EMBARGOS DE EXECUTADO
LETRA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
PRAZO PARA O PREENCHIMENTO DA LETRA
FIADOR
RELAÇÕES IMEDIATAS
PRESCRIÇÃO
Sumário


SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - A admissibilidade da letra ou da livrança em branco, apesar de não estar expressamente contemplada na respetiva Lei Uniforme, é indiscutida à luz do artigo 10º da LULL.
II - O preenchimento da letra em branco terá de efetuar-se no respeito do acordo de preenchimento (pacto de preenchimento), pelo qual as partes estabeleceram os termos em que a letra deve ser completada, nomeadamente o seu montante e a data de vencimento, visto que, como sucede, em regra, no momento da sua subscrição a dívida não se mostra apurada ou vencida.
III - Estando o título no âmbito das relações imediatas, pode o subscritor ou o avalista defender-se contra o portador invocando o preenchimento abusivo, competindo-lhe o ónus de provar esse completamento desconforme ao acordado.
IV - O nosso legislador não consagrou um limite temporal ao preenchimento do título em branco. O teor do artigo 10º da LULL, aponta para a desconformidade entre o preenchimento da letra e o que designa por «acordos realizados», remetendo, por esta via, para o conteúdo do pacto de preenchimento ou os termos da relação subjacente.
V - Se não há violação do pacto de preenchimento, numa letra em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 70.º da LULL, conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respetivo portador, quer essa data coincida ou não com o incumprimento do contrato subjacente ou com o vencimento da obrigação subjacente.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Inconformados com a sentença proferida na oposição à execução que lhes move “X Rent - Aluguer, Gestão e Comércio de Veículos Automóveis, S.A.” (ora Y, SA) e que não reconheceu, entre outos fundamentos, a prescrição da letra, determinando o prosseguimento da instância executiva, vieram os opoentes L. N. e R. N. interpor recurso finalizando com as seguintes conclusões:

1. Analisando os factos, na opinião da recorrente o prazo que a sociedade X Rent tem para preencher a livrança é a data da resolução do contrato de 03.01.2007, independentemente de existir ou não justa causa, nessa resolução.
2. Mas mesmo que assim não se entenda, o prazo do pagamento da última renda é de 05.05.2006, e o prazo de entrega do automóvel é de 01.08.2007.
3. No entendimento da recorrente, o contrato de renting tem de ser dado como resolvido e extinto ou incumprido pelo menos desde aquela data (03.01.2007) e o automóvel foi entregue à sociedade X Rent em 01.08.2007, com fundamento e na sequência da anterior comunicação de resolução.
4. Resulta assim que, a livrança em causa nestes autos teria de ser preenchida reportada à data do primeiro e definitivo incumprimento: 05.06.2006, reportada à data da resolução/extinção datada 03.01.2007, ou, no máximo, em 01.08.2007 – data da entrega do automóvel à sociedade X Rent.
5. Mas a sociedade X Rent só preencheu tal livrança em 22.05.2012.
6. A possibilidade conferida ao mutuante de preencher livremente a livrança, designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, confere-lhe um poder de dilatar infinitamente no tempo a cobrança do crédito cambiário, revelando-se, essa possibilidade, desde logo, de uma forma ostensiva, desproporcionalmente desvantajosa para o mutuário, o qual fica, por um período de tempo ilimitado, sujeito a uma indesejável situação de incerteza, o que contraria os ditames da boa-fé objetiva.
7. Esta dilatação no tempo, viola o disposto no regime das Cláusulas Contratuais Gerais constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro e sucessivas atualizações (RCCG).
8. Os recorrentes invocam neste recurso, como fundamento da sua pretensão, o facto de uma liberdade total na inserção das datas de emissão e de vencimento de uma livrança subscrita em branco permite ao credor defraudar os interesses públicos e do devedor que presidem ao instituto da prescrição dos créditos cambiários, proporcionando a criação de direitos de crédito imprescritíveis, sendo certo que o nosso ordenamento não permite uma renúncia antecipada à prescrição – art.º 302º, n.º 1, do CC – e comina com a nulidade os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais de prescrição – art.º 300º do CC –, o que suscita até a hipótese de invalidade do previsto naquela cláusula, por força do art.º 280º do CC.
9. Destinando-se a livrança subscrita em branco a facilitar a cobrança do crédito em causa, na hipótese de se verificar o incumprimento da respetiva obrigação, resolvido o contrato, a boa-fé determina que a livrança seja coincidentemente preenchida com a resolução do contrato, iniciando-se, a partir desse momento, a contagem do prazo de prescrição previsto no art.º 70º da LULL: “Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento. As ações do portador contra os endossantes e contra o sacador prescrevem num ano, a contar da data do protesto feito em tempo útil, ou da data do vencimento, se se trata de letra contendo a cláusula "sem despesas".
10. Funda-se assim o presente recurso, no facto do preenchimento de uma livrança ficar em carteira da sociedade financeira por anos a fio, em rigor pelos anos que aprouverem ao credor, constituir um ato abusivo do credor e que viola as indicadas normas, pois desta forma, nunca prescreveriam os seus créditos e esse não é seguramente o espírito da Lei.
11. É uma solução que deixa o devedor numa posição de total inferioridade e desigualdade face ao credor, atenta a discricionariedade que a este título se concede a este. É, pois, uma situação inaceitável e desconforme aos princípios que nos regem, nomeadamente, o da boa fé.
12. Analisando os factos provados e atenta a data da resolução do contrato de renting e a data da entrega do automóvel relativo a tal renting, o crédito venceu-se na sua totalidade, pelo menos em 03.01.2007, pelo que a livrança deveria estar datada daquela data e o prazo de prescrição decorreria assim a partir desta, pelo que a decisão de que se recorre tinha de considerar prescrito o crédito reclamado através daquele título, uma vez que estamos no domínio das relações imediatas, razão pela qual pode ser oposta a exceção do preenchimento abusivo por parte do subscritor.
13. Independentemente daquela data a questão a decidir é a partir de que data se deve contar o prazo de prescrição. No entendimento dos recorrentes, o prazo de prescrição deve contar-se da data em que tal livrança deveria ter sido preenchida e não da data do seu preenchimento.
14. Salvo o devido respeito pela Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” que é verdadeiro e é muito, os recorrentes não podem aceitar a decisão do Tribunal a quo termos em que pedem a este Venerando Tribunal que seja feita justiça, revogando a sentença.
15. A sentença recorrida ao decidir como decidiu violou, por má interpretação, o disposto nos arts. 139º, 189º, 300º, e 302º, n.º 1 e 762º todos do CC e arts. 70º e 77º da LULL e ainda arts. 12º, 13º e 15º do RCCG.
Pugnam os Recorrentes pela procedência do recurso com a consequente revogação da sentença recorrida que deve ser substituída por outra que julgue a oposição procedente e declare extinta a execução.

*
Foram apresentadas contra-alegações, pugnando o Recorrido pela manutenção do decidido.
*
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso reconduz-se a uma só questão que é a de saber a partir de que data se deve contar o prazo de prescrição de uma letra entregue em branco quanto à data de vencimento: se da data do seu preenchimento ou da dada em que poderia ter sido preenchida, face à extinção da obrigação.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos

Factos considerados provados em Primeira Instância:
1. “X Rent - Aluguer, Gestão e Comércio de Veículos Automóveis, S.A.” (ora Y, SA) instaurou, no dia 04.06.2012, contra os Executado(a)(s) M. N., R. N. e L. N., a execução para pagamento da quantia de 44.255,38.
2. Como título executivo, apresentou a letra cujo original foi junto em 24.09.2019, no valor de €44.189,91, com vencimento em 22.05.2012, sacada por “X Rent - Aluguer, Gestão e Comércio de Veículos Automóveis, S.A.” e aceite pela sociedade W – Confecções, Ldª.
3. Os Executado(a)(s), ora Oponentes assinaram a letra oferecida à execução, apondo a sua assinatura no respectivo verso e sob os dizeres «Por bom aval ao aceitante».
4. Em 22/07/2005, a Exequente celebrou com a sociedade “W Confecções, Lda.”, o contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor n.º 405, tendo por objecto um veículo automóvel, marca Volvo, modelo S60, com a matrícula AH.
5. O contrato mencionado 4. teria a duração de 48 meses, com prestações mensais, sendo a primeira no montante de € 6.120,46, e as restantes 47 rendas no montante de € 960,46 (Renda: € 672,78 + Seguro: € 146,40 + IVA à taxa legal em vigor).
6. Na cláusula 11ª, n.º 4, do contrato referido em 4. ficou a constar o seguinte: “Nos termos do serviço de manutenção e pneus, ficam a cargo da X Rent as despesas derivadas de: a) intervenções necessárias ao bom funcionamento do veículo; c) mudanças de óleo, baterias, lubrificantes, óleo dos travões, mão-de-obra, peças de substituição e revisões; d) substituição de PNEUS resultantes do seu desgaste normal, até ao número total de pneus mencionados na requisição de serviços.”
7. Na sequência do referido contrato, no dia 03/08/2005, foi entregue à indicada sociedade o veículo automóvel de matrícula AH, de marca Volvo, modelo S60 D5.
8. Em garantia do bom e integral cumprimento das obrigações emergentes do referido contrato, foi entregue à Exequente uma letra em branco, avalizada, pelos Executado(a)(s) M. N., M. C., R. N. e L. N., acompanhada do respetivo acordo de preenchimento, devidamente assinado por estes, com o seguinte teor: “Esta letra destina-se a garantir o bom pagamento de todas as nossas obrigações ou responsabilidades constituídas ou a constituir junto do X Rent, qualquer que seja a sua origem ou natureza nomeadamente as decorrentes do Contrato Base de Aluguer de Veículo Automóvel Sem Condutor nº … que se anexa, por nós contratados, bem como as suas prorrogação(ões), renovação(ões), substituição(ões), ou reforma(s), até à sua integral liquidação.
Autorizamos, desde já, a X Rent, em caso de falta de cumprimento de quaisquer obrigações ou responsabilidades (inerentes às operações acima referidas), a preencher esta letra pelo valor que for devido, a fixar as datas de emissão e de vencimento, como a designar o local do seu pagamento”.
9. A Exequente não autorizou a revisão do automóvel na Volvo – Auto … no …, revisão essa que foi feita em 19/09/2006, tendo a W – Confecções, Ldª suportado o seu custo.
10. Em meados de Outubro de 2006, o veículo apresentava os seguintes defeitos e faltas: a) pneus muito gastos; b) o indicador luminoso dos “airbags” acendia e apagava; c) constante alerta, no painel da viatura, da sinalização luminosa alertando para verificação no sistema de travagem do veículo; o que tudo fazia indicar à sociedade W graves problemas de segurança com o referido veículo e impunha uma nova revisão/reparação.
11. Desde 06/10/2006 até 31/12/2006, a sociedade X Rent recusou-se a suportar o custo de tais reparações, após vários pedidos feitos pela sociedade W – Confecções, Ldª.
12. Por carta registada com aviso de recepção enviada à sociedade X Rent, no dia 02/01/2007, recebida no dia 03/01/2007, a sociedade W – Confecções, Ldª comunicou àquela «Na qualidade de locatária do contrato de Renting n.º … (viatura Volvo S60 D5, Nível II matrícula AH) assinado no dia 22/07/2005, venho por este meio resolver o mesmo (…)» - cfr. documento de fls. 21-22 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
13. Nessa carta a sociedade W – Confecções, Ldª solicita à X Rent a indicação de dia, hora e local para proceder à entrega do veículo.
14. O veículo foi entregue à X Rent no dia 01.08.2007.
15. O veículo automóvel referido em 4. custou à sociedade X Rent o valor de 49.000,00 euros;
16. E no dia da sua restituição (em 01/08/2007), o referido veículo automóvel, com 40.526 kilómetros tinha o valor comercial de cerca de 40.000,00 euros.
17. A sociedade W – Confecções, Ldª foi declarada insolvente por sentença proferida em 30/07/2010.
18. A sociedade W – Confecções, Ldª apenas liquidou as primeiras 10 rendas do contrato referido em 4., vencidas de 05/08/2005 a 05/05/2006.
19. Por fax datado de 17/05/2006, a Sociedade locatária expôs à Exequente que, por razões de racionalização de custos e assim direcionar os recursos financeiros para responsabilidades mais prementes, necessitava de terminar o contrato celebrado com o pagamento da renda de Julho de 2006;
20. Propondo para o efeito a aquisição da viatura ou a transferência de contrato para terceiros.
21. Após solicitar alguns esclarecimentos adicionais, a Exequente informou a sociedade locatária das condições necessárias para a concretização do pretendido, nomeadamente o facto de ser necessário a liquidação das rendas que se encontravam em atraso.
22. Posteriormente, por fax de 16/10/2006, a sociedade locatária propõe a aquisição da viatura em questão por € 38.000,00.
23. O que foi aceite pela X Rent, desde que efetuassem a regularização do valor das rendas que se encontravam em atraso naquela data, cujo valor ascendia a € 4.802,30 (€ 960,46 x 5m).
24. No entanto, esta proposta acabou por não se concretizar e a sociedade locatária, por fax de 20/11/2006, pede a cessão da posição contratual.
25. Pedido este que a Exequente mais uma vez acolheu, solicitando apenas, que as rendas vencidas e não pagas fossem liquidadas.
26. Das cláusulas 21ª a 23ª do contrato mencionado em 4. ficou a constar o seguinte:
21ª Denúncia antecipada do contrato
Decorridos 180 dias desde o início do contrato, o cliente poderá, com um pré-aviso de 30 dias, solicitar á X Rent a denúncia antecipada do contrato.
2. Em caso de denúncia do contrato nos termos do número anterior, o cliente obriga-se a restituir o veículo nas condições da cláusula 23ª, bem assim como ao pagamento, a titulo de indemnização, do montante que se calcula a partir da seguinte fórmula: Renda Mensal Total c/IVA x N° de Períodos em falta p/ termo do Aluguer
22ª Resolução do contrato
1. A X Rent poderá resolver o contrato, mediante o envio de carta registada com aviso de receção; nos seguintes casos:
a) em caso de incumprimento de alguma das obrigações do cliente resultantes do presente contrato, ou do Contrato de Seguro;
b) em caso de trespasse ou cessão de exploração do estabelecimento comercial do cliente, de morte, dissolução, venda judicial dos bens, suspensão da atividade ou em caso de verificação em relação ao cliente de qualquer dos fundamentos de declaração de falência ou insolvência: da falta de correspondência com a realidade das informações prestadas pelo cliente e/ou fiadores se existirem, quanto ás garantias subjacentes ao contrato; de suspensão de pagamento, concurso de credores ou acordo extrajudicial de credores;
2. Em qualquer dos casos previstos no ponto anterior, a X Rent poderá resolver o contrato, sem qualquer aviso prévio ou formalidade judicial, tomando imediata posse do veículo, sem que tal resolução liberte o cliente da sua obrigação de pagar à X Rent todas as importâncias liquidas, vencidas e exigíveis considerando-se como tais quer as rendas mensais vencidas, quer as partes proporcionais das mesmas, ou quaisquer outros débitos deste contrato, bem como a correspondente compensação que será calculada de acordo com a fórmula prevista na cláusula anterior,
3. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, a X Rent deverá, previamente á resolução prevista em 2, notificar o cliente para que este, no prazo de 5 dias após a expedição, sane a situação de incumprimento verificada, de forma a evitar a resolução do contrato.
23ª Restituição do veículo
1. Terminado, por qualquer causa, o presente contrato, o cliente restituirá o veículo no local onde o mesmo lhe foi entregue salvo se o mesmo tiver sido entregue no fornecedor, caso em que o veículo será entregue nas instalações da X Rent, obrigando-se a pagar todas as despesas em que a X Rent incorra caso a restituição ocorra em locai diverso.
2. Até à efetiva restituição do veículo, comprovada por um auto de restituição assinado pelas partes, do qual constarão, entre outros, a data, quilometragem e estado do veículo, a X Rent debitará ao cliente o montante mensal correspondente às rendas do aluguer, acrescido de 30% a titulo de penalidade.
3. O veículo deverá ser restituído pelo cliente em idênticas condições e aspeto às iniciais, salvo o normal desgaste da sua prudente utilização, sob pena de a X Rent poder debitar ao cliente o valor pecuniário necessário para reparar integralmente o veículo e o colocar na situação em que se encontrava à data de inicio do aluguer. Tal valor é determinado em função da peritagem realizada pelos serviços da X Rent.
4. O veículo será restituído, com toda a sua documentação (licença de circulação, carta verde, Cartão X Rent e requisições de trabalhos mecânicos, selo do Imposto Municipal, documentos do veículo, manuais de instruções e de revisões, e qualquer outro documento referente ao veículo), pneus, ferramentas, acessórios e equipamentos.
5. Se o cliente não proceder à restituição do veículo no termo do contrato, qualquer que seja a sua causa, a X Rent poderá tomar posse do veículo em qualquer local onde o mesmo se encontre.»
27. Da cláusula 26ª, n.º 3 do contrato mencionado em 4. ficou a constar o seguinte: «Salvo disposição em contrário, quaisquer comunicações a realizar ao abrigo do presente contrato serão efetuadas por carta registada com aviso de receção, ou por telecópia, e ter-se-ão por realizadas, no caso da carta registada na data da sua receção (…)».
28. O X Rent enviou, no dia 08.05.2012, uma carta registada com aviso de receção dirigido à Embargante M. N., para a morada Lugar de …, comunicando-lhe «na qualidade de avalista da letra caução, que procedemos nesta data ao preenchimento da mesma, pelo valor €44.189,91 e cujo vencimento ocorrerá em 22.05.2012», carta essa que foi devolvida ao remetente com a indicação «objeto não reclamado».
29. O X Rent enviou, no dia 08.05.2012, uma carta registada com aviso de receção dirigido ao Embargante R. N., para a morada Av. Dr. ..., Centro Com. …, Loja .., ... Vila Nova de Famalicão, comunicando-lhe «na qualidade de avalista da letra caução, que procedemos nesta data ao preenchimento da mesma, pelo valor €44.189,91 e cujo vencimento ocorrerá em 22/05/2012», carta essa que a qual foi devolvida ao remetente com a indicação «caixa postal cheia».
30. O X Rent enviou, no dia 08.05.2012, uma carta registada com aviso de receção dirigido ao Embargante L. N., para a morada Av. Dr. ..., Centro Com. …, Loja …, ... Vila Nova de Famalicão, comunicando-lhe «na qualidade de avalista da letra caução, que procedemos nesta data ao preenchimento da mesma, pelo valor €44.189,91 e cujo vencimento ocorrerá em 22/05/2012», carta essa que a qual foi devolvida ao remetente com a indicação «caixa postal cheia».

Ao invés, considerou-se como não provado que:
- a sociedade W – Confecções, Ldª houvesse procedido ao pagamento de outras rendas para além das elencadas em 18 dos Factos Provados.
*
3.2. Do mérito da sentença

Na oposição à execução os opoentes invocaram a prescrição da obrigação cambiária exequenda, alegando que, tendo o contrato subjacente à letra junta como título executivo sido resolvido em 03.08.2007 quando em 2012 foi deduzida a execução com fundamento na obrigação cambiária titulada por aquela letra, esta já havia prescrito nos termos do art.º 70º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças, considerando que houve abuso na aposição da data de vencimento da letra.
A Exequente defendeu que o prazo de prescrição se conta da data de vencimento aposta na letra, ou seja, em 22.05.2012, o qual ainda não havia decorrido aquando da citação para a execução.
A sentença recorrida seguiu a posição da Exequente considerando não ter havido preenchimento abusivo não estando a obrigação cambiária prescrita.
O fundamento do recurso centra-se, pois, na questão do preenchimento abusivo da letra e, consequente, decurso do prazo de prescrição.
A decisão recorrida abordou de forma magistral a relação jurídica subjacente à letra e sua invocabilidade pelos Embargantes, situando-os nas relações imediatas, a qualidade de avalistas e obrigações daí decorrentes, a admissibilidade da letra em branco à luz do preceituado no artigo 10º da LULL, bem como a invalidade da resolução do contrato operada pela sociedade W – Confeções, Ldª, através da carta registada com aviso de receção enviada à sociedade X Rent, no dia 02.0.1.2007, recebida no dia 03.01.2007.
Questões que se relacionam diretamente com aqueloutra que se identificou como constituindo o verdadeiro objeto do recurso.
Seguindo, então, a decisão e sua sistematização, temos que o documento que serve de suporte à ação executiva reveste natureza cambiária e é legalmente qualificado como letra de câmbio (cfr. artigo 1º, da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças – doravante, abreviadamente, LULL.).
Trata-se de um título de crédito dotado das características da incorporação, literalidade, abstração e autonomia. O crédito cambiário está compenetrado com o documento, sendo a titularidade deste que decide a titularidade daquele, decorrendo do princípio da abstração que a relação cartular se distingue da relação jurídica fundamental, de tal modo que a assunção da obrigação cartular não determina a novação da obrigação subjacente, que não se presume, devendo ser demonstrada, funcionando, portanto, como datio pro solvendo (neste sentido, Abel Delgado, Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças Anotada).
O título abstrai da obrigação subjacente, tal não significa, porém, que a obrigação cambiária exista sem causa: a obrigação abstrata significa apenas uma obrigação cuja causa não está determinada ou não é necessário determinar; apesar de abstratos os títulos de crédito têm uma causa, mas, ao contrário do que acontece nos títulos causais a causa não exerce uma influência decisiva, direta e imediata na vida do título (Pinto Coelho/Guilherme Moreira, Letras, Volume II, p.46).
Os Recorrentes assinaram a letra na qualidade de avalistas.
O aval consiste no negócio jurídico-cambiário através do qual uma pessoa garante o pagamento da letra ou livrança por parte de um dos seus subscritores (avalizado).
O aval representa assim uma nova obrigação cambiária que tem por finalidade garantir ou caucionar obrigação cambiária idêntica e preexistente de um signatário da letra ou da livrança.
A obrigação do avalista é, pois, uma obrigação de garantia (garantia da obrigação do avalizado): garante o cumprimento pontual do direito cambiário, consistindo numa garantia prestada à obrigação cartular do avalizado.
No que diz respeito aos efeitos do aval, dispõe a lei que o avalista é responsável da mesma maneira que o avalizado (artigo 32º, n.º 1 e 77º, n.º 3, da LULL): tal significa que o avalista responde perante as mesmas pessoas, nas mesmas condições e na mesma medida em que responde o avalizado.
No caso, a letra foi entregue ao Exequente sem estar totalmente preenchida, nomeadamente a data de vencimento e o valor, ou seja, estamos perante o que usualmente se designa de uma letra em branco.
Trata-se de prática comum nos negócios com a banca, prática quase sem exceção no financiamento bancário a sociedades.
Nos dizeres de Filipe Cassiano dos Santos é aquilo a que comummente se chama livrança-caução ou livrança-garantia: embora estruturalmente não estejamos perante uma caução ou uma garantia, a sua existência reforça a posição do banco como credor, sobretudo se, como é comum, à sociedade como “subscritor em branco” se juntarem sócios e (ou) gerentes ou administradores seus como “avalistas em branco” – a função prática desempenhada por um título assim emitido é a de caucionar ou garantir, adicionalmente ao património da sociedade, as dívidas desta – In Revista de Direito Comercial, 08.03.2000, “Livrança em branco, pacto de preenchimento e aval”, pag. 199.
A admissibilidade da letra ou da livrança em branco, apesar de não estar expressamente contemplada na respetiva Lei Uniforme, é indiscutida à luz do artigo 10º da LULL.
Dispõe este preceito que se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.
Por esta disposição, a letra pode ser emitida ou passada em branco, desde que o documento seja posteriormente preenchido nos termos fixados no art.º 1º da Lei Uniforme, passa a produzir todos os efeitos próprios da letra.
Esclarece Ferrer Correia que: “Não é indispensável que a letra contenha todos os requisitos exigidos no art.º 1º logo no momento de ser passada. Nem há qualquer contradição entre os preceitos dos art.ºs 1º e 2º e o do art.º 10º. De acordo com os art.ºs 1.º e 2.º, não pode produzir efeitos como letra o escrito a que falte qualquer dos requisitos apontados pela lei como essenciais. Simplesmente, nenhum destes textos determina o momento em que a letra deve apresentar-se integrada por todos os seus elementos essenciais. Esta questão é resolvida pelo art.º 10.º; por ele ficamos a saber que, para tal efeito, decisivo não é o momento da emissão da letra, mas sim o do vencimento. Pode, deste modo, uma letra ser emitida em branco; é óbvio, porém, que a obrigação que incorpora só poderá efectivar-se desde que no momento do vencimento se encontre preenchida. Se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeito como letra, de harmonia com os art.ºs 1.º e 2.º - In “Lições de Direito Comercial”, 1956, III, pág.126 ss.
O preenchimento da letra em branco terá de efetuar-se no respeito do acordo de preenchimento. No contrato de preenchimento, as partes estabelecem os termos em que a letra deve ser completada, nomeadamente o seu montante e a data de vencimento, visto que, como sucede, em regra, no momento da sua subscrição a dívida não se mostra apurada ou vencida.
Vencida e não cumprida a obrigação causal é preenchida a letra, a qual deverá ser paga na data do vencimento.
Mas sendo a letra entregue em branco ao beneficiário para em momento posterior a preencher, fica com a obrigação de o fazer nos precisos termos acordados, ou seja, estabelecer a quantia efetivamente em dívida e o respetivo prazo de pagamento.
Estando o título no âmbito das relações imediatas, pode o emitente/subscritor defender-se contra o tomador invocando o preenchimento abusivo, competindo-lhe o ónus de provar esse completamento desconforme ao acordado.
Nas relações imediatas, isto é, nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato, nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extracartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstrata, ficando sujeita às exceções que nessas relações pessoais se fundamentam.
No caso do avalista, uma vez que a relação subjacente ou imediata que justifica o aval é a que liga o avalista ao avalizado, a priori, aquele não integra o círculo das relações do sujeito cambiário imediato, nomeadamente das que respeitam ao portador e emitente ou criador do título.
Todavia, nada obsta a que o avalista seja intencionalmente envolvido na relação causal da obrigação do avalizado. Tudo depende da existência de um acordo ou convenção extracartular que vincule ou implique o próprio avalista, envolvendo-o na relação causal que diz diretamente respeito ao avalizado e ao credor deste (neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 26.11.2013, acessível em www.dgsi.pt).
Havendo um pacto de preenchimento a que o avalista adere, está construído o elo de ligação deste com a relação subjacente à obrigação cambiária do avalizado e ao direito do seu credor.
Forma-se então uma relação causal do tipo triangular: se o avalista não pode opor-se ao preenchimento do título pelo credor da obrigação subjacente nos termos do pacto, também lhe é lícito defender-se com a mesma relação fundamental que autorizou o preenchimento do título nesses mesmos termos.
A participação no acordo para o preenchimento associa o avalista à relação causal da subscrição do título, que, por isso, a pode discutir livremente com o respetivo credor.
É o que ocorre no caso sub judice. Os Recorrentes, enquanto avalistas, mostram-se envolvidos na relação causal e, como tal, podem discutir os vícios ou exceções decorrentes da relação subjacente.
Nesse seguimento, os Embargantes vieram excecionar o preenchimento abusivo da letra com fundamento na resolução do contrato.
O negócio subjacente à emissão da letra corresponde ao contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em que à obrigação de ceder o uso do veículo e de suportar as despesas de manutenção a cargo da locadora X Rent, corresponde (sinalagmaticamente) a obrigação da locatária de proceder ao pagamento da renda.
Como tal, à X Rent era legítimo recusar-se a cumprir a sua obrigação, enquanto a locatária não procedesse ao pagamento das rendas em falta.
Resultando não ser válida, por não ter fundamento legal ou contratual, a resolução do contrato operada pela W – Confecções, Ldª, através da carta registada com aviso de receção que enviou à sociedade X Rent, no dia 02/01/2007, recebida no dia 03/01/2007.
Decorrente do fundamento da resolução contratual, nos termos invocados, não ocorreu o preenchimento abusivo da letra.
A verdade é que o veículo foi entregue pela locatária e aceite o seu recebimento pela locadora em 01.08.2007.
Qualquer que seja a sua causa, a partir desta data, o contrato extinguiu-se, verificando-se então a condição para o surgimento do direito de crédito da Recorrida.
A partir daqui, entramos no cerne do problema, ou seja, da alegada violação do pacto de preenchimento quanto à data aposta na letra e da exceção de prescrição da obrigação cambiária.
Sustenta-se neste recurso que a obrigação cambiária se deverá considerar prescrita por o preenchimento da letra em branco não poder ser posterior à data da extinção do contrato base em 01.08.2007 (data da restituição do veículo), tendo sido abusivo o seu preenchimento com a data de 22.05.2012.
Dito de outro modo, para os Recorrentes o desfasamento entre a data da verificação da condição para o surgimento do direito de crédito da Recorrida e a data do preenchimento da letra e do respetivo vencimento integra uma situação de preenchimento abusivo, uma vez que o contrato cessou a 01.08.2007 e a letra só foi preenchida a 08.05.2012, com data de vencimento de 22.05.2012.
A questão circunscreve-se à existência ou não de limitação temporal ao preenchimento do título emitido em branco.
É esta a real questão.
Preenchida uma letra ou livrança em branco, na base de um acordo de preenchimento entre o subscritor ou o aceitante e o tomador, o preenchimento vai conduzir à determinação do teor literal do título.
Quando a desconformidade entre o teor do título e o acordado é invocada no círculo de eficácia vinculativa do acordo de preenchimento (isto é, entre sujeitos que se vinculam ao respeito pelo pacto celebrado), o princípio da literalidade não funciona, nada obstando a que os sujeitos dirimam os efeitos dos acordos exteriores que tenham firmado (Cfr. Filipe Cassiano dos Santos, ob. cit., pag. 244).
Há, qualquer que seja a perspetiva que se adote sobre a fonte do poder de preenchimento, um inegável pressuposto do preenchimento: esse pressuposto é a existência, na esfera de algum sujeito, de um poder de preenchimento. Apenas se pode admitir que um documento que não está completo venha a ser completado de modo a ser formado um título com todos os requisitos necessários, se houver, na esfera jurídica de alguém, um poder de preenchimento, independentemente da fonte dele (Cfr. Filipe Cassiano dos Santos, ob. cit. pag. 279).
Este poder deve ser atribuído por aqueles que se vinculam “em branco” num pacto.
Quanto ao preenchimento e aos seus termos, o que nos parece claro que se pode extrair do artigo 10º da LULL é que, ainda que o mesmo corresponda ao exercício de um poder atribuído pela LULL ao portador do título a quem o mesmo foi entregue voluntaria e conscientemente incompleto (ou seja com a intenção de deixar o seu ulterior preenchimento ao cuidado de outrem), o exercício desse poder de preenchimento do título há-de ser conforme à vontade que presidiu à assinatura do título em branco, seja essa vontade expressa e corporizada no pacto escrito de preenchimento (se existir) ou tácita ou implícita, decorrendo da própria relação fundamental que determinou a criação do título cambiário (neste sentido o acórdão da Relação do porto de 07.01.2019, disponível em www.dgsi.pt).
Nas impressivas palavras de Ferrer Correia, “ninguém subscreve um documento em branco para que a pessoa a quem o transmite faça dele o uso que lhe aprouver; quem emite uma letra ou livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher sob certos e determinados termos.” op. cit., pág. 484.
Quanto à questão da limitação temporal, o nosso legislador não consagrou de forma expressa um limite temporal ao preenchimento do título em branco.
A este propósito defende Carolina Cunha que a circunstância de a lei não estipular um prazo fixo para o preenchimento da livrança (pois que é raro existir a previsão de um prazo fixo ou uma data limite para o preenchimento da letra ou da livrança) não significa que não possa extrair-se, por via interpretativa, uma limitação temporal: seguramente que não correspondia à vontade das partes, reconstituída com as ferramentas objectivistas proporcionadas pelo nosso ordenamento jurídico e integrada, se necessário, com auxílio correctivo da boa-fé (art. 239º CCiv), que o credor pudesse preencher e accionar o título cinco, dez ou mesmo doze anos depois da verificação do facto que legitimava esse comportamento” – In Manual de Letras e Livranças, Almedina, 2016, pág. 204 e ss.
Adianta que “o problema não está tanto num abuso de direito cuja apreciação passe pela avaliação da idoneidade da confiança que a inactividade do credor seja susceptível de inculcar no devedor; o problema está em que as partes, ao colocarem o devedor numa situação de «quase sujeição» face ao exercício do poder potestativo de preenchimento do credor, não podem – porque a ordem jurídica não tolera – deixar absolutamente em aberto o limite temporal de semelhante sujeição.”
Argumenta que a discrepância entre a prescrição ordinária (vinte anos, artigo 309º, do Cód. Civil) e a prescrição cambiária (três anos, artigo 70º da LULL) exprime uma valoração legislativa: a exigência de que o credor cambiário exerça rapidamente o seu direito. Por isso, considera que é incontornável a exortação legal a que o credor, uma vez exercitável o direito cambiário, efetivamente o exerça num breve espaço de tempo.
Nas hipóteses de subscrição em branco, o direito cambiário torna-se exercitável a partir do momento em que o respetivo portador está legitimado a preencher o título, ou seja (tipicamente) a partir da ocorrência do incumprimento e eventual resolução do contrato fundamental. A partir de então, advoga a Autora que “se é verdade que o credor não está propriamente obrigado a preencher o título nesse exacto momento, a verdade é que impende sobre si o ónus de o fazer com alguma brevidade, sob pena de, decorridos (no máximo) três anos sobre esse instante perder definitivamente a possibilidade de exercitar o direito cambiário contra o obrigado principal. Se persistir em preencher e/ou accionar o título para lá desse limite temporal, ou em indicar uma data de vencimento posterior a ele, incorre em preenchimento abusivo e culposo nos termos do art. 10º LU e, por referência, à data de vencimento correcta, o direito cambiário deve considerar-se prescrito.” – ob. cit. págs. 205-206).

No sentido da limitação temporal, decidiu também o acórdão da Relação de Coimbra de 11.06.2019, no qual se sumariou que:

A possibilidade conferida ao mutuante de preencher livremente a livrança, designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, confere-lhe um poder de dilatar infinitamente no tempo a cobrança do crédito cambiário, revelando-se, essa possibilidade, desde logo, de uma forma ostensiva, desproporcionalmente desvantajosa para o mutuário, o qual fica, por um período de tempo ilimitado, sujeito a uma indesejável situação de incerteza, o que contraria os ditames da boa-fé objectiva nos contratos sujeitos ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (RCCG).
Uma liberdade total na inserção das datas de emissão e de vencimento de uma livrança subscrita em branco permitiria ao credor defraudar os interesses públicos e do devedor que presidem ao instituto da prescrição dos créditos cambiários, proporcionando a criação de direitos de crédito imprescritíveis, sendo certo que o nosso ordenamento não permite uma renúncia antecipada à prescrição – art.º 302º, n.º 1, do C. Civil – e comina com a nulidade os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais de prescrição – art.º 300º do C. Civil –, o que suscita até a hipótese de invalidade do previsto naquela cláusula, por força do art.º 280º do C. Civil.
Destinando-se a livrança subscrita em branco a facilitar a cobrança do crédito em causa, na hipótese de se verificar o incumprimento da respectiva obrigação, resolvido o contrato, com fundamento nesse incumprimento, a boa-fé determina que a livrança seja coincidentemente preenchida com a resolução do contrato, iniciando-se, a partir desse momento, a contagem do prazo de prescrição previsto no art.º 70º da LULL.” - disponível em www.dgsi.pt.
Os argumentos invocados são, indubitavelmente, impressivos, mas cremos que não são conformes com a lei.
Ainda que seja discutível a opção legislativa, em particular do ponto de vista do obrigado cambiário que fica sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título em branco, certo é que, de facto, de iure constituto não se mostra consagrada essa limitação temporal (neste sentido, o acórdão da Relação do Porto, de 07.01.2019, disponível em www.dgsi.pt).
Tal não significa, sem mais, que decorrente desta opção legislativa a data de vencimento que venha a ser aposta no título em branco é, qualquer que ela seja, de admitir.
Na verdade, a orientação jurisprudencial, depois de numa primeira fase ter entendido que a ausência de previsão legal quanto a tal limitação implicava a estrita validade da data de vencimento que o portador viesse a incluir no título, tem vindo a adotar, de forma quase unânime, o entendimento de que o prazo prescricional previsto no artigo 70º da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento.
Alicerça-se este entendimento no teor do artigo 10º da LULL, que aponta uma discrepância essencial: a desconformidade entre o preenchimento da letra e o que designa por «acordos realizados».
Portanto, o preenchimento do título será abusivo quando desconforme com os “acordos realizados”.
Como se afirma no citado acórdão da Relação do Porto, de 07.01.2019, “o preenchimento da data de vencimento não pode prescindir do que, nesse conspecto, foi pactuado entre as partes e do que ambas (obrigado e credor que intervieram no acordo) podiam objectivamente deduzir ou interpretar a partir do assim pactuado, o que há-de resultar da aplicação ao pacto outorgado das regras de interpretação previstas no artigo 236º do Cód. Civil”.
Logo, a resolução da questão do preenchimento abusivo ou indevido da letra implica necessariamente a consideração do exato teor do respetivo pacto de preenchimento, pelo qual os embargantes avalistas também se encontram vinculados, que aqui se reproduz: “Autorizamos, desde já, a X Rent, em caso de falta de cumprimento de quaisquer obrigações ou responsabilidades (inerentes às operações acima referidas), a preencher esta letra pelo valor que for devido, a fixar as datas de emissão e de vencimento, como a designar o local do seu pagamento”.
Se a Embargada ficou expressamente autorizada a completar o preenchimento da letra, fixando-lhe as datas de emissão e de vencimento, ao preenchê-la após o incumprimento da obrigação em 01.08.2007, apondo-lhe como data de vencimento o dia 22.05.2012, fê-lo em conformidade com os acordos realizados (contrato e pacto de preenchimento). Nenhuma desconformidade existe entre o acordado e o que se fez constar da letra.
Não resulta do pacto de preenchimento nem se extrai dos termos da relação subjacente que a Embargada estava obrigada a preencher a letra logo que cessado o contrato com a restituição do veículo (em 01.08.2017) ou quando declarada a insolvência da subscritora da letra (em 30.07.2010).
Essa obrigação não consta dos acordos realizados, os quais não impunham o preenchimento da letra aquando da verificação de qualquer um desses eventos ou num determinado prazo a contar da ocorrência destes.
Noutra perspetiva: o incumprimento pela mutuária das obrigações assumidas é condição necessária para o preenchimento da livrança, nomeadamente quanto ao seu vencimento, mas não determinante.
Portanto, o desfasamento temporal, em si, qualquer que ele fosse, designadamente, entre a data da restituição do veículo e a data do preenchimento da letra em branco, nunca seria suscetível de violar os acordos realizados entre o portador e os avalistas.
A ampla margem de discricionariedade concedida à portadora da letra no respetivo pacto de preenchimento não permite considerar-se verificado o invocado preenchimento abusivo. A propósito, acrescenta-se no acórdão do STJ de 04.07.2019 que “mesmo que os termos acordados não atribuíssem à exequente tal margem de discricionariedade, atento o regime normativo da prescrição, sempre seria discutível se o simples decurso do tempo sem exigência do cumprimento das obrigações bastaria para configurar uma situação de abuso do direito” – disponível em www.dgsi.pt.
Com efeito, tem sido afirmado pela jurisprudência que o mero decurso do prazo, sem mais, não permite ao devedor invocar uma legítima confiança na renúncia por parte do credor ao exercício dos direitos que lhe assistem.
Neste sentido, decidiu-se no acórdão desta Relação de 26-09-2019 (em que a aqui relatora interveio como adjunta) que “Não basta o mero decurso de um longo período de tempo entre o momento em que um crédito é exigível e aquele em que é exigido pelo credor para que se possa desde logo concluir pelo abuso do direito, seja na perspetiva do venire contra factum proprium (tendo em atenção que a omissão se pode ainda considerar como um comportamento do agente), seja na da suppressio (focada diretamente no não exercício do direito). Não há razões para, na suppressio, em que está em causa a omissão do credor em exercer o seu direito em determinado período, sem exceder aquele que as normas da prescrição entendem ser ainda admissível, prescindir das demais circunstâncias exigíveis para que o venire contra factum proprium opere: que a justificação da confiança esteja relacionada com o credor (que lhe seja imputável ou, pelo menos, que seja fundada em factos que lhe não são alheios ou que deles deva ter conhecimento) e que tenha ocorrido um investimento de confiança por parte do devedor ou pelo menos, um prejuízo que, não fosse a passividade do credor, aquele não sofreria” – disponível em www.dgsi.pt.
Em suma, como se afirma acórdão do STJ de 20-10-2015 “uma livrança em branco pode prescrever, mas isso só sucederá quando, dentro das relações imediatas, se prove, através do acordo extracartular/pacto de preenchimento, que foi fixado, um outro vencimento diferente do indicado no título” - disponível em www.dgsi.pt.
Em face do exposto, à luz da lei vigente, cremos não ser possível sustentar-se que a letra em apreço se encontra prescrita, pois que não se evidencia, à luz do pacto de preenchimento, que o portador tivesse que nela inserir obrigatoriamente como data de vencimento a data da exigibilidade da obrigação ou, ainda, no máximo, a data correspondente aos três anos subsequentes a partir daquela data.
Nas suas conclusões de recurso invocam, ainda, os Recorrentes que a possibilidade conferida ao mutuante de preencher livremente a letra, designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, confere-lhe um poder de dilatar infinitamente no tempo a cobrança do crédito cambiário, revelando-se, essa possibilidade, desde logo, de uma forma ostensiva, desproporcionalmente desvantajosa para o mutuário, o qual fica, por um período de tempo ilimitado, sujeito a uma indesejável situação de incerteza, o que contraria os ditames da boa-fé objetiva.
Esta dilatação no tempo, viola o disposto no regime das Cláusulas Contratuais Gerais constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro (RCCG).
Dizem ainda os Recorrentes e passa a citar-se “o facto de uma liberdade total na inserção das datas de emissão e de vencimento de uma livrança subscrita em branco permite ao credor defraudar os interesses públicos e do devedor que presidem ao instituto da prescrição dos créditos cambiários, proporcionando a criação de direitos de crédito imprescritíveis, sendo certo que o nosso ordenamento não permite uma renúncia antecipada à prescrição – art.º 302º, n.º 1, do CC – e comina com a nulidade os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais de prescrição – art.º 300º do CC –, o que suscita até a hipótese de invalidade do previsto naquela cláusula, por força do art.º 280º do CC”.
Analisada a petição de embargos, constata-se que os Recorrentes não suscitaram esta questão, a qual converge na repercussão do decurso do tempo na relação jurídica, através da alegada modificação do regime legal da prescrição, figura que necessita de ser invocada expressamente pela parte a quem aproveita (artigo 303º do CCiv.). Por isso, tal questão, na dimensão factual e normativa que os Recorrentes agora lhe conferem, não foi apreciada na sentença.
Não tendo sido invocada na petição inicial dos embargos de executado, essa questão não pode ser deduzida no recurso, estando o tribunal de recurso impedido de dela conhecer.
Primeiro, por não ter sido suscitada pelo meio processual adequado junto do Tribunal de primeira instância; segundo, por a questão, ao ser suscitada agora no recurso, nos termos em que é aí recortada, surgir como questão nova; o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Pressupondo que se trata de uma questão de conhecimento oficioso, é inequívoco que existe um desfasamento temporal entre o momento em que o direito de crédito surge na esfera jurídica da Exequente e a data em que o cumprimento da obrigação é exigido aos Executados.
Porém, essa dilação temporal, por si só, não permite extrair a conclusão de que foi violado o disposto nos artigos 280º e 300º do Código Civil.
Seguiremos na abordagem das questões da nulidade do pacto de preenchimento à luz do regime das cláusulas contratuais gerais e da violação do disposto nos artigos 280º e 300º do Código Civil, pela sua adequação ao caso, os argumentos expendidos no acórdão desta Relação de 28.05.2020 (disponível em www.dgsi.pt), com os quais concordarmos inteiramente.
Em primeiro lugar, não foi apurado qualquer facto adjuvante suscetível de alicerçar a conclusão dos Recorrentes, designadamente que na base do apontado desfasamento temporal está a intenção da Recorrida de derrogar o regime da prescrição.
Em segundo lugar, o negócio em causa, é perfeitamente legítimo, sendo inequivocamente relevante para o comércio jurídico. Estamos perante um contrato de aluguer, no qual os Recorrentes assumiram uma obrigação enquanto avalistas de uma letra emitida no quadro daquele. Também na execução do contrato não se deteta uma atuação abusiva ou desconforme com os cânones da boa fé por parte da Exequente, pois foi aceitando as várias propostas para resolução da incapacidade de cumprir por parte da devedora avalizada e, depois de vicissitudes relevantes (em que ocorreu inclusive a insolvência da devedora), recorreu aos Executados.
Ora, é perfeitamente normal e socialmente justificável que uma credora comece por tentar obter a satisfação do seu crédito junto da devedora e subscritora de uma letra e após a declaração de insolvência desta, atento elevado risco de não ser ressarcida, decidir-se por completar o título e interpelar os avalistas para efetuarem o pagamento.
Em terceiro lugar, embora os Recorrentes aludam a um entendimento contrário “ao estabelecido no artigo 280º do Código Civil”, não explicam a que requisito do objeto negocial se estão a referir, sendo certo que do preceito constam múltiplos conceitos. Sendo várias as causas de nulidade do negócio jurídicas previstas no artigo 280º do Código Civil, os Recorrentes em lado algum invacarm a nulidade de um negócio jurídico com base num dos fundamentos previstos naquele preceito.
No citado artigo prevê-se, no nº 1, a nulidade do negócio jurídico «cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável». No nº 2 estabelece-se que é «nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes».
Para começar, não se vislumbra como é que um contrato de aluguer de veículo, com a inerente emissão de uma letra avalizada pelos Recorrentes, poderá contrariar a “ordem pública” ou ser “ofensivo dos bons costumes”. Em todo o caso, não se alcança como é que o concreto contrato celebrado ofende um princípio ou um valor fundamental do nosso ordenamento jurídico.
A seguir, o objeto do negócio, seja o mediato (o direito sobre que incide o negócio) ou o imediato (o conteúdo do contrato, ou seja, os seus efeitos jurídicos), não é física ou legalmente impossível. Fisicamente (enquanto limite que resulta da natureza do próprio objeto), a realização da prestação não é impossível, assim como não o é legalmente, uma vez que não se vislumbra um obstáculo de natureza legal à produção do efeito jurídico previsto.
A contrariedade à lei depende da existência de uma norma imperativa ou, pelo menos, injuntiva que torne indisponível determinada situação jurídica. O negócio dos autos não versa claramente sobre matéria legalmente indisponível.
Finalmente, também é suficientemente claro que o objeto do contrato não é indeterminado ou indeterminável, pois, a prestação sempre esteve definida. Sabe-se exatamente, face aos termos do contrato, em que medida os Recorrentes se encontram vinculados perante a Recorrida.
Em quarto lugar, no artigo 300º do Código Civil prevê-se que «são nulos os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais da prescrição ou a facilitar ou dificultar por outro modo as condições em que a prescrição opera os seus efeitos».
Partindo da constatação de que o regime jurídico da prescrição é de ordem pública, facilmente se compreende que qualquer negócio jurídico que modifique o seu regime padece de nulidade (na parte em que disponha sobre tal matéria).
Pois bem, percorrido o contrato em causa nos autos, verifica-se que não contém qualquer cláusula que incida sobre o regime da prescrição. Não é um problema de interpretação ou de entendimento, mas sim de o contrato nada dispor sobre prescrição.
Não tendo o contrato modelado o regime da prescrição, em qualquer uma das suas vertentes legalmente relevantes, não se verifica a sua nulidade e, muito menos, o preenchimento abusivo da livrança.
Finaliza-se, no que respeita à invocada violação do disposto no regime das Cláusulas Contratuais Gerais, que se o avalista opta por lançar mão da invalidade da cláusula que integra o pacto de preenchimento em que interveio, com a respetiva exclusão do contrato, autoexclui-se da intervenção no campo das relações imediatas com o portador da livrança, a coberto das quais poderia invocar e fazer valer a exceção de preenchimento abusivo – neste sentido o acórdão do STJ de 22.10.2013 e acórdão da Relação do Porto de 07.01.2019, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Pelo exposto, improcedem todas as conclusões de recurso, não merecendo a decisão recorrida qualquer censura.
*
*
IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmado a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Guimarães, 8 de outubro de 2020

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Moura Alves
2º -Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes