consolidada no sentido de não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no art. 640º”.
 Lavrou, então, o mesmo Relator em tal aresto sumário, no sentido de dever “considerar-se satisfeito o ónus de alegação previsto no art. 640º, se o recorrente, além de indicar o segmento da decisão da matéria de facto impugnado, enunciar a decisão alternativa sustentada em depoimento testemunhal que identificou e localizou”, sendo que “na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” (sublinhado nosso).
O mesmo Acórdão referencia jurisprudência do STJ, no pugnado sentido, donde se realça, por atinente ao caso sub júdice, a seguinte:
- datado de 09/07/2015, onde se refere que “tendo o apelante, nas suas alegações de recurso, identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência aos pontos da base instrutória, indicado o depoimento das testemunhas que entendeu mal valorados, fornecido a indicação da sessão na qual foram prestados e o início e o termo dos mesmos, apresentado a sua transcrição e referido qual o resultado probatório que deveria ter tido lugar, relativamente a cada quesito e meio de prova, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar” (sublinhado nosso) ;
- de 19/02/2015, no qual se referencia que “enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já o mesmo se não se afigura que a especificação dos meios de prova ou a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações” (sublinhado nosso).
Acrescenta, ainda, o Ilustre Autor ser frequentemente constatável “que uma leitura concertada das alegações, e não apenas das respectivas conclusões, permite afirmar o preenchimento dos requisitos mínimos a que deve obedecer uma peça processual para a qual não está legalmente prevista uma estrutura rígida quer na parte da motivação, quer no segmento conclusivo”, pelo que os aspectos “fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição clara do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido[4].
Deve ter-se ainda em consideração, realçando-se, o sumariado no douto aresto do STJ de 29/10/2015 [5], no qual se refere que “face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC).
2. Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso” (sublinhado nosso).
Referencie-se, igualmente, o sumariado em aresto do mesmo Alto Tribunal de 19/02/2015 [6], no sentido de que “a especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC”.
Assim, “é em vista dessa função que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC”, pelo que “nessa conformidade, enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória”.
Pelo que “tendo o recorrente, nas conclusões recursórias, especificado os concretos pontos de facto que impugna, com referência às respostas dadas aos artigos da base instrutória, indicando também aí a decisão que, no seu entender, deve sobre eles ser proferida, enquanto que só no corpo das alegações especifica os meios de prova convocados e indica as passagens das gravações dos depoimentos em foco, têm-se por preenchidos os requisitos formais do ónus de impugnação exigidos pelo art.º 640.º, n.º 1 e 2, alínea a), do CPC” (sublinhado nosso).
Por fim, referencie-se, ainda, o sumariado no douto aresto do STJ de 01-10-2015 [7], no sentido de que:
“I - No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação.
IV - Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº 1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação”.
Do exposto, resulta, assim, ser legítimo concluir-se, da articulação ou concatenação do prescrito nos artigos 639.º e 640.º, do Cód. de Processo Civil, que o ónus principal a cargo do recorrente exige, pelo menos:
- a indicação nas conclusões recursórias, com precisão, dos concretos pontos de facto da sentença que são objecto de impugnação, ou seja, cuja modificação é pretendida pelo recorrente, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto ;
- a indicação expressa, na motivação ou corpo alegacional, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, ou seja, relativamente a cada questão de facto impugnada.
Ora, compulsadas as conclusões recursórias apresentadas pelas Rés/Apelantes, constata-se não constarem das mesmas qualquer indicação, por mínima que seja, dos concretos pontos de facto da sentença apelada que são objecto de impugnação, isto é, dos pontos factuais que as Recorrentes pretendem ver modificados.
Efectivamente, aludem expressamente virem “recorrer da matéria de facto fixada, na medida em que indicaram ao longo do presente os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, nos termos da alínea a) do nº. 1 do artigo 685-B do C.P.C. (…)” [norma já revogada].
E que pretendem “que sejam valorados diversamente pelo Tribunal a quo, de molde a levarem à alteração da matéria de facto provada, considerando como não provado o conluio que se considerou existir entre aquelas, assim como, o intuito de enganar terceiros” – cf., Conclusões 15ª e 16ª.
Todavia, compulsado o teor do corpo alegacional, não figura qualquer especificação ou indicação dos factos alegadamente objecto de impugnação, pois apenas se faz uma alusão a “factos que se consideram incorrectamente julgados”, sem se indicarem quais, por referência à factualidade provada e não provada, e sem se indicarem, logicamente (atenta aquela omissão), qual a decisão que deveria ser proferida relativamente a tal núcleo factual.
Donde decorre, com nitidez, existir incumprimento do enunciado ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto recursório e das pretendidas consequências da impugnação da matéria factual, não devendo este Tribunal substituir-se às Apelantes na concretização ou definição do objecto recursório.
Pelo que, na constatação de tal omissão, e sendo certo que esta não permite o apelo a despacho de aperfeiçoamento [8], impõe-se, nos termos da alínea a), do nº. 1, do artº. 640º, do Cód. de Processo Civil, a total rejeição da apelação interposta, relativamente à impugnação da matéria de facto
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III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida, foi considerado como PROVADO o seguinte:
2.1.1.- Por instrumento notarial lavrado a 20 de Novembro de 2007 no escritório do solicitador JR…, CP …, à Avenida …, nº …, …º andar, Sítio da Vila, freguesia e concelho do Porto Santo, o autor outorgou uma procuração à sua irmã, a aqui ré MG…, que lhe conferia, entre outros, poderes para vender imóveis.
2.1.2.- Por instrumento notarial lavrado a 03 de Fevereiro de 2012 no escritório do solicitador JR…, CP …, à Avenida …, nº …, …º andar, Sítio da Vila, freguesia e concelho do Porto Santo, o autor revogou a procuração acima referida em 2.1.1.
2.1.3.- Por escritura pública exarada a 23-02-2011, a fls. 52 a 54 do livro de notas 7-C do Cartório Notarial de Porto Santo, a ora ré MG…, na qualidade de procuradora do aqui autor MA…, enquanto primeira outorgante, declarou que “o seu representado é dono e legítimo possuidor do prédio misto composto de casa de habitação, logradouro e terra de cultura arvense de sequeiro e pasto, localizado no sítio do Matinho, freguesia e concelho de Porto Santo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Porto Santo sob o número … da freguesia de Porto Santo”.
2.1.4.- Por sua vez, nessa mesma escritura, SM…, na qualidade de gerente da sociedade Construções Vila Baleira – Sociedade, enquanto segunda outorgante, declarou que “a sua representada é dona e possuidora da fracção autónoma designada pela letra B, composta de unidade habitacional de tipologia T dois, do prédio urbano localizado no sítio da Ribeirinha ou Vale do Touro, freguesia e concelho de Porto Santo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo sob o número …-B, da freguesia de Porto Santo.
2.1.5.- Declararam as outorgantes na escritura acima referida em 2.1.3 “que procedem à seguinte permuta:
a) O representado da primeira outorgante cede à representada da segunda o referido prédio misto (artigos … urbano e … rústico da secção X) no referido valor total atribuído de cem mil setecentos e oitenta e oito euros e oitenta e um cêntimos;
b) A representada da segunda outorgante cede ao representado da primeira outorgante a referida fracção autónoma designada pela letra B (artigo …-B) no valor atribuído de cem mil e oitenta euros”.
2.1.6.- A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “B” unidade habitacional de tipologia T2, inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo ….º-B, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, localizado no sítio da Ribeirinha ou Vale do Touro, freguesia e concelho do Porto Santo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo sob o n.º … foi registada a favor do autor pela Apresentação 512 desde 03-03-2011. (fls. 17v)
2.1.7.- A ré MG…, à revelia do autor, e contra a sua vontade, utilizando a procuração acima referida em 2.1.1., declarou vender pelo valor de 104 000,00 € a fracção habitacional acima identificada em 2.1.6., por escritura celebrada no dia 03 de Novembro de 2015, exarada de fls. 63 a 64 v. do L. I7-A, do Cartório Notarial em Felgueiras, sítio na Rua …, nº … R/C, freguesia de Margaride (Santa Eulália) Várzea, Varziela e Moure, perante a Notária MGu…. (fls. 21)
2.1.8.- Sendo compradora a amiga da ré MG…, a co-ré AM…, em nome da qual foi registada a aquisição do direito de propriedade sobre aquele fracção, através da Apresentação 674 de 03-11-2015. (fls. 17v)
2.1.9.- Deste negócio de compra e venda celebrada em 03-11-2015, no valor de 104 000,00 €, do qual a ré MG… deu quitação não foi entregue qualquer montante ao autor.
2.1.10.- No dia 02 de Dezembro de 2015, no mesmo Cartório Notarial em Felgueiras, usando uma procuração com poderes especiais outorgada pela amiga AM…, ora co-ré, e em conluio entre ambas, por escritura exarada de fls. 4 a 5 do L. 18-A, a ré MG… revendeu a mesma fracção habitacional, pelo mesmo valor de €104.000,00, sendo agora a compradora ela própria.
2.1.11.- A ré MG… registou a aquisição do direito de propriedade sobre aquele fracção, através da Apresentação 1055 de 02-12-2015. (fls. 18)
2.1.12.- A ré MG… agiu em conluio com a ré AM…, e contra os interesses do autor e com o fim último de prejudicá-lo, por forma a lograr a registar a aquisição do direito de propriedade daquela fracção em nome da ré MG….
2.1.13.- As co-rés nunca quiseram celebrar os negócios de compra e venda acima mencionados em 2.1.7. e 2.1.10, inexistindo qualquer pagamento da 2ª ré à 1ª ré e posteriormente da 1ª ré à 2ª ré.
2.1.14.- O fim último das escrituras acima referidas em 2.1.7. e 2.1.10, por acordo entre às rés, era retirar o imóvel ao autor, registando o direito de propriedade em nome da ré MG….
2.1.15.- A ré MG… declarou na referida escritura de compra e venda celebrada a 03-11-2015 que já havia recebido o preço acordado, dando a respectiva quitação, no valor de 104.000,00€.
2.1.16.- Ao declarar comprar o imóvel cuja propriedade estava registada em nome do autor, sem ter pago qualquer valor, a 2ª Ré AM… enriqueceu a sua esfera patrimonial em 104 000,00€, tudo às custas do autor, com a consequente diminuição do património deste.
2.1.17.- O autor somente tomou conhecimento da referida venda para a 2ª ré, e de seguida, da revenda da 2ª ré para a1ª ré, em Março de 2016, aquando da apresentação do seu I.R.S.
2.1.18.- A ré MG… na qualidade de procuradora da sua irmã, JM…, outorgou em 15 de Dezembro do ano de 2008 uma escritura de compra e venda lavrada de fls. 21 a fls. 22 do livro nº 280-A do Cartório Notarial do Notário, MF… sito na Rua …, nº …, r/c, Funchal.
2.1.19.- Por essa escritura e pelo preço de € 82 500,00 (oitenta e dois mil e quinhentos euros) foi vendido ao autor, representado pelo seu procurador JR…, o prédio misto sito no sitio da Matinho, freguesia e concelho de Porto Santo, inscrito a parte urbana na matriz predial da freguesia e concelho de Porto Santo sob o nº … e a parte rústica sob o artigo … da secção X, que pertencia a JM….
2.1.20.- Tal prédio misto tinha uma hipoteca a favor do Banco de Investimento Imobiliário, pela inscrição C – dois cujo cancelamento na escritura se mostrou assegurado, conforme documento que ficou em poder do comprador.
2.1.21.- O autor nada pagou JM… ou à ora ré, MG…, na qualidade de procuradora da irmã de ambos, JM….
2.1.22.- JM… entrou em incumprimento com o Banco e foi a ré MG…, quem pagou a quantia em divida no empréstimo hipotecário garantindo assim o cancelamento da hipoteca.
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E foi considerado como NÃO PROVADO que:
2.2.1.- A revogação acima referida em 2.1.2. foi levada ao conhecimento da ré MG… no próprio dia da revogação (03-02-2012), pelo autor e pela outra irmã outra irmã MGa….
2.2.2.- Sendo o Porto Santo um meio pequeno, tornou-se público que o autor tinha revogado a procuração da irmã, a ré MG…, o que também foi do perfeito conhecimento da co-ré AM….
2.2.3.- O autor, assim como a sua irmã GM…, por diversas e insistentes vezes, na residência de ambos, designadamente nas semanas subsequentes à revogação da procuração, exigiu da ré MG… a restituição do original daquela procuração revogada.
2.2.4.- A ré MG… invocando diversas evasivas, designadamente que tinha a procuração no Continente, recusou-se sempre a entregar aquela procuração revogada, afirmando “fiquem descansados que não a utilizarei e a vou rasgar”.
2.2.5.- O autor ao tomar conhecimento que a sua irmã MG… e a amiga desta, a 2ª R., tinham-lhe usurpado o seu único imóvel, sofreu e sofre uma grande angústia, ansiedade, tonturas e está extremamente perturbado, chorando, não dormindo, ao pensar que “ficou sem nada”, sentindo-se humilhado e vexado pelas rés.
2.2.6.- O autor sofreu ainda maior angústia quando no dia 16-04-2016 verificou que no seu apartamento encontra-se afixada uma tabuleta com os dizeres “VENDE-SE”.
2.2.7.- A ré MG… assegurou à irmã JM… o pagamento das suas dívidas e como contrapartida ficou com o prédio misto sito no sitio da Matinho, freguesia e concelho de Porto Santo, inscrito a parte urbana na matriz predial da freguesia e concelho de Porto Santo sob o nº … e a parte rústica sob o artigo … da secção X.
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B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
I) Da alegada inexistência de negócio simulado, por não preenchimento do requisito do intuito de enganar terceiros
Referenciam as Apelantes que o Recorrido não conseguiu provar factos que consideram fulcrais para a decisão proferida, considerando-a insuficiente para se concluir pela existência de negócio simulado, por falta de verificação de todos os seus pressupostos.
Concretizando, apelam à evidência dos factos, os quais consideram não permitir, de forma nenhuma, considerar como verificado o requisito do intuito de enganar terceiros, pois antes resulta dos factos não ter existido aquele intuito.
Pelo que, inverificado tal requisito, que é de verificação cumulativa com os demais previstos, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra, que considere que inexiste negócio simulado, considerando válidos e eficazes os negócios celebrados entre as Rés, num juízo de total improcedência da acção.
Nas contra-alegações apresentadas, referencia o Recorrido, após elencar os requisitos da simulação, encontrar-se verificado o enunciado terceiro requisito, conforme factualidade provada sob os nºs. 2.1.12. e 2.1.14.
Pelo que considera encontrarem-se preenchidos todos os requisitos para que se dê como verificada a simulação absoluta dos contratos, que nesta acção foram alvo de impugnação, devendo reconhecer-se a sua nulidade.
Acerca do presente segmento decisório, a sentença apelada começou por enunciar os requisitos ou elementos da simulação, nomeadamente:
a) a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;
b) o acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório);
c) o intuito de enganar terceiros.
Seguidamente, concatenando tais requisitos ou elementos com a factualidade provada, considerou-os totalmente preenchidos ou verificados, tendo declarado a nulidade, por simulação absoluta, das identificadas compras e vendas, com consequente determinação de restituição do imóvel ao Autor.
Expressamente, referenciou o seguinte:
Dispõe o n.º 1 do art. 240º do Cód. Civil, que “se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.”
O negócio simulado é nulo – cfr. nº 2 do mesmo artigo – o que quer dizer que a simulação pode ser invocada por qualquer interessado e ser oficiosamente declarada; o vício pode ser arguido a todo o tempo por qualquer interessado e não pode ser sanado mediante confirmação da declaração – cfr. arts. 286º e segs. do Cód. Civil.
Constituem, assim, elementos da simulação:
a) a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;
b) o acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório);
c) o intuito de enganar terceiros.
Terceiros para efeitos de simulação são “[] quaisquer pessoas, titulares de uma relação, jurídica ou praticamente, afectada pelo negócio simulado e que não sejam os próprios simuladores ou os seus herdeiros (depois da morte do “de cujus”.” – cfr. Carlos A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, pág. 481.
Em consonância, apenas se verificará o requisito da simulação (intuito de enganar terceiros), quando “[] o engano seja relevante, ou seja, produza efeitos ao nível dos interesses englobados na esfera jurídica de terceiro.” – cfr., neste sentido, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/05/2009, disponível em www.dgsi.pt.
A ter ainda presente que a simulação pode ser absoluta, caso em que as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum negócio jurídico, ou relativa, situação em que “as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e na realidade querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso, o negócio dissimulado” - cf. art. 241º do Cód. Civil; Mota Pinto, ob. cit., pág. 473.
Neste último caso, “o negócio simulado encobre outro (que é dissimulado): existem dois negócios, um, a que se dirige o acordo simulatório, o negócio simulado, que não é efectivamente querido pelas partes; outro, encoberto pela simulação, mas a que na verdade se dirige a vontade dos simuladores, que é o negócio dissimulado, cujos efeitos os simuladores realmente querem.” – cfr. Carvalho Fernandes, “Teoria Geral do Direito Civil”, vol. II; citado no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/07/2008.
Isto dito, e atentando agora na matéria de facto, verificamos que o autor logrou provar que:
Ø por escritura de permuta outorgada a 23-02-2011 o autor adquiriu o direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “B” unidade habitacional de tipologia T2, inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo ….º-B, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, localizado no sítio da Ribeirinha ou Vale do Touro, freguesia e concelho do Porto Santo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo sob o n.º …, aquisição que foi registada a favor do autor pela Apresentação 512 desde 03-03-2011;
Ø a ré MG…, à revelia do autor, e contra a sua vontade, utilizando uma procuração que este tinha outorgado a favor desta, declarou vender pelo valor de 104 000,00 € a fracção habitacional acima identificada, por escritura celebrada no dia 03 de Novembro de 2015, exarada de fls. 63 a 64 v. do L. I7-A, do Cartório Notarial em Felgueiras, sendo compradora a amiga da ré MG…, a co-ré AM…;
Ø no dia 02 de Dezembro de 2015, no mesmo Cartório Notarial em Felgueiras, usando uma procuração com poderes especiais outorgada pela amiga AM…, ora co-ré, e em conluio entre ambas, por escritura exarada de fls. 4 a 5 do L. 18-A, a ré MG… revendeu a mesma fracção habitacional, pelo mesmo valor de €104.000,00, sendo agora a compradora ela própria;
Ø a ré MG… registou a aquisição do direito de propriedade sobre aquele fracção, através da Apresentação 1055 de 02-12-2015;
Ø a ré MG… agiu em conluio com a ré AM…, e contra os interesses do autor e com o fim último de prejudicá-lo, por forma a lograr a registar a aquisição do direito de propriedade daquela fracção em nome da ré MG…;
Ø as co-rés nunca quiseram celebrar os negócios de compra e venda acima mencionados, inexistindo qualquer pagamento da 2ª ré à 1ª ré e posteriormente da 1ª ré à 2ª ré;
Ø o fim último das escrituras acima referidas, por acordo entre às rés, era retirar o imóvel ao autor.
Assim, face a esta factualidade, o autor logrou provar a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração das rés nas escrituras que estas outorgaram a 03-11-2015 e a 02-
12-2015, uma vez que a 1ª ré não quis vender à 2ª ré e esta não quis comprar o imóvel cujo direito de propriedade estava registado a favor do autor, ao contrário do que declararam na referida escritura de 03-11-2015 e a 2ª ré não quis vender aquele imóvel à 1ª ré, nem esta o quis comprar, ao contrário do que declararam na referida escritura de 02-12-20015.
Com efeito, as rés acordaram em emitir aquelas declarações negociais, em divergência com a sua vontade real, por forma a lograrem retirar da esfera jurídica do autor, o imóvel de que este era o titular inscrito.
“O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define” – art.º 7º do Código de Registo Predial.
Deste modo, uma vez que o autor tinha inscrito a seu favor a aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel acima descrito em 2.1.6., tendo-o adquirido do anterior titular inscrito (vd. 2.1.5), sempre beneficiaria da referida presunção da titularidade daquele direito.
Com efeito, independentemente da questão de saber se aquele imóvel foi adquirido pelo autor em virtude de valores que foram gastos pela 1ª ré, a verdade é que esta só poderia inscrever o direito de propriedade daquele imóvel em seu nome, após um acto translativo por parte do autor.
Ora, a 1ª ré, com a colaboração da 2ª ré, procurou contornar essa ausência de declaração de vontade do autor, celebrando dois negócios simulados.
Na verdade, uma vez que a procuração que autor outorgou a favor da 1ª ré, não permitia a esta celebrar negócios consigo mesma, esta elaborou em conluio com a 2ª ré, uma forma de conseguir transmitir o referido imóvel para a sua esfera jurídica, sem o conhecimento e autorização do autor, o qual era o titular inscrito daquele direito de propriedade.
Com efeito, da prova produzida, resulta claramente que existiu o intuito de enganar terceiros, neste caso o autor, o qual sempre terá de ser considerado como interessado para efeitos de poder invocar a nulidade decorrente daquela simulação, uma vez que teve reflexos na sua esfera jurídica.
Deste modo, em nosso entender, mostram-se preenchidos os requisitos da simulação, atrás enunciados, ficando demonstrada a divergência intencional entre a vontade e a declaração e o acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório), com o intuito de enganar o
autor, pelo que nesta parte acção terá de proceder, declarando-se a nulidade, por simulação absoluta das identificadas compras e vendas, restituindo-se o imóvel ao autor”.
Vejamos.
Resulta evidente, do teor das alegações apresentadas, que as Recorrentes Rés não impugnaram a matéria de facto dada como provada, da forma legalmente exigida, pois, desde logo, não cumpriram minimamente o ónus de especificação inscrito no nº. 1, do artº. 640º, do Cód. de Processo Civil, nomeadamente, não indicaram qual ou quais os pontos de facto que consideram incorrectamente julgado(s), pelo que, consequentemente, não enunciam a decisão proferenda acerca dos omitidos pontos factuais.
Donde, logicamente, e nos termos supra apreciados, a apreciação do presente recurso não se pode concretizar naquele campo de impugnação da matéria factual.
Por outro lado, as Apelantes Rés apenas questionam o preenchimento dos requisitos da simulação, maxime e com maior ênfase, o requisito do intuito de enganar terceiros, alicerçando-o numa pretendida alteração da matéria de facto, que não especificaram nem concretizaram. E que, tal como aludimos, não poderá ser conhecida, permanecendo a mesma nos termos fixados na sentença apelada.
O que determina que a aferição ou sindicância do preenchimento daqueles pressupostos, com especial relevância no que concerne ao aduzido terceiro requisito, terá por base ou fundamento o teor daquela factualidade provada, que a sentença apelada considerou suficiente e bastante para o efectivo preenchimento do vício na formulação da vontade em que se traduz a simulação
Vejamos, então, a figura jurídica da simulação.
- do vício da simulação
Prevendo acerca de um dos vícios na formulação da vontade – divergência intencional entre a vontade e a declaração [9] -, estatui o n.º 1 do art.º 240º do Código Civil [10], estatuindo acerca da simulação absoluta, que “se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”, estatuindo o n.º 2 que a consequência é a sua nulidade.
Por sua vez, e no âmbito da simulação relativa, dispõe o art.º 241º que:
“ 1. quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.
2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei”.
Pires de Lima e Antunes Varela [11] referem que o art.º 240º elenca três requisitos necessários para o preenchimento da figura da simulação: “divergência entre a vontade real e a vontade declarada, intuito de enganar terceiros e o acordo simulatório” [12]. Citando Von Tuhr, Rodrigues Bastos [13] refere existir simulação “quando o declarante está de acordo com o destinatário da declaração em que esta não tenha eficácia, tratando-se unicamente de apresentar, aos olhos de terceiras pessoas, a aparência de uma declaração válida e eficaz”.
E, assim, a simulação é designada como “absoluta quando não se pretende celebrar nenhum negócio, e relativa quando se encobre, sob o negócio simulado, outro (dissimulado) que se quer celebrar”. Acrescenta, ainda, que podendo a simulação ser um acto disfarçado, neste “as partes concluíram uma convenção, mas desejam que ela se conserve ignorada, para o que a disfarçam sob a aparência de um outro contrato ; o disfarce é total quando recai sobre a natureza mesma do acto (uma doação disfarçada em venda), e parcial quando as partes dissimulam apenas um dos elementos do negócio (como, p. ex., o preço verdadeiro numa venda)”.
Relativamente ás modalidades de simulação, e para além da distinção entre simulação absoluta e simulação relativa [14], costuma-se ainda fazer a distinção entre simulação inocente e simulação fraudulenta. Verifica-se aquela nas situações em que “houve o mero intuito de enganar terceiros, sem os prejudicar («animus decipiendi») e é fraudulenta, se houve o intuito de prejudicar terceiros ilicitamente ou de contornar qualquer norma da lei («animus nocendi») (...).
A simulação inocente é rara. Podem figurar-se, p. ex., doações simuladas com um fim de ostentação, vendas aparentes em vez das reais doações para não incorrer o doador no ressentimento de pessoas que aspiravam à sucessão do doador, embora não sejam herdeiros legitimários, etc.” [15].
Ao nível das consequências existe uma óbvia diferença entre a simulação absoluta e a relativa. Assim, enquanto que na primeira o negócio simulado é nulo, nada mais havendo a ponderar, na simulação relativa urge aquilatar do tratamento a conferir ao negócio dissimulado ou real, que fica a descoberto com a nulidade do negócio simulado. Este, conforme legal enunciação, “será objecto do tratamento jurídico que lhe caberia se tivesse sido concluído sem dissimulação (art. 241.º). Nestes termos poderá o negócio latente ser plenamente válido e eficaz ou poderá ser inválido, consoante as consequências que teriam lugar, se tivesse sido abertamente concluído” [16].
Desta forma, na simulação “a declaração negocial cria a aparência de um negócio com todos os elementos de um negócio válido, mas que as partes não querem que produza os efeitos que legalmente lhe correspondem”.
Tal “declaração negocial aparente destina-se a enganar terceiros”, podendo este engano ser inocente, como sucede na situação em que “os sujeitos declaram comprar e vender apenas para criar uma aparência de enriquecimento por parte do comprador” ; noutras vezes, “visa não apenas enganar mas também prejudicar terceiros, caso em que a simulação se diz fraudulenta” [17].
Após o enquadramento jurídico efectuado, vejamos se, tal como concluiu a decisão recorrida, os negócios jurídicos celebrados entre as Rés (contratos de compra e venda) encontram-se inquinados de nulidade, por verificação do vício da simulação, atenta a imputada divergência intencional entre o declarado e a vontade das partes contratantes.
Ou seja, impõe-se aferir se nos celebrados negócios de compra e venda, outorgados entre as ora Rés, estas não quiseram efectivamente proceder á transmissão da propriedade do imóvel identificado, antes tendo acordado em simular a compra e venda do mesmo.
E, adrede, se o fizeram com o intuito de enganar, ou mesmo prejudicar, terceiros, nomeadamente o ora Autor, irmão da 1ª Ré MG….
Os negócios jurídicos (entre os quais se enquadra a compra e venda, cuja nulidade o Autor invoca) são normalmente definidos como “actos jurídicos constituídos por uma ou mais declarações de vontade, dirigidas à realização de certos efeitos práticos, com intenção de os alcançar sob tutela do direito, determinando o ordenamento jurídico a produção dos efeitos jurídicos conformes à intenção manifestada pelo declarante ou declarantes”. Pelo que, o que é “’verdadeiramente constitutivo do negócio é o comportamento declarativo – a existência de um comportamento que, exteriormente observado, apareça como manifestação de uma vontade de certos efeitos práticos sob a sanção do ordenamento jurídico” [18].
De forma mais específica, o contrato de compra e venda é legalmente definido pelo art.º 874º como aquele “pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito mediante um preço”, conferindo-lhe, assim, a sua natureza bilateral ou sinalagmática, onerosa e, em regra, comutativa, revestido de recíprocas prestações, e dotado de eficácia real ou translativa.
Os efeitos essenciais deste contrato tipo encontram-se plasmados no art.º 879º, traduzindo-se no efeito real de transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, e nos efeitos obrigacionais de entrega da coisa e de pagamento do preço.
Constituiu-se o mesmo como “o paradigma do contrato translativo de propriedade, ao qual se reconduzem normalmente todos os contratos relativos à transferência de bens (…). Pertence tradicionalmente à categoria dos contratos de troca, uma vez que pela venda o vendedor transfere a propriedade de uma coisa ou outro direito ao comprador mediante um preço que tem de consistir em dinheiro, sem o qual ficaria fora do esquema da compra e venda, confundindo-se com a permuta. O direito transmitido é não só o de propriedade mas o de qualquer outro direito real” [19]
E, de tal contrato resultaria para as Rés, aquando da posição de vendedoras, a obrigação de entrega do imóvel identificado no facto 2.1.6, bem como para as mesmas Rés, na posição de adquirentes, a obrigação de entrega do(s) preço(s) correspondente(s), conforme efeitos obrigacionais estatuídos nas alíneas b) e c) do citado art. 879º [20].
Ora, de retorno ao núcleo essencial do controvertido, indaga-se: resulta provada nos autos a imputada simulação na outorga das identificadas escrituras públicas de compra e venda ?
Acerca da presente matéria, resultou provado que:
- Por escritura pública de permuta outorgada em 23/02/2011, o Autor adquiriu o direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “B” unidade habitacional de tipologia T2, inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo ….º-B, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, localizado no sítio da Ribeirinha ou Vale do Touro, freguesia e concelho do Porto Santo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo sob o n.º … foi registada a favor do autor pela Apresentação 512 desde 03-03-2011, que foi devidamente registada – factos 2.1.3. a 2.1.5. ;
- Tendo tal aquisição sido registada a seu favor mediante a Apresentação 512, desde 03/03/2011 – facto 2.1.6. ;
- A Ré MG…, à revelia do Autor, e contra a sua vontade, utilizando uma procuração que este havia outorgado a seu favor em 20/11/2007 (posteriormente revogada em 03/02/2012), declarou vender pelo valor de 104 000,00 € aquela fracção habitacional, por escritura celebrada no dia 03 de Novembro de 2015, figurando como compradora a sua amiga, e co-ré AM…, em nome da qual foi registada a aquisição do direito de propriedade sobre aquele fracção, através da Apresentação 674 de 03-11-2015 – factos 2.17. e 2.1.8. ;
- Todavia, o Autor não recebeu qualquer quantia de tal negócio de compra e venda, apesar da Ré MG… ter declarado na escritura que já havia recebido o preço acordado, dando a respectiva quitação – factos 2.1.9. e 2.1.15. ;
- no dia 02 de Dezembro de 2015, no mesmo Cartório Notarial em Felgueiras, usando uma procuração com poderes especiais outorgada pela amiga AM…, ora co-Ré, e em conluio entre ambas, por escritura exarada de fls. 4 a 5 do L. 18-A, a Ré MG… revendeu a mesma fracção habitacional, pelo mesmo valor de €104.000,00, sendo agora a compradora ela própria, registando a aquisição do direito de propriedade sobre aquele fracção, através da Apresentação 1055 de 02-12-2015 – factos 2.1.10. e 2.1.11. ;
- a Ré MG… agiu em conluio com a Ré AM…, e contra os interesses do Autor, com o fim último de prejudicá-lo, por forma a lograr registar a aquisição do direito de propriedade daquela fracção em nome da ré MG… – facto 2.1.12. ;
- pois, as Rés nunca quiseram celebrar aqueles negócios de compra e venda, inexistindo qualquer pagamento da 2ª Ré à 1ª Ré (ou ao Autor) e posteriormente da 1ª Ré à 2ª Ré, sendo que o fim último das escrituras, por acordo entre ambas, era retirar o imóvel ao Autor, registando o direito de propriedade em nome da Ré MG… – factos 2.1.13. e 2.1.14.
Ou seja, resulta da factualidade provada a efectiva existência de uma situação de divergência intencional entre o teor do declarado em tais escrituras públicas (as declarações de compra e de venda) e a efectiva vontade das outorgantes, radicada num acordo simulatório celebrado entre as Rés. Resulta igualmente da factualidade provada que ao outorgarem tais escrituras públicas as mesmas Rés agiram com intenção de enganar terceiros, designadamente o ora Autor, actuando contra os seus interesses e com o desiderato último de o prejudicar, visando o registo da aquisição do direito de propriedade em nome da Ré MG….
Ora, de acordo com a regra de repartição do ónus probatório, competia ao Autor, como facto constitutivo do invocado direito à nulidade do negócio – cf., artigos 286º e 342º, nº 1 -, a prova do acordo simulatório entre as outorgantes, traduzido em efectiva divergência entre  o declarado e a vontade real e concreta das declarantes, bem como a intencionalidade de enganar terceiros (não intervenientes no negócio). Ónus que cumpriu de forma manifesta e clara, conforme decorre da factualidade assente.
Conclui-se, deste modo, que o teor do declarado nas escrituras públicas de compra e venda (2 escrituras referenciadas nos pontos 2.1.7. e 2.1.10.) não pode, nos termos reconhecidos na sentença apelada, manter toda a sua validade e eficácia, antes devendo-se reconhecer a sua viciação, por absoluta simulação, conducente à sua declaração de nulidade [21].  
O que determina, consequentemente, decaimento das conclusões recursórias apresentadas e, na afirmação da improcedência da presente apelação, juízo de confirmação da sentença apelada/recorrida.
Tendo sido apresentada, a título subsidiário, a ampliação do âmbito do recurso, a conhecer apenas caso este fosse julgado procedente, inverificado este pressuposto, não urge conhecer acerca dos fundamentos da referenciada ampliação.
O que se consigna.
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Relativamente à tributação, decide-se o seguinte:
decaindo as Apelantes Rés no recurso interposto relativamente à sentença apelada, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, são as mesmas responsáveis pelas custas devidas, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que gozam.
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IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, o seguinte:
I) julgar totalmente improcedente a presente apelação, interposta pelas Recorrentes/Apelantes MG… e AM…, em que figura como Recorrido/Apelado MA…, confirmando-se, in totum, a sentença apelada/recorrida ;
II) relativamente á tributação:
- decaindo as Apelantes Rés no recurso interposto relativamente à sentença apelada, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, são as mesmas responsáveis pelas custas devidas, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que gozam.
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Lisboa, 08 de Outubro de 2020
Arlindo Crua - Relator
António Moreira
Carlos Gabriel Castelo Branco
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[1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 155, 156, 158 e 159.
[3] Acórdão datado de 28/04/2016, disponível in www.dgsi.pt .
[4] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 164 e 165.
[5] Relator: Lopes do Rego, Processo nº. 233/09.4TBVNG.G1.S1, in www.dgsi.pt .
[6] Relator: Tomé Gomes, Processo nº. 299/05.6TBMGD.P2.S1, in www.dgsi.pt .
[7] Processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, in www.dgsi.pt .
[8] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 157.
[9] Carlos Alberto de Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição Actualizada, Coimbra Editora, 1986, pág. 463, refere estarmos “perante uma divergência intencional, quando o declarante emite, consciente e livremente, uma declaração com um sentido objectivo diverso da sua vontade real – quando a divergência é, portanto, voluntária”.  
[10] Todas as referências legais infra, salvo expressa menção em contrário, reportam-se ao presente diploma.
[11] Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, pág. 227.
[12] No que concerne ao requisito de intencionalidade de enganar terceiros, Mota Pinto, ob. cit., pág. 472, nota 1, refere poder “verificar-se um erro sobre a necessidade da simulação para conseguir os objectivos visados. Esta circunstância não exclui a qualificação do acto como simulado”.
[13] Notas ao Código Civil, Vol. I, 1987, págs. 315 e 316.
[14] Mota Pinto, ob. cit., pág. 473, refere que na “simulação relativa as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e na realidade querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso. (.....) Por detrás do negócio simulado ou aparente ou fictício ou ostensivo há um negócio dissimulado ou real ou latente ou oculto (...)”.
[15] Idem, págs. 472 e 473.
[16] Ibidem, pág. 477.
[17] Manuel Pita, Código Civil Anotado, Vol. I, Coordenação Ana Prata, Almedina, 2017, pág. 294.
[18] Mota Pinto, ob. cit., pág. 379.
[19] Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, ob. cit., Vol. IV, pág. 65.
[20] cf., o douto Acórdão do STJ de 02/11/2006, Doc. nº SJ200611020037207, Relator: Salvador da Costa, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf .
[21] Acerca dos requisitos da simulação, cf., o douto Acórdão do STJ de 02/03/2004, Relator: Nuno Cameira, Doc. nº SJ200403020039136, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf .