EXECUÇÃO
CONTRATO DE MÚTUO
INCUMPRIMENTO
TÍTULO
ABUSO DE DIREITO
SUPRESSIO
Sumário


I- Atento o disposto no art.º 707º do CPC, o contrato de mútuo celebrado por escritura pública, acompanhado dos documentos complementares, que provam o incumprimento por parte dos executados das obrigações dele constantes, a comunicação do vencimento da totalidade da dívida e a interpelação para o respectivo pagamento, constitui título suficiente para a presente execução.
II- Não houve inércia do Banco exequente no exercício dos seus direitos contratuais, nomeadamente no direito de accionar judicialmente (instauração da presente execução), exercido prontamente e, por isso, insusceptível de constituir abuso de direito na modalidade que a doutrina configura como “supressio” – decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido.
III- Por outro lado, na pendência da execução e dos presentes embargos, a circunstância do Banco ter vindo a pagar-se da dívida, como o fazia antes, através da conta D.O., comunicando aos autos de execução que tais valores eram aplicados e imputados na amortização parcial da divida exequenda, também nunca poderia criar nos executados a legitima expectativa do “ressurgimento do contrato”, até porque só uma transacção ou acordo entre as partes poderia ter esse efeito de manutenção do contrato nos termos anteriores.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Por apenso aos autos de execução, para pagamento de quantia certa, que o Banco … S.A move a M. C. e mulher, G. P., vieram estes, separadamente, deduzir embargos à execução, com os seguintes fundamentos:

O embargante M. C., alega em síntese:

– Reconhece ter alienado o imóvel hipotecado e que na cláusula 9º do contrato se prevê, que, nessa hipótese, o credor poderá executar a hipoteca. Contudo tal clausulado era por si desconhecido, uma vez que faz parte de documento complementar à escritura, de que não dispõe do original, nem de qualquer cópia, nem foi temática abordada pelo funcionário bancário, aquando da contratação do mútuo, convencendo-se de que, desde que mantivesse o pagamento pontual das prestações, poderia dispor do imóvel, desde que a parte adquirente aceitasse o ónus que sobre ele incide.
– Tal alienação em nada prejudicou o credor, estando o mútuo acordado a ser integral e pontualmente pago.
– A alienação (dação em cumprimento) deveu-se a ter padecido de doença de que resultou ter ficado com a incapacidade permanente global de 64%. Nesse período a sociedade de que era sócio foi declarada insolvente. Face às dificuldades económicas, que então atravessava, teve de recorrer à ajuda do seu filho P. R., também executado nos presentes autos (beneficiário da dação em cumprimento)
– O imóvel hipotecado continuou a ser habitado pelos mutuários e aqui executados, dele cuidando como se lhes pertencesse; os seguros multirriscos e vida, indexados ao mútuo, de igual forma continuaram a ser pagos; a prestação mensal bem como as despesas conexas ao contrato de mútuo continuaram a ser integralmente pagas, mantendo-se inalteradas todas as demais condições contratuais.
– Conclui que, o credor hipotecário não viu a sua garantia diminuída por esta alienação nem a expectativa, que tem, de receber com juros o valor mutuado em 245 prestações mensais, foi posta em causa.
– Sem prescindir, invoca que a situação de doença e consequentes dificuldades económicas que atravessou, constitui uma alteração anormal das circunstâncias em que contratou, que, no seu entender, justificam a modificação do contrato no sentido da supressão da cláusula nona do documento complementar ao mútuo com hipoteca.

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A embargante G. P. , aderindo aos embargos apresentados pelo seu marido alega ainda:
– A exequente não resolveu o contrato, pois continuou a debitar na conta bancária associada ao crédito, a prestação mensal que se vence a 25 de cada mês, juntamente com seguro de vida associado e demais despesas de processamento.
– Contactado o balcão sobre o teor da carta e o que se acabou de dizer no artigo anterior, um funcionário da exequente referiu à executada que não se devia preocupar, que o crédito iria continuar normalmente e não tinham qualquer indicação de que este contrato fora resolvido.
– Até à presente data, em todos os dias 25 dos meses subsequentes, a referida prestação mensal tem sido integral e pontualmente paga pela executada no preciso dia do seu vencimento, por débito directo na sua conta D.O.
– Assim o contrato encontra-se em vigor (não foi, portanto, efectivamente resolvido) e como tal, não pode o documento autêntico, que serve de base à presente acção, servir como título executivo, ocorrendo manifesta inexequibilidade do título dado à execução, nos termos dos artigos 703º, nº 1, al. b) e 707º do CPC, que, desde já, deverá ser declarada com a consequente extinção da presente demanda.
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A exequente embargada apresentou contestação, nos dois apensos, defendendo, em síntese:

– O executado embargante M. C., em relação ao mútuo com hipoteca dado em execução, interveio na respectiva escritura pública, que outorgou na qualidade de comprador e mutuário, da mesma constando que foi lida aos outorgantes e aos mesmos explicado o seu conteúdo. Mais disseram e declararam no referido acto e título notarial, os aqui embargantes e aí quartos outorgantes, “que conhecem perfeitamente o conteúdo do referido documento complementar, pelo que dispensam a sua leitura”. Ora, a escritura em causa é documento autêntico, porque exarado por notário (cfr. nºs 1 e 2 do artigo 363º do Código Civil), pelo que faz prova plena dos factos que refere, por ocorridos perante o notário (nº 1 do artigo 371º do Código Civil), sendo que a sua força probatória só pode ser elidida com base na sua falsidade. Assim, está plenamente provado que os embargantes conheciam perfeitamente o estipulado e convencionado na cláusula nona desse documento complementar onde consta: “A presente hipoteca poderá ser executada: b) se o imóvel ora hipotecado vier a ser alienado, onerado, arrendado, total ou parcialmente, objeto de arresto, execução ou qualquer outro procedimento cautelar ou ação judicial, casos em que se consideram igualmente vencidas e exigíveis as obrigações que assegura”.
– Os pagamentos parciais e não prestações, realizados mensalmente pelos executados, não fazem o incumprimento contratual extinguir-se, nem extinguem a divida, já que não representam um cumprimento pontual e integral do valor em dívida, no montante de € 39.027,57 de capital não amortizado, acrescido dos juros e demais encargos, tal como o peticionado no requerimento executivo.
– Em processo executivo, confinado aos limites do título – escritura pública – não cabe a modificação dos contratos segundo juízo de equidade, e, ainda menos, a sua resolução prevista no artigo 437ºdo C.C.
– Contudo e sem prescindir, sempre se dirá que nunca o caso dos autos poderá prefigurar uma situação de resolução ou modificação por alteração anormal das circunstâncias em que as parte fundaram a decisão de contratar, pois a alegada doença não é uma circunstância anormal, nem imprevisível e está coberta pelos riscos do contrato.
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Os embargos dos executados, que haviam sido autuados em apensos distintos, na sequência de despacho proferido neste apenso A passaram a ser tramitados em conjunto neste apenso.
Proferiu-se despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu pela total improcedência dos embargos
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Inconformada, a embargante G. P. interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

«I - A Recorrente não se conforma com a douta sentença que julgou improcedente a exceção de inexistência de título executivo e considerou a atuação do Banco Exequente como não enquadrável no instituto do abuso de direito;
II – crê que os extratos juntos aos autos demonstram cabalmente a manutenção, por válido e vigente, do contrato de mútuo celebrado no ano de 2005, nomeadamente em confronto com o teor das suas cláusulas sexta e décima quinta;
III – todas as prestações pagas ao acordado dia 25 de cada mês, com a comissão de processamento e indicação de capital remanescente em dívida, tal qual espelham os extratos de conta corrente enviados pelo Banco Exequente à Executada, disso são corolário;
IV – razão pela qual o contrato de mútuo, por não incumprido, não poderá valer como título executivo na presente ação;
V – por outro lado, sendo outro o melhor entendimento conforme ao direito, entende a Recorrente que a atuação do Banco Exequente se enquadra no instituto do abuso de direito.
VI – considerando o contrato incumprido nunca o Banco poderia continuar a cobrar a prestação mensal com os devidos encargos, criando na Executada a legítima expectativa de que o mútuo perduraria até ao final do seu prazo;
VII - após a instauração da ação, foram os comportamentos repetidos do Banco Exequente que criaram na Executada a convicção do surgimento da nova realidade – a manutenção do mútuo até ao integral pagamento nos moldes acordados, expectativa que merece tutela do direito.
VIII – como nos ensina o STJ o abuso de direito não se basta com as modalidades apontadas na sentença em crise – a exceptio doli, o venire contra factum proprium, o tu quoque ou o desequilíbrio no exercício jurídico; não é, portanto, absolutamente necessário coordenar a situação sub judice a algum dos tipos enunciados, devendo a atuação do Banco Exequente, independentemente da subsistência da validade do mútuo ou efetivamente da sua resolução, merecer censura nos termos do artigo 334º do Código Civil.
IX - Para a verificação do “abuso de direito” (art. 334º, do C. Civil), optou o legislador por uma conceção objetivista, não exigindo que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo; basta que, objetivamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito exercido tenham sido exercidos de forma evidente, tal qual o caso dos autos.

TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, julgando-se verificada a exceção de inexistência de título executivo ou condenando o Banco nos termos do artigo 334º do Código Civil. ».
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A apelada contra-alegou
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O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).

As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que assim se sintetizam:

– “Reapreciação da prova”.
– Inexistência ou insuficiência do título executivo.
– Abuso de direito.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Factualidade julgada provada na sentença:
«1.- Por escritura pública denominada " Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca", outorgada e celebrada em 18 de Novembro de 2005 no Cartório Notarial em … do Notário R. P., e exarada de fls. 21 a 23 verso do Livro nº 26/E, os aqui embargantes M. C. e G. P. confessaram-se solidariamente devedores ao Banco aqui exequente da quantia de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), que do mesmo Banco receberam por empréstimo e que aplicaram no pagamento do preço devido pela aquisição da fração autónoma naquela escritura identificada, conforme documento junto com o requerimento executivo, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
2.- Neste mesmo ato contratual e notarial, os mutuários, atrás referidos e aqui executados, obrigaram-se a reembolsar o Banco mutuante do capital do empréstimo e respetivos juros remuneratórios através de 245 (duzentas e quarenta e cinco) prestações mensais e sucessivas, de capital e juros, e com vencimento, a primeira delas, em 25 de novembro de 2005 e as demais em igual dia dos meses subsequentes, até ao termo do contrato. E para garantia do pagamento ou restituição de tal quantia mutuada e seus juros, remuneratórios e/ou moratórios, os mutuários, acima indicados, declararam então e nesse ato notarial que constituíam hipoteca, até ao montante máximo de capital e acessórios de € 94.065,00 (noventa e quatro mil e sessenta e cinco euros), a favor do Banco aqui exequente e sobre o imóvel nessa escritura identificado e aqui indicado à penhora, hipoteca essa que, de resto, se encontra já definitivamente registada na competente Conservatória do Registo Predial, conforme se comprova pela correspondente certidão de registo predial que se junta a final.
3.- Os mutuários, ora embargantes, em 22 de agosto de 2013, através de acordo e contrato escrito denominado DAÇÃO EM CUMPRIMENTO COM ASSUNÇÃO DE DÍVIDA, devidamente autenticado pelo Solicitador P. B., titular da cédula profissional nº … e com escritório na Rua …, da Cidade de Braga, declararam efetuar dação em cumprimento da fração autónoma, hipotecada ao Banco aqui exequente, a favor do aqui também executado P. R., alegadamente para pagamento de uma dívida para com este último do montante de € 28.300,00 (vinte e oito mil e trezentos euros), conforme documento nº 3 junto com o requerimento executivo, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
4.- Efetuado que foi o aludido contrato de DAÇÃO EM CUMPRIMENTO, o direito de propriedade dos referidos M. C. e G. P. sobre a fração autónoma em causa e que havia sido dada em hipoteca para garantia do bom cumprimento do empréstimo àqueles concedido pelo Banco aqui exequente, transmitiu-se, por essa forma de alienação, dos acima aludidos mutuários e aqui executados/embargantes M. C. e G. P. para o executado P. R., tendo este desde logo feito registar a correspondente aquisição, mediante a Apresentação 445 de 2013/08/23.
5.- A referida dação em cumprimento da fração autónoma hipotecada a favor do Banco aqui exequente não foi prévia ou posteriormente autorizada ou por qualquer forma consentida pelo Banco mutuante e aqui exequente, sendo que na Cláusula NONA, alínea b) do Documento Complementar que faz parte integrante do contrato de mútuo com hipoteca formalizado pela escritura pública identificada em 1., ficou expressamente convencionado que: "A presente hipoteca poderá ser executada (...) b) se o imóvel ora hipotecado vier a ser alienado, onerado, arrendado, total ou parcialmente, objeto de arresto, execução ou qualquer outro procedimento cautelar ou ação judicial, casos em que se consideram igualmente vencidas e exigíveis as obrigações que assegura (...)"..
6.- O Banco aqui exequente, em 3 de Novembro de 2016, enviou a cada um dos aqui executados M. C. e G. P., carta registada com aviso de receção, pela qual comunicou aos embargantes, além do mais, que "em face da transmissão do imóvel a favor de terceiros", considerava "vencidas e exigíveis todas as obrigações pecuniárias emergentes do Contrato de Mútuo Com Hipoteca", declarando ainda que tal era resultado e ocorria por "força do incumprimento contratual ao abrigo do disposto na alínea b) da cláusula Nona do documento complementar elaborado nos termos do número 2 do artigo 64 do Código do Notariado, anexo à identificada escritura pública, da qual faz parte integrante", ao mesmo tempo que, interpelou os mesmos mutuários para proceder ao pagamento integral do valor em dívida, no montante global, àquela data de 3 de Novembro de 2016, de € 39.027,57 (trinta e nove mil e vinte e sete euros e cinquenta e sete cêntimos) acrescido dos juros e respetivo imposto de selo, devendo tal pagamento ser feito no prazo máximo de quinze dias, "sob pena de imediato acionamento judicial", juntas com o requerimento executivo como documentos nºs 4 e 5, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7.- Do mesmo modo, o Banco aqui exequente enviou, com data daquele mesmo dia 3 de Novembro de 2016, uma outra carta com aviso de receção ao aqui igualmente executado P. R., comunicando-lhe o imediato vencimento das obrigações pecuniárias emergentes do contrato de mútuo garantido pela hipoteca da fração autónoma que veio por aquele a ser adquirida, nos termos acima explanados, juntas com o requerimento executivo como documento nº 6, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
8.- No decurso do ano de 2012, o aqui executado M. C. adoeceu gravemente, tendo, sem que nada o fizesse prever, sido atirado para uma cama de hospital durante sucessivos meses e sujeito a várias intervenções cirúrgicas, resultando da última a aplicação de uma prótese na anca.
9. - Em resultado veio a ser-lhe declarada a incapacidade permanente global de 64%, conforme documento n.º 1 junto com a petição de embargos, cujos dizeres se dão aqui por integramente reproduzidos.
10.- Durante o longo período de doença e de recuperação, que perdura, esteve este executado M. C. impedido de trabalhar e de desempenhar quaisquer funções na empresa da qual foi sócio gerente.
11.- A empresa do embargante foi depois a referida sociedade declarada insolvente por sentença transitada em julgado na data de 16 de novembro de 2013 no âmbito do processo nº 5921/13.8TBBRG.
12.- O imóvel identificado no contrato referido em 1. continuou a ser habitado pelos mutuários e aqui executados M. C. e mulher, dele cuidando como que se deles fosse, o seguro multirriscos e vida, indexados ao mútuo, de igual forma continuaram a ser pagos.
13.- Até à presente data, o banco exequente, mensalmente, retira da conta bancária dos embargantes o valor da prestação mensal contratualizada no âmbito do contrato de mútuo com hipoteca identificado em 1.
14.- … sendo que no mês de setembro de 2019, foi descontado dessa conta bancária do embargante, a título de pagamento da prestação 166 do “empréstimo hipotecário” o valor de 348,09 euros, conforme extrato bancário junto na audiência de julgamento – cfr. documento junto ao histórico no dia 06-11-2019.
15.- Até à presente data, os embargantes sempre pagaram atempadamente ao banco exequente as prestações acordadas no âmbito do contrato identificado em 1.»

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) Da “reapreciação da prova”

Embora a apelante no cap. IV das suas alegações, sob a epígrafe “DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO”, faça menção à reapreciação da prova gravada e, mais adiante, entre os argumentos que aduz no sentido da procedência do recurso, insira excertos do depoimento de uma testemunha, certo é que em parte alguma das suas conclusões, ou mesmo no corpo das alegações, indica qual o ponto da matéria de facto que reputa de incorrectamente julgado ou, não sendo esse o caso, qual o facto não contemplado na sentença que pretende seja aditado.

Ora, o nº 1 do art.º 640º do CPC impõe ao recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Como refere Lopes do Rego in “Comentário ao Código de Processo Civil”, pág. 465 e 466, o ónus imposto ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto traduz-se do seguinte modo:

a) Na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento – o ponto ou pontos da matéria de facto – da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento;
b) No ónus de fundamentar, em termos concludentes, as razões porque discorda do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios (constantes de auto ou documento incorporado no processo ou de registo ou gravação nele realizada) que implicavam decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto.

No presente caso não se mostra cumprido o disposto no nº 1 al. a) do referido artigo.
Tal omissão não pode ser suprida através de convite ao aperfeiçoamento, pois que, o recurso que tem por objecto a impugnação da matéria de facto, não comporta tal possibilidade – cfr. Ac. STJ, 09/02/2012, proc.1858/06.5TBMFR.L1.S1, www.dgsi.pt e jurisprudência aí citada, que indicia ser este o entendimento maioritário.
Consequentemente, o não cumprimento do ónus imposto à apelante pelo nº1 do art.º 640º do CPC implica a rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto da sentença, se efectivamente era essa a pretensão da apelante.

B) Inexistência de título executivo

A suficiência do título traduz a exigência de que a obrigação exequenda dele conste, sem necessidade de indagação, sendo a sua existência por ele presumida. O título executivo há-de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda.
Contudo, o art.º 707º do CPC permite que alguns elementos da obrigação exequenda possam não constar do documento que serve de título executivo, mas de outro documento, ou com força executiva própria ou emitido em conformidade com o documento autêntico ou autenticado apresentado como título executivo, considerando que tal constitui garantia suficiente da existência da dívida [1].
Por isso, como já referimos no nosso acórdão de 14.3.2019 [2], num contrato deste tipo – mútuo bancário (com hipoteca) em que se acorda o pagamento dos juros e a restituição do capital de forma fraccionada, em prestações mensais – quando se vem exigir a totalidade do capital em dívida e dos juros vencidos e não apenas prestações em dívida (estas sim directamente resultantes das obrigações assumidas no contrato), o título, ou causa de pedir da acção executiva, compreende não só o contrato, onde porventura se clausulou a possibilidade do mutuante exigir a totalidade do capital mutuado, como os documentos comprovativos da verificação do evento de funcionamento dessa cláusula, ou da perda do benefício do prazo, ou de se ter operado a resolução do contrato.

Defende a apelante que, em face da factualidade provada sob os nº 13 e 14 [até à presente data, o banco exequente, mensalmente, retira da conta bancária dos embargantes o valor da prestação mensal contratualizada no âmbito do contrato de mútuo com hipoteca identificado em 1.], o contrato de mútuo, por não incumprido, não poderá valer como título executivo na presente acção” (conclusão IV).
Ora, o incumprimento subjacente à execução a que estes embargos são movidos não respeita à obrigação de pagar mensalmente, na data para o efeito fixada e através de débito na conta à ordem dos embargantes, a prestação acordada, relativa, juros, amortização do capital ou outras quantias contratualmente devidas.
É sim um outro incumprimento contratual, previsto na cláusula Nona do contrato de mútuo (“A presente hipoteca poderá ser executada (...) b) se o imóvel ora hipotecado vier a ser alienado, onerado, arrendado, total ou parcialmente, objeto de arresto, execução ou qualquer outro procedimento cautelar ou ação judicial, casos em que se consideram igualmente vencidas e exigíveis as obrigações que assegura (...)" – cfr. facto nº 5.
Cláusula expressamente permitida pelo art.º 695º do CC.
Assim, o contrato de mútuo (titulado por escritura pública), acompanhado de certidão do registo predial que comprova o registo da hipoteca e a posterior transferência para terceiro do direito de propriedade sobre a fracção predial hipotecada, prova o incumprimento contratual, donde deriva o direito da Instituição de Crédito embargada considerar vencidas e exigir todas as obrigações que a hipoteca assegura.
Vencimento e exigência que o Banco exequente comunicou a cada um dos aqui embargantes, por cartas registadas enviadas em 3 de Novembro de 2016.
Mais os interpelando para procederem ao pagamento integral do valor em dívida àquela data de 3 de Novembro de 2016, no montante global de €39.027,57, acrescido dos juros e respectivo imposto de selo, devendo tal pagamento ser feito no prazo máximo de quinze dias, "sob pena de imediato accionamento judicial”.
Concluímos, que, nos termos do art.º 707º do CPC, o título (contrato de mútuo celebrado por escritura pública) – acompanhado dos referidos documentos complementares, que provam o incumprimento por parte dos executados, aqui embargantes, das obrigações dele constantes (cláusula nona), a comunicação do vencimento da totalidade da dívida e interpelação para o respectivo pagamento – é suficiente.
Improcedem assim, nesta parte, as conclusões da apelante.

C) Do Abuso de Direito

Alega a apelante que, considerando o contrato incumprido, nunca o Banco poderia continuar a cobrar a prestação mensal com os devidos encargos, criando na executada a legítima expectativa de que o mútuo perduraria até ao final do seu prazo.
A este propósito refere a apelante:

– «O Banco, depois desta ação judicial interposta, continuou a agir como se não a tivesse intentado; cobrando mensalmente a prestação e a comissão de processamento, comunicando ao executado o valor da próxima prestação, o capital em dívida remanescente e o número sequencial de cada prestação. (sublinhado nosso)
Portanto, é esta factualidade que, salvo melhor opinião, se enquadra no previsto no art.º 334.º do Código Civil. Esta atuação do Banco criou a convicção na contraparte de que o direito de aquele exigir a totalidade da dívida não mais seria exercido. É certo que subsistia uma ação judicial, mas a cada mês a Executada recebia um extrato bancário onde lhe comunicavam que o contrato de mútuo que havia celebrado estava a ser cumprido por ambas as partes.
(…) Ora, exigir que para haver abuso de direito teria de haver um grande lapso de tempo entre o envio da missiva e o ato de intentar a ação vai ao encontro da já consagrada prescrição prevista no nosso ordenamento jurídico.
Temos aqui, e nas palavras do Prof. Doutor António Menezes Cordeiro, em “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, disponível em https://oa.pt, que:
(…) “O quantum do não-exercício será determinado pelas circunstâncias do caso: o necessário para convencer um homem normal, colocado na posição do real, de que não mais haveria exercício.
A justificação será reforçada por todas as demais circunstâncias ambientais capazes de conformar essa convicção, legitimando-a.
Quer isto dizer que, no fundo, o confiante ex bona fide, vê surgir, na sua esfera, uma nova posição jurídica: será a surrectio (surgimento)(106), contraponto da suppressio.”
In casu, após a instauração da ação, o Banco Exequente pratica atos que fazem a contraparte pensar que o contrato permanecia válido e iria perdurar até ao 245º mês, expectativa que merece tutela jurídica.»

Apreciando
O que se discute não é se o Banco podia ou não podia continuar a fazer seu, mensalmente, montante equivalente ao da prestação contratualmente assumida pelos mutuários, mas apenas, se, ao fazê-lo, criou nos embargantes, concretamente na aqui apelante, a legitima expectativa da manutenção do mútuo até ao integral pagamento, nos moldes acordados, de forma a que o exercício do seu direito se deva considerar ilegítimo.
Diz-nos o art.º 334º do CC que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Na doutrina a “supressio”, como uma das variantes do abuso de direito, que, no caso, é concretamente invocada pela apelante, funda-se na tutela da confiança e na boa-fé. O que a distingue do “venire contra factum proprium” é a ausência de factum (conduta anterior), bastando o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar à contraparte a fundada expectativa de que o direito não mais será exercido. Por seu turno a surrectio é o contraponto da supressio, ou seja o direito que surge na esfera jurídica do confiante de boa fé [3].
Ora, basta atentar no teor da conclusão VII (“após a instauração da ação, foram os comportamentos repetidos do Banco Exequente que criaram na Executada a convicção do surgimento da nova realidade”) para imediatamente se postergar a possibilidade de existir abuso de direito por parte da exequente, seja na modalidade, que a doutrina configura como supressio, seja como surrectio.
Vejamos.

No presente caso, os direitos que poderiam ter sido exercidos de forma abusiva pela exequente, seriam os de, nos termos da cláusula nona, considerar vencida a totalidade das obrigações emergentes do contrato de mútuo e exigir o seu pagamento, bem como, não sendo efectuado voluntariamente o pagamento, o de instaurar execução (direito de accionar judicialmente).
O comportamento da exequente que a apelante alega ter-lhe criado a confiança ou a expectativa de que o contrato se manteria, é posterior ao exercício dos referidos direitos, incluindo o direito a accionar judicialmente.
Efectivamente o Banco exequente comunicou em 3.11.2016 aos executados embargantes que, face à violação contratual (venda do imóvel hipotecado) considerava vencidas e exigíveis todas as obrigações pecuniárias emergentes do contrato, interpelando-os para efectuarem o pagamento no prazo de 15 dias. E logo em 14.12.2016 instaurou a execução.
Não houve assim qualquer inércia do Banco susceptível de constituir abuso de direito na modalidade que a doutrina configura como “supressio” – decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido.
Na pendência da execução a que estes embargos são movidos, o facto do Banco exequente ter vindo a pagar-se da dívida, como o fazia antes, através da conta D.O., – o que aliás lhe é permitido nos termos do contrato (cláusula 6ª e 11ª nº 3) – sempre tendo comunicado nos autos de execução que o valor depositado na conta dos executados era aplicado e imputado na amortização parcial da divida exequenda, não poderia criar qualquer expectativa aos executados, pois só uma transacção ou acordo entre as partes, poderia ter esse efeito de manutenção do contrato nos termos anteriores.
Assim, a situação em apreço não poderia criar a legitima expectativa do “ressurgimento do contrato”, isto é, de que o contrato de mútuo prosseguiria nos termos inicialmente acordados.
Sucumbem assim, na íntegra, as conclusões da apelante.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 01-10-2020

Eva Almeida
Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas



1. Ver acórdão do TRP de 8.11.2018 (Proc. nº 2896/17.8T8LOU-A.P1) in dgsi. pt.
2. Publicado em dgsi.pt (Proc. nº 6496/16.1T8GMR-A.G1).
3. Ver António de Meneses Cordeiro, “Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa In Agendo, página 58 e ainda em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/