INCÊNDIO
DOLO DE PERIGO
CRIME DE DANO
Sumário

Se se apurou que os arguidos provocaram um incêndio, numa pequena edificação, construída em madeira, no valor de 6.000,00 utilizando, para o efeito, um isqueiro, tendo dirigido a chama, criado pelo mesmo, ao colchão existente no quarto, aguardando que a mesma começasse a lavrar e que os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, em conjugação de esforços e intentos, em execução de plano comum, com o propósito concretizado de destruir aquela casa, bem sabendo que a mesma era construída em material particularmente carburante e que, quando fosse detetado o fogo, a mesma já se encontraria destruída, o que pretenderam conseguir, apesar de bem conhecerem o valor da mesma e dos objetos que ali se encontravam e que, agindo de tal forma, iam contra a vontade do seu legítimo proprietário, sendo que o incêndio em referência incidiu sobre uma construção, mas que, no caso concreto, para além do incêndio que os arguidos provocaram na referida residência – acto incendiário em si mesmo - não se apurou que daí tenha decorrido perigo [concreto] para quaisquer outros bens, não se verifica o crime p.p. pelo artigo 272°, n°1, alínea a) do Código Penal .
- O perigo (concreto), indispensável à verificação do crime de incêndio, existe sempre que, em dada situação, e através de formulações de prognose com base nas regras da experiência, a acção possa ser considerada como susceptível de produzir um resultado desvalioso para os bens descritos no artigo 272.º do C.P.”
- Não se apurando que o dolo de resultado dos arguidos (a destruição da casa visada) contivesse o dolo de perigo de outros bens (pessoais ou materiais de valor elevado) e, sendo o dolo apurado, o dolo do crime de dano, pelo qual vinham os arguidos acusados, mostra-se preenchido o crime de dano qualificado previsto e punido pelos artigos 212º nº 1 e 213º nº 1 al. a) do Código Penal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. No Processo Comum, com julgamento com intervenção do Tribunal Colectivo, nº 887/19.3JAPDL, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Central Cível e Criminal Cível de Ponta Delgada, Juiz 1, sob acusação do Digno Magistrado do Ministério Público, foram julgados os arguidos, S.  e L. , e, por acórdão proferido em 22 de Abril de 2020, foi decidido o seguinte:
“Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Coletivo:
1. Condenar S.  pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203°, n°1 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão.
 2. Condenar S.  pela prática de um crime de incêndio, previsto e punido pelo artigo 272°, n°1, alínea a) do Código Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
3. Efetuado o cúmulo jurídico, condenar S.  na pena única de 4 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova (artigos 53° e 54° do Código Penal).
4. Condenar L.  pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203°, n°1 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão.
5. Condenar L.  pela prática de um crime de incêndio, previsto e punido pelo artigo 272°, n°1, alínea a) do Código Penal, na pena de 5 anos e 10 meses de prisão.
6. Efetuado o cúmulo jurídico, condenar L.  na pena única de 6 anos e 3 meses de prisão.
7.Determinar a recolha de amostra de ADN aos arguidos e subsequente inserção na base de dados prevista na Lei n° 5/2008, de 12 de fevereiro.
8. Condenar os arguidos no pagamento das custas processuais, as quais se fixam em 2 4 UCS (artigos 513° e 514° do Código de Processo Penal e 8°, n°5 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III Anexa] e honorários nos termos legais.
O arguido L. continuará sujeito à medida de coação de prisão preventiva, remetendo-se para os fundamentos de facto e de direito do despacho proferido em sede de audiência de julgamento.
Agende a data de revisão da medida de coação [artigo 213°, n°1, alínea a) do Código de Processo Penal].”
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2. Não se conformando com esta decisão, da mesma recorreram ambos os arguidos, tendo o recurso sido admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
As conclusões da motivação de recurso são as seguintes:
“1- Resulta da transcrição integral da fundamentação da matéria de facto proferida, efectuada no corpo destas alegações, pelo Tribunal a quo, que os factos dados por provados, quanto à hipotética prática e autoria dos crimes imputados aos arguidos, foram-no com base em prova indiciária ou indirecta.
2- Não questionando a legalidade da utilização da prova indirecta na fixação de matéria de facto, importa realçar, contudo, de acordo com a melhor Jurisprudência e doutrina supra citada, que o uso da prova indirecta determina especiais exigências de fundamentação, não podendo baixar-se o parâmetro da exigência de prova, nos crimes “difíceis de provar”.
3- Quanto ao recurso e análise da prova indirecta, escreveu o Tribunal a quo o seguinte:
Ora, os indícios que o Tribunal utilizou para concluir pela prova que foram os arguidos a praticar a atividade ilícita em causa foram os seguintes: pouco tempo após o incêndio deflagrar, por intervenção humana (conforme já referido), os arguidos foram encontrados em freguesia vizinha com objetos retirados do interior de tal habitação e, assim que viram o ofendido, que conheciam desde a infância, encetaram uma fuga, não podendo o Tribunal também ignorar que o arguido L. já foi condenado pela prática do mesmo tipo de crime de incêndio, reunido as características de personalidade para ter cometido igualmente o que está em causa nos autos.
4- Ora como da evidência se vê, confrontando tal análise com as regras (apertadas) da utilização da prova indirecta, verifica-se estarmos perante impressões do Tribunal a quo, e não de verdadeiros indícios, uma vez que os elementos indicados são manifestamente insuficientes para “determinar uma conexão causal que confira consistente concordância entre a factualidade demonstrada por via da prova directa e os factos indirectamente provados”, não permitindo, por isso, tais elementos dos autos confirmar que os arguidos foram os autores das condutas, com o grau de certeza que se exige para dar como provados os factos tão precisos e circunstanciados como o Tribunal a quo fez, designadamente quanto ao efectivo cometimento dos factos pelos arguidos, grau de participação e/ou autoria de cada um deles, modo de execução e elementos subjectivos do tipo.
5- Do facto de “pouco tempo após o incêndio deflagrar os arguidos foram encontrados em freguesia vizinha”, é notório ser manifestamente insuficiente para concluir seja o que for, não só, porque desconhece-se a distância entre o local do incêndio e o local onde os arguidos foram encontrados na freguesia vizinha (podendo ser perto ou muito longe), como, também, o dito “pouco tempo” ser um dado relativo e impreciso, uma vez que nos factos provados consta que os arguidos, alegadamente, tinham estado na casa em causa perto da meia noite, e foram encontrados na freguesia vizinha pelas 3h30m, isto é, mais de 3 horas após, alegadamente, terem estado nessa casa, tudo nos termos do Acórdão recorrido.
6- Seguramente, desse facto não se pode concluir pela autoria, grau de participação ou modo de execução, quer do crime de furto quer do crime de incêndio.
7- Do facto de terem sido encontrados com objectos retirados do interior da habitação - embora não os identifique na motivação da matéria de facto, o Tribunal a quo só pode estar a referir-se a uma garrafa de aguardente vínica e um pacote de vinho tinto de 5 litros, no valor de €.5.00, por não constar da matéria de facto provada qualquer outro objecto - não se pode extrair qualquer facto criminal de relevo, isto porque tendo a pequena habitação ficado destruída, e sendo dois objectos muito comuns, à venda em qualquer comércio, sem qualquer identificação especial que permita o reconhecimento concreto e de baixíssimo valor económico (€. 5,00), torna-se muito difícil, senão mesmo impossível, afirmar com o grau de certeza que se exige, que aqueles objectos - aguardente vínica e pacote de vinho tinto - tenham sido furtados da casa do ofendido ou de qualquer outra casa, sequer e, como tal, tenham os arguidos cometido o crime de furto de que vinham acusados e pelo qual foram condenados.
8- Todavia, mesmo que se conseguisse dar como provado que tais objectos (aguardente vínica e pacote de vinho tinto) tivessem sido furtados (da casa do ofendido ou de qualquer outra) pelos arguidos, o que não se concede, a verdade é que “do facto do arguido haver sido encontrado na posse de objectos furtados não se pode inferir, com suficiente segurança, pelas regras da lógica e da experiência comum, que ele foi o autor do furto” - Ac. T.R.P., de 28/01/2009, relatado pela Exma. Desembargadora Isabel Pais Martins - e, menos ainda, dizemos nós, ser tal circunstância suficiente para imputar a autoria de um crime de incêndio ocorrido no local desse alegado furto.
9- Do facto de terem fugido quando viram o ofendido e o irmão, não se pode concluir, sem mais, que os arguidos tivessem cometido qualquer crime, uma vez que a abordagem ocorreu às 3h30m da manhã, de um fim-de-semana, desconhecendo-se, por nada constar na matéria de facto provada, o motivo e forma de abordagem que foi feita aos arguidos, pelo ofendido e seu irmão, desconhecendo-se se os arguidos naquelas circunstâncias os reconheceram ou não, se os arguidos estavam alcoolizados, ou não, de onde vinham ou para onde iam. Isto é, sendo muitas as hipóteses, não pode servir como indício, para se poder extrapolar que os arguidos cometeram qualquer crime, ou o grau de participação ou modo de execução, caso o tivessem cometido.
10- Quanto ao facto de o arguido L. já ter antecedentes criminais pelo crime de incêndio, poder daqui retirar qualquer ilacção para efeito de apuramento de responsabilidade criminal em julgamento, como o Tribunal a quo parece ter feito, será não acreditar no sistema de justiça e por em causa toda a arquitectura do sistema penal, designadamente o princípio da presunção de inocência.
11- Refira-se, por último, que o Tribunal a quo não apontou qualquer motivo (válido ou não), nem mesmo de forma indiciária, para que os arguidos tivessem alegadamente cometido tal crime de incêndio, depois de, alegadamente terem cometido o crime de furto. Este elemento em falta, ainda que indiciário seria relevante para determinar, entre outros, os elementos subjectivos do tipo. Não existindo tal indício, não poderia o Tribunal a quo concluir pelos elementos subjectivos do tipo, como fez.
12- Assim, tendo o Tribunal a quo sido guiado por meras suposições e conjecturas, e não por verdadeiras presunções, deve a matéria dos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 7 e 8 ser dada por não provada, tanto mais que das várias hipóteses possíveis, o Tribunal a quo optou pela mais prejudicial para os arguidos, violado assim o princípio do in dúbio pro reo.
13- Por ser assim, e como consequência lógica e necessária, também os factos de índole subjetiva, nos pontos 9 e 10 da decisão recorrida, devem ser dados por não provados.
14- O Tribunal a quo, ao decidir a matéria de facto, nos termos em que o fez, violou os princípios da presunção de inocência e in dúbio pro reo, e não fez um correcto uso de prova indirecta, com a especial exigência e especificações da fundamentação que tal uso obriga, incorrendo em erro notório na apreciação da prova, razão pela qual deve ser revogada a decisão recorrida.
15- Sendo procedente a impugnação da matéria de facto, nos termos supra expostos, como cremos, forçoso se torna concluir pela absolvição dos recorrentes.
16- De acordo com a matéria de facto que deu como provada, entendeu o Tribunal a quo condenar, cada um dos arguidos, num crime de incêndio p.p. pelo artigo 272°, n° 1, alínea a) do C. Penal, na pena de 5 anos e 10 meses de prisão, e na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, respectivamente.
Ressalvado o devido respeito, não andou bem o Tribunal a quo ao assim decidir.
17- O crime de dano qualificado (que vinha imputado aos arguidos) é um crime de dano, e o crime de incêndio, pelo qual os arguidos foram condenados, é um crime de perigo comum.
18- No caso dos presentes autos, o objecto da alegada acção foi um só (perfeitamente diferenciado): pequena edificação construída em madeira, propriedade do ofendido.
19- Na verdade, não resulta dos factos provados que a alegada acção incendiária dos arguidos haja “criado perigo para a vida ou para a integridade física de outrem’" ou mesmo para outros (e indiferenciados) “bens patrimoniais alheios de valor elevado”, designadamente, outras construções que eventualmente pudessem existir, naquele mesmo local ou nas proximidades.
20- Também não ficou provado, nem poderia, por não se ter alegado na acusação, que o dolo de resultado dos arguidos (a destruição da pequena casa visada) contivesse o dolo de perigo de outros bens (pessoais ou materiais de valor elevado).
21- Como ensina José de Faria Costa (Comentário Conimbricense, pág. 879), “é óbvio que a acção incendiária é, pela própria natureza das coisas, um comportamento que pode integrar um simples crime de dano. Se A, para destruir um quadro de B, o incendeia é evidente que está a cometer um crime de dano e não o de incêndio”, pois “para que se verificasse o crime [de perigo comum de incêndio, em que este consumia o de dano] seria necessária a verificação de muitos mais elementos”(“que o qualificaria em crime de resultado de perigo - violação e não em um crime de resultado dano - violação”).
22- Ora, no caso dos autos, faltando esses “muito mais elementos” não podiam os arguidos terem sido condenados pelo crime de incêndio.
23- Assim, devem os arguidos ser absolvidos do crime de incêndio pelo qual erradamente foram condenados.
24- Como se sabe, é na culpa do agente e nas razões preventivas que se encontram as guias fundamentais para fixar a pena devida em determinado caso, sendo certo que o C. Penal estabeleceu um limite inequívoco e inultrapassável onde tem que assentar a medida da pena: a medida da culpa. É este o limite que nenhuma razão de prevenção pode ultrapassar, de acordo com a imposição normativa estabelecida no artigo 40°, n° 2 do C. Penal.
25- É certo que nas finalidades das penas surgem inequivocamente a necessidade de proteger bens jurídicos como elemento fundamental. O que impõe que na fixação da pena concreta se leve em consideração a dimensão da prevenção, como decorre nas alíneas do artigo 71°, n° 1 do C. Penal.
26- Sendo este o quadro geral sobre o qual assenta a escolha e determinação da medida concreta da pena, assim também identificado pelo Tribunal a quo, e tendo em conta a descrição fáctica dos autos, parece que, quer as penas parcelares, quer as penas cumuladas, se mostram desproporcionais, por excessivas, ultrapassando a medida da culpa.
27- Na fixação da medida da pena no crime de furto, o Tribunal a quo, além de não ter feito a ponderação dos factos individualizados deste crime (optado, ao invés, por uma avaliação conjunta dos factos dos dois crimes), não ponderou, igualmente, de forma adequada os elementos de que dispunha, uma vez que na pena abstracta prevista, de multa ou pena de prisão, fixou, logo, a pena de prisão, tudo pese embora os bens alegadamente furtados fossem de muito pouco valor (€. 5,00), e os arguidos, nenhum deles, tivesse antecedentes criminais desse mesmo tipo de crime.
28- Por outro lado, e no que à pena do crime de incêndio respeita, se os arguidos não praticaram o crime de incêndio, cuja a moldura penal abstracta é de 3 a 10 anos de prisão, a pena fixada, de 5 anos e 10 meses, para o arguido L. e, de 4 anos e 6 meses, para o arguido S. , mostram-se totalmente desproporcionadas e excessivas, sendo certo que o arguido S.  não regista qualquer antecedente criminal.
29- Por ser assim, também as penas fixadas em cúmulo estão necessariamente desajustadas, por excessivas, e desconformes com os critérios legais.
30- O Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez violou, pelo menos, o disposto nos artigos 40° e 71°, ambos do C. Penal.”
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3. A Digna Magistrada do Ministério Público respondeu a este recurso, no sentido da sua improcedência e confirmação do acórdão recorrido, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1. O acórdão impugnado não merece qualquer censura, pois que não enferma de omissões, nulidades ou vícios.
2. O acórdão refere claramente os meios de prova que serviram para o tribunal formar a sua convicção, garantindo que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não omitindo a fundamentação no sentido da valoração das provas e da razão lógica da condenação dos recorrentes.
3. Apurando-se que foram os arguidos que intencionalmente pegaram fogo à casa, o qual, se tem de considerar de relevo, impõem-se a sua condenação pela prática do crime de incêndio e não pela pratica do crime de dano pelo que foram acusados.
4. As penas únicas impostas aos arguidos, situam-se no circunspecto de ponderação da gravidade dos crimes - ponderada a personalidade do agente -, e foram graduadas de harmonia com as necessidades punitivas (ressocialização e prevenção), tudo conforme os artigos 40°, 70° e 71°, do Código Penal.
5. Por todo o exposto, o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura porque fez correta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, optou, de forma correta, pela aplicação aos arguidos/recorrentes, mostrando-se adequadas e justas.”
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4. Neste Tribunal da Relação de Lisboa, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no qual aderiu à resposta ao recurso apresentada pela Digna Magistrada do Ministério Público, junto do Tribunal recorrido.
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5. Foram colhidos os vistos e realizada a competente conferência.
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6. O objecto do recurso, tal como ressalta das conclusões da motivação, versa a apreciação das seguintes questões:
- Da impugnação da matéria de facto; da violação do princípio da presunção de inocência e do princípio “in dubio pro reo”;
- Do enquadramento jurídico; da errada qualificação jurídica quanto ao crime de incêndio;
- Da escolha e da medida das penas parcelares e da pena única resultante do cúmulo jurídico.
- Da possibilidade de suspensão da execução da pena.
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7. Observemos o que consta da decisão recorrida, quanto à factualidade provada e não provada e sua fundamentação:
Foi alterada a qualificação jurídica do crime de crime de dano qualificado para a prática de um crime de incêndio, previsto e punido pelo artigo 272°, n°1 do Código Penal, conforme consta do despacho que antecede, nada tendo sido requerido.
II. Fundamentação de Facto A. Factos Provados
Em sede de audiência de julgamento, e com interesse para a causam, provou-se que:
1. No dia 15 de dezembro de 2019, a hora concretamente não apurada, os arguidos decidiram, entre si, deslocar-se a uma pequena edificação, construída em madeira com painel solar, no valor de seis mil euros, propriedade de MM. , sita na ..., Relva, Ponta Delgada, a qual sabiam encontrar-se desocupada, mas mobilada na qual se encontravam ainda utensílios agrícolas e diversos produtos alimentares onde pretendiam apropriar-se de bebidas alcoólicas.
2. Assim, em momento anterior à meia noite do dia 16 de dezembro de 2019, os arguidos desceram o caminho que conduz à referida habitação, e, de forma não concretamente apurada, abriram a porta da mesma e do seu interior retiraram e levaram uma garrafa de aguardente vínica e um pacote de vinho tinto de 5 litros, no valor de 5,00€.
3. Os arguidos colocaram os referidos objetos na mochila que S.  transportava, fazendo-os seus.
4. De seguida, e de comum acordo, o arguido L. , com recurso a um isqueiro do qual se tinha previamente munido, dirigiu a chama criada pelo mesmo ao colchão existente no quarto e aguardaram ambos que a mesma começasse a lavrar.
5. Os arguidos abandonaram, então, a referida casa em direção à Rua Padre António Vieira, onde residia o seu padrinho, JPR .
6. A referida casa situa-se numa zona ingreme, rodeada de vegetação carburante e era construída em madeira, contendo botija de gás na cozinha e vários objetos inflamáveis como era conhecimento dos arguidos.
7. Com a conduta descrita os arguidos deixaram a casa inabitável, tendo sido totalmente consumida pelas chamas tendo causado a MM.  prejuízo em montante superior a seis mil euros.
8. Naquele mesmo dia (16.12.2019), pelas 03h30, na Rua Padre António Vieira, os arguidos encontravam-se na posse dos aludidos, garrafa de aguardente vínica e pacote de vinho.
9. Os arguidos agiram de forma livre deliberada e consciente, em conjugação de esforços e intentos, em execução de plano comum, com o propósito concretizado de se apropriarem dos referidos bens, não obstante bem saberem que os mesmos não lhe pertenciam e que agiam contra a vontade do seu legítimo proprietário.
10. Os arguidos agiram, ainda, de forma livre deliberada e consciente, em conjugação de esforços e intentos, em execução de plano comum com o propósito concretizado de destruir aquela casa, bem sabendo que a mesma era construída em material particularmente carburante e que quando fosse detetado o fogo a mesma já se encontraria destruída, o que pretenderam conseguir, apesar de bem conhecerem o valor da mesma e dos objetos que ali se encontravam e que, agindo de tal forma, iam contra a vontade do seu legítimo proprietário.
Mais se provou relativamente a S. :
11. S.  é o sexto na ordem de nascimento de uma fratria de nove elementos, seis germanos e três uterinos, não tendo convivido com o respetivo progenitor, em virtude da progenitora ter abandonado o agregado de origem devido à problemática aditiva (alcoolismo) daquele e ter estabelecido nova relação afetiva, o que culminou na rutura do casal, ficando a fratria aos cuidados do pai, à exceção de S.  que terá ficado aos cuidados da mãe.
12. A mãe estabeleceu novo relacionamento afetivo com CG , e quando o arguido contava apenas quarenta e cinco dias de vida, o progenitor suicidou-se. Na sequência deste episódio, dois irmãos do arguido foram institucionalizados e os outros três entregues a familiares.
13. O processo de desenvolvimento psicoafectivo de S. decorreu no seio do agregado familiar reconstruído da progenitora, que, pese embora fosse referido como gratificante pelo arguido, ficou marcado pela ausência do progenitor, pelo desapego dos irmãos germanos e pela precariedade económica.
14. Aquando da saída do irmão L. da instituição de acolhimento, já em idade adulta, reintegrou o agregado reconstruído da progenitora, revelando-se uma figura desestabilizadora da dinâmica intrafamiliar, sendo recorrentes os episódios de altercações entre os vários elementos do agregado, o que se intensificou com o falecimento do padrasto, há cerca de cinco anos.
15. Desde então, o relacionamento entre a mãe, e estes dois filhos tornou-se muito litigioso, em que os conflitos eram espoletados, essencialmente, por questões de ordem financeira.
16. A relação entre S.  e L.  foi, também, sempre muito instável, oscilando entre períodos gratificantes e períodos de grande violência entre ambos, existindo inclusive relatos de agressões mútuas de grande violência com recurso a armas brancas.
17. Por serem recorrentes as altercações entre os membros do agregado familiar susoditos, por sugestão do Núcleo de Ação Social da zona de residência, a progenitora foi sinalizada na Equipa de Apoio à Vítima de Violência Doméstica e Mulher em Situação de Risco, em maio de 2018, contexto em que adotava uma postura ambígua, por um lado, de vitimização e por outro, protecionista e desculpabilizadora dos desajustes dos filhos.
18. À data dos factos, o arguido coabitava com a progenitora, com o coarguido e com um irmão uterino, em moradia propriedade do agregado, de construção antiga, composta por três quartos, uma cozinha e uma retrete no logradouro, descrita como dispondo de condições mínimas de habitabilidade e salubridade
19. Na sequência do presente processo, e devido à medida de coação aplicada ao arguido, de apresentações periódicas na Polícia de Segurança Pública, por uma questão de proximidade, S.  integrou o agregado familiar de um padrinho, composto por este e pela esposa, em apartamento sito na freguesia dos Arrifes. Todavia, por motivos alheios ao arguido, teve de abandonar a moradia do padrinho, integrando, desta feita, o agregado constituído de uma irmã uterina, Lúcia Gravito, composto por esta, pelo marido e por dois descendentes do casal, também na freguesia dos Arrifes, em anexo arrendado de tipologia T1, descrito como dispondo de boas condições de habitabilidade, situação que se mantém até ao presente.
20. S.  integrou o sistema de ensino em idade normal, tendo concluído o 7° ano de escolaridade aos 17 anos de idade, percurso pautado pela fraca motivação e absentismo.
21. Quando contava cerca de 19 anos, e por um período de 6 anos consecutivos, trabalhou como distribuidor de pão, de forma precária.
22. Após este considerável período de trabalho, o seu percurso laboral oscilou entre períodos de ócio e períodos de ocupação laboral, como servente de pedreiro e distribuidor de pão, sempre sem qualquer vínculo laboral.
23. À data dos factos encontrava-se desempregado.
24. A família nuclear de S.  subsiste com o Rendimento Social de Inserção e com a pensão de sobrevivência atribuídos à progenitora, sendo referidas carências na satisfação das necessidades básicas do agregado.
25. Atualmente, o arguido depende a todos os níveis do agregado constituído da irmã Lúcia Gravito, que subsiste do vencimento desta como distribuidora de pão e do vencimento do marido como padeiro, não sendo referidas carências na satisfação das necessidades básicas do agregado, sendo a dinâmica descrita como gratificante e baseada na entreajuda.
26. Desempregado e sem qualquer atividade estruturada, S.  ocupava os dias no cultivo de espécies hortícolas e pelas ruas, na companhia do coarguido e de pares com problemática aditiva (toxicodependência) e com ligações ao Sistema de Administração de Justiça.
27. No meio socio residencial, o arguido é conotado negativamente, tido como um indivíduo de difícil trato, com tendência para se tornar agressivo, principalmente no seio do agregado familiar.
28. Denota dificuldades ao nível do controlo dos impulsos e emoções, tendendo a tornar- se agressivo, principalmente na presença do coarguido e quando contrariado, e revela défices em termos de pensamento consequencial. É tido como um indivíduo muito influenciável, permeável à pressão externa, com dificuldades em conseguir contrariar a influência negativa que terceiros possam exercer sobre ele, o que não se dissocia de imaturidade emocional.
29. Não tem antecedentes criminais registados.
Mais se provou relativamente a L. :
30. L. , é o terceiro de uma fratria de nove elementos, nascido no seio de um agregado familiar de precária condição socioeconómica e cultural. A infância decorreu no seio deste agregado, constituído pelos pais, cinco irmãos germanos (nascidos na constância do primeiro casamento da progenitora) e três irmãos uterinos. O pai era operador de máquinas e a mãe doméstica.
31. O progenitor suicidou-se quando este tinha cerca de seis anos de idade. L.  atribuiu o suicídio do pai ao facto da progenitora ter estabelecido relação extraconjugal com CG  (falecido há cerca de cinco anos), indivíduo que veio a integrar o agregado familiar pouco tempo após o falecimento do pai. Nessa altura, e devido à precária condição económica vivenciada no seio do núcleo familiar, os menores foram entregues ao cuidado de familiares/tios, ficando a mãe só com um descendente a seu cargo (S. ).
32. O arguido recorda o seu processo de crescimento e desenvolvimento envolto numa dinâmica familiar descrita como desestruturada, pouco normativa, com registo de consumo abusivo de bebidas alcoólicas por parte do padrasto e de algum desapego a nível afetivo entre os vários elementos do núcleo familiar, atribuindo à mãe alguma negligência e abandono.
33. O arguido (e um dos irmãos, FM  ) foi aos oito anos de idade, institucionalizado na Casa do Gaiato por decisão de um dos tios, face à vivência disfuncional e, sobretudo, conflituosa que apresentou aquando do suicídio do progenitor.
34. L.  integrou o sistema de ensino em idade própria, no entanto, manifestou, precocemente, algumas dificuldades ao nível da aquisição de conhecimentos e consequente desmotivação, o que acabou por comprometer o seu percurso escolar, tendo ficado habilitado com o 5° ano de escolaridade, abandonando o sistema de ensino aos 16 anos de idade, aquando da saída da Casa do Gaiato. Eram frequentes as fugas que o próprio encetava daquela instituição.
35. À data dos factos, o arguido integrava o núcleo familiar de origem, constituído pela progenitora, MAM (com 61 anos de idade, doméstica, habilitada com o 4° ano de escolaridade) e pelos irmãos S.  e CG  (com 26 anos de idade, desempregado, habilitado com o 4° ano de escolaridade).
36. A dinâmica familiar foi descrita como muito instável e conflituosa, havendo, inclusive, registo de violência física entre o arguido e o irmão S. .
37. A habitação, propriedade da progenitora, de dimensões reduzidas, não dispõe, pelas descrições, de boas condições de habitabilidade. L.  nunca efetivou um percurso laboral regular, tendo desempenhado tarefas indiferenciadas na área da construção civil.
38. Encontra-se com a ficha inativa na AQE, desde 04/12/2019.
39. A satisfação das necessidades básicas do agregado familiar é assegurada, embora com algumas dificuldades, através da pensão de viuvez da progenitora e de apoio social - Rendimento Social de Inserção (RSI). O arguido, quando trabalhava, muito raramente contribuía, com qualquer valor, para fazer face às despesas.
40. O arguido não assume qualquer tipo de problemática aditiva (consumo de bebidas alcoólicas), referindo fazê-lo em contexto social/festivo.
41. Revela dificuldades significativas ao nível do relacionamento interpessoal, reduzida capacidade de resistência à frustração, em resolver situações problemáticas, tendendo a um comportamento conflituoso (por vezes agressivo/violento), impulsivo, não mediado pelo pensamento.
42. Já foi julgado e condenado, por sentença transitada em julgado a 23/06/2017, numa pena de 4 anos e 10 meses de prisão, suspensa com regime de prova, pela prática de um crime de incêndio, previsto e punido pelo artigo 272° do Código Penal, a 24/12/2016 (processo n°601/16.5JAPDL).
43. Tem registado incumprimentos quanto ao plano de execução de tal pena suspensa.
B. Factos Não Provados
Com interesse para a boa decisão da causa, ficou por provar qualquer facto.
C. Motivação
(…)
III. Fundamentação de Direito
1. Enquadramento Jurídico
Do crime de furto simples
Nos termos do artigo 203°, n° 1 do Código Penal, é punido quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa imóvel alheia.
A subtração caracteriza-se pela violação da posse exercida pelo lesado e a integração da coisa na esfera patrimonial do agente ou de terceiro, implicando a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa, independentemente de tal coisa ficar ou não pacificamente, por mais ou menos tempo, na posse do agente.
Quanto ao conceito de coisa para efeitos penais, reconduz-se o mesmo a toda a substância corpórea, material, suscetível de apreensão, pertencente a alguém e que tenha um determinado valor, mas juridicamente relevante.
Para a consumação deste crime, exige-se, ainda, um dolo específico: a referida ilegítima intenção de apropriação, a qual se traduz na intenção de o agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada, de a haver para si ou para outrem, integrando-a na sua esfera patrimonial, o que se verificou nos presentes autos.
Assim, não se tendo apurado causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, serão os arguidos condenados pela prática de um crime de furto simples.
Do crime de incêndio
Dispõe o artigo 272°, n°1, alínea a) do Código Penal que, quem provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício, construção ou meio de transporte e criar deste modo perigo para a vida ou para integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de três a dez anos.
Trata esta norma de um crime de perigo, pela qual a lei pretende proteger a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado, antecipando essa tutela, punido a conduta independentemente da verificação de um resultado.
Como elementos constitutivos temos: a) a provocação de um incêndio (e não da simples provocação ou ateamento de qualquer fogueira ou fogacho); b) que tem de ter relevo e c) e ser cometido com dolo ou por negligência.
No caso em apreço mostra-se indubitável o preenchimento dos referidos elementos objetivos constitutivos do tipo de ilícito. Com efeito, os arguidos, ao pegarem intencionalmente fogo à casa, provocaram um incêndio, o qual, se tem de considerar de relevo: em primeiro lugar porque surgiu, a partir do fogo posto em construção habitacional [alínea a) do n° 1 do artigo 272°]; em segundo lugar porque esse fogo foi ateado em matéria altamente inflamável com natural expansão e previsível dificuldade de controle, e, em terceiro lugar, porque a extensão que esse mesmo incêndio alcançou, é de molde a tê-la por considerável, de relevo. Com efeito, o fogo ateado era idóneo a destruir a casa (como destruiu). Tratava-se de uma casa de habitação para veraneio, para cuja reparação será necessário gastar 6 000,00€. Tal casa não era um bem dos arguidos, mas de terceiro, que se viu com um prejuízo substancial para o qual em nada concorreu.
Assim, e porque os arguidos bem sabiam que agiam ilicitamente, com margem de liberdade adequada a escolher se queriam ou não realizar o ilícito, terão de ser condenados como autores de um crime doloso de incêndio.
2. Medida da Pena
Cumpre determinar a medida da pena a aplicar aos arguidos, uma vez que a todo o crime corresponde uma reação penal, pela qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada pelo agente.
A determinação definitiva da pena é alcançada através de um procedimento que decorre em três fases distintas: na primeira investiga-se e determina-se a moldura penal aplicável ao caso (medida abstrata da pena); na segunda investiga-se e determina-se a medida concreta (dita também individual ou judicial); na terceira escolhe-se (de entre as penas postas à disposição do legislador e através dos mecanismos das penas alternativas ou penas de substituição) a espécie de pena que, efetivamente, deve ser cumprida (Figueiredo Dias, Direito Penal - As consequências jurídicas do crime, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 229).
Vejamos, em concreto, estas diversas etapas.
O crime de furto simples é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (artigos 203°, n°1 do Código Penal).
O crime de incêndio é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos (artigo 272°, n°1 do Código Penal).
Uma vez que um dos crimes praticados admite, em alternativa, pena principal de prisão e de multa, importa, em primeiro lugar, proceder à escolha do tipo de pena principal a aplicar, para seguidamente determinar a medida concreta da pena escolhida.
Em conformidade com o disposto no artigo 70° do Código Penal, a escolha da pena deve ser feita dando preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta se mostre suficiente para promover a ressocialização do delinquente e satisfaça a proteção dos bens jurídicos (artigo 40° do Código Penal), sendo alheias, neste momento, considerações relativas à culpa que apenas funciona como limite (e não como fundamento) no momento da determinação da medida concreta da pena já escolhida.
A aplicação de penas visa, por um lado, reafirmar na comunidade a manutenção da validade das normas violadas, repondo a confiança dos cidadãos na validade e vigência da norma violada sempre que a mesma tenha sido abalada pela prática de um crime (prevenção geral positiva) e, por outro, a reintegração do agente na sociedade através da «prevenção da reincidência» (prevenção especial positiva).
No caso em análise, as exigências de prevenção geral são extremamente elevadas, devido à frequência com que os crimes contra o património, conforme é disso expressão o Relatório Anual de Segurança Interna. Dada a grande incidência destes crimes, como é disso expressão os dados referidos, são acentuadas as exigências de prevenção geral no sentido de fazerem apelo a uma maior necessidade de sancionamento para que se restabeleça a confiança, validade e eficácia na norma jurídico-penal violada, sendo ainda premente uma eficaz proteção e tutela do bem jurídico violado.
Relativamente às exigências de prevenção especial não pode o Tribunal ignorar os antecedentes criminais do arguido L. , sendo certo que, e aqui também pensando no arguido S. , tais factos foram praticados conjuntamente com um crime de incêndio, com destruição total de uma habitação, sem razão aparente, elevando a um nível muito alto as exigências de prevenção especial, pelo que o Tribunal opta pela aplicação de penas privativas de liberdade.
Importa, agora, determinar a medida concreta da pena a aplicar.
Nesses moldes, a prevenção geral positiva ou de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fasquia superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar. Por seu turno, a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva (artigo 40°, n° 2, do Código Penal). Ora, dentro desses limites, cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à socialização do agente, considerando ainda as demais circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para as exigências preventivas, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, como preceitua o artigo 71°, n° 2, do Código Penal, encontrando-se assim a pena adequada e justa.
Nessa perspetiva, e pese embora o diminuto valor dos bens furados, é elevado o grau de ilicitude dado o modo de atuação, as consequências do facto (montante do prejuízo e não uso até reparação) e a circunstâncias dos arguidos terem atuado de noite e em lugar ermo (dificultando o combate às chamas). A intenção provada evidencia o dolo direto dos arguidos. A favor dos arguidos nada abona, excetuando a ausência de antecedentes criminais do arguido S.  (o que já não se passa quanto ao arguido L. , que revela uma propensão para atear incêndios).
Face ao exposto, o Tribunal decide aplicar as seguintes penas:
• Quanto ao arguido S. :
^ Uma pena de 10 meses de prisão pelo crime de furto;
^ Uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão pelo crime de incêndio.
• Quanto ao arguido L. :
^ Uma pena de 10 meses de prisão pelo crime de furto;
^ Uma pena de 5 anos e 10 meses de prisão pelo crime de incêndio.
Verificando-se um concurso real e efetivo de infrações, a punição deve realizar-se de acordo com o disposto no artigo 77° do Código Penal.
Nos termos do n° 2 da norma acima referida, a pena única deverá ter como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos dois crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas a todos os crimes.
Dentro desta moldura, há também que atender aos factos e à personalidade do agente, apreciados conjuntamente (artigo 77°, n° 1, parte final do Código Penal), pelo que, realizando uma análise genérica e consequencial de toda a factualidade, de modo a fazer corresponder a punição aos factos e às exigências pessoais e sociais que a sua prática suscitou, com o máximo rigor e acerto, demonstra-se adequada a fixação da pena única do arguido S.  em 4 anos e 6 meses de prisão e do arguido L. em 6 anos e 3 meses de prisão.
Impõe-se, neste momento, a apreciação da verificação dos pressupostos de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão a que o arguido S.  é condenado.
Determina o artigo 50° do Código Penal que o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior ou posterior ao facto e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 40°, n° 1 do Código Penal).
A finalidade essencial é a ressocialização do agente na vertente de prevenção da reincidência cujas probabilidades de êxito são aferidas no momento da decisão em função dos indicadores previstos no artigo 50°, n° 1 do Código Penal.
A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da prática de crimes, assentando o juízo de prognose não numa absoluta certeza mas numa esperança fundada de que a socialização em liberdade seja realizada, importando sempre um risco para o julgador derivado dos elementos de facto a que tem acesso (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993 pág. 344).
Importa especialmente considerar que o arguido não regista antecedentes criminais e tem um percurso de vida que indiciam que a simples ameaça da prisão é não só suficiente para afastar o arguido da repetição de atos similares, como se mostra adequada ao sancionamento do facto. Não se defraudarão, pois, as expectativas comunitárias se se lhe conceder uma oportunidade de se reinserir validamente na sociedade, em liberdade, isto é, com a simples censura do facto e a ameaça da prisão (artigo 50°, n° 1 do Código Penal). Contudo, para ajudar o arguido no processo de reinserção social, indo de encontro ao que se sugere no relatório social, a suspensão da pena haverá de ser acompanhada de um regime de prova, nos termos em que este vem previsto nos artigos 53° e 54° do Código Penal (o primeiro destes preceitos aplicável por remissão do último), pelo qual se operará o inerente auxílio na inserção social, com integração em programa de controlo do alcoolismo, se necessário.”
8. Apreciando, agora, as questões que são objecto do recurso em causa:
- Da impugnação da matéria de facto; da violação do princípio da presunção de inocência e do princípio “in dubio pro reo:
Os recorrentes pedem a sua absolvição, invocando o princípio “in dubio pro reo” e no texto das motivações aparentam pôr em crise a livre convicção do tribunal.
Com efeito, os recorrentes pretendem colocar em causa a prova e a apreciação da mesma, nos termos em que foi feita pelo tribunal a quo, entendendo, em concreto, que este nunca poderia ter dado como provados os factos referidos nos pontos 1 a 5 e 7 a 10.
Para o efeito, sustentam que os elementos indiciados são manifestamente insuficientes para determinar uma conexão causal que confira consistente concordância entre a factualidade demonstrada por via da prova directa e os factos indirectamente provados.
Apreciando:
Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12-6-2008 (Proc. nº 07P4375, em www.dgsi.pt): “a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º)” – também, neste sentido, o Ac. RL, de 10.10.2007, proc. nº 8428/2007-3, in www.dgsi.pt.
Daí que o tribunal de recurso só possa alterar o decidido se as provas indicadas pelo recorrente, que o tribunal vai ouvir ou ler, sem a imediação, nem a oralidade, impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n°3 do art.° 412º do CPP).
Conforme se escreve no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2008 proferido no P.° 360/08-1.a, acessível em www.dgsi.pt: “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.»
Feitas estas considerações, debrucemo-nos sobre os fundamentos do recurso que os arguidos vieram intentar.
No caso, os recorrentes parecem pretende se insurgir contra os factos dados como provados, mas, e contrariamente ao exigido pelo nº 3 e pelo nº 4 do artº 412º do CPP, não indicaram as passagens da gravação em que se funda a sua impugnação, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, limitando-se, de uma forma geral e global, a negar a prática dos factos e a tecer considerações sobre a forma como o tribunal recorrido valorou a prova, sem que se perceba quais são as provas que, quanto a cada um dos factos que pretendem impugnar, na sua óptica, impunham decisão diversa da proferida e que passagens dos concretos depoimentos eram, para esse efeito, relevantes.
Efectivamente, os recorrentes limitaram-se a criticar a valoração da prova feita pelo tribunal recorrido, pugnando uma perspectiva diferente da mesma, o que é substancialmente diferente de proceder a uma real impugnação da matéria de facto.
E, observada a decisão recorrida, verificamos que o tribunal recorrido, de modo exaustivo e rigoroso, e perante o silêncio dos arguidos, em sede de audiência de discussão e julgamento, fundamentou a credibilidade que lhe mereceram as declarações das diversas testemunhas ouvidas, naquela sede, designadamente os depoimentos das testemunhas, Manuel Aguiar e David Aguiar (ofendido e irmão), em função da forma como foram prestadas, em valoração conjunta com o auto de apreensão dos objetos furtados (fls. 33/34), com o termo de entrega (fls. 9), com os relatórios de inspeção judiciária (fls. 83 a 93 e 94 a 101), com o auto de reconhecimento de objectos (fls. 105 a 108), com o auto de busca e apreensão (fls. 131 a 132) e, por fim, com o auto de exame direto (fls. 134), o que, da sua conjugação global e de acordo com as regras da experiência comum, contribuiu, de forma decisiva, para criar a convicção do tribunal no sentido de terem sido os arguidos os autores dos factos.
O tribunal a quo seguiu um processo lógico e racional, observando regras de experiência comum, que conduziram a que a sua convicção se formasse naquele sentido e a forma como valorou os diversos meios de prova não merece qualquer reparo.
Com efeito, no caso, para dar como demonstrado o facto de terem sido os arguidos a levar a cabo o incêndio, o tribunal a quo recorreu à prova indiciária ou indireta, a qual permitiu, com o auxilio das regras da experiência, e em conjugação com os restantes meios probatórios, uma ilação quanto à prova, tudo nos termos do art. 127º do C.P.P.
O recurso à prova indirecta, conforme referem SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, in “Código de Processo Penal Anotado”, I Volume, Editora Rei dos Livros, pág. 684: ”é legítimo o recurso à prova por presunção, aquela que partindo de determinado facto, chega por mera dedução lógica à demonstração da realidade de um outro facto. A presunção consiste na dedução, na inferência, no raciocínio lógico por meio do qual se parte de um facto certo, provado ou conhecido e se chega a um facto desconhecido.
Na realidade, a prova pode ser directa ou indirecta/indiciária (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II vol., p. 99 ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova, quer a directa quer a indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, valorando cada meio por si e na conjugação dos vários elementos, analisados de acordo com as regras da experiência.
Assim, e como se pode ler no acórdão recorrido: “…e pese embora o silêncio dos arguidos e a inexistência de testemunhas oculares, o Tribunal não teve quaisquer dúvidas quanto aos factos provados, que resultam dos meios probatórios indicados no parágrafo anterior.
Manuel Aguiar, ofendido, e David Aguiar, seu irmão, explicaram-nos, num discurso cristalino, que, após terem sido avisados do incêndio, encontraram os arguidos (que conhecem desde a infância) perto da farmácia dos Arrifes (freguesia vizinha), tendo encetado uma perseguição aos mesmos por aqueles terem fugido assim que os viram. Em tal fuga, o arguido S.  atira para o chão uma mochila (que, se dúvidas houvesse, ainda foi reconhecida pela mãe do arguido como sendo do seu filho), a qual continha no seu interior objetos retirados da casa de veraneio do ofendido, o qual nos garantiu, de forma veemente, que os mesmos lhe pertenciam, não tendo quaisquer dúvidas quanto a esse respeito.
Acresce que, conforme nos foi dito pelas testemunhas, e resulta do relatório de inspeção judiciária, a habitação em questão não possuía ligação à rede elétrica, sendo que o incêndio terá tido início no quarto de dormir, na zona onde se encontrava uma cama, sendo indubitável que resultou de ação humana. (…)
Ora, os indícios que o Tribunal utilizou para concluir pela prova que foram os arguidos a praticar a atividade ilícita em causa foram os seguintes: pouco tempo após o incêndio deflagrar, por intervenção humana (conforme já referido), os arguidos foram encontrados em freguesia vizinha com objetos retirados do interior de tal habitação e, assim que viram o ofendido, que conheciam desde a infância, encetaram uma fuga, não podendo o Tribunal também ignorar que o arguido L. já foi condenado pela prática do mesmo tipo de crime de incêndio, reunido as características de personalidade para ter cometido igualmente o que está em causa nos autos.
Consequentemente, tendo em conta todos esses indícios, ou seja, premissas menores, o Tribunal concluiu, sem qualquer dúvida, que quem desenvolveu o incêndio foram os arguidos, não estando o Tribunal em dúvida, mas sim convicto de que o facto de os arguidos terem levado a cabo o incêndio corresponde à realidade, tendo sido seguidas as regras do artigo 127° do Código de Processo Penal.
O prejuízo causado foi-nos confirmado, de forma absolutamente clara, pelo ofendido.
Em relação aos elementos subjetivos dos factos imputados aos arguidos, os mesmos decorrem da conjugação da factualidade objetiva apurada com as regras da normalidade e da experiência comum do julgador. Quem atua como os arguidos atuaram, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e volitiva, não podem deixar de querer atuar como descrito, de terem consciência da proibição da conduta e de conformarem-se com as consequências legais da mesma (sendo que, conforme nos explicou o ofendido, os arguidos ajudaram-no a erguer tal edificação, carregando materiais para que sabiam ser particularmente carburantes.).”
Temos, assim, que o Tribunal recorrido, escudado nos princípios da oralidade e da imediação, explicou claramente o que lhe pareceu crível e concatenou os depoimentos prestados entre eles e com outros indícios existentes nos autos, de uma forma crítica e lógica, que não merece qualquer censura.
Os recorrentes não podem pretender substituir a convicção alcançada pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção, o que não ocorre no caso em apreciação.
Deste modo, entendemos que os factos impugnados correspondem ao sentido da prova produzida em audiência, não impondo as provas indicadas pelos recorrentes (ou a falta delas, como é o caso) decisão diversa em relação aos factos impugnados, o que dita a improcedência do recurso, nesta matéria.
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Não se verifica, igualmente, qualquer violação do princípio da presunção de inocência dos arguidos, não sendo invocável, in casu, o princípio “in dubio pro reo”, atenta toda a determinante prova produzida e que fundamentou a decisão da matéria de facto provada, sendo que, no caso em apreço, o tribunal a quo não teve qualquer dúvida quanto à veracidade dos factos dados como provados.
De acordo com a jurisprudência uniforme dos tribunais superiores, verbi gratia, o Ac. do TRL de 29 de Junho de 2006, proferido no processo nº 3759/06 da 9ª Secção, disponível em www.pgdlisboa.pt.: “o princípio in dubio pro reo só se aplica no domínio da prova quando o tribunal tenha ficado numa situação de non liquet, ou seja, com sérias dúvidas relativamente aos factos, que em tal situação teria de ser resolvida a favor do arguido”, ou, ainda, nas palavras do Ac. do TRL de 2 de Novembro de 2006, também disponível em www.pgdlisboa.pt.: “O tribunal só lança mão do princípio in dubio pro reo – corolário do princípio constitucional da presunção da inocência (artº 32º nº 2 da CRP) – se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e da liberdade de apreciação (artº 127º CPP), tivesse conduzido à subsistência, no espírito do julgador, de uma dúvida positiva invencível sobre a verificação ou inexistência de um facto relevante para a descoberta da verdade”.
Ora, perscrutada, mais uma vez, a decisão recorrida dela não resulta ter havido qualquer dúvida quanto à culpabilidade dos arguidos, assim como quanto ao preenchimento da plenitude dos elementos constitutivos dos ilícitos criminais pelos quais foram, muito justamente, condenados, pelo que improcede, também, nesta parte, o recurso, por não ter existido qualquer violação do princípio “in dubio pro reo”.
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- Do enquadramento jurídico-penal; da errada qualificação jurídica quanto ao crime de incêndio:
Vieram, também, os recorrentes invocar que o tribunal a quo fez uma errada qualificação jurídica dos factos quanto ao crime de incêndio, já que não podiam ter sido condenados pela pratica do mesmo, pugnando pela absolvição.
Alegam, para o efeito, que o crime de dano qualificado (que lhes vinha imputado na acusação) é um crime de dano, e o crime de incêndio, pelo qual foram condenados, é um crime de perigo comum. O objecto da alegada acção foi um só (perfeitamente diferenciado): pequena edificação construída em madeira, propriedade do ofendido, não resultando dos factos provados que a alegada acção incendiária dos arguidos haja “criado perigo para a vida ou para a integridade física de outrem’", ou mesmo para outros (e indiferenciados) “bens patrimoniais alheios de valor elevado”, designadamente, outras construções que eventualmente pudessem existir, naquele mesmo local ou nas proximidades. Entendem, ainda, que não ficou provado, nem poderia, por não se ter alegado na acusação, que o dolo de resultado dos arguidos (a destruição da pequena casa visada) contivesse o dolo de perigo de outros bens (pessoais ou materiais de valor elevado).
Apreciando:
Observados os autos, verifica-se que a acusação imputava aos arguidos, para além do mais, a prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelos arts. 212º nº 1 e 213º nº 1 al. a) do C.P.
Pelo tribunal recorrido foi alterada a qualificação jurídica do crime de dano qualificado para um crime de incêndio, p. e p. pelo art. 272º nº 1 do C.P., pelo qual vieram, efectivamente, os arguidos a ser condenados.
Vejamos:
Dispõe o artigo 272.º, nº 1 do Código Penal:
1 - Quem:
a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício, construção ou meio de transporte;
 (…)
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de três a dez anos. (…).
Conforme afirma José Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, p. 865 e ss., importa reter, a propósito deste crime, os seguintes aspectos:
O perigo enquanto realidade dogmática vale o mesmo que o dano. Sucede, porém, que a violação do bem jurídico está normalmente ligada, de maneira absorvente, à ideia de dano. O que se verifica é que há situações de perigo-violação e outras situações de dano-violação. O que faz com que os crimes de perigo concreto – enquanto crimes de perigo-violação – sejam crimes de resultado, talqualmente um crime de dano-violação. Para além disso, os crimes de perigo representam, em termos de percepção do momento de tutela, uma clara “antecipação” na defesa do bem jurídico. Neste sentido, o bem jurídico-penal não é só a realidade nuclear ou a sua representação ético-social, mas é também irremissivelmente o pré-campo indispensável, essencial à total expansão do bem jurídico em causa. Vale por afirmar: o bem jurídico é uma unidade de sentido que comporta, não só o núcleo da sua intrínseca natureza (p. ex., a vida), mas é de igual jeito, um halo envolvente de defesa que se assume, socialmente, como cuidado de “mim” e de cuidado dos “outros”, relativamente à parte nuclear.
Em síntese, os crimes de perigo concreto são todas as infracções criminais em que o perigo é elemento do tipo legal de crime, enquanto que crimes de perigo abstracto são todos aqueles em que o perigo não é elemento do tipo, mas tão-só motivação do legislador.
No que se refere ao bem jurídico protegido, vê-se que o que se visa proteger é a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios de elevado valor.
No que se refere ao tipo objectivo do ilícito, na parte que interessa à economia da presente decisão, refere o supracitado autor: [al. a)] provocar é, neste sentido, causar, mas causar dentro de um quadro, não de uma representação natural-causal, mas, indefectivelmente, no âmbito de uma causação normativamente orientada.
Da mesma forma, não basta causar incêndio, necessário é, ainda, que esse incêndio tenha relevo. Isto é: que seja um incêndio com uma extensão, ou com uma intensidade que se devam considerar, à luz das regras da experiência, como manifestas, indiscutíveis ou relevantes, sendo disso exemplo o incêndio de edifício, construção ou meio de transporte.
Por último, de referir que é absolutamente irrelevante se o bem sobre o qual se provocou o incêndio é próprio ou alheio.
Passando ao estudo do resultado de perigo-violação, vê-se que, em concreto, aquela específica conduta do agente (por exemplo, ter provocado um incêndio de relevo), tem, ainda, de criar um perigo concreto, quer para a vida, quer para a integridade física, quer para bens patrimoniais alheios de grande valor.
A noção de perigo é, em substância, uma categoria relacional. E, por isso mesmo, a sua refracção, dentro da normatividade inerente ao direito penal, expande-se por meio de uma ideia de probabilidade racional e jurídico penalmente empenhada. Assim, há perigo sempre que esse pedaço da realidade, através de um juízo baseado em regras de experiência, complementadas, ou não, por proposições científicas, puder ser visto como susceptível – desde que sustentado em um raciocínio de prognose – de desencadear um resultado desvalioso. Mas em que grau é que temos de valorar essa probabilidade? O perigo acontece sempre que no cotejo entre a produção do resultado material desvalioso (o chamado resultado de dano-violação) e a sua não produção interceda um juízo de forte e marcada probabilidade de produção do resultado. Quando isso se verifica, houve um resultado de perigo-violação, mas não um resultado de dano-violação
É suficiente que se tenha criado um perigo para a vida de uma só pessoa para que se tenha por preenchido o tipo legal de perigo.
No que se refere ao que se deva entender por “bens patrimoniais de valor elevado”, entende-se que a noção legal de “valor elevado” contemplada na alínea a) do artigo 202.º não tem qualquer espécie de aplicação ao domínio normativo e apreciação. Aquela noção legal de valor tem o seu exclusivo campo de aplicação dentro da região normativa dos crimes contra o património. O que implica que estejamos novamente perante um puro conceito normativo, o que não é o reino da arbitrariedade, da insegurança, da incerteza, mas antes uma região da objectividade conseguida através da intersubjectividade. Sem embargo, pode muito bem ser chamado ao juízo cruzado que a intersubjectividade é capaz de construir o valor indexado e taxativo que se alcança pelas regras aritméticas pressupostas na al. a) do artigo 202.º. Mas o valor que se dá ao montante alcançado vale o que vale. Não é um absoluto, nem tem de o ser. Pode ser uma coordenada ou uma variável a ter particularmente em conta, mas bem pode suceder que o intérprete, de maneira racionalmente fundamentada, encontre razões para considerar “valor elevado” um outro montante. O que está vedado é considerar variáveis estritamente subjectivas atinentes à vida da vítima ou do ofendido.
No que se refere ao tipo subjectivo do ilícito e no que se refere ao nº 1 do preceito, está-se perante um crime essencialmente doloso, a admitir qualquer uma das formas de dolo.
No entanto, o tipo objectivo de ilícito está construído em duas grandes variantes: a definição vinculada da conduta e, ainda, a determinação do resultado perigo-violação. Esta complexa construção implica, do lado subjectivo, que o agente tenha, não só de querer e representar uma das condutas descritas no enunciado das diferentes alíneas do nº 1, mas que, também, represente e queira um resultado de perigo-violação referente a bens jurídicos determinados no tipo.
Revertendo ao caso concreto, apurou-se que, no circunstancialismo descrito, os arguidos provocaram um incêndio, numa pequena edificação, construída em madeira, no valor de 6.000,00 €, propriedade de MM. , utilizando, para o efeito, um isqueiro, tendo dirigido a chama, criado pelo mesmo, ao colchão existente no quarto, aguardando que a mesma começasse a lavrar. Mais se provou que os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, em conjugação de esforços e intentos, em execução de plano comum, com o propósito concretizado de destruir aquela casa, bem sabendo que a mesma era construída em material particularmente carburante e que quando fosse detetado o fogo a mesma já se encontraria destruída, o que pretenderam conseguir, apesar de bem conhecerem o valor da mesma e dos objetos que ali se encontravam e que, agindo de tal forma, iam contra a vontade do seu legítimo proprietário.
O incêndio em referência, que incide sobre uma construção, é, assim, de relevo, na asserção supra descrita.
Sem embargo, vê-se que, no caso concreto, para além do incêndio que os arguidos provocaram na referida residência – acto incendiário em si mesmo - não se apurou que daí tenha decorrido perigo [concreto] para quaisquer outros bens.
Lê-se no Ac. do TRC de 14-01-2015, disponível in www.dgsi.pt, se lê: “O perigo (concreto), indispensável á verificação do crime de incêndio, existe sempre que, em dada situação, e através de formulações de prognose com base nas regras da experiência, a acção possa ser considerada como susceptível de produzir um resultado desvalioso para os bens descritos no artigo 272.º do C.P.
A este propósito, pode ler-se no Ac. do STJ de 24.04.2008, disponível para consulta em www.dgsi.pt., com inteira pertinência para o caso em apreciação:
“(…) 5.1. «Perigo comum» é o «perigo para um número indiferenciado de objectos de acção sustentados por bens jurídicos» (Comentário Conimbricense, II-866).
5.2. No caso, o objecto de acção foi um só (e perfeitamente diferenciado): o automóvel do assistente, estacionado «no final da Rua dos C..., em P... do V..., C..., do lado esquerdo da faixa de rodagem, junto a um lote de terreno sem construção, tendo ao seu lado direito o prédio do lote 50, que faz fronteira com os prédios que se lhe seguem, já na Rua da V...»
5.3. Com efeito, não se provou que a acção incendiária do arguido (ao pôr fogo, destruindo-o, ao automóvel do assistente) haja «criado perigo para a vida ou para a integridade física de outrem» ou, mesmo, para outros (e indiferenciados) «bens patrimoniais alheios de valor elevado» (designadamente, «o prédio do lote 50» e os «que se lhe seguem já na Rua da V...» ou outros veículos porventura estacionados na mesma rua ou na seguinte).
5.4. Não estando em causa que o arguido tivesse provocado incêndio de relevo, pondo fogo a meio de transporte, a verdade é que não se alegou nem provou que o arguido haja, «deste modo», «criado perigo para a vida ou para a integridade física de outrem» ou, mesmo, para outros (para além do meio de transporte incendiado) «bens patrimoniais alheios de valor elevado».
5.5. Como também não se provou – e nem, sequer, se alegara - que o dolo de resultado do arguido (a destruição do veículo visado) contivesse o dolo de perigo de outros bens (pessoais ou materiais).
5.6. Parafraseando José de Faria Costa (Comentário, cit., p. 879), «é óbvio que a acção incendiária é, pela própria natureza das coisas, um comportamento que pode integrar um simples crime de dano. Se A, para destruir o quadro de B, o incendeia é evidente que está a cometer um crime de dano e não o de incêndio». Pois «para que se verificasse o crime [de perigo comum de incêndio, em que este consumiria o de dano], seria necessária a verificação de muitos mais elementos» («que o qualificariam em crime de resultado de perigo-violação e não em um crime de resultado de dano-violação»).
5.7. Ora, faltando, no caso, esses «muitos mais elementos», a adequada qualificação jurídico-penal da acção do arguido será, simplesmente, a de um crime de «dano qualificado» previsto – e punível com pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias - pelo art. 213.1.a do CP (e não a de um crime doloso de perigo comum de incêndio, previsto – e punível com prisão de 3 a 10 anos de prisão – pelo art. 272.1.a do CP) (8). (…)”
A situação em apreciação no aresto citado é em tudo paralela à dos presentes autos.
De facto, é manifesto que faltam, ao caso em apreciação, aquelas outras circunstâncias que o qualificariam em crime de resultado de perigo-violação e não em um crime de resultado de dano-violação.
Acresce o dolo de dano [necessário] e não de perigo dos arguidos, que nos coloca fora do âmbito da previsão deste artigo.
Com efeito, o objecto da acção dos arguidos mostra-se perfeitamente diferenciado: pequena edificação construída em madeira, propriedade do ofendido, não resultando dos factos provados que a alegada acção incendiária dos recorrentes haja “criado perigo para a vida ou para a integridade física de outrem’", ou mesmo para outros (e indiferenciados) “bens patrimoniais alheios de valor elevado”, designadamente, outras construções que eventualmente pudessem existir, naquele mesmo local, ou nas proximidades.
Não ficou, para além disso, provado, desde logo por não constar da acusação, que o dolo de resultado dos arguidos (a destruição da casa visada) contivesse o dolo de perigo de outros bens (pessoais ou materiais de valor elevado), sendo o dolo apurado no ponto 10 dos factos provados o dolo do crime de dano, pelo qual vinham os arguidos acusados.
Assim, faltando, no caso, esses «muitos mais elementos», a adequada qualificação jurídico-penal da acção dos arguidos será a da prática de um crime de dano qualificado, tal como se mostravam acusados, previsto e punível com pena de prisão até 5 anos, ou multa até 600 dias, pelo art. 213º nº 1 a) do CP, e não a de um crime doloso de perigo comum de incêndio, previsto e punível com prisão de 3 a 10 anos de prisão – pelo art. 272º nº 1 a) do C.P.
Na verdade, incorre na prática do crime de dano todo aquele que destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia.
O bem protegido pela norma incriminadora é a propriedade.
O crime de dano visa conferir a tutela penal da “propriedade (alheia) contra agressões que atingem directamente a existência ou a integridade do estado da coisa” Wolff, LK, § 303 1, apud Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo II, Coimbra Editora, p. 206-207, tendo esta incriminação presente o facto de a destruição de coisas configurar uma das formas mais frequentes de expressão da agressividade humana, Costa Andrade, in Comentário…, p. 202.
O objecto da acção que pode ser destruição, total ou parcial, danificação, desfigurar ou tornar não utilizável, terá sempre que ser uma coisa alheia, significando isto que deverá ser algo que pertence a alguém – excluindo-se a res nullius - que não ao agente, sendo alheia a coisa de que o agente é apenas comproprietário.
A noção de «coisa» vamos buscá-lo ao direito civil, ainda que de forma restrita. Com efeito, enquanto segundo o direito civil, mais concretamente de acordo com o art. 202.º do Código Civil, objecto é tudo aquilo que possa ser objecto de relações jurídicas, o domínio penal apenas cinge a sua tutela quanto às coisas que detenham corporeidade e sejam autónomas.
Finalmente, atendendo aos princípios de proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, que determinam que o direito penal só intervenha em relação a factos que tenham uma inequívoca danosidade social, será necessário que a coisa tenha algum valor e que a conduta lesiva se revista de algum relevo – Costa Andrade, idem, p. 211.
Para que o crime de dano se verifique é, ainda, necessária a presença do elemento subjectivo - o dolo, inexistindo crime se estivermos perante mera negligência – arts. 13.º-15.º do Código Penal.
No que se refere à eventual qualificação do crime, dispõe o artigo 213.º do Código Penal:
“1 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável:
a) Coisa alheia de valor elevado;
b) (…)
é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
O conceito de coisa alheia de valor elevado colhe-se no artigo 202.º, al. a) do Código Penal, de acordo com o qual:
“a) Valor elevado: aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.” 
O valor da unidade de conta para vigorar no ano 2019 foi de € 102, pelo que valor elevado é aquele que for superior a 5.100,00 euros [tudo por força do artigo 182.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2019, onde se estipulou que, em 2019, se manteria a suspensão da atualização automática da unidade de conta processual (UC) prevista no n.º 2 do artigo 5.º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, continuando em vigor o valor das custas vigente em 2018].
Não restam, assim, dúvidas que os arguidos se veem incursos na prática de um crime de dano qualificado.
Deste modo, para além da condenação pelo crime de furto simples, os arguidos serão, ainda, condenados, em concurso efectivo, não pela pratica de um crime de incêndio, como o entendeu o tribunal recorrido, na alteração da qualificação dos factos que operou, mas pela prática de um crime de dano qualificado, nos precisos termos em que vinham acusados.
*
- Da escolha e da medida das penas parcelares e da pena única resultante do cúmulo jurídico:
Os recorrentes vêm, ainda, alegar que a decisão recorrida, na fixação da medida da pena de furto não procedeu à ponderação dos factos individualizados deste crime, optando por uma avaliação conjunta dos factos dos dois crimes, para além de não ter, igualmente, ponderado, de forma adequada, os elementos de que dispunha, uma vez que na pena abstracta, de multa ou prisão, fixou logo a pena de prisão, tudo pese embora os bens alegadamente furtados fossem de muito pouco valor (5,00 €), não tendo os arguidos antecedentes criminais desse mesmo tipo de crime.
Mais invocaram que as penas parcelares aplicadas, bem como a pena única, são excessivas, por ultrapassarem a medida da culpa, tudo em violação do disposto nos arts. 40º e 71 º do Código Penal.
Apreciando:
O crime de furto simples é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (artigos 203°, n°1 do Código Penal).
O crime de dano qualificado é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias (artigos 212º nº 1 e 213º nº 1 al. a) do Código Penal).
Sendo ambos os crimes punidos, em termos abstractos, com pena de prisão ou multa, em conformidade com o disposto nos artigos 40º e 70° do Código Penal, importa optar por uma delas.
Como refere o Prof. Figueiredo Dias, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, § 497: “o tribunal deve dar preferência à segunda «sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» (art. 70.º do CP). «O que vale por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição.”
Na decisão recorrida, o tribunal entendeu que a aplicação de uma pena de multa [reportando-se, à data, ao crime de furto, único, então, punível com essa alternativa, já que o crime de incêndio o não permitia] não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Ora, perante a pluralidade dos crimes praticados, em relação de concurso, e à sua gravidade, em especial no que concerne ao crime de dano qualificado, entende, também, este Tribunal que uma pena não detentiva não realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
Com efeito, as exigências de prevenção geral são acentuadas, devido à frequência com que este tipo de crimes ocorre, fazendo apelo a uma maior necessidade de sancionamento, para que se restabeleça a confiança, validade e eficácia na norma jurídico-penal violada, sendo, ainda, premente uma eficaz proteção e tutela dos bens jurídicos violados.
No que concerne às exigências de prevenção especial, importa considerar a pluralidade de crimes cometida por ambos os arguidos, em coautoria – um furto e um crime de dano qualificado, com destruição total de uma habitação, com recurso ao incêndio da mesma, sem razão aparente, sendo, ainda, de valorar que o arguido L.  conta com antecedentes criminais pela prática de um crime de natureza semelhante ao crime de dano aqui praticado (crime de incêndio), elevando, assim, as exigências de prevenção especial.
Por todo o exposto, nos termos e para os efeitos dos arts. 40º e 70º do Código Penal, opta-se pela aplicação de penas privativas de liberdade a ambos os arguidos.

Quanto à determinação da medida concreta da pena, como é sabido, faz-se em função da culpa do agente e entrando em linha de conta com as exigências de prevenção de futuros crimes, nos termos do preceituado no art. 71º do Código Penal.
No caso, o grau da culpa é elevado, tendo os recorrentes agido com dolo directo. Pese embora, no crime de furto, o valor diminuto dos bens subtraídos, mostra-se elevado o grau de ilicitude e a gravidade das consequências dos factos, quanto ao crime de dano qualificado, cometido de noite e em lugar ermo, dificultando o combate às chamas, com destruição da casa (incêndio), que ficou totalmente consumida pelas chamas, causando prejuízo ao respectivo proprietário, em montante superior a 6.000,00 euros, sem qualquer reparação do mesmo até hoje.
As necessidades de prevenção são acentuadas, quer a geral, por os factos serem geradores de elevados sentimentos de insegurança na comunidade, quer a especial, uma vez que a favor dos arguidos, com excepção da ausência de antecedentes criminais do arguido S. , nada mais abona a favor dos mesmos, como o simples arrependimento ou a mera confissão dos factos, observando-se baixas competências escolares, pessoais e sociais, um percurso laboral irregular, contando, ainda, o arguido L. com antecedentes criminais pela prática de factos de natureza semelhante, pelos quais foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, por decisão transitada em julgado em Junho de 2017, ou seja, não muito distante da prática dos factos destes autos.
Face ao exposto, apresenta-se adequado e proporcional graduar as penas parcelares da seguinte forma:
= Quanto ao arguido S. :
- 10 meses de prisão pelo crime de furto [não muito afastada do limite mínimo e abaixo de 1/3 entre os limites mínimos e máximos da pena abstracta];
- 1 ano e 8 meses de prisão pelo crime de dano qualificado [situada próximo do 1/3 do intervalo da pena abstracta].
= Quanto ao arguido L. :
- 10 meses de prisão pelo crime de furto [não muito afastada do limite mínimo e abaixo de 1/3 entre os limites mínimos e máximos da pena abstracta];
- 2 anos e 6 meses de prisão pelo crime de dano qualificado [situada próximo do 1/2 do intervalo da pena abstracta].
*
Ao nível da vertente da formação da pena única, ao abrigo do art. 77º nº 1 do Código Penal, valem as considerações já antes tecidas, ou seja, a determinação da pena concreta do concurso, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 77º nº 2 do CP, obriga a uma nova fundamentação, mas sem o rigor e a extensão dos pressupostos enunciados no art. 71º do CP, considerando os critérios já adoptados na fixação das penas parcelares, mas, agora, referidos ao conjunto dos factos e à personalidade dos recorrentes.
Com efeito, tendo praticado vários crimes, impõe-se, efectivamente, a condenação numa pena única, em que serão ponderados em conjunto os factos e a personalidade do agente – art. 77º nº 1 do CP.
Tal como se refere no Ac. do STJ de 20/02/2008, proferido no Proc.4724/07 (acessível em http://www.dgsi.pt/jstj):
Na fixação da pena correspondente ao concurso é factor determinante a personalidade do agente espelhada na prática dos factos e o conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, no que importa avaliar a gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.”
No mesmo sentido, lê-se no acórdão do S.T.J., de 23 de Novembro de 2010, Processo n.° 93/10.2TCPRT.S1, acessível em www.dgsi.pt:
A determinação da pena do concurso exige um exame crítico de ponderação conjunta sobre a conexão e interligação entre todos os factos praticados e a personalidade do seu autor, de forma a alcançar-se a valoração do ilícito global e entender-se a personalidade neles manifestada, de modo a concluir-se pela motivação que lhe subjaz, se emergente de uma tendência para delinquir, ou se se trata de pluriocasional idade não fundamentada na personalidade, tudo em ordem a demonstrar a adequação, justeza, e sobretudo, a proporcionalidade, entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação conjunta daqueles dois factores. Importará indagar se a repetição operou num quadro de execução homogéneo ou diferenciado, quais os modos de actuação, de modo a concluir se estamos face a indícios desvaliosos de tendência criminosa, ou se estamos no domínio de uma mera ocasionalidade ou pluriocasionalidade, tendo em vista configurar uma pena que seja proporcional à dimensão do crime global, pois ao novo ilícito global, a que corresponde uma nova culpa, caberá uma nova, outra, pena. Com a fixação da pena conjunta não se visa re-sancionar o agente pelos factos de per si considerados, isoladamente, mas antes procurar uma sanção de síntese, na perspectiva da avaliação da conduta total, na sua dimensão, gravidade e sentido global, da sua inserção no pleno da conformação das circunstâncias reais, concretas, vivenciadas e específicas de determinado ciclo de vida do(a) arguido(a) em que foram cometidos vários crimes, em espaço temporal curto”.
No caso, já vimos que as necessidades de prevenção geral são acentuadas, dado o alarme social que os factos aqui em apreço geram.
No que à natureza dos factos concerne, ressalta a grande similitude dos mesmos, atenta a sua natureza idêntica – crimes contra a propriedade – cometidos no mesmo circunstancialismo de espaço e de tempo.
Temos, assim, que, ao abrigo do disposto no art. 77º nº 1 do CP, e quanto à determinação da pena única, revela gravidade o conjunto global dos factos e a avaliação da personalidade dos recorrentes, que, ainda, não enraíza uma carreira criminosa, mas uma pluriocasionalidade, influindo na pena de conjunto a forte necessidade que se faz sentir relativamente à mesma de prevenir a prática de futuros crimes, chamada prevenção especial de socialização.
Assim, e quanto ao:
- Arguido S. :
Considerando os limites da pena única, numa moldura penal que vai de 1 ano e 8 meses a 2 anos e 6 meses de prisão, e tendo em conta o conjunto dos factos, o percurso de vida do recorrente à data da prolação do acórdão e a sua personalidade, entendemos que a graduação da mesma em 2 anos de prisão [próximo de 1/3 entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta] se apresenta adequada para uma censura aos factos na sua globalidade, ao mesmo tempo que satisfaz as necessidades de reinserção do agente.
- Quanto ao arguido L. :
Considerando os limites da pena única, numa moldura penal que vai de 2 anos e 6 meses a 3 anos e 4 meses de prisão, e tendo em conta o conjunto dos factos, o percurso de vida do recorrente à data da prolação do acórdão e a sua personalidade, entendemos que a graduação da mesma em 2 anos e 11 meses de prisão [no ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta] se apresenta adequada para uma censura aos factos na sua globalidade, ao mesmo tempo que satisfaz as necessidades de reinserção do agente.
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- Da possibilidade de suspensão da execução da pena:
A pena única de prisão agora fixada ao arguido S.  [2 anos de prisão] será suspensa na sua execução, por igual período de tempo, nos termos do art. 50º do Código Penal, nos termos já definidos pelo tribunal recorrido, ou seja, será acompanhada de um regime de prova, nos termos em que este vem previsto nos artigos 53° e 54° do mesmo diploma legal, pelo qual se operará o inerente auxílio na inserção social, com integração em programa de controlo do alcoolismo, se necessário
*
A pena única de prisão, agora, fixada ao arguido L.  [2 anos e 11 meses], por inferior a 5 anos, permite que se equacione a possibilidade da suspensão da sua execução, nos termos do art. 50º do Código Penal.
Vejamos:
A redacção do nº 1 do art.º 50º do Código Penal permite que o Tribunal suspenda a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A suspensão da execução da pena, como medida de substituição da pena de prisão, traduz-se numa forte imposição, dirigida ao agente do facto para pautar a sua vida de modo a responder positivamente às exigências de respeito pelos valores comunitários, procurando uma desejável realização pessoal de inclusão e, por isso, também, socialmente valiosa.
Para esse efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não da prática do facto, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.
A execução da pena que, embora efectivamente pronunciada pelo Tribunal, não chega a ser cumprida, nos casos de suspensão, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição, deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança de que o mesmo sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime.
Relativamente ao aqui recorrente, as necessidades de prevenção especial são prementes, como já referimos.
Na verdade, os factos pelos quais o recorrente foi condenado nos presentes autos foram cometidos em pleno período de duração da suspensão da execução da pena de prisão, que lhe foi imposta no processo n.º 601/16.5JAPDL, pela prática de um crime de incêndio [condenado, por sentença transitada em julgado em 23.06.2017, numa pena de 4 anos e 10 meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa, por igual período, com sujeição a regime de prova].
Tal condenação não foi, contudo, impeditiva do cometimento dos factos aqui em apreço, manifestando, assim, o arguido L. total indiferença pela anterior advertência feita pelo Tribunal, para além de demonstrar não ter interiorizado o desvalor da sua conduta, levando a concluir, por isso, que muito facilmente retornará ao mesmo, caso a pena lhe fosse, agora, e mais uma vez, suspensa. 
Por outro lado, na opção por pena substitutiva não entram, apenas, considerações de prevenção especial, mas, também, de prevenção geral sobre a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (neste sentido, Jorge Figueiredo Dias, “As Consequências do Crime”, Reimpressão, 2005, p. 344: “Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise”), sendo de salientar a necessidade de combater eficazmente este tipo de crimes, pela frequência com que se observam este tipo de praticas criminosas, que tanto contribuem para justificado alarme social.
Impõe-se, assim, que haja uma resposta adequada por parte dos Tribunais, que, ao administrar a justiça, cumprindo o dever de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, não podem ficar indiferentes à gravidade deste tipo de comportamentos e aos sentimentos de insegurança que os mesmos causam na comunidade, para cuja estabilização não se apresenta, manifestamente, suficiente uma pena cumprida em liberdade, susceptível de criar nessa mesma comunidade um sentimento de impunidade em relação a actos merecedores de elevada censurabilidade.
Face à apurada personalidade do arguido, a suspensão da execução da pena seria em todo o caso uma grave violação das finalidades das penas, pois o delinquente apenas a entenderia como sinal de impunidade e de incentivo à prática de futuros crimes, como seria causa de alarme social e violadora das exigências de prevenção geral que, em tal tipo de crimes, se fazem especialmente sentir.
Entende-se, assim, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, impondo-se, por isso, a necessidade do cumprimento efectivo da pena de prisão em que o recorrente foi condenado.
Em suma: perante este quadro, as exigências de prevenção geral e especial, o elevado grau do ilícito e da culpa, pelo já descrito supra, destacando-se, ainda, em termos de culpa, a censura muito elevada, evidenciada nas circunstâncias indicadas, e não interiorizando o recorrente qualquer juízo crítico da sua conduta, ou arrependimento, é manifesto que a pena única de prisão ora fixada ao arguido L.  não pode ser suspensão da sua execução, não sendo possível fazer um juízo de confiança no arguido, ou seja, não existem elementos objectivos que permitam acreditar na sua determinação em mudar de vida.
*
- Decisão:
Em conformidade com o exposto, após conferência, os Juízes Desembargadores, do Tribunal da Relação de Lisboa, dando parcial provimento aos recursos dos arguidos, S.  e L. , acordam:
a) Em confirmar a condenação de cada um dos arguidos:
- Pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203°, n°1 do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
b) Em revogar o acórdão recorrido na parte restante; e
c) Condenar o arguido S.  pela prática de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelos artigos 212º nº 1 e 213º nº 1 al. a) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão;
d) Efetuado o cúmulo jurídico das penas mencionadas em a) e c), condenar o arguido, S. , na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo, com regime de prova (artigos 53° e 54° do Código Penal);
e) Condenar o arguido, L. , pela prática de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelos artigos 212º nº 1 e 213º nº 1 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
f) Efetuado o cúmulo jurídico das penas mencionadas em a) e e), condenar o arguido, L. , na pena única de 2 (dois) anos e 11 (onze) de prisão, cuja execução se não suspende;
g) Em manter, até trânsito em julgado desta decisão, a situação de prisão preventiva em que se encontra o arguido L.  (arts. 193º nº 1, 2 e 3, 202º nº 1 al. d) e 204º al. c) todos do CPP).
Sem custas.
Comunique ao tribunal de 1ª instância.
                                                           *                                             Lisboa, 20 de Outubro de 2020                 
Anabela Simões Cardoso
Cid Geraldo