ACÇÃO CÍVEL EMERGENTE DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
FACTO COMPLEMENTAR
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
PRIVAÇÃO DE USO
Sumário

I. Na economia de casos como os de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, a natural multiplicidade de aspetos que podem ter contribuído para a ocorrência do sinistro potencia que os factos em que essa pluralidade se concretiza se assumam como complementares uns dos outros, de tal forma que, alegados alguns nos articulados, seja admissível a introdução na causa de outros factos atinentes à ocorrência do sinistro que tenham resultado da instrução. Será o caso da “distração” de um dos condutores, adicionada ao “excesso de velocidade” desse mesmo condutor, que havia sido alegado nos articulados.
II. A privação do uso da viatura sinistrada constitui dano patrimonial ressarcível, calculável, se necessário, de acordo com a equidade.

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 24.02.2016 Augusto instaurou ação declarativa de condenação com processo comum contra Seguros S.A., atualmente, na sequência de fusão por incorporação, Seguradora, S.A.
O A. alegou, em síntese, que em 08.10.2014 foi interveniente num acidente de viação, ocorrido na autoestrada n.º 9, ao km 20,400, sentido sul-norte, concelho de Loures. Na ocasião o A. conduzia um veículo ligeiro de mercadorias, a si pertencente, e à sua frente seguia um ligeiro de passageiros, seguro na R.. Subitamente a condutora do ligeiro de passageiros travou o seu veículo, com o fim de o imobilizar nas raias oblíquas M17 e M17A existentes junto à berma direita da faixa de rodagem em apreço. O A. acionou de imediato o travão de emergência e desviou o seu veículo para o lado esquerdo, mas não conseguiu evitar a colisão dos dois veículos. O seu veículo veio a ser reparado, à sua custa, tendo a reparação orçado em € 4 536,03. O A. viu-se privado da utilização da viatura, que usava na sua atividade profissional de comércio de bidões, tendo sofrido prejuízos e transtornos que contabiliza em € 20,00 por dia, desde a data do sinistro até à data em que lhe foi entregue o veículo reparado (21.01.2015). A R. declinou a sua responsabilidade pelo acidente em causa.
O A. terminou pedindo que a ação fosse julgada procedente por provada e, consequentemente:
A) Que a condutora do veículo seguro pela R. fosse considerada a única e exclusiva responsável pelo acidente de viação;
B) Que a R. fosse condenada no pagamento de € 4 536,03, a título de reparação dos danos provocados no veículo de matrícula (…)VR, propriedade do A.;
C) Que a R. fosse condenada no pagamento de € 2 100,00, a título de indemnização pela privação do uso do veículo (…)VR;
D) Que a R. fosse condenada no pagamento de juros vencidos e vincendos desde a data da sua citação até ao integral pagamento da indemnização.
A R. contestou, imputando ao A. a responsabilidade do acidente, na medida em que a condutora do veículo seguro na R. havia necessitado de parar porque uma passageira que a acompanhava fora acometida de fortes cólicas e dores de cabeça e antes de imobilizar a sua viatura na berma a dita condutora fizera pisca e abrandara a velocidade. O embate deveu-se exclusivamente ao facto de o A. circular a mais de 100 km/hora, num local em que a velocidade máxima era de 80 km/hora, sendo certo que dispunha de espaço suficiente para passar pela esquerda do veículo seguro na R., sem lhe embater. Mais esclareceu que o acidente não ocorreu na A9 mas na via lateral que, saindo da A9, dá acesso a Loures e à A8. A R. impugnou os danos invocados pelo A., nomeadamente a privação de uso, afirmando que em 21.11.2014 o A. havia adquirido um veículo que substituíra o sinistrado.
A R. concluiu pela sua absolvição do pedido.
Atendendo ao valor da causa (€ 6 636,03) foi dispensada a audiência prévia, proferiu-se saneador tabelar e entendeu-se ser desnecessária a fixação do objeto do processo e a enunciação dos temas da prova.
Realizou-se audiência final e em 10.12.2019 foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:
Atento o exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) condeno a R. no pagamento ao A. de € 2.268,02 (dois mil, duzentos e sessenta e oito euros e dois cêntimos), a título de reparação de 50% dos danos provocados no veículo de matrícula (…)VR;
b) condeno a R. no pagamento ao A. de € 10 (dez euros) diários, relativos ao período entre 08/10/2014 e 21/01/2015, a título de 50% da indemnização pela privação do uso do veículo (…)VR;
c) condeno a R. no pagamento ao A. de juros vencidos e vincendos desde a data da citação até integral pagamento.
No demais peticionado, absolvo a R. do pedido.
Custas por ambas as partes, na proporção de 50%.
A R. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da aliás, douta sentença proferida pela Mma. Juiz “a quo”, que julgou a acção proposta parcialmente procedente, e que condenou a Ré Companhia de Seguros, S.A. no pagamento ao A. Augusto Fernandes Machado, do valor de 2.268,02 Euros a título de reparação de 50% dos danos provocados no veículo de matrícula (…)VR; e de 10 Euros diários relativos ao período entre 08/10/2014 e 21/01/2015, a título de 50% da indemnização pela privação do uso do veículo (…)VR, e a que acresce os juros de mora vencidos e vincendos desde 04 de janeiro de 2017 (data da citação) até efectivo e integral pagamento, absolvendo a Ré do demais peticionado.
2. Entende a Ré /Recorrente que deve ser reapreciada a resposta à matéria de facto, dando-se como provado a seguinte factualidade:
a. Que o Autor avistou o veículo VR parado na via quando este se encontrava a cerca de 40 a 50 metros do veículo “VV” por si conduzido.
b. Que nesse momento, o Autor circulava a uma velocidade entre os 60 e os 70 km/hora (resposta restritiva ao ponto
3. Para prova desta matéria, devem ser analisadas as declarações de parte do Autor (depoimento prestado na sessão de julgamento do dia 10/12/2018, gravado em sistema áudio, minutos 11:14:19 a 11:26:49)
4. Ao minuto 11:00 do seu depoimento, o Autor declarou que o veículo “VV” circulava a cerca de 40 a 50 metros do seu ; Ao minuto 17:25 do seu depoimento, o Autor declarou que a velocidade do seu veículo no momento anterior ao acidente era de 60 a 70 km/hora.
5. Estes factos, articulados com os demais factos acerca da dinâmica do acidente (pontos 1 a 16 dos factos provados) permitirão concluir a esse Tribunal, como é convicção da Ré, que o Autor tinha todas as condições para evitar o acidente; e que foi a sua manobra incauta, em velocidade excessiva - nomeadamente para as condições da via - e a sua imperícia que os factores determinantes para a ocorrência do acidente.
6. O acidente ocorreu por culpa exclusiva do Autor.
7. Sendo o local uma recta com boa visibilidade, não se compreende como o Autor não conseguiu avistar, com tempo, a existência de um carro parado, de modo a, com tempo, travar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente, de modo a evitar o acidente.
8. A afirmação do Autor, nas declarações de parte que apenas viu o veículo “VV” a cerca de 40 / 50 metros à frente – não se coaduna, contudo, com a visibilidade real existente no local, conforme doc. 1 a 8 junto com o requerimento junto a fls. Em 08/09/2017.
9. Das fotografias juntas aos autos, constata-se que a recta é de muito boa visibilidade, existindo assim condições para o Autor ver a posição do veículo “VV” a uma distância muito maior que os 40 metros que refere.
10. Caso o Autor tivesse avistado o veículo “VV” a uma distância , como podia e devia, então teria as condições para em tempo, diminuir a velocidade e travar no espaço livre e visível à sua frente, de modo a evitar o acidente.
11. O Autor, ao circular a uma velocidade de 60 / 70 km/hora, com a carrinha com carga de cerca de 800 kg, , com o piso molhado, ao avistar o veículo “VV” apenas a uma distância de 40 a 50 metros, e travando, deixando no local um rasto de travagem de 24 metros, colidindo contra o “VR”, quando tinha espaço suficiente para passar pela esquerda do VV sem lhe bater, demonstrou imperícia e excesso de velocidade.
12. Foi a sua conduta – e não a do veículo “VV” que foi causal do acidente.
13. Aliás, é o próprio Tribunal “a quo” que defende que foi a manobra incauta do Autor que provocou o acidente, conforme o trecho da sentença que se transcreve:
Provou-se que o veículo VR é um ligeiro de mercadorias, com o peso constante dos factos provados, que estava piso molhado e consequentemente mais escorregadio, e que ao ter avistado o veículo VV parcialmente imobilizado na via, o condutor do VV trava a fundo, deixando um rasto de 24 metros, mas não desvia o veículo para a esquerda de modo a passar pelo obstáculo, sendo que tinha espaço livre para fazê-lo, evitando o embate e as suas consequências. Caso o condutor tivesse desviado o veículo à esquerda, o embate não teria sucedido.
Admite-se que o piso molhado tivesse impedido ou dificultado o condutor de adotar a conduta adequada, desviando o veículo. Porém, precisamente porque estamos a falar de um veículo de transporte de mercadorias e em dia de piso molhado, o condutor deveria ter redobrado cautelas, mantendo uma velocidade adequada e o espaço de segurança necessário para, em face das condições do piso e das caraterísticas do veículo, conseguir desviá-lo e ultrapassar os obstáculos que se apresentem na via, conforme exigido pelo art. 24.º, n.º 1, do Código da Estrada.
O facto ilícito, que consistiu em não manter a distância de segurança e velocidade adequadas ao estado do piso e caraterísticas do veículo, de modo a conseguir desviar-se, contornando os obstáculos na via, porque violador de norma do Código da Estrada, assume-se também como culposo, por praticado com negligência, ou seja, sem adoção do cuidado devido.
14. Ao contrário do que foi o entendimento do Tribunal “a quo”, a posição do veículo VV não foi causal do acidente, uma vez que, além do mais, o “VR” dispunha de espaço suficiente para passar pela esquerda do “VV” sem lhe embater (ponto 10 dos factos provados).
15. E o Tribunal sublinhou “O facto ilícito que consistiu em não manter a distância de segurança e velocidade adequadas ao estado do piso e as características do veículo, de modo a conseguir desviar-se, contornando os obstáculos na via, porque violador de norma do Código da Estrada, assume-se também como culposo, por praticado com negligência, ou seja, sem adopção do cuidado devido”.
16. Era ao Autor que se impunha o dever de cuidado de evitar o acidente – e tinha no caso condições objectivas para evitar esse acidente.
17. Já quanto à condutora do “VV” não se lhe podem ser assacadas responsabilidades, porquanto imobilizou o veículo por um motivo justificado – a ocupante queixava-se de cólicas e dores de cabeça conforme ponto 8 dos factos provados, tendo efectuado pisca, indicando aos demais condutores que ia parar na via, entrou parcialmente na berma e imobilizou o veículo.
18. Mesmo que se considere que há no caso repartição de responsabilidades entre os condutores, nunca poderá essa divisão ser de 50%/50%, porquanto era ao Autor que se impunham maiores cuidados para .evitar o acidente, e existia desproporção de riscos quanto às características dos veículos (do Autor, um veículo ligeiro de mercadorias Toyota Dyna, da condutora do “VV” um veículo ligeiro de passageiros).
19. Em caso de divisão das responsabilidades, a mesma deve ser feita na proporção 80% para o Autor e 20% para o veículo “VV”, com a consequente diminuição do valor indemnizatório.
20. Não é devido qualquer valor a título de privação do uso.
21. Sobre a matéria da privação do uso, resulta da matéria de facto provada o que consta no ponto 27, ou seja, que “O A. não diminuiu, não cessou a actividade que exercia com o VR nem alugou outro veículo, uma vez que, desde 21/11/2014, utilizou o LA na sua actividade, sendo que, conforme consta do ponto 26, os veículos “VR” e “LA” têm as mesmas características, a cilindrada aproximada e o mesmo peso bruto.
22. Conforme consta dos art.º 18.º e 19.º da petição inicial, o Autor fundou a sua pretensão, quanto à privação do uso, na vertente dos lucros cessantes
23. Nos termos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2012, proc. n.º 1875/06.5TBVNO.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt:
“…entendeu este STJ que “da imobilização de um veículo pendente de reparação em consequência de acidente pode resultar: a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo; b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma actividade lucrativa; c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no art. 1305.º do CC, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender” (cfr. Ac 29-11-2005 – Revista n.º 3122/05 - 7.ª Secção – Araújo Barros (Relator), Oliveira Barros.
24. Sendo os lucros cessantes os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (art.º 564º nº1 CC), era relevante que, conforme fora por ela alegado, tivesse havido transportes que a Autora deixou de efectuar e, consequentemente, deixado de auferir as respectivas contrapartidas.
a simples privação de um veículo sem a demonstração de qualquer dano, i.e., sem qualquer repercussão negativa no património do lesado, não é susceptível de fundar a obrigação de indemnizar. Para que a imobilização de uma viatura possa significar danos para o seu proprietário é necessário alegar-se e provar-se factos nesse sentido” (cfr. Ac. 23-11-2010 – Revista n.º 2393/06.7TBSTS.P1.S1 - 1.ª Secção – Garcia Calejo (Relator). Logo, a mera privação de utilização de um veículo, desacompanhada da demonstração de outro danos, seja na modalidade de lucros cessantes (frustração de ganhos) seja na de danos emergentes (despesas acrescidas justificadas pela impossibilidade de utilização) não é susceptível de autónoma indemnização, entendimento este já sufragado por este STJ em acórdão de 21-10-2010, segundo o qual “a simples privação do veículo, acompanhada da demonstração de inexistência de qualquer dano (no caso, o autor temse deslocado para o local de trabalho em viaturas emprestadas ou à boleia), não é susceptível de fundar a obrigação de indemnizar” (cfr. Revista n.º 4487/04.4TBSTB.E1.S1 - 2.ª Secção – João Bernardo).
 25. no caso dos autos o Autor não alegou que tivesse efectivamente deixado de efectuar qualquer serviço e consequentemente deixado de receber o respectivo valor por conta da imobilização do veículo sinistrado.
26. A matéria alegada pelo Autor é aliás escassíssima – “a indisponibilidade do uso e fruição do veículo 18.76.VR causou um enorme trantorno e prejuízo ao ora Autor”, sem contudo concretizar, não tendo cumprido o ónus de prova
27. E, por isso, não deve ser atribuído ao Autor qualquer valor a título da privação do uso.
28. Caso assim não se entenda, o que por mera hipótese se admite, ainda assim o valor de privação do uso deve ser de 10,00 Euros diários, atendendo ao caso concreto (o Autor usou de um veículo com características muito semelhantes ao acidentado, que adquiriu e fez seus, durante o período de “privação”, utilizando por isso, em exclusivo, o veículo.
29. Admite-se subsidiariamente que a privação do uso seja calculada no valor diário de 10 Euros por dia, o que, em caso de repartição de responsabilidades em 50%, alcançará o valor de 5 Euros / dia, durante o período de privação.
30. Ao não decidir deste modo, a sentença recorrida violou, além do mais, o disposto no art.º 562.º, e 566.º do Código Civil.
A apelante terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada, substituindo-se por outra que alterasse a decisão de facto nos termos indicados pela recorrente e absolvesse a recorrente do pedido; ou que, subsidiariamente, condenasse a recorrente no pedido, na proporção de 80% de responsabilidade para o autor e 20% para a recorrente,
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões objeto deste recurso são as seguintes: impugnação da matéria de facto; responsabilidade da R. ou respetiva proporção; dano da privação de uso.
Primeira questão (impugnação da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
1- No dia 08 de Outubro de 2014, pelas 11h35, ocorreu um embate entre dois veículos na Auto-Estrada n.º 9, ao Km 20,400, sentido Sul/Norte, concelho de Loures e distrito de Lisboa, mais especificamente na via de saída para acesso à A8.
2- O sinistro em apreço envolveu o veículo ligeiro de mercadorias, de marca Toyota, modelo Dyna, com a cilindrada de 2494 cc e o peso de 3500 Kg, com a matrícula (…)VR, propriedade do ora Autor e conduzido por este e, o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula (...)VV, conduzido por … e titulado pela apólice n.º (…) válida na Ré.
3- Na A9/CREL, atento o sentido de marcha Sul/Norte, logo após a descida de Loures, cerca do km 20,00, existe uma saída da A9 para o lado direito, para quem pretendia seguir para Loures (saída 5) ou ingressar na A8 em direção a Leiria.
4- Para quem saía da A9 para se dirigir a Loures ou à A8, a velocidade máxima permitida era de 80 Kms/hora.
5- Ambos os veículos intervenientes saíram da A9 para passar a circular na citada via de acesso em direção à A8 (Leiria), seguindo à frente o veículo matrícula “VV” e mais atrás o veículo do A (matrícula “VR”).
6- A via de acesso em direção a Leiria carateriza-se por ser reta com boa visibilidade em toda a sua largura e extensão, constituída por um único sentido de trânsito, ladeada do seu lado esquerdo por um separador central de betão e do seu lado direito por uma berma, com raias, e delimitador metálico.
7- No dia, hora e local supra mencionados, o veículo (...)VR encontrava-se a circular na faixa de rodagem em apreço, sentido Sul/Norte, circulando uns metros à sua frente o veículo (…)VV.
8- Ao chegar ao Km. 20,400, porque uma ocupante do VV se queixava de cólicas e dores de cabeça, a condutora do VV fez pisca-pisca, indicando aos demais condutores que ia parar na berma direita, abrandou a velocidade, entrou parcialmente na berma e imobilizou o veículo, parcialmente na berma e parcialmente na via.
9- Na tentativa de evitar o embate, o condutor do veículo (…)VR acionou, de imediato, o travão de emergência, tendo deixado no local um rasto de travagem de 24 (vinte e quatro) metros.
10- O “VR” dispunha de espaço suficiente para passar pela esquerda do “VV” sem lhe embater.
11- Porém, o embate ocorreu entre a frente lateral direita do veículo (…)VR e a traseira do veículo (…)VV.
12- O veículo (…) VV foi projetado contra o rail de proteção da A9, tendo causado estragos neste no montante de € 353,86.
13-Jeniffer (…), transportada no veículo (…)VV foi conduzida ao Hospital Beatriz Angelo, em Loures, por ter sofrido, em consequência do embate, traumatismo craniano com perda de conhecimento.
14- No momento do embate, o piso encontrava-se molhado.
15- O presente sinistro foi participado à GNR do Destacamento de Trânsito do Carregado, que esteve presente no local e elaborou a respetiva participação.
16- Do sinistro resultaram avultados danos materiais no veículo (…)VR, localizados no vértice dianteiro direito e lateral direita.
17- Com efeito, o veículo (…)VR foi alvo de uma peritagem, tendo a sua reparação sido orçamentada no valor global de € 4.536,03 (quatro mil quinhentos e trinta e seis euros e três cêntimos), montante no qual se encontra incluído o valor do IVA à taxa legal em vigor (23%).
18- Sendo certo que, o ora Autor já procedeu à sua reparação integral, tendo despendido para o efeito a quantia de € 4.536,03 (quatro mil quinhentos e trinta e seis euros e três cêntimos), conforme fatura n.º C/7459, datada de 21/01/2015.
19- A 21 de Julho de 2015 foi remetida reclamação à Ré, na qual foi solicitada a total assunção da responsabilidade pelo do sinistro automóvel em questão, por a culpa pertencer exclusivamente à condutora do veículo (…)VV.
20- Tendo, porém, a Ré respondido que declinava toda a responsabilidade pelo acidente de viação.
21- Com efeito, a ora Ré respondeu que “(…) Consideramos que os fatores que contribuíram de forma decisiva para a produção do sinistro, foi o facto do condutor do veículo “VR” não circular a uma velocidade que permitisse imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente sem causar perigo aos demais utentes (…).”.
22- Acresce que, em consequência do sinistro, o veículo (…)VR ficou impossibilitado de circular, privando o ora Autor do seu uso.
23- O veículo (…)VR é utilizado diariamente pelo ora Autor no âmbito da sua atividade profissional de comércio de bidões.
24- Pelo que, a indisponibilidade do uso e fruição do veículo (…)VR desde a data da ocorrência do sinistro (08/10/2014) até à data em que o mesmo lhe foi entregue devidamente reparado (21/01/2015) causou transtorno e prejuízos ao ora Autor.
25- Em 21/11/2014 o A. adquiriu e registou em seu nome o veículo automóvel ligeiro de mercadorias Mitsubishi Canter, com a cilindrada de 2835 cc e o peso bruto de 3.599 Kgs, de matrícula 38-86LA, tendo segurado este veículo na Companhia de Seguros Liberty, com início em 21/11/2014, em substituição do veículo VR.
26- Os veículos “VR” e “LA” têm as mesmas características, a cilindrada aproximada e o mesmo peso bruto.
27- O A. não diminuiu, não cessou a atividade que exercia com o VR nem alugou outro veículo, uma vez que, desde 21/11/2014, utilizou o LA na sua atividade.
Na sentença enunciaram-se os seguintes
Factos não provados
1- Apenas ao chegar ao Km 20,400, uma ocupante do VV começou subitamente a queixar-se de fortes cólicas e dores de cabeça.
2- A condutora do veículo VV imobilizou o seu veículo totalmente na berma.
3- A condutora do veículo VV imobilizou o seu veículo totalmente na via.
4- No decurso da marcha, sem nada que o fizesse prever, a condutora do veículo (...)VV, sem qualquer redução prévia da velocidade, travou bruscamente.
5- Para evitar a colisão, o condutor do veículo (…)VR desviou a sua trajetória para a esquerda.
6- O A. circulava a velocidade superior a 100 KM/h.
7- No momento do embate chovia.
O Direito
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
In casu, a apelante entende que deve adicionar-se à matéria de facto provada a seguinte factualidade:
1. Que o Autor apenas se apercebeu do veículo “VV” quando este se encontrava a cerca de 40/50 metros à sua frente.
2. Que, no momento do acidente, o veículo do Autor circulava a uma velocidade entre os 60 e os 70km/hora.
Para tal, a apelante invoca as declarações de parte do A., prestadas na audiência final.
Na petição inicial o A. requereu que fosse ouvido em declarações de parte. Por outro lado, a R. requereu que o A. fosse ouvido em depoimento de parte, à matéria que a R. indicou.
Ambos os requerimentos foram deferidos.
O depoimento de parte destina-se, em particular, a obter do depoente, parte na ação, a admissão de factos que lhe são desfavoráveis face ao objeto da causa e que favorecem a parte contrária - ou seja, uma confissão (cfr. artigos 352.º e 356.º n.º 2 do Código Civil – CC -, e, no CPC, Secção I – Prova por confissão das partes - do Capítulo III – Prova por confissão e por declarações das partes - do Título V do Livro II do CPC -maxime artigos 453.º n.º 2, 463.º n.º 1, 464.º e 465.º do CPC). No caso de confissão, esta deve ser reduzida a escrito, através da chamada assentada, a fim de ter força probatória plena (artigos 463.º do CPC e 358.º n.º 1 do CC). Na falta de redução a escrito da confissão judicial, o seu valor probatório será livremente apreciado pelo tribunal (art.º 358.º n.º 4 do CC).
Por sua vez, as declarações de parte constituem um meio probatório de que a própria parte/declarante pode dispor, no exercício de um direito potestativo (art.º 466.º n.º 1 do CPC – cfr., neste sentido, v.g., António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, p. 529). Através das suas declarações em juízo a parte apresenta a sua versão dos factos, tendo por objeto aqueles em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto (n.º 1 do art.º 466.º do CPC). As declarações da parte serão livremente apreciadas pelo juiz (n.º 3 do art.º 466.º), salvo se constituírem confissão, caso em que deverão ser reduzidas a escrito no segmento confessório, valendo então, nessa parte, com força probatória plena (art.º 466.º n.º 3, parte final).
In casu, o A. foi ouvido acerca das circunstâncias do acidente e sobre os danos que daí lhe advieram, tendo por objeto os factos alegados na petição inicial e na contestação.
Com efeito, na petição inicial o autor deve alegar os “factos essenciais” que constituem a causa de pedir (al. d) do n.º 1 do art.º 552.º do CPC) e o réu deverá, na contestação, tomar posição acerca desses factos, por impugnação e/ou por exceção, alegando os factos pertinentes, os quais poderão constituir impugnação motivada ou, quanto às exceções, os “factos essenciais” em que se baseiam as exceções (artigos 571.º e art.º 572.º al. c) do CPC). Sendo certo que o réu deverá deduzir toda a sua defesa na contestação (art.º 573.º n.º 1 do CPC), excetuadas as situações de superveniência mencionadas no n.º 2 do art.º 573.º.
As partes são, assim, responsáveis pelo material fáctico da causa, numa manifestação do princípio do dispositivo (na vertente, realçada por José Lebre de Freitas, da controvérsia ou Verhandlungsmaxime, demarcada do princípio do dispositivo propriamente dito ou Dispositionsmaxime -, cfr. Introdução ao processo civil, conceito e princípios gerais à luz do novo código, Gestlegal, 4.ª edição, 2017, pp. 158 e 159).
No art.º 5.º do CPC, sob a epígrafe “Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal”, estipula-se, no n.º 1, que “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”. Contrariamente à “indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, em que “[o] juiz não está sujeito às alegações das partes” (jura novit curia - n.º 3 do art.º 5.º do CPC), no que concerne à matéria de facto o tribunal deve ater-se aos factos articulados pelas partes (proémio do n.º 2 do art.º 5.º do CPC), sem prejuízo do conhecimento dos factos notórios e daqueles de que tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções (alínea c) do n.º 2 do art.º 5.º e art.º 412.º do CPC).
É sabido, porém, que num movimento iniciado com a reforma de 1995/1996 do CPC de 1961 (Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 e Dec.-Lei n.º 180/96, de 25.9), o atual regime processual pretende conferir maior plasticidade à definição da matéria de facto que o tribunal deverá e poderá considerar para decidir o litígio que lhe é apresentado pelas partes.
Assim, continuando a caber às partes alegarem os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, ou seja, os factos indispensáveis à procedência da ação, como tal subsumíveis à(s) norma(s) jurídica(s) convocada(s) para sustentar(em) a pretensão do autor ou, no caso das exceções, ao visado insucesso da ação, o tribunal poderá (e deverá) levar em consideração os factos (resultantes da instrução) essenciais complementares e concretizadores dos alegados para fundarem a ação ou as exceções deduzidas (art.º 5.º n.º 2 alínea b)). Para tal, atualmente a lei não exige que a parte interessada na sua consideração “manifeste vontade de deles se aproveitar” (n.º 3 do art.º 264.º do CPC de 1961). Na atual formulação legal, para que o tribunal possa introduzir esses factos na decisão de facto, basta que “sobre eles [as partes] tenham tido a possibilidade de se pronunciar” (alínea b) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC), em respeito pois, pelo princípio do contraditório (art.º 3.º n.º 3 do CPC).
Assim, além dos factos alegados pelas partes para sustentarem a sua posição na lide, o tribunal deve considerar, na decisão de facto, e satisfeito o princípio do contraditório, aqueloutros que, embora não alegados, resultaram da instrução e se enquadrem no âmbito do litígio, por se integrarem na causa de pedir ou nas exceções alegadas, assumindo natureza complementar dos factos alegados precisamente na medida em que, com estes estando conectados, não foram inicialmente alegados.
Os factos instrumentais (factos tendentes à prova, por ilação decorrente de presunção judicial, de factos essenciais) resultantes da instrução serão livremente atendíveis pelo tribunal (art.º 5.º n.º 2 alínea a) do CPC).
Estas considerações emergem da circunstância de um dos factos, cujo aditamento ao acervo factual provado a apelante ora pretende, não ter sido alegado pelas partes nos respetivos articulados.
Na petição inicial o A. alegou que a condutora do veículo seguro na R. havia imobilizado a sua viatura subitamente, sem pré-aviso, na faixa de rodagem, assim causando, por culpa exclusiva, o acidente. Na contestação a R., além de alegar que a dita condutora havia parado para dar assistência a uma passageira que se havia sentido mal, alegou que a condutora havia sinalizado atempadamente a intenção de parar e havia abrandado, isto é, não havia travado a fundo, tendo a colisão ocorrido porque o A. conduzia a velocidade excessiva, circulando a mais de 100 kms/hora, sendo certo que dispunha de espaço suficiente para passar pela esquerda do outro veículo sem lhe embater.
A R. impugnou a ação motivadamente: apresentou uma contraversão dos factos, negando, assim, aqueloutra que foi apresentada pelo A. (cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, 1979, nova edição revista e atualizada por Herculano Esteves, Coimbra Editora, pp. 127 e 128). Com isso a R. pretendeu mais do que simplesmente negar a versão do acidente apresentada pelo A.. Admitida que foi a existência da colisão, a mera negação dos restantes factos alegados pelo A. poderia excluir a responsabilização da R. a título de culpa, mas não a título de risco (art.º 503.º n.º 1 do CC). Pretendeu, pois, a R., a atribuição da responsabilidade do acidente exclusivamente ao A., a título de culpa, assim se eximindo a seguradora a qualquer responsabilidade. Para tal, pois, aceite que está que ocorreu um sinistro rodoviário, isto é, uma colisão entre as duas viaturas, terá a R. que demonstrar factos dos quais resulte a exclusiva responsabilidade do A. (embora a R. não tenha deduzido pedido reconvencional). Desta forma a alegação das circunstâncias do acidente deduzida pela R. funciona como uma exceção perentória: a R. admite a colisão, mas acrescenta-lhe uma narrativa factual que a exime de responsabilidade (art.º 571.º n.º 2, parte final, do CPC).
Na apelação a R. insiste que o A. circulava com excesso de velocidade, qualificando como tal a velocidade que a R. entende que se provou, de 50/60 km/hora.
Mas, além disso, a apelante pretende que se dê como provado que o A. só se deu conta da presença da viatura segura na R. quando se encontrava a 40/50 metros da dita viatura.
Isto é, a apelante pretende adicionar, em sede de factualismo alegado para fundar a exclusão da sua responsabilidade, ao alegado excesso de velocidade, a distração do A.: apesar de, como se provou, os dois automóveis circularem numa reta com boa visibilidade em toda a sua largura e extensão (n.º 6 da matéria de facto) e em pleno dia (pelas 11h35m – n.º 1 da matéria de facto), ainda assim o A. só se teria apercebido da outra viatura quando se encontrava a 40/50 metros da mesma.
Se a R., na contestação, tivesse alegado, em termos genéricos, que o A. conduzia distraído, o facto agora invocado, isto é, que o A. só se tinha apercebido do veículo seguro na R. quando se encontrava a 40/50 metros do mesmo, valeria como facto concretizador desse facto.
Porém, não tendo tal “distração” sido invocada, poderá considerar-se que o mesmo é complementar dos factos alegados na contestação pela R. para se eximir de responsabilidade?
Quer-nos parecer que, na economia de casos como os de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, a natural multiplicidade de aspetos que podem ter contribuído para a ocorrência do sinistro potencia que os factos em que essa pluralidade se concretiza se assumam como complementares uns dos outros, de tal forma que, alegados alguns nos articulados, seja admissível a introdução na causa de outros factos atinentes à ocorrência do sinistro que tenham resultado da instrução. Será o caso da distração de um dos condutores, adicionada ao excesso de velocidade que tenha sido alegado nos articulados, em virtude de (a distração do condutor) ter resultado da instrução.
A afirmação atribuída ao A., que despoletou a pretensão probatória manifestada pela apelante, terá ocorrido no decurso das declarações que este prestou na audiência final. Ora, o A. prestou as suas declarações no início da primeira sessão de julgamento. Nessa sessão, que aliás foi a primeira de um total de cinco sessões da audiência final, a R. esteve devidamente representada pelo seu mandatário forense. Assim, atendendo à estrutura necessariamente contraditória da instrução, máxime no decurso da audiência final, é de presumir que as partes tiveram oportunidade de se pronunciarem sobre esse facto – artigos 415.º, 516.º, 461.º, 462.º, 466.º n.º 2, 423.º e seguintes, 604.º n.º 3 do CPC.
Haverá, pois, que apreciar se, como defende a R., se provou que o A. “apenas se apercebeu do veículo “VV” quando este se encontrava a cerca de 40/50 metros à sua frente”.
O único meio de prova que a R. aponta para que se dê esse facto como demonstrado é o depoimento do A..
Ora, sobre essa matéria, como decorre da audição do depoimento, o A. pronunciou-se com pouca certeza:
Juíza: “Quantos metros é que ele [o outro veículo] ia à sua frente?
A.: “Sotora, não consigo precisar, mas… eu vinha normalmente, na condução normal…o problema ali foi ela ter estancado, o carro parou de repente na faixa e eu, quando vi o carro à minha frente, tentei, foi a travagem que eu fiz, para tentar evitar o acidente.”
Juíza: “Mas a quantos metros mais ou menos é que ia o outro carro?
A.: “Cinquenta, quarenta, cinquenta, é difícil precisar, sotora…”
Afigura-se-nos que a natural incerteza da perceção, memorização e posterior recordação de acontecimentos tão rápidos e inesperados como os que consubstanciam um acidente de viação não permitem, como aliás decorre da própria insegurança manifestada pelo depoente quanto a esse facto, dar como provado, sem mais elementos de prova, o aqui pretendido pela R..
De resto, o aludido facto, prejudicial ao depoente, não foi incluído pelo tribunal a quo na assentada dos factos confessados registada na ata da audiência.
Assim, se esta Relação não pode dar esse facto como provado por confissão, também, pelas razões apontadas, não pode dá-lo como provado à luz da livre apreciação da prova.
Nesta parte, pois, improcede a impugnação da decisão de facto.
A apelante pretende também que se dê como provado que “no momento do acidente, o veículo do Autor circulava a uma velocidade entre os 60 e os 70km/hora.”
A questão da velocidade de circulação do veículo do A. aquando do sinistro constituiu objeto da prova nesta causa.
Como se disse supra, na contestação a R. alegou que na altura do acidente o A. circulava a velocidade superior a 100 km/hora (artigos 9.º e 16.º da contestação).
Velocidade que, segundo a R., era excessiva.
A R./apelante entende que a velocidade que, na sua opinião, se provou, entre os 60 e os 70 km/hora, continua a ser excessiva.
Discordamos. Tendo sido provado, sem controvérsia, que os dois automóveis circulavam numa reta com boa visibilidade em toda a sua largura e extensão (n.º 6 da matéria de facto) e em pleno dia (pelas 11h35m – n.º 1 da matéria de facto), e que no local a velocidade máxima permitida era de 80 km/hora (n.º 4 da matéria de facto), não vislumbramos que uma velocidade entre os 60 e os 70 km/hora fosse excessiva para se circular no local, ainda que, como também se provou, o piso estivesse molhado (n.º 14 da matéria de facto). De facto, não se provou que na ocasião do acidente estava a chover.
Assim, nesta perspetiva, a afirmação de tal facto pelo A. (que o veículo conduzido pelo A. circulava a 60, 70 km/hora) não valeria como confissão, pois não lhe seria desfavorável.
Sobre a questão da velocidade a que seguia o veículo do A., o tribunal deu como “não provado” que “O A. circulava a velocidade superior a 100 km/hora” (n.º 6 dos factos não provados). E, na fundamentação da decisão de facto, na sentença exarou-se que Os factos não provados resultaram da prova do seu contrário, conforme acima explanado, ou da falta de prova suficiente dos mesmos. Não existiu, por exemplo, prova suficiente de que o A. circulava a velocidade que excedia o limite dos 80 Km/H.”. Isto é, o tribunal a quo considerou que para sustentar a responsabilização do A. no acidente, por excesso de velocidade, só relevaria uma velocidade de circulação superior ao limite legal imposto para o local.
Afinal, a afirmação da velocidade de 50/60 km/hora só relevaria na perspetiva da imputação ao A. de imperícia: apesar de só circular a essa velocidade não teria conseguido evitar o embate, uma vez que, como se provou sob o n.º 10 da matéria de facto, dispunha de espaço suficiente para passar pela esquerda da viatura segura na R., sem lhe embater.
Mas o facto é que não foi nessa perspetiva que o A. depôs acerca da velocidade em que seguia.
O A. havia sido acusado de circular a velocidade excessiva, a mais de 100 hm/hora, num local em que a velocidade máxima era de 80 km/hora.
O A., naturalmente na defensiva quanto a esse aspeto, e também focado na tese de que a viatura segurada na R. se imobilizara na via, fora da berma ou das guias, depôs em conformidade. De resto, quanto à velocidade, as declarações do A. não denotam grandes certezas, porque manifestamente, pela forma como depôs, não olhara para o velocímetro da sua viatura:
Juíza: “Qual era a velocidade a que o senhor circulava?
A.: “Oh setora, o carro ia carregado, vinha de uma subida ali, que fosse a 60, 65 o máximo, que ela, o motor é 2500, é muito fraquinho, e aquele carro, carregado ou a subir, mesmo que fosse ali já na parte…”
Juíza: “Qual era o carro?
A.: “É uma Toyota Dyna.”
Juíza: “E vinha carregado com quê?
A.: “Era uns IVC. É um depósito quadrado em plástico.”
Juíza: “Continha o quê?
A.: “Vêm vazios.”
Juíza: “Qual era o peso da carga?
A.: “Aquilo é uma média de 50 kg cada um, 800 quilos. Eram 16.”
Juíza: “Diz que circulava a que velocidade?
A.: “Entre 60, o máximo 70 kms, já estava no cimo da… já estava a terminar a subida, entrava na reta…Aquele carro morre muito quando é nas subidas, porque o motor é muito fraco.”
As restantes pessoas ouvidas, inclusive o agente da GNR que elaborou o croquis da ocorrência, nada adiantaram acerca da velocidade a que o veículo conduzido pelo A. seguia. O rasto de travagem do veículo, medido pelo Sr. agente, com 24 metros de comprimento, não é decisivo para se chegar a conclusões a esse respeito.
Aliás, as dúvidas quanto à velocidade estendem-se à própria apelante, que a dado passo escreve, no corpo das alegações do recurso:
“A Ré /Recorrente entende mesmo que a velocidade era superior, atento o rasto de travagem e o grau de danos provocado nos veículos.” No entanto, declara admitir a velocidade referida pelo A., por este “confessada”.
Atendendo a tudo o acima exposto, esta Relação não deteta, na prova produzida, fundamento bastante para dar como demonstrada a velocidade de circulação invocada pela apelante.
Quanto à impugnação da decisão de facto o recurso improcede, pois, na totalidade.
Segunda questão (responsabilidade da R. ou respetiva proporção)
Nos termos do n.º 1 do art.º 483.º do CC, “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
E o art.º 570.º do CC, sob a epígrafe “Culpa do lesado”, estipula, no n.º 1, que “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
No art.º 506.º do CC, sob a epígrafe “Colisão de veículos”, estabelece-se, sob o n.º 2, que “Em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores.”
In casu, quem se apresenta como lesado, como vítima de um facto ilícito e culposo praticado por outrem, é o A..
Na sentença recorrida considerou-se que a condutora do veículo seguro na R. havia efetivamente praticado um facto ilícito e culposo, do qual emergia responsabilidade civil extracontratual perante o A., que sofreu danos emergentes dessa conduta. Porém, a sentença considerou que o A., lesado, também agira de forma ilícita e culposa, tendo concorrido para a produção do acidente, em medida que se fixou em 50%.
A apelante entende que a responsabilidade pela colisão deve ser atribuída exclusivamente ao A.. Subsidiariamente, a apelante admite uma responsabilização da condutora por si segurada, em não mais de 20%, cabendo 80% ao A..
Vejamos.
Como bem se indicou na sentença recorrida, a condutora do veículo de matrícula VV violou duas normas estradais.
O art.º 62.º n.º 2, al. b), do Código da Estrada, onde se estipula que:
2 - Nas auto-estradas e respectivos acessos, quando devidamente sinalizados, é proibido:
b) Parar ou estacionar, ainda que fora das faixas de rodagem, salvo nos locais especialmente destinados a esse fim”;
O art.º 64.º n.º 1 do Regulamento de Sinalização do Trânsito (aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 01.10, com as alterações publicitadas), segundo o qual as marcas M17 e M17a são “raias oblíquas delimitadas por uma linha contínua: significam proibição de entrar na área por elas abrangida”.
Por conseguinte, a aludida condutora não só imobilizou a sua viatura num acesso a autoestrada, o que era proibido, como o fez, parcialmente, numa zona delimitada, onde nem sequer podia circular.
Conforme se ponderou na sentença recorrida, não se provou que tal manobra fosse justificada por uma situação de estado de necessidade. O facto de uma ocupante do veículo se ter queixado de cólicas e dores de cabeça (n.º 8 da matéria de facto – na fundamentação da decisão de facto consta que a dita ocupante, que foi ouvida em audiência como testemunha, referiu tratar-se de mal-estar emergente do ciclo menstrual) não impunha que o veículo fosse imobilizado imediatamente, arredando-se a opção normal, que seria procurar auxílio em local onde essa pessoa pudesse ser adequadamente assistida.
Tudo começou, pois, com uma manobra proibida e culposa perpetrada pela condutora do veículo seguro na R.. Conduta que, além de violadora de normas legais, era perigosa, pois criou, face às características do local, condições objetivas para que ocorresse uma colisão – como ocorreu. De facto, tratava-se de uma saída de autoestrada, que simultaneamente dava acesso a mais do que um destino, seja a autoestrada A8, seja Loures, e era ladeada, de um lado, por um separador central de betão e, do outro, por uma berma com raias e delimitador metálico (n.ºs 1, 3 e 6 da matéria de facto). Acresce que a velocidade máxima ali permitida, de 80 km/hora, era relativamente elevada (n.º 4 da matéria de facto). Por outro lado, a condutora imobilizou-se ocupando parte da via (n.º 8 da matéria de facto). Ainda assim, também ao A. é de imputar responsabilidade, porque não terá atentado que a dita condutora havia assinalado a sua manobra fazendo pisca-pisca e reduzindo a velocidade, e (o A.) não foi capaz de aproveitar o espaço livre de que dispunha para passar pela esquerda do aludido veículo sem lhe embater, apesar de ter travado de imediato (n.ºs 9 e 10 da matéria de facto).
É por isso que, tal como se decidiu na sentença, e na falta de mais elementos de facto, se nos afigura adequada, aliás em sintonia com a supra citada previsão do n.º 2 do art.º 506.º do CC, a responsabilização dos dois intervenientes no acidente em igual medida (50% cada um).
Nesta parte, pois, a apelação também improcede.
Terceira questão (privação de uso do veículo sinistrado)
Na sentença recorrida a R. foi condenada:
a) No pagamento ao A. de € 2.268,02 a título de reparação de 50% dos danos provocados no seu veículo;
b) No pagamento ao A. de € 10,00 diários, relativos ao período entre 08.10.2014 e 21.01.2015, a título de 50% da indemnização pela privação do uso do seu veículo (a que corresponde o valor de € 1 060,00);
c) No pagamento ao A. de juros vencidos e vincendos desde a data da citação até integral pagamento.
A R. insurge-se contra a condenação identificada na alínea b), isto é, por privação do uso da viatura sinistrada.
Segundo a R., o A. não demonstrou ter sofrido danos pela alegada privação da viatura, sendo aliás escassíssimo o a esse respeito alegado pelo A..
Quanto à privação do uso do veículo o A. alegou o seguinte:
Acresce que o ora Autor ficou privado do uso do veículo desde a data do sinistro (08/10/2014) até à data em que o mesmo lhe foi entregue devidamente reparado (21/01/2015), vendo-se obrigado a solicitar o empréstimo de viaturas a terceiros para efectuar as suas deslocações profissionais, suportando incómodos que nunca teria de sofrer se não tivesse ocorrido o sinistro de viação em apreço” (art.º 47.º da petição inicial);
Pelo que, ao ver-se privado da possibilidade de utilizar o seu veículo, o ora Autor viu quebradas as suas rotinas diárias pessoais e profissionais, tendo de suportar incómodos que nunca teria de sofrer se não tivesse ocorrido o sinistro de viação, constituindo a indisponibilidade do mesmo um dano ressarcível, nos termos e ao abrigo dos Artºs 483, 562.º, 563.º e 566.º, todos do Código Civil.”
Terminando por reclamar uma indemnização correspondente a € 20,00 por dia de privação do veículo, no total de € 2 100,00.
Na contestação a R. alegou que em 21.11.2014 o A. adquiriu e registou em seu nome um veículo com características idênticas às do veículo sinistrado, que desde então utilizou na sua atividade (artigos 20.º a 24.º da contestação). Por outro lado o A., como ele próprio alegou, não diminuiu, não cessou a atividade que exercia com o veículo sinistrado, nem alugou outro veículo (art.º 23.º da contestação). Pelo que não é devida qualquer indemnização a título de privação do uso.
A este respeito, provou-se o seguinte:
22- Acresce que, em consequência do sinistro, o veículo (...)VR ficou impossibilitado de circular, privando o ora Autor do seu uso.
23- O veículo (...)VR é utilizado diariamente pelo ora Autor no âmbito da sua atividade profissional de comércio de bidões.
24- Pelo que, a indisponibilidade do uso e fruição do veículo (...)VR desde a data da ocorrência do sinistro (08/10/2014) até à data em que o mesmo lhe foi entregue devidamente reparado (21/01/2015) causou transtorno e prejuízos ao ora Autor.
25- Em 21/11/2014 o A. adquiriu e registou em seu nome o veículo automóvel ligeiro de mercadorias Mitsubishi Canter, com a cilindrada de 2835 cc e o peso bruto de 3.599 Kgs, de matrícula 38-86LA, tendo segurado este veículo na Companhia de Seguros Liberty, com início em 21/11/2014, em substituição do veículo VR.
26- Os veículos “VR” e “LA” têm as mesmas características, a cilindrada aproximada e o mesmo peso bruto.
27- O A. não diminuiu, não cessou a atividade que exercia com o VR nem alugou outro veículo, uma vez que, desde 21/11/2014, utilizou o LA na sua atividade.
Nesta temática, reitera-se o expendido, entre outros, no acórdão relatado pelo ora relator no processo 716/14.4.TJLSB.L1-2, datado de 13.10.2016, em que também interveio o ora 2.º adjunto, consultável em www.dgsi.pt.
A privação do uso e fruição de veículo automóvel, resultante de um acidente de viação, constitui um dano patrimonial, na medida em que determina uma limitação ao direito de propriedade sobre o veículo, o qual compreende, conforme a enumeração expressa operada pelo art.º 1 305.º do Código Civil, os direitos de uso, fruição e disposição da coisa. Nos dias de hoje, a possibilidade de usar individual e regularmente um veículo motorizado é, pelo menos para a grande maioria da população, um pressuposto essencial para uma razoável qualidade de vida. De tal forma assim é que a utilização de automóvel ou outro veículo sem autorização de quem de direito constitui uma modalidade autónoma de crime contra a propriedade (art.º 208.º do Código Penal). Por outro lado, o direito de usar uma viatura é hoje em dia um bem universalmente negociável, constituindo a sua concessão uma atividade económica de grande relevo. Daí que, conforme Júlio Gomes nos dá notícia (in “O dano da privação do uso”, Revista de Direito e Economia, ano XII, 1986, Universidade de Coimbra, pág. 169 e seguintes), desde os anos 60 do século passado que os tribunais alemães (primeiro os da ex RFA) consideram como dano autónomo a privação de uso de um veículo automóvel durante um certo lapso de tempo, o qual tem um cariz patrimonial na medida em que a necessidade a que respeita tem um valor comercial – admitindo-se, pelo menos como ponto de partida, como critério de fixação da indemnização correspondente, o valor que o lesado gastaria com a locação de um veículo substitutivo do veículo danificado. Registe-se ainda, como nota de reforço desta ideia, que a concessão, pela entidade patronal, do direito de o trabalhador utilizar um automóvel da empresa não só para fins profissionais como pessoais, está cada vez mais vulgarizada, constituindo uma parcela da retribuição do trabalhador que, não raro, os tribunais são chamados a reconhecer e a quantificar em termos pecuniários (cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 5.5.1993, in Col. de Jur., 1993, tomo 3º, pág. 168; acórdão do STJ, de 5.3.1997, in Col. de Jur., acórdãos do STJ, ano V, tomo I, pág. 290; acórdãos do STJ, in www.dgsi.pt/jstj, datados de 20.2.2002 (processo 01S1963), 15.10.2003 (processo 03S281), 23.6.2004 (processo 03S4240), 25.6.2015 (processo 1256/13.4TTLSB.L1.S1 – consultáveis em www.dgsi.pt).
Em Portugal, a autonomização da privação do uso de um veículo sinistrado enquanto dano patrimonial, tem tido reconhecimento doutrinário (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Indemnização do dano da privação do uso, Almedina, 2001; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 14.ª edição, Almedina, 2017, páginas 329 e 330; Pinto de Almeida, “Responsabilidade civil extracontratual, Danos reflexos e Indemnização do dano da privação do uso”, texto apresentado em 02.3.2010 no Curso de Especialização Temas de Direito Civil, organizado pelo CEJ, consultável no correspondente e-book editado pelo CEJ).
Na jurisprudência, existe diversidade de posições. A par de decisões que reconhecem que a privação do uso de uma viatura constitui um dano em si, susceptível de indemnização (cfr. STJ, 24.01.2008, processo 07B3557; STJ, 06.5.2008, processo 08A1279; STJ, 08.5.2013, processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1), noutras exige-se a demonstração de que a privação do veículo causou ela própria danos, no sentido de ter tido repercussão negativa no património do lesado (cfr. STJ, 16.9.2008, processo 8A2094; STJ, 06.11.2008, processo 08B3402; STJ, 30.4.2015, processo 353/08.2TBVPA.P1.S1). Numa posição mais mitigada, exige-se tão só a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo, de proceder à utilização da viatura de que o proprietário se viu privado (STJ, 09.12.2008, 08A3401, também in Col. Jur. ano XVI, tomo III, pág. 179; STJ, 16.3.2011, processo 3922/07.2TBUCT.G1.S1; STJ, 09.7.2015, processo 13804/12.2T2SNT.L1.S1; STJ, 25.9.2018, processo 2172/14.8TBBRG.G1.S1).
Propendemos, conforme resulta do supra exposto, para a primeira posição, ou seja, para considerar a privação do uso de viatura (ou, se se quiser, a privação da possibilidade de uso da viatura) como um dano patrimonial, que é economicamente valorizável, se necessário com recurso à equidade (art.º 566.º n.º 3 do Código Civil).
Nos termos do art.º 562.º do Código Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”
Esta norma visa definir a função genérica do dever de indemnizar (Pereira Coelho, O nexo de causalidade na responsabilidade civil, 1950, pág. 49, citado por A. Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 8.ª edição, 1994, Almedina, pág. 894, nota 3). “O fim do dever de indemnizar é pôr, portanto, a cargo do lesante a prática de certos actos, cuja finalidade comum é criar uma situação (…) que se aproxime o mais possível (…) daquela outra situação (…) em que o lesado provavelmente estaria, daquela situação que provavelmente seria a existente, de acordo com a sucessão normal dos factos, no momento em que é julgada a acção de responsabilidade, se não tivesse tido lugar o facto que lhe deu causa” (Pereira Coelho, ob. cit., pág. 53, citado por A. Varela, Das obrigações em geral, citado, pág. 895, nota 3).
A reparação do dano deve preferencialmente fazer-se, como também decorre do art.º 566.º n.º 1 do Código Civil, mediante a reconstituição natural da situação prévia ao dano.
Se a reconstituição natural não for possível, ou não reparar integralmente os danos ou for excessivamente onerosa para o devedor, a indemnização deve ser fixada em dinheiro – n.º 1 do art.º 566.º do Código Civil. Na fixação dessa indemnização em dinheiro recorre-se à chamada teoria da diferença, ou seja, a indemnização “tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” (n.º 2 do art.º 566.º do CC).
No caso de um acidente de viação imputável a terceiro, que determine a paralisação temporária do veículo, a reconstituição natural pode fazer-se pela entrega de um veículo com características semelhantes às do danificado, até à respetiva reparação, ou através da atribuição de quantia suficiente para contratar o aluguer de um veículo cujas características sejam semelhantes às do acidentado (neste sentido, cfr., por exemplo, acórdãos do STJ, de 27.5.2003, processo 03A1351 e de 24.01.2008, 07B3557).
Que assim é denota-o o disposto no art.º 42.º do Regime do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo Dec.-Lei nº 291/2007, de 21.8. Nos termos desse artigo, que se encontra inserido no Capítulo II do aludido regime, capítulo que “fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel” (art.º 31.º), estabelece-se que “verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, nos termos previstos nos artigos anteriores” (n.º 1 do art.º 42.º). Nos termos do n.º 3 do art. 42.º, “a empresa de seguros responsável comunica ao lesado a identificação do local onde o veículo de substituição deve ser levantado e a descrição das condições da sua utilização.” O n.º 5 do mesmo artigo ressalva que “o disposto neste artigo não prejudica o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transportes em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição.”
Note-se que estes preceitos não condicionam a atribuição de viatura de substituição à demonstração da necessidade da mesma.
Mesmo os adeptos da necessidade de demonstração de danos para além da privação do veículo reconhecem que “uma paralisação de um veículo, normalmente, causa prejuízos ao proprietário. O dono goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (art. 1305º), pelo que ficando, pela paralisação, desprovido desses direitos, em princípio, ocorrerão, para si, perdas” (STJ, 16.9.2008, 08A2094, citado supra). Ora, se assim é, cremos que caberá ao lesante demonstrar que no caso concreto a paralisação da viatura não era suscetível de causar quaisquer danos ao lesado (por exemplo, o lesado, habitual utilizador da viatura, esteve ausente no estrangeiro durante o período de paralisação da mesma, em local para onde não a iria levar).
Tudo passa, afinal, pelas circunstâncias do caso concreto.
No caso dos autos, provou-se que o A. utilizava o veículo na sua atividade profissional, pelo que dúvidas não há que a imobilização da viatura, decorrente do acidente, vedava ao A. uma utilização que efetivamente iria dar a esse bem.
Porém, cerca de mês e meio após o acidente o A. adquiriu uma viatura de características idênticas às da que ficara parada, passando a usá-la na sua atividade, como faria com a viatura sinistrada. O próprio A. procedeu, pois, à reposição de uma situação idêntica à que existiria se não tivesse ocorrido o acidente.
Na sentença não se atribuiu relevância à aludida aquisição de uma outra viatura, por parte do A..
Com efeito, na sentença exarou-se o seguinte:
Provou-se que o A. veio a adquirir veículo idêntico para poder desenvolver a sua atividade profissional, mas tal consistiu num prejuízo que de outro modo o A. não teria. O A. apenas adquiriu outro veículo idêntico precisamente porque foi privado da utilização de um veículo de que carecia diariamente para exercer a sua atividade profissional. Assim, deverá o A. ser indemnizado em relação à privação de uso do veículo. Caso não tivesse adquirido outra viatura poderia eventualmente pedir também uma indemnização pelos danos relativos à privação do exercício da sua atividade profissional.
Discorda-se de que a aquisição da dita viatura pelo A. possa ser encarada como um prejuízo, para o efeito desta ação. Note-se que o A. não alegou tal prejuízo, isto é, não mencionou, na petição inicial, que tinha feito essa aquisição, nem nada reclamou da R. para se ressarcir da mesma. O facto em causa (aquisição da nova viatura, idêntica à do A.), foi trazido ao processo pela R., para demonstrar que a imobilização da viatura sinistrada fora suprida pela aquisição de uma outra viatura. Com efeito, com essa aquisição o A. passou a dispor de um bem com o qual obtinha a mesma utilidade que aquela que visava com a viatura sinistrada. E o eventual preço de aquisição do novo veículo teve como contrapartida a entrada no património do A. do respetivo direito de propriedade. Note-se que, uma vez adquirida a nova viatura, o A. nem sequer tinha já especial interesse em apressar a reparação do veículo sinistrado, pelo que a solução propugnada pelo tribunal a quo pode proporcionar, nesta parte, situações de abuso. Entendemos, pois, que a partir de 21.11.2014, data da aquisição da nova viatura, e na falta de elementos de facto adicionais, não deve ser reconhecido ao A. um dano a título de privação do uso da viatura sinistrada. Já não assim quanto ao período anterior, isto é, de 08.10.2014 até 20.11.2014, na medida em que durante esse período o A. esteve privado de viatura própria para exercer a sua atividade, tendo, com isso, suportado os transtornos inerentes (n.º 24 da matéria de facto).
Assim, tal como na sentença recorrida, computa-se o dano emergente da privação de uso em € 20,00 por dia (valor que está em linha com os montantes que têm sido aceites pelos tribunais, conforme se expendeu no supra citado acórdão desta Relação, de 13.10.2016, processo 716/14.4.TJLSB.L1-2), mas atem-se o período de cálculo a um total de 44 dias, correspondente ao montante de € 880,00. Assim, operando uma redução de 50%, a este título reconhece-se ao A. uma indemnização no valor de € 440,00.
Nesta parte, a apelação é parcialmente procedente.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, revoga-se a alínea b) do dispositivo da sentença recorrida e, em sua substituição, condena-se a R. no pagamento ao A., a título de indemnização pela privação do uso do veículo (...)VR, na quantia de € 440,00 (quatrocentos e quarenta euros).
No mais mantém-se a sentença recorrida, salvo quanto a custas, pois estas serão, na vertente de custas de parte, a cargo do A. e da R., tanto na ação como na apelação, na proporção do respetivo decaimento (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 22.10.2020
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins