ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Sumário

I - A conduta suscetível de integrar o venire contra factum proprium pressupõe, estruturalmente, duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si e diferidas no tempo. A primeira – o factum proprium – é contrariada pela segunda. O óbice reside na relação de oposição entre ambas.
II - O venire é suscetível de configurar um comportamento abusivo e por isso merecedor de censura legal, à luz do abuso de direito, tal como se mostra configurado no art. 334º CC, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé.
III - Ocorrendo a caducidade do contrato de arrendamento para habitação, por efeito de venda judicial do imóvel arrendado e permanecendo o arrendatário na fração, chegando este facto ao conhecimento do atual proprietário, após aquisição do imóvel, não atua com abuso de direito quando instaura ação de reivindicação.
IV - A indicação de um número de conta bancária para depósito de rendas e na qual foram depositadas apenas três rendas, cerca de cinco anos antes da instauração da ação de reivindicação não constitui só por si um facto suscetível de criar a confiança em quem ocupa a fração que está a ser reconhecido como arrendatário.

Texto Integral

Reiv-6351/18.0T8VNG.P1
Relator por vencimento ( art. 663º/CPC):Juiz Desembargador Ana Paula Amorim
1º Adjunto: Juiz Desembargador Manuel Fernandes
2º Adjunto/Relator, por vencido, conforme voto que lavra: Juiz Desembargador Joaquim Moura

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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto
(5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório
Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum em que figuram como:
- AUTORA: “B…”, legalmente representado por “C…, S.A.”, com sede com sede na Rua …, …. - … Lisboa; e
- RÉU: D…, com morada na Avenida …, n.º …, …, …, …, …. - … Vila Nova de Gaia.
pede a autora a condenação do réu:
- a reconhecer e a respeitar o direito de propriedade do autor sobre a fração em causa nos autos;
- restituir a fração à posse do autor, retirando-se da mesma e retirando dela as coisas de sua pertença que nela colocou e abster-se da prática de quaisquer atos turbadores ou esbulhadores da posse ou de alguma forma perturbadores do exercício do direito de propriedade;
- indemnizar o autor pelos prejuízos resultantes do uso ilegítimo da fração, no valor mensal de 400,00€ (quatrocentos euros) até entrega efetiva do imóvel.
Alegou para o efeito e em síntese, que é legítimo proprietário da fração autónoma designada pela letra “O”, sita na Avenida …, n.º …, primeiro andar direito traseiras, corpo II, destinada a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, …, … e …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia.
Adquiriu a fração, por compra e venda, à E…, estando a aquisição registada a seu favor na competente conservatória de registo predial.
Mais alegou que o réu ocupa essa fração sem a sua autorização e, com a sua conduta, impede o autor de ter o seu gozo pleno e exclusivo e dar-lhe o destino que entender, que, em princípio seria dá-la de arrendamento, assim lhe causando um prejuízo que computa em €400,00 mensais.
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Citado o réu não apresentou contestação.
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Alegando ter tido conhecimento da pendência desta ação, F…, viúva portadora do número de identificação fiscal ……… e residente na Avenida …, n.º…, …. - …, em Vila Nova de Gaia veio «deduzir, em Oposição Espontânea, Incidente de falsidade».
Alegou para o efeito que há mais de 14 anos, celebrou com G…, anterior proprietária da fração reivindicada, um contrato de arrendamento e é a coberto desse arrendamento, não denunciado ou resolvido por qualquer das partes, que habita a casa, aí não residindo nenhum D….
Esse facto é do conhecimento do autor que até interpelou o seu filho H… para proceder ao depósito das rendas na conta n.º ………….-., e assim aconteceu durante algum tempo, só deixando de o fazer por recusa da “entidade supostamente proprietária da fração, em dar a conhecer quer a forma da aquisição da fração, quer o preço, quer ainda, em emitir os recibos de renda”.
Considera que o autor alega uma realidade que sabe ser inexistente, atuando de má-fé.
Concluiu a peça processual formulando os seguintes pedidos:
“Nestes termos, perante a presente intervenção, mediante Oposição Espontânea, e a dedução do presente incidente de falsidade, deverá a presente intervenção/Oposição ser julgada procedente por provada e em sequência ser:
a) A Interveniente declarada como a legal e real arrendatária do locado sito na Av. … n.º …, …, …, Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º …/…… e inscrito na matriz predial sob o n.º 3018;
b) Ser a Interveniente/oponente declarada como legal possuidora do imóvel em referência, de forma lícita e legal;
c) Ser a Requerente/Autora condenada na prestação de prova da aquisição da fração em causa bem como na comunicação à ora Interveniente/Oponente de tal aquisição bem assim como a comunicação dos restantes deveres legais que são pressupostos da licitude e habilitação no contrato de arrendamento;
d) Ser julgado improcedente o pedido da Requerente/Autora por falso, e ser extinta a presente instância;
e) A Requerente deverá ser ainda condenada como litigante de má-fé nos termos peticionados».
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Na sequência de convite que lhe foi dirigido para “esclarecer/corrigir o seu articulado”, veio a interveniente deduzir, expressamente, reconvenção, renovando os pedidos já formulados.
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Notificado, o autor veio dizer que nada tinha tem a opor à intervenção espontânea de F… nos presentes autos e em réplica veio responder à matéria da reconvenção.
Alegou para o efeito e em síntese, que nunca teve conhecimento que a fração estava onerada ou ocupada. Tando assim que, quando comprou os bens à instituição bancária E…, os mesmo só foram adquiridos no pressuposto de não existirem quaisquer ónus ou encargos.
Só teve conhecimento que a fração estava ocupada através das diligências efetuadas por entidades externas, nomeadamente a sociedade “I…, L.da”, que consigo colabora, e foi através das diligências dessa entidade que chegou ao nome do Sr. D….
Nunca ouviu falar da Sra. F…, nem na existência de um “suposto” contrato de arrendamento. Arrendamento que, a existir, estando datado de 16.09.2005 e tendo por objeto prédio hipotecado com garantia anteriormente registada, sempre caducaria face ao preceituado no n.º 2 do art.º 824.º do Código Civil e no atual art.º 827.º n.º 2 do NCPC, uma vez que a fração foi vendida em processo de execução.
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Proferiu-se despacho que admitiu a intervenção principal espontânea de F… e a reconvenção.
Dispensou-se a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, fixou-se o objeto do processo e foram enunciados os temas de prova, sem reclamações.
Admitiu-se a produção dos meios de prova indicados pelas partes e designou-se data para a audiência de julgamento.
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Realizou-se o julgamento, com observância do legal formalismo.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Face ao exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e improcedente, por não provada a reconvenção e, consequentemente:
a) condena-se a Ré a reconhecer e a respeitar o direito de propriedade do Autor sobre a fração identificada no ponto 1 dos factos provados;
b) condena-se a Ré a entregar a referida fração autónoma ao Autor, retirando-se da mesma e retirando da mesma as coisas de sua pertença que nela colocou;
c) condena-se a Ré a abster-se da prática de quaisquer atos turbadores ou esbulhadores da posse ou de alguma forma perturbadores do exercício do direito de propriedade do Autor, e
d) condena-se a Ré a indemnizar o Autor pelos prejuízos resultantes do uso da fração, desde a data da citação até entrega efetiva do imóvel, a liquidar em momento ulterior, até ao montante mensal de € 400,00, e e) absolve-se o Reconvindo do pedido reconvencional”.
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A Interveniente veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
……………………………………….
……………………………………….
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Termina por pedir a procedência da apelação e a revogação a sentença recorrida.
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Na resposta ao recurso o apelado formulou as seguintes conclusões:
1) Bem andou o tribunal “a quo” em dar como provados os factos:
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…………………………………………………...
…………………………………………………...
Concluiu pedindo a improcedência da apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais e ficando o relator vencido quanto à decisão, foi facultado o processo para elaboração do acórdão pelo primeiro adjunto vencedor, ao abrigo do art. 663º/3 CPC.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova;
- da existência de justo título de ocupação do imóvel.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1-A aquisição da fração autónoma designada pela letra “O”, sita na Avenida …, n.º …, primeiro andar direito traseiras, corpo II, destinada a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Avenida …, …, … e …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, foi registada a favor de G…, pela AP. 09/091092, conforme documento junto a fls. 131 a 134.
2- Pela AP. 12/240893, foi constituída e registada sobre o referido imóvel uma hipoteca voluntária a favor da E….
3 - Em 16 de setembro de 2005, a Ré celebrou com G…, um contrato de arrendamento com a duração de um ano, renovável por iguais períodos, com início em 16 de setembro de 2005, tendo por objeto a identificada fração autónoma, conforme documento junto a fls. 95 a 97.
4 - O referido contrato nunca foi denunciado ou resolvido por qualquer das partes.
5 - A aquisição da identificada fração autónoma, por venda judicial, foi registada a favor da D… AP. 110 de 2006/12/12.
6- A referida fração autónoma foi adquirida por J… à E…, por escritura pública de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de K…, em 3 de outubro de 2012, conforme documento junto a fls. 18 a 38.
7 - O filho da Ré, H…, foi informado, por email datado de 19 de novembro de 2013, de que poderia depositar o valor da renda em conta ou fazer uma transferência bancária, em nome de J…, o que durante algum tempo foi realizado tal como solicitado.
8- Por escritura pública de cisão de fundo de investimento imobiliário, outorgada no Cartório Notarial de K…, em 30 de dezembro de 2013, foram separados os patrimónios provenientes do Grupo E…, dando surgimento ao fundo especial de investimento imobiliário aberto designado por B…, Autor nos presentes autos, conforme documento junto a fls. 41 a 64.
9 - O direito de propriedade sobre a identificada fração autónoma encontra-se definitivamente registado a favor do Autor na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob a ficha de descrição predial número …/…….-., conforme certidão permanente com o código de acesso: PP-….-…..-……-……., junta a fls. 65 e 66.
10 - O referido prédio está inscrito na matriz predial urbana do concelho de Vila Nova de Gaia, freguesia de …, sob o artigo 7270, onde o Autor figura como titular do rendimento da fração, conforme caderneta predial junta a fls. 67 e 68.
11 - A Ré ocupa a referida fração autónoma desde 16 de setembro de 2005.
12 - O Autor desenvolve a atividade de compra de imóveis para os vender ou arrendar, cobrar as rendas, fazer obras, renovar contratos e procurar novos inquilinos, visando o maior lucro possível com o menor nível de risco.
13- O Autor só teve conhecimento de que a referida fração autónoma estava ocupada através das diligências efetuadas pela sociedade I…, Lda., que colabora com o Autor a fim de averiguar o estado de conservação dos imóveis e realizar as intervenções necessárias à salvaguarda dos mesmos.
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- Factos não provados
- O filho da Ré, H…, liquidava a renda diretamente à proprietária do imóvel, em nome de sua mãe;
- Dado o valor do imóvel, a taxa de referência (L…) – expectativa de rendimento anual gerado pelo melhor produto imobiliário de um determinado seguimento - o estado de conservação, a área e o gozo que permite, a fração autónoma referida em 1 poderia ser colocada no mercado de arrendamento pela quantia de €400,00 mensais.
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3. O direito
- Reapreciação da decisão de facto –
O Exmº Juiz Desembargador relator, Dr J. Moura ficou vencido apenas em relação à decisão de mérito e por esse motivo, reproduz-se o teor do acórdão que versou sobre a reapreciação da decisão de facto e que obteve a votação por unanimidade dos três juízes:
“O n.º 1 do artigo 662.º do CPC põe a cargo da Relação o dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto sempre que «os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa» e este preceito (em conjugação com o artigo 640.º, n.º 1) tem sido interpretado no sentido de que, por um lado, à segunda instância não cabe proceder à reapreciação da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, pois duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso, e por outro que, se não basta que as provas, simplesmente, permitam, ou até sugiram, conclusão diversa daquela que foi a conclusão probatória a que se chegou na primeira instância, também não se exige um erro notório, ostensivo na apreciação da prova para que a Relação deva proceder à alteração desse segmento da decisão.
Nesse enquadramento, o recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de cumprir (“sob pena de rejeição”) vários ónus de especificação:
- dos concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido, obrigação que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida[2];
- das concretas provas (constantes do processo ou que nele tenham sido registadas) que impõem decisão diversa da recorrida, ónus que se cumpre com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe outra decisão[3];
- da decisão (diversa da recorrida) que, na sua óptica, se impõe quanto a cada um dos pontos de facto que considera mal julgados.
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, as provas impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se-lhe que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado e que explicite os motivos dessa imposição. É essa explicitação que constitui o cerne do dever de especificação.
A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso.
A recorrente é clara na indicação dos pontos de facto que considera incorretamente julgados: é o descrito sob o n.º 13 do elenco de factos provados e o primeiro dos considerados não provados. E, também, cumpriu o ónus de tomar posição sobre qual deveria ter sido o sentido da decisão relativamente aos pontos de facto impugnados, como adiante se explicitará.
Vejamos se as provas que indica e as razões que esgrime convencem no sentido de que se impõe decisão diversa da recorrida quanto a esses pontos de facto.
Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
O primeiro ponto de facto que suscitou a reacção discordante da recorrente é, recorde-se, do seguinte teor:
«13- O Autor só teve conhecimento de que a referida fração autónoma estava ocupada através das diligências efetuadas pela sociedade I…, Lda., que colabora com o Autor a fim de averiguar o estado de conservação dos imóveis e realizar as intervenções necessárias à salvaguarda dos mesmos»
Para assim se pronunciar, o tribunal baseou-se no «depoimento prestado pela testemunha Dr. M…, o qual referiu que a sociedade I… fez uma vistoria aos imóveis adquiridos pelo Autor,
para ver o seu estado e, aquando da vistoria, constatou-se que o imóvel em causa nos autos estava ocupado, esclarecendo a testemunha que a vistoria teve lugar em 2012, após a aquisição do imóvel, bem como do depoimento prestado pela testemunha N…, funcionário da sociedade I…, Lda., o qual referiu que o Autor pediu à referida sociedade a tomada de posse do imóvel em causa nos autos, após a sua aquisição, pelo que a testemunha se deslocou ao imóvel, há alguns anos, 2/3 meses após a sua aquisição pelo Autor, referindo a testemunha que nunca conseguiu falar com ninguém, mas que segundo os vizinhos, o imóvel estava ocupado, facto que foi confirmado pelo responsável pelo condomínio, acrescentando a testemunha que o imóvel tinha os contadores da água e da luz ativos, pelo que não procedeu à mudança da fechadura e não tomou posse do imóvel».
Na ótica da recorrente, o facto que é objeto da impugnação «entra em contradição com o disposto nos pontos 7 e, por inerência nos pontos 6 e 8» e argumenta que a E…, como o “J…” «sempre souberam que aquela fração se encontrava a ser utilizada pela Ré aqui Recorrente, pois que se o não soubessem não teriam contactado para que o depósito das rendas fosse efetuado em conta bancária da titularidade da J…, nem teriam aceite aquelas rendas, tal como o aceitaram».
Por isso defende que aquele n.º 13 passe a ter o seguinte conteúdo:
«O Autor teve conhecimento de que a referida fração autónoma estava ocupada através das diligências efetuadas pela sociedade I…, Lda., em 2012, mas em 2013 solicitou o pagamento das rendas, por transferência ou por depósito, da titularidade do Autor, e em 19.12.2013 e em 13.02.2014 e 28.02.2014 foram depositadas as rendas pela Ré na conta …-.........-..»
Dos depoimentos das testemunhas M… e N…, concretamente, dos excertos transcritos pela recorrente, resulta que o autor, realmente, teve conhecimento de que a fração predial reivindicada estava ocupada na sequência de diligência realizada em 2012, tendo o segundo concretizado que foi cerca de dois meses depois da aquisição da fração (efetuada em 03.10.2012).
Os documentos juntos pela recorrente no decurso da audiência [cópias de email[4] e de três talões de entrega de numerário (de €75,00 cada um) a favor do autor] constituem prova bastante do contacto estabelecido com o autor tendo em vista o pagamento de rendas e das datas em que foram efetuados os depósitos.
Não ocorre a contradição apontada pela recorrente, como bem revela a comparação entre o conteúdo do ponto 13 impugnado e o que é indicado pela recorrente como sendo o que impõe a prova produzida: basicamente, a diferença está na indicação do ano (2012) em que esse conhecimento se verificou e que, na sequência do contacto a que se alude no ponto 7, foram feitos três depósitos de rendas na conta indicada pelo autor.
Justifica-se, pois, uma alteração do ponto 13, que passará a ter o seguinte conteúdo:
«13- O Autor teve conhecimento de que a referida fração autónoma estava ocupada em fins de 2012, através das diligências efetuadas pela sociedade “I…, L.da”, que colabora com o Autor a fim de averiguar o estado de conservação dos imóveis e realizar as intervenções necessárias à salvaguarda dos mesmos, e, na sequência da informação a que alude o ponto 7, em 19.12.2013, em 13.02.2014 e em 28.02.2014, foram depositadas rendas na conta …-.........-., de que era titular o autor “B…, como solicitado».
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Alega, ainda, a recorrente que se impõe que passe para o elenco de factos provados que «O filho da Ré, H…, liquidava a renda diretamente à proprietária do imóvel, em nome de sua mãe», baseando-se no depoimento do mesmo H….
Porém, além de não se tratar de facto relevante para a decisão da causa, é manifesto que não lhe assiste razão.
Quando ali se alude a “proprietária do imóvel” só pode estar a referir-se a G…, com quem a ré celebrou o contrato de arrendamento que teve o seu início em 16 de setembro de 2005 e as rendas seriam, necessariamente, as vencidas até 12.12.2006, quando se realizou a venda judicial da fração, altura em que a ré não teria dificuldades de locomoção.
Ora, do depoimento da referida testemunha decorre, claramente, que quando diz que era ele quem pagava as rendas está a reportar-se às depositadas em 2013 e nada mais.
Improcede, quando a este ponto, a impugnação”.
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Na reapreciação das restantes questões, por efeito da alteração da decisão de facto, cumpre ter presente os seguintes factos provados e não provados:
1-A aquisição da fração autónoma designada pela letra “O”, sita na Avenida …, n.º …, primeiro andar direito traseiras, corpo II, destinada a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Avenida …, …, …, e …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, foi registada a favor de G…, pela AP. 09/091092, conforme documento junto a fls. 131 a 134.
2- Pela AP. 12/240893, foi constituída e registada sobre o referido imóvel uma hipoteca voluntária a favor da E….
3 - Em 16 de setembro de 2005, a Ré celebrou com G…, um contrato de arrendamento com a duração de um ano, renovável por iguais períodos, com início em 16 de setembro de 2005, tendo por objeto a identificada fração autónoma, conforme documento junto a fls. 95 a 97.
4 - O referido contrato nunca foi denunciado ou resolvido por qualquer das partes.
5 - A aquisição da identificada fração autónoma, por venda judicial, foi registada a favor da E… pela AP. 110 de 2006/12/12.
6- A referida fração autónoma foi adquirida por J… à E… (…), por escritura pública de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de K…, em 3 de outubro de 2012, conforme documento junto a fls. 18 a 38.
7 - O filho da Ré, H…, foi informado, por email datado de 19 de novembro de 2013, de que poderia depositar o valor da renda em conta ou fazer uma transferência bancária, em nome de J…, o que durante algum tempo foi realizado tal como solicitado.
8- Por escritura pública de cisão de fundo de investimento imobiliário, outorgada no Cartório Notarial de K… em 30 de dezembro de 2013, foram separados os patrimónios provenientes do Grupo E…, dando surgimento ao fundo especial de investimento imobiliário aberto designado por B…, Autor nos presentes autos, conforme documento junto a fls. 41 a 64.
9 - O direito de propriedade sobre a identificada fração autónoma encontra-se definitivamente registado a favor do Autor na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob a ficha de descrição predial número …/……..-., conforme certidão permanente com o código de acesso: PP-….-…..-……-……, junta a fls. 65 e 66.
10 - O referido prédio está inscrito na matriz predial urbana do concelho de Vila Nova de Gaia, freguesia de …, sob o artigo 7270, onde o Autor figura como titular do rendimento da fração, conforme caderneta predial junta a fls. 67 e 68.
11 - A Ré ocupa a referida fração autónoma desde 16 de setembro de 2005.
12 - O Autor desenvolve a atividade de compra de imóveis para os vender ou arrendar, cobrar as rendas, fazer obras, renovar contratos e procurar novos inquilinos, visando o maior lucro possível com o menor nível de risco.
13- O Autor teve conhecimento de que a referida fração autónoma estava ocupada em fins de 2012, através das diligências efetuadas pela sociedade “I…, L.da”, que colabora com o Autor a fim de averiguar o estado de conservação dos imóveis e realizar as intervenções necessárias à salvaguarda dos mesmos, e, na sequência da informação a que alude o ponto 7, em 19.12.2013, em 13.02.2014 e em 28.02.2014, foram depositadas rendas na conta …-........-., de que era titular o autor “B…, como solicitado.
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Factos não provados
- O filho da Ré, H…, liquidava a renda diretamente à proprietária do imóvel, em nome de sua mãe;
- Dado o valor do imóvel, a taxa de referência (L…) – expectativa de rendimento anual gerado pelo melhor produto imobiliário de um determinado seguimento - o estado de conservação, a área e o gozo que permite, a fração autónoma referida em 1 poderia ser colocada no mercado de arrendamento pela quantia de €400,00 mensais.
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- Do título de ocupação do imóvel -
Nas conclusões de recurso, sob as alíneas Z) a TT), a apelante insurge-se contra o segmento da sentença que determinou a restituição do imóvel à autora e não reconheceu existir título legítimo para a interveniente ocupar o imóvel.
Não se questionando o direito de propriedade da autora, está em causa apurar se a apelante-interveniente dispõe de título válido que legitime a ocupação do imóvel.
Demonstrado o direito de propriedade da Autora sobre o prédio dos autos a Interveniente só poderia evitar a restituição do mesmo, desde que provasse que tinha sobre este outro direito real que justificasse a sua posse ou que o detém a título de direito pessoal bastante.
Como se prevê no art. 1311º/2 CC havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.
Como ensinava MANUEL RODRIGUES no seu estudo sobre “A reivindicação no direito civil português“, além das formas gerais de defesa, “o réu pode na ação de reivindicação defender-se com razões próprias desta ação.
O Réu pode dizer:
- que o objeto reivindicado lhe pertence;
- que tem sobre ele um direito real de usufruto; e
- em certos casos poderá mesmo defender a sua detenção, invocando um direito pessoal – o arrendamento, o depósito”[5].
Recai sobre o réu o ónus de alegação e prova dos factos que justificam a ocupação do prédio objeto de reivindicação, por constituir matéria impeditiva do direito à restituição, como decorre do art. 342º/2 CC.
A interveniente assentou a sua defesa na celebração válida e plenamente eficaz de um contrato de arrendamento para habitação permanente. Apenas em sede de recurso vem suscitar a questão do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, considerando que perante os factos provados a autora vem exigir de forma abusiva o direito à restituição do imóvel.
Com efeito, em sede de contestação/reconvenção a apelante-interveniente alegou, como se passa a transcrever:
“ A interveniente celebrou, em 16.09.2005, com a decessa G…, legal proprietária da fracção autónoma designada pela letra “O”, sita na Avenida …, n.º…, …, freguesia de …, Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º …/……. e inscrito na matriz predial sob o n.º 3018, contrato de arrendamento com a duração de um ano, renovável por iguais períodos, com início em 16 de Setembro de 2005.
O referido contrato de arrendamento encontra-se em vigor há 14 anos.
E, nunca foi por qualquer das partes primitivas ou pretensamente sucedâneas denunciado ou resolvido,
Continuando plenamente em vigor, mantendo todos os seus efeitos e vinculando cada uma das partes nos seus respetivos termos.
Em 2013 ou 2014, data certa que a Interveniente não pode precisar, a Interveniente teve conhecimento pelo seu filho H… que terá ocorrido um qualquer contrato de compra e venda ou transmissão da fração em causa,
Da qual nunca foi esta notificada.
De facto, o filho da Interveniente H…, que a acompanha e que em nome da mãe liquidava a renda diretamente à proprietária do locado, que faleceu, ficando este sem saber a quem entregar a renda, até porque a decessa não tinha descendentes ou ascendentes,
Tendo, já muito posteriormente a estes factos, sido este interpelado telefonicamente pela Autora para proceder ao depósito das rendas na conta n.º ……………-., da titularidade da Autora, sediada na E….
O que durante algum tempo foi cumprido e realizado tal como solicitado telefonicamente pela Autora.
Contudo, tais pagamentos deixaram de ser realizados pelo facto da Autora, supostamente proprietária da fração, se recusar em dar a conhecer a forma de aquisição da fração e o seu preço, bem como, pela recusa permanente em emitir os respetivos recibos de renda.
Ora, a Interveniente desconhece quaisquer factos ou motivos que estiveram na génese e na causa da aquisição da fração pela Autora.
Factos e motivos que a Autora sempre se furtou a comunicar à Interveniente ou sequer a notificá-la, legalmente, da sua posição de legal proprietária da fração “O”.
Na verdade, por forma a interpelar os legais representantes da Autora para a reposição dos direitos de sua mãe, procurou o filho da Interveniente, H…, junto da Conservatória do Registo Comercial inteirar-se sobre os responsáveis da entidade que alegadamente terá adquirido a fração.
Mas, tal não lhe foi possível dado que que se trata de uma sociedade não residente e a respetiva conservatória do registo comercial não dispõe de tais elementos.
Sucede que, a Interveniente encontra-se, até hoje, impedida de exercer os seus deveres e mesmo direitos potestativos sobre a referida fração, mormente o seu direito de preferência.
Antes de mais, porque nunca foi interpelada ou sequer notificada, extra ou judicialmente, para o pagamento de renda à Autora ou a terceiros e, muito menos para o exercício do seu direito de preferência aquando da venda da fração “O”, tenha sido esta realizada para a Autora ou para qualquer outro adquirente anterior.
Por outro lado, a Autora sempre se eximiu ao cumprimento do seu dever formal e legal de comunicação ao inquilino, tanto da alteração da titularidade do imóvel, bem como dos termos da aquisição do mesmo, pois que nunca deu cumprimento ao mesmo.
Nem quando o filho da Interveniente solicitou a Autora informações sobre a aquisição do imóvel veio aquela prestar quaisquer informações.
E, por último, nunca emitiu a Autora qualquer recibo de renda, mesmo já depois de estas se encontrarem a ser depositadas na conta de depósitos à ordem indicada por esta telefonicamente ao filho da Interveniente H….
Assim, a Interveniente/Oponente encontra-se coarctada nos seus deveres e direitos, tanto no dever do pagamento da renda a quem de direito, como no exercício efetivo do seu direito de preferência na alienação do imóvel, bem como, no seu direito de obter judicialmente, o que lhe era devido, os recibos de renda.
Pelo exposto, a Interveniente/Oponente é a legal e real arrendatária do locado sito na Av. …, n.º …, …, …, Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º …/……. e inscrito na matriz predial sob o n.º 3018, ocupando e possuindo o locado de forma lícita, legal, pacífica e de boa-fé, à vista de todos, desde 16.09.2005”.
Na Réplica a autora impugnou os factos alegados e suscitou a exceção de caducidade do contrato de arrendamento, alegando para o efeito que a ”data aposta no referido documento é “16 de Setembro de 2005”, pelo que, a existir, o pretenso arrendamento de prédio hipotecado com garantia anteriormente registada sempre caducaria face ao preceituado no n.º 2 do art.º 824.º do Código Civil e no atual art.º 827.º n.º 2 do NCPC. (cfr. com certidão de teor predial junta como documento 1 em anexo)”.
No despacho saneador fixaram-se como temas de prova a existência de título de ocupação, com a celebração do contrato de arrendamento, o pagamento das rendas e a exceção de caducidade do contrato.
Na sentença, apreciando da exceção de caducidade do contrato de arrendamento, julgou-se procedente a exceção com os fundamentos que se passam a transcrever:
“Resta apreciar a pretensão igualmente aduzida pelo Autor no sentido da condenação da Ré a restituir a aludida fração autónoma à posse do demandante.
Estatui o n.º 2 do art.º 1311.º que “havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.”
Haverá, assim, que apurar se resulta da factualidade provada a ocupação, pela Ré, da aludida fração autónoma e, em caso afirmativo, a existência de qualquer título que legitime a Ré a ocupar imóvel.
Ora, da factualidade provada resulta que a Ré ocupa a aludida fração autónoma desde 16 de setembro de 2005, data em que celebrou com G…, um contrato de arrendamento com a duração de um ano, renovável por iguais períodos, com início em 16 de setembro de 2005, tendo por objeto o referido imóvel, contrato esse que nunca foi denunciado ou resolvido por qualquer das partes.
Invoca o Autor a caducidade do referido contrato de arrendamento, com a venda judicial, em processo executivo, porquanto a fração autónoma objeto do mesmo se encontrava hipotecada com garantia anteriormente registada, face ao preceituado no n.º 2 do art.º 824.º do Código Civil e no atual art.º 827.º, n.º 2, do Cód. Processo Civil.
Dispõe o art.º 824.º, n.º 1, do Código Civil, que “A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida”, acrescentando o seu n.º 2 que “Os bens são transmitidos livres de direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.”
O contrato de arrendamento caduca, nos termos do art.º 1051.º do Código Civil: “a) Findo o prazo estipulado ou estabelecido por lei; b) Verificando-se a condição a que as partes o subordinaram, ou tornando-se certo que não pode verificar-se, conforme a condição seja resolutiva ou suspensiva; c) Quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado; d) Por morte do locatário ou, tratando-se de pessoa coletiva, pela extinção desta, salvo convenção escrita em contrário; e) Pela perda da coisa locada; f) Pela expropriação por utilidade pública, salvo quando a expropriação se compadeça com a subsistência do contrato; g) Pela cessação dos serviços que determinaram a entrega da coisa locada.”
Ora, a norma do n.º 2 do citado art.º 824.º não alude ao “contrato de locação”, mas apenas a “direitos reais”, e o citado art.º 1051.º não prevê a caducidade do contrato de locação nos termos do art.º 824.º, n.º 2, pelo que a doutrina e a jurisprudência não são unânimes quanto à questão colocada pelo Autor, de saber se, vendido o prédio hipotecado, em processo executivo, o contrato de arrendamento celebrado pelo executado depois do registo da hipoteca mas antes da realização da penhora caduca automaticamente, ou se tal questão se encontra regulada pelo art.º 1057.º do Código Civil.
A orientação maioritária, quer da doutrina[6], quer da jurisprudência[7], sustenta a aplicação ao arrendamento do disposto no n.º 2 do citado art.º 824.º, fazendo uma aplicação extensiva ou, se necessário, analógica, do preceito, para concluir que a existência de um contrato de arrendamento, registado ou não, celebrado após o registo de hipoteca, arresto ou penhora, caduca automaticamente com a venda judicial.
Fundamenta-se tal orientação essencialmente na seguinte argumentação:
De acordo com o regime legal estabelecido no art.º 686.º, n.º 1, do Código Civil, a hipoteca representa uma garantia real, constituída em benefício do credor, que lhe confere o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade de registo.
Ao conceder o crédito, o banco avaliou o imóvel, dado como garantia de satisfação do crédito pelo executado, sem ter em consideração o contrato de arrendamento, que nesse momento não existe, e que constitui uma forma de ónus de alguma forma limitador do direito de propriedade, porquanto impede o exercício das faculdades de uso, fruição e ocupação do imóvel, por parte do novo proprietário, e se o credor obtém o pagamento da dívida com o produto da venda judicial do imóvel, este pode ser significativamente inferior se estiver onerado com um arrendamento.
Ora, o legislador consagrou, no art.º 824.º, n.º 2, do Código Civil, o princípio da transmissão dos bens livres de direitos reais para evitar a depreciação do valor dos bens resultante de uma alienação com a subsistência de encargos, pelo que vem sendo maioritariamente entendido que o arrendamento constitui, para esse efeito, um direito inerente ao imóvel, que não pode subsistir após a venda judicial, tal como os direitos reais, sob pena de comprometer a ratio do n.º 2 do citado art.º824.º, inexistindo, neste caso, justificação para tratar diferentemente os direitos reais e o arrendamento, a tal não obstando o disposto no art.º 1051.º do Código Civil, pelo facto de o elenco das situações aí previstas não ser taxativo, incluindo-se, assim, no referido elenco, como causa de caducidade do contrato de arrendamento, o caso da venda judicial de imóvel hipotecado, quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado após o registo da hipoteca.
A orientação minoritária, quer na doutrina[8], quer na jurisprudência[9], sustenta que o arrendamento não caduca, por não ser aplicável a norma do art.º 824.º, n.º 2, do Código Civil, sendo antes aplicável a norma do art.º 1057.º do Código Civil, transmitindo-se a posição do locador para o adquirente.
Não se vislumbra, no entanto, razão para dissentir da orientação maioritária, que se perfilha.
Conforme refere António Menezes Cordeiro[10], «A discussão deve partir das valorações legais e da ponderação dos interesses em presença».
«Quando, de boa-fé, se dê uma coisa em garantia, está-se a reservar, para o credor, o valor do objeto em causa, caso necessário. Assim, constituir um penhor ou uma hipoteca e esvaziar, de seguida, o valor da coisa, através de uma locação, é prática que não pode ter a legitimação do ordenamento. Paralelamente, não vemos como defender a natureza não-real do direito do locatário para, depois, lhe vir conceder uma oportunidade erga omnes superior à do direito de propriedade. O Direito tem uma harmonia interna que não se compadece com paradoxos.»
«Nesta base, podemos distinguir: (a) locação anterior à hipoteca (ou ao penhor), dotada de publicidade inerente ao registo ou à posse: sobrevive à venda executiva; (b) locação posterior ao registo da hipoteca: caduca com tal venda; (c) locação posterior à penhora: é, ab initio, ineficaz e caduca com a mesma venda. Em todos estes casos, fazemos uma aplicação extensiva ou, se necessário, analógica, do artigo 824.º/2, aos direitos pessoais de gozo. Uma vez que estes conferem, ao titular, o gozo de uma coisa corpórea, a base para a aplicação extensiva (espírito da lei) ou para a analogia é evidente e pacífica.»
Posto isto, e reportando-nos ao caso vertente, verifica-se que a hipoteca a favor da E… foi registada pela AP. 12/240893, e que o contrato de arrendamento foi celebrado no dia 16 de setembro de 2005, ou seja, que o contrato de arrendamento foi celebrado após o registo da hipoteca.
Considerando as razões anteriormente expostas e às quais se adere, conclui-se que o contrato de arrendamento caducou com a venda judicial do imóvel à exequente e credora hipotecária E…, nos termos do disposto no art.º 824.º, n.º 2, do Código Civil, tal como pugnado pelo Autor.
Deste modo, não resultando provada a existência de título que legitime a detenção, pela Ré, da ajuizada fração autónoma, não pode a mesma recusar a sua restituição”.
A sentença ponderando a divergência jurisprudencial sobre a concreta matéria, acolheu a posição maioritária, que é também àquela que temos seguido, fazendo por isso nossos os argumentos ali expostos, os quais, além do mais estão assentes na mais recente jurisprudência e doutrina. Salientam-se na jurisprudência, entre outros, os Ac. STJ 15/2/2018, proc. 851/10.8TBLSA-D.S1 e de 18/10/2018, proc. 12/14.7TBEPS-A.G1.S2, disponíveis em www.dgsi.pt.
Perante o exposto, há uma primeira conclusão a reter: o contrato de arrendamento para habitação caducou por efeito da venda judicial que se realizou em 12 de dezembro de 2006 (ponto 5 dos factos provados).
Considera, porém, a apelante perante os factos provados sob os pontos 6, 7 e 8 que a autora assumiu uma conduta através da qual reconheceu a interveniente como arrendatária e dessa forma revela-se abusivo o exercício do direito, ao pretender a restituição do imóvel.
O abuso de direito, nos termos do art. 334º CC, consiste no exercício ilegítimo de um direito.
Considera-se ilegítimo o exercício de um direito “quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA referem que: “[a] nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido“[11].
ALMEIDA COSTA refere a este respeito que: “exige-se, um abuso nítido: o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício[12].
Para apurar se as partes envolvidas no negócio agiram segundo os ditames da boa-fé cumpre ao juiz considerar: “as exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos. “ De igual modo, “ não se pode esquecer o conteúdo do princípio da boa fé objetivado pela vivência social, a finalidade intentada com a sua consagração e utilização, assim como a estrutura da hipótese em apreço“[13].
Com base no abuso de direito, o lesado pode “requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito que a lei confere a outrem; o que não pode é, com base no instituto, requerer que o direito não seja reconhecido ao titular, que este seja inteiramente despojado dele”[14].
A conduta suscetível de integrar o venire contra factum proprium pressupõe, estruturalmente, duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si e diferidas no tempo. A primeira – o factum proprium – é contrariada pela segunda. O óbice reside na relação de oposição entre ambas[15].
O venire é suscetível de configurar um comportamento abusivo e por isso merecedor de censura legal, à luz do abuso de direito, tal como se mostra configurado no art. 334º CC, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé.
Em termos dogmáticos o venire contra factum proprium constitui uma manifestação de tutela da confiança, que decorre do princípio da boa fé. Um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas[16].
Como se pode então considerar que um comportamento é suscetível de criar a confiança das pessoas, vinculando-as às obrigações assumidas.
MENEZES CORDEIRO propõe, como auxiliar ao intérprete, na concretização do conceito de “confiança”, “um modelo de quatro proposições“ sem estabelecer qualquer hierarquia entre eles e sem caráter cumulativo:
“- uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
- uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível;
- um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
- a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu“[17].
Neste modelo ao falar-se num “investimento de confiança” como observa MENEZES CORDEIRO exige-se […]que a pessoa a proteger tenha, de modo efetivo, desenvolvido toda uma atuação baseada na própria confiança, atuação essa que não possa ser desfeita sem prejuízos inadmissíveis; isto é, uma confiança puramente interior, que não desse lugar a comportamentos, não requer proteção”[18].
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça apreciando questões idênticas àquela que se vem a analisar, à luz do abuso de direito, considerou-se:
- Ac. STJ 15.02.2005, Proc. 06A3241 (acessível em www.dgsi.pt):
“ [à] luz do art. 824º do CC, o contrato de arrendamento é considerado como um verdadeiro ónus em relação ao prédio.
Daí que, vendido o prédio em sede executiva, o contrato de arrendamento celebrado depois da constituição de hipoteca e da penhora caduque automaticamente.
O simples facto de só passados oitos após a aquisição a A., adquirente do prédio onerado com o arrendamento, ter vindo a juízo fazer valer os seus direitos em nada colide com o instituto do abuso de direito”.
- Ac. STJ 20 de junho de 2006, Proc. 06A1631 (acessível em www.dgsi.pt):
“O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor o reconhecimento do seu direito de propriedade, e a consequente restituição da coisa que lhe pertence, a quem a detém sem título (art.º 1311 C. Civ).
Na acção de reivindicação compete ao Autor o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou na detenção do demandado; e compete ao Réu, se for o caso, o ónus de provar que é titular de um direito que legitima a recusa da restituição(art.º 342º C. Civil)
A conceção geral do abuso de direito postula a existência de limites indeterminados à atuação jurídica individual.
Tais limites advêm de conceitos particulares como os de função, de bons costumes e de boa fé.
Os conceitos indeterminados carecem de um processo de concretização, e a lei utiliza-os como modo privilegiado de atribuir ao aplicador intérprete - "maxime" ao juiz, instrumentos capazes de promover, no caso concreto, uma busca mais apurada da justiça”.
- Ac. STJ 20.11.2003, Proc. 03B3431 (acessível em www.dgsi.pt)
“ Face ao disposto no artº 819º do C. Civil, são de considerar inoponíveis à execução os direitos reais de gozo ou de garantia posteriores (à penhora) ou ao seu registo, a menos que se trate de direitos de garantia não procedentes da vontade do executado.
Com a venda executiva, aqueles direitos tornam-se totalmente ineficazes em relação ao adquirente, bem como quaisquer contratos, v.g. de arrendamento ou de cessão de exploração, celebrados pelo executado após a penhora do imóvel objeto do contrato.
Todos os atos de disposição ou oneração dos bens penhorados que, aquando da sua celebração, já eram inoponíveis em relação ao exequente continuam a sê-lo em relação ao adquirente do imóvel na execução.
Compete à Ré demandada invocar e provar a exceção traduzida na (putativa) titularidade de um direito real ou de crédito que legitime a recusa da restituição, em ordem a evitar a procedência da acção de reivindicação (artº 342º, nºs 1 e 2 do C. Civil).
Para que o exercício de um determinado direito possa ser qualificado de "abusivo", torna-se necessário que a respetiva exercitação concreta seja clamorosamente ofensiva da justiça, entendida esta segundo o critério social reinante.
O instituto do abuso do direito deve ser utilizado com uma certa parcimónia, em ordem a prevenir que o seu uso (abusivo) se converta em fator de subversão do próprio ordenamento jurídico”.
No caso concreto, cumpre pois apurar, perante os factos provados, se a apelada adotou uma conduta suscetível de gerar uma confiança legitima na apelante, no sentido de considerar validamente celebrado um contrato de arrendamento.
Apurou-se:
6- A referida fração autónoma foi adquirida por J… à E…, por escritura pública de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de K…, em 3 de outubro de 2012, conforme documento junto a fls. 18 a 38.
7 - O filho da Ré, H…, foi informado, por email datado de 19 de novembro de 2013, de que poderia depositar o valor da renda em conta ou fazer uma transferência bancária, em nome de J…, o que durante algum tempo foi realizado tal como solicitado.
8- Por escritura pública de cisão de fundo de investimento imobiliário, outorgada no Cartório Notarial de K…, em 30 de dezembro de 2013, foram separados os patrimónios provenientes do Grupo E…, dando surgimento ao fundo especial de investimento imobiliário aberto designado por B…, Autor nos presentes autos, conforme documento junto a fls. 41 a 64.
13- O Autor teve conhecimento de que a referida fração autónoma estava ocupada em fins de 2012, através das diligências efetuadas pela sociedade “I…, L.da”, que colabora com o Autor a fim de averiguar o estado de conservação dos imóveis e realizar as intervenções necessárias à salvaguarda dos mesmos, e, na sequência da informação a que alude o ponto 7, em 19.12.2013, em 13.02.2014 e em 28.02.2014, foram depositadas rendas na conta 000-10.589050-3, de que era titular o autor “B…, como solicitado.
Usando o alegado modelo para aferir da “relação de confiança” é de concluir que tal matéria não permite concluir que foi criada uma “relação de confiança” que gerasse na interveniente a firme convicção que a autora a reconhecia como arrendatária e não questionasse tal posição jurídica.
Desde logo cumpre ter presente que a autora se apresenta a exercer um direito com plena tutela legal, com as duas vertentes: reconhecimento do direito e restituição da coisa – art. 1311º CC.
Ponderando os demais factos provados e considerando o trato sucessivo, após venda judicial, que determinou a caducidade do contrato de arrendamento, nada permite concluir que pelos anteriores proprietários do imóvel foi reconhecida ou renovada a relação de arrendamento.
Apurou-se que a Autora adquiriu o imóvel sem ónus e encargos (ponto 6, 8, 9 dos factos provados).
A apelante ocupa a fração desde 16 de setembro de 2005 (ponto 11 dos factos provados).
A Autora apenas tomou conhecimento que a fração estava ocupada em finais de 2012 através das diligências efetuadas pela sociedade “I…, Lda”, que colabora com a Autora a fim de averiguar o estado de conservação dos imóveis e realizar as intervenções necessárias à salvaguarda dos mesmos (ponto 13 dos factos provados).
O facto de apenas em 2018 instaurar a presente ação e reclamar a propriedade e restituição do imóvel, não permite concluir que aceitou e reconheceu a interveniente como arrendatária. Atenta a natureza da ação e face ao disposto no art. 1311º do CC impera a regra da imprescritibilidade da acção de reivindicação[19].
Provou-se, com efeito, que o filho da Ré, H…, foi informado, por email datado de 19 de novembro de 2013, de que poderia depositar o valor da renda em conta ou fazer uma transferência bancária, em nome de J…, o que durante algum tempo foi realizado tal como solicitado, sendo que apenas foram efetuados três depósitos (um, em dezembro de 2013 e dois, em fevereiro 2014).
Tais circunstâncias não revelam da parte da autora o reconhecimento de uma relação de arrendamento.
Desde logo, cumpre ter presente que não se apurou em que circunstâncias ocorreu a alegada comunicação.
Depois da data em que ocorreu a alegada comunicação não se provou que a autora tenha adotada qualquer atitude que permitisse concluir que reconhecia a interveniente como arrendatária - obras no arrendado, aumento de renda, ação de despejo.
Apurou-se, ainda, que a apelante apenas procedeu a três depósitos, correspondentes, cada, ao valor da renda mensal, e não se provou qualquer circunstância que justificasse a suspensão da obrigação do pagamento da renda, inerente à condição de arrendatária. Ou seja, tal comunicação não desenvolveu na apelante a confiança que seria reconhecida como arrendatária, porque não passou a agir como tal.
No contexto próprio e específico alegado pela apelante na contestação-reconvenção refere-se que a autora se recusava a passar recibo. Apesar de não se ter feito prova de tal circunstância, o certo é que a mesma, a provar-se, apenas contribuiria para considerar que existia uma situação de conflito subjacente à ocupação do imóvel, revelador que a autora não reconhecia a apelante como arrendatária.
Podemos, assim, concluir que a instauração da presente ação na qual para além de se pretender o reconhecimento do direito de propriedade se peticiona a restituição do imóvel ao legítimo proprietário, não constitui um comportamento contraditório com a situação de facto existente, ou criada pela autora.
Os factos não permitem considerar que o titular do direito excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé e por esse motivo não se justifica paralisar o exercício do direito, com fundamento em abuso de direito.
Era sobre a interveniente/apelante que recaía o ónus da prova da existência de título legítimo que justificasse a ocupação do imóvel (art. 342º/2 CC), o que não logrou conseguir e por isso, não merece censura a sentença que julgou procedente a pretensão da autora e condenou a interveniente a restituir a fração.
Improcedem as conclusões de recurso, sob os pontos Z) a TT).
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A apelante não se insurge contra a demais matéria objeto de decisão, pelo que, nada mais cumpre apreciar ou decidir.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela apelante e apelada, na proporção do decaimento, que se fixa em ¾ e ¼, respetivamente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e nessa conformidade:
- alterar a matéria de facto sob o ponto 13 dos factos provados, que passa a ter a seguinte redação:
- O Autor teve conhecimento de que a referida fração autónoma estava ocupada em fins de 2012, através das diligências efetuadas pela sociedade “I…, L.da”, que colabora com o Autor a fim de averiguar o estado de conservação dos imóveis e realizar as intervenções necessárias à salvaguarda dos mesmos, e, na sequência da informação a que alude o ponto 7, em 19.12.2013, em 13.02.2014 e em 28.02.2014, foram depositadas rendas na conta 000-10.589050-3, de que era titular o autor “B…, como solicitado.
- confirmar a sentença.
*
Custas a cargo da apelante e apelada, na proporção do decaimento, que se fixa em ¾ e ¼, respetivamente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à apelante.
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Porto, 08 de setembro de 2020
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Joaquim Moura – COM VOTO DE VENCIDO (2º Adjunto/Juiz Desembargador-Relator, com voto de vencido)
_____________
Voto de vencido
Como primitivo relator, elaborei projecto de acórdão em que julgava procedente a apelação por entender que o autor age em abuso do direito.
As razões da minha discordância em relação à posição que fez vencimento são as que aduzi para fundamentar a conclusão de que há exercício abusivo do direito nesta acção de reivindicação, razões que aqui reafirmo e que sãos as seguintes:
«A quaestio decidendum traduz-se, pois, em saber se a presente reivindicação configura uma actuação do autor em abuso do direito que justifique a recusa de restituição da fracção predial.
Há abuso do direito sempre que o seu titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito (artigo 334.º do Código Civil).
A boa-fé, como norma de conduta, significa que as pessoas devem comportar-se, no exercício dos seus direitos e deveres, com honestidade, correcção e lealdade, de modo a não defraudar a legítima confiança ou expectativa dos outros.
O abuso do direito “integra o exercício de posições permitidas em termos tais que são contrariados os valores fundamentais do sistema expressos, por tradição, pela boa fé”.[20]
O princípio da tutela da confiança é um dos valores fundamentais que subjazem à boa fé.
É, justamente, a tutela da confiança e da boa fé que está na base da proibição do venire contra factum proprium, uma das situações de abuso do direito que mais frequentemente é invocada.
Em termos genéricos, pode dizer-se que nesta categoria incluem-se os comportamentos contraditórios, o dar dito por não dito, o agir contra o seu próprio acto.
Como se expendeu no acórdão desta Relação de 10.05.2010 (processo 674/08.4TBSJM-A.P1, in www.dgsi.pt), «o abuso de direito do tipo “venire contra factum proprium” requer comportamento contraditório do agente, caracterizado por uma conduta anterior geradora de confiança na contra-parte que, posteriormente, pretende inflectir».
O venire contra factum proprium postula, pois, dois comportamentos da mesma pessoa (física ou jurídica), lícitos em si e diferidos no tempo, e «encontra respaldo nas situações em que uma pessoa, por um certo período de tempo, se comporta de determinada maneira, gerando expectativas na outra de que o seu comportamento permanecerá inalterado. Em vista desse comportamento, existe um investimento, a confiança de que a conduta será a adoptada anteriormente, mas depois de referido lapso temporal, é alterada por comportamento contrário ao inicial, quebrando dessa forma a boa-fé objectiva (confiança)» (Ac. STJ de 24.04.2012, processo n.º 497/07.8TBODM-A.E1.S1, in www.dgsi.pt).
Ocorre atitude abusiva quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte em função do modo como antes actuara ou, na formulação da teoria da confiança, “o agente pode dar azo a uma confiança legítima que não deve, depois, desamparar, provocando danos” (Professor Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, Almedina, 201).
Regressando ao caso concreto, a primeira nota a destacar é esta: foram precisos quase 12 anos para que o adquirente da fracção hipotecada, ou quem lhe sucedeu na titularidade do direito de propriedade sobre esse bem imóvel, viesse exigir, por esta via, a sua restituição, já que a venda judicial realizou-se em Dezembro de 2006 e a presente acção foi intentada em 23.07.2018.
É certo que vem provado que só em fins de 2012 o autor teve conhecimento de que a referida fracção autónoma estava ocupada, mas, ainda assim, deixou decorrer quase 6 anos para a reivindicar.
Uma outra via de concretização do abuso do direito é a denominada “supressio” que se traduz, basicamente, no não exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo que crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem injustificada para esta.
No entanto, o mero decurso do tempo, só por si, não basta para criar a convicção ou uma expectativa razoável e legítima de que o direito já não será exercido.
É aqui que entra, como elemento decisivo, o facto de, já em 2013, o autor ter dado instruções ao filho da recorrente para depositar as rendas relativas à fracção predial em causa, fornecendo-lhe o número da conta bancária onde devia efectuar o depósito. E tendo a recorrente, através do filho, efectuado (em 19.12.2013, em 13.02.2014 e em 28.02.2014) três depósitos de montantes correspondentes ao valor da renda, não há dúvida de que o autor aceitou o pagamento, fazendo suas essas quantias.
Quer isto dizer que, de acordo com a orientação dominante, vendida a fracção predial autónoma em processo de execução, caducou o arrendamento (posterior ao registo da hipoteca) que a recorrente celebrara com a anterior proprietária, por aplicação do disposto no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, mas depois disso, porque a ré/interveniente continuou a ocupar a fracção, o autor recebeu desta várias rendas que, consabidamente, são a contrapartida, devida pelo locatário, do gozo temporário do imóvel que o locador lhe proporciona.
A recorrente defende que, face a esse comportamento do autor, houve “repristinação” do contrato de arrendamento celebrado em 2005 e a tese não será descabida se tomarmos o termo em sentido amplo, de restauração de uma passada situação jurídico-normativa.
Seja como for, é inegável que, com a sua atitude, o autor gerou na ré a razoável e legítima expectativa de que ela poderia continuar a habitar a fracção pagando a renda e, portanto, não iria exigir a sua restituição. Expectativa que se foi consolidando ao longo dos quase seis anos que decorreram até à propositura desta acção, a qual se revela inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte em função do modo como antes o autor agira.
Nessa medida, há violação do princípio da confiança, que a ordem jurídica desaprova.
Cabe aqui lembrar que a cláusula geral de abuso do direito se configura como válvula de segurança do sistema jurídico, em ordem a evitar o exercício de direitos em termos manifestamente ofensivos da justiça.
O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia (está presente, desde logo, na norma do artigo 334.º do Código Civil que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte) e requer de cada um que seja coerente, não mudando arbitrariamente de condutas, com isso prejudicando o seu semelhante.
Não foi essa a postura do autor que, sem aparente razão válida, mudou de atitude e vem agora exigir a restituição da fracção predial que a ré habita, exercendo um direito em termos que são, notoriamente, ofensivos da justiça e, portanto, com abuso do seu direito.
O citado artigo 334.º começa por estatuir que «É ilegítimo o exercício de um direito…», mas tem-se entendido que a ilegitimidade não é aqui referida em sentido técnico (de falta, no sujeito que o exercita, de uma específica qualidade que o habilite a agir no âmbito de certo direito), mas antes no sentido de que “é ilícito” ou “não é permitido”, ou seja, tudo se passa como se o direito não existisse.
Não pode, assim, manter-se a decisão recorrida.
Não está em causa o reconhecimento da titularidade do direito de propriedade sobre a fracção predial autónoma reivindicada (que a interveniente/recorrente não contesta), mas não pode ser aqui reconhecido ao autor o direito à restituição dessa mesma fracção e, muito menos, o direito à indemnização que lhe foi arbitrada».

Joaquim Moura
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Sendo certo que, em casos-limite, a impugnação pode implicar toda a matéria de facto, nem por isso o recorrente está desobrigado de especificar os concretos pontos de facto por cuja alteração se bate (cfr. Cons. A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5.ª edição, pág. 163, em nota de pé de página).
Esta especificação serve para delimitar o objecto do recurso e por isso tem de constar das conclusões.
[3] O Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes (ob. cit., pág. 170, nota de pé de página) afirma ser «infundada a rejeição do recurso da matéria de facto com fundamento na falta de indicação, nas conclusões, dos meios probatórios ou dos segmentos da gravação em que o recorrente se funda. O cumprimento desses ónus no segmento da motivação parece suficiente para que a impugnação da decisão da matéria de facto ultrapasse a fase liminar, passando para a apreciação do respectivo mérito», citando jurisprudência do STJ nesse sentido.
No Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 771, de que é autor em conjunto com Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, precisa-se que «é objecto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões, sob pena de rejeição do recurso» e anota-se que «o Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação».
[4] A mensagem de correio electrónico é do seguinte teor:
«Boa tarde Sr. D…
No seguimento de conversa telefónica vimos por este meio informar que para efetuar o pagamento da renda referente ao imóvel em causa, poderá depositar o valor em conta ou fazer uma transferência bancária. Para que possa proceder de acordo com o solicitado, os dados são os seguintes:
Nome: J…
Conta: …………..-.
NIB: ………………….....
Solicita-se que em qualquer das operações escolhidas, no descritivo seja mencionada a morada do imóvel e nome do inquilino.
Com os melhores cumprimentos»
P…
Balcão em …. Av. …, n.º…, …. - … …”
[5] MANUEL RODRIGUES “A reivindicação no direito civil português“ Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 57, pag. 193.
[6] Cfr., inter alia, Oliveira Ascensão, Locação de bens dados em garantia, ROA, 1985, pág. 361;
Henrique Mesquita, Obrigações reais e ónus reais, 1990, pág. 138 e segs., Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, pág. 327, A. Luís Gonçalves, Arrendamento de prédio hipotecado/Caducidade do arrendamento, RDES XL, 1999, págs. 95-101, e Ana Carolina Sequeira, «A Extinção de Direitos por Venda Executiva», Garantias das Obrigações, págs. 23 e 43.
[7] Vd., inter alia, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16/9/14, CJ Ano XXII, Tomo III, pág. 43 e, mais recentemente, de 15/2/2018, proc. 851/10.8TBLSA-D.S1 e de 18/10/2018, proc. 12/14.7TBEPS-A.G1.S2, disponíveis em www.dgsi.pt, e o acórdão do tribunal da Relação do Porto de 25/9/2018, proc. 4630/12.0TBMAI-C.P1, igualmente disponível em www.dgsi.pt.
[8] Assim, Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano e outros temas de Direito e Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, págs. 54-60; Mónica Jardim/Margarida Costa Andrade/Afonso Patrão, 85 Perguntas sobre a Hipoteca Imobiliária, Coimbra, Almedina, 2017, págs. 91-93; Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 12.ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, págs. 399-400; Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2014, págs. 101-102 e 140-141; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 9.ª ed., Vol. III, Coimbra, Almedina, 2014, pág. 305; Miguel Teixeira de Sousa, Acção executiva singular, Lisboa, LEX, 1998, págs. 390-391.
[9] Vd., inter alia, os acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de19/1/2004, proc. 03A4098, disponível em www.dgsi.pt e de 20/9/2005, rec. 1489/05, publicado na CJSTJ ano XIII, TIII, págs. 29 a 33, e os acórdãos do tribunal da Relação de Lisboa de 16/9/2008, rec. 5151/08, CJ ano XXXIII, TIV, págs. 80 a 85 e de 30/4/2019, proc. 1357/17.0T8LSB-C.L1-1, disponível em www.dgsi.pt.
6 Tratado de Direito Civil XI Contratos em Especial (1.ª Parte) Compra e Venda Doação Sociedade Locação, Reimpressão, Almedina 2019, págs. 830 e 831
[10] Tratado de Direito Civil XI Contratos em Especial (1.ª Parte) Compra e Venda Doação Sociedade Locação, Reimpressão, Almedina 2019, págs. 830 e 831
[11] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol. I, 4ª Edição Revista e Atualizada, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora- grupo Wolters Kluwer, 2011, pag. 298.
[12] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA Direito das Obrigações, 9ª edição, Coimbra, Almedina, 2001, pag. 75.
[13] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA Direito das Obrigações, ob. cit., pag. 104-105.
[14] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol.I, ob. cit., pag. 300.
[15] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil, vol. V, 2ª Reimpressão da edição de maio de 2005, Coimbra, Almedina, 2011, pag. 278.
[16] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil, ob. cit., pag. 290.
[17] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil, ob.cit., pag. 292.
[18] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil, ob.cit., pag. 293.
[19] Ac. STJ 31 de outubro de 2006, Proc. 06A3241, acessível em www.dgsi.pt
[20] Professor Menezes Cordeiro, “Teoria Geral do Direito Civil”, vol. 1.º, 362, ed. AAFDL