O crime p. e p. pelo art.º 360 n.ºs 1 e 3 do CPP supõe, por um lado, que a alegação de que o depoimento falso foi prestado “depois do agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expôs”, por outro, que – havendo contradição entre depoimentos prestados pelo agente em momentos diferentes do processo - seja esse o depoimento falso (o prestado depois da arguida ter prestado juramento e ter sido advertida das consequências penais da falsidade do depoimento), factualidade que não consta da acusação.
A alegação de que a arguida prestou dois depoimentos contraditórios em fases distintas do processo, sem que se saiba – e tal seja alegado na acusação - qual deles é falso não é bastante para que se considerem preenchidos os elementos objetivos do crime p. e p. pelo art.º 360 n.º 1 do CP.
Por outras palavras, a prestação de dois depoimentos contraditórios, sem que conste da acusação qual deles é falso, em suma, em qual deles a arguida mentiu (ou, até, se mentiu nos dois) não permite ter como verificados os elementos objetivos (e subjetivos) do tipo, já que estes têm que se verificar em relação a uma conduta concreta e determinada.
O crime previsto no art.º 360 do CP – crime de falsidade de testemunho – atento o princípio da legalidade, pressupõe a demonstração de que esse depoimento concreto, nas circunstâncias em que foi prestado, não corresponde à verdade; não se fazendo tal prova não se pode afirmar que o agente prestou depoimento falso apenas porque há divergência entre os dois depoimentos prestados, sem que se apure em qual deles o agente mentiu.
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo Local Criminal de Évora, Juiz 2, correu termos o Proc. Comum Singular n.º 750/18.5T9EVR, no qual foi julgada a arguida ECMRB - filha de FAGR e de MLSMR, natural de …., nascida a 27 de novembro de 1977, ……, portadora do cartão de cidadão n.º ………, residente na Avenida ……………………, ….. - pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360 n.ºs 1 e 3 do Código Penal, vindo – a final – a ser absolvida da prática do crime (de falsidade de testemunho) de que vinha acusada.
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2. Recorreu o Ministério Público dessa sentença, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - A douta sentença recorrida, absolvendo a arguida da prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360 n.ºs 1 e 3 do Código Penal, enferma de erro notório na apreciação da prova, vício previsto no n.º 2 al.ª c) do artigo 410 do Código de Processo Penal.
2 - E assim é porque o tribunal a quo - por ter considerado as declarações da arguida credíveis e, nessa medida, que o consumo de estupefacientes em conjunto com a medicação para a depressão podem ter causado alterações do comportamento da mesma que não lhe permitiram, à data, na Polícia de Segurança Pública, ter noção do que estava a dizer - deu como não provado que:
“a) Ao prestar declarações pela forma e na qualidade processual descrita, a arguida agiu com o propósito concretizado de relatar factos que sabia não corresponderem à realidade e contraditórios, ciente que o fazia na qualidade de testemunha e perante entidade competente. b) A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente e sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento”.
3 – Consequentemente, entendeu o tribunal a quo que não existiu prova de que a arguida tenha agido com dolo e com consciência da ilicitude do facto, não lhe sendo o erro censurável.
4 - Ao absolver a arguida nos termos e com os referidos fundamentos, o tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, pois deu como provados os factos imputados à arguida na acusação pública, mas com base nas declarações prestadas pela mesma e na declaração médica junta aos autos já deu como não provado o dolo, por ter entendido que a mesma atuou com erro sobre a ilicitude, não censurável.
5 - Ao fazê-lo, o tribunal deu como não provado algo que não podia deixar de se ter verificado, retirando de um facto uma conclusão ilógica e notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou seja, mesmo que a arguida na data em que prestou depoimento na Polícia de Segurança Pública se encontrasse medicada e sob o efeito de cocaína, de tal facto não se podia ter concluído que a mesma não se encontrava em perfeitas condições de alcançar as consequências da sua conduta, pelo contrário, de tal facto apenas se pode extrair, à luz das regras de experiência comum, que a arguida consumia cocaína e que certamente a comprava a HC, como, aliás, referiu à Polícia de Segurança Pública.
6 - Nestes termos, é manifesto que o tribunal a quo incorreu no vício enunciado no n.º 2 al.ª c) do art.º 410 do Código de Processo Penal, vício que pode ser ultrapassado com recurso ao texto da decisão recorrida, sem necessidade de reenvio do processo para novo julgamento (cfr. artigos 426 n.º 1 e 431 al.ª b) do Código de Processo Penal).
7 - Acresce que o caso sub judice não se subsume ao erro sobre a ilicitude, previsto no artigo 17 do Código Penal.
8 - Com efeito, das declarações da arguida prestadas em audiência de discussão e julgamento não resultou que a mesma desconhecesse a ilicitude do facto, mas tão só que à data tomava medicação para a depressão e que se encontrava sob o efeito de cocaína, admitindo ter mentido perante a Polícia de Segurança Polícia, alegadamente por se encontrar alterada.
9 - Ademais, da declaração médica junta aos autos pela arguida resultou apenas que a toma da medicação associada ao consumo de álcool e drogas pode agravar as alterações de comportamento e perturbações da memória causadas por estas últimas substâncias tóxicas.
10 - Ora, de tais elementos probatórios, analisados à luz das regras de experiência comum, não se pode retirar que a arguida não tivesse consciência de que mentia perante a Polícia de Segurança.
11 - Ao invés, as declarações da arguida, conjugadas com a declaração médica e o depoimento do agente da Polícia de Segurança Polícia, impunham que tribunal a quo daí retirasse que efetivamente a arguida, consumidora de cocaína, mentiu, e mentiu, não perante a Polícia de Segurança Pública, mas sim na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 24 de abril de 2018, após prestar juramento e ter sido advertida de que era obrigada a responder com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade penal.
12 - Contudo, ainda que assim não se entendesse, entendendo o douto tribunal, como entendeu, que a arguida atuou sem consciência da ilicitude de facto, sempre teria de se concluir que o erro lhe era censurável e não o inverso, como ocorreu.
13 - No que concerne ao dolo, e tendo presente o disposto no artigo 14 do Código Penal, constata-se que as declarações prestadas pela arguida no decurso da audiência de discussão e julgamento, na qualidade de testemunha, são antagónicas com aquelas prestadas em fase de inquérito, pelo que a mesma prestou um depoimento que não corresponde à verdade.
14 - A arguida sabia que tinha de responder com verdade às perguntas que lhe eram feitas e, não obstante, mentiu, e fê-lo deliberada, livre e conscientemente, isto é, querendo esse resultado, ficando assim preenchido o elemento intelectual e o elemento volitivo.
15 - O dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão, só sendo possível alcançar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa inferir, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes do ilícito em apreço, e à luz das regras de experiência comum.
16 - Pelo que se impunha ao tribunal a quo dar por provado que a arguida, ao prestar declarações pela forma e na qualidade em que o fez, agiu com o propósito concretizado de relatar factos que sabia não corresponderem à realidade e contraditórios, ciente de que o fazia na qualidade de testemunha e perante entidade competente.
17 - Ainda, que agiu livre, deliberada e conscientemente, e sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, tendo capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.
18 - Concluindo-se que a arguida praticou um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360 n.ºs 1 e 3 do Código Penal, em procedência dos argumentos que ficam expostos, e impondo-se a aplicação de pena à arguida, temos por adequada e necessária a condenação em pena de multa, face ao elevado grau de ilicitude e culpa da arguida, às elevadas exigências de prevenção especial e às medianas exigências de prevenção geral, tudo nos termos e à luz dos critérios estatuídos nos artigos 40, 70 e 71 do Código Penal.
19 - Quanto à medida concreta da pena de multa a aplicar à arguida, atenta a moldura abstrata da pena aplicável ao ilícito, entendemos que à arguida deverá ser aplicada pena de 350 dias de multa, à razão diária de 6 €, perfazendo o montante de € 2.100,00 (dois mil e cem euros), nos termos dos artigos 47 n.º 1 e 71 n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
20 - Por tudo quanto exposto, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que, valorando os elementos probatórios à luz das regras de experiência comum, dê como provados os factos imputados à arguida na acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, condene a mesma, como autora material, na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360 n.ºs 1 e 3 do Código Penal, e consequentemente, em pena de 350 dias de multa, à razão diária de 6 €, perfazendo o montante de € 2.100,00 (dois mil e cem euros).
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3. Respondeu a arguida ao recurso interposto pelo Ministério Público, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
1 - A douta sentença, ora recorrida, não merece qualquer censura.
2 - A arguida, entre os anos de 2006 e 2007, era consumidora de estupefacientes (cocaína), possuía síndrome depressiva e fazia uso dos medicamentos Alprazolam e Escitalopram.
3 - Tal conduta agrava as alterações de comportamento e perturbações de memória, já comprometidas pela síndrome depressiva, conforme relatório médico junto aos autos.
4 - Aquando do seu depoimento na PSP a arguida estava muito nervosa e com medo, e no dia anterior havia feito uso de medicamentos, álcool e drogas.
5 - Resultou provado ser admissível que o consumo de cocaína associado à medicação tenha feito com que a arguida não tenha agido com a ilicitude do facto de estar a prestar declarações que não correspondiam à verdade.
6 - Salvo melhor opinião, considera a arguida que muito bem andou a Meritíssima Juiz a quo quando absolveu a arguida do crime de que vinha acusada, devendo manter-se a sentença proferida.
7 - Nestes termos e nos mais de direito, deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
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4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (parecer de 4.06.2020), dizendo, em síntese:
Por um lado, que o MP não referencia, “seja na motivação ou nas conclusões, como se lhe impunha, por meio das especificações a que se reporta o nº 3 do art.º 364, ex vi do disposto no art.º 412 n.º 4, ambos do CPP”, os depoimentos que invoca para fundamentar o erro de julgamento da matéria de facto;
Por outro, a fundamentação da sentença, “tal como resulta do próprio texto”, é absolutamente coerente, independentemente de dela se poder discordar;
Por outro, a prova convocada pelo recorrente não impõe decisão diversa da recorrida, e “sendo ambas as posições plausíveis… a tese defendida pelo MP/Recorrente não se sobrepõe à acolhida pelo tribunal, não impondo, por isso, decisão diversa”.
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5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos, cumpre decidir em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
6. Foram dados como provados na 1.ª instância os seguintes factos:
1. No dia 5 de setembro de 2017, pelas 10 horas e 45 minutos, na Esquadra de Investigação Criminal de ……… da Polícia de Segurança Pública, a arguida prestou depoimento como testemunha, no âmbito do Processo n.º 21/16.1PEEVR.
2. Em tal depoimento, a arguida declarou que:
- sabia que HMLC vendia cocaína;
- numa ocasião, no bar “……….”, comprou uma dose de cocaína a HC pelo preço de € 40,00;
- que chegou a consumir estupefaciente com HC, na casa de banho daquele bar e na sua habitação.
3. Porém, no dia 24 de abril de 2018, em sede de audiência de julgamento do Processo n.º 21/16.1PEEVR, no Juízo Central Cível e Criminal de ……… – J2, após prestar juramento e ter sido advertida de que era obrigada a responder com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade penal, a arguida declarou que:
- consumiu cocaína com HC na casa de banho do bar “………………”;
- nunca comprou cocaína a HC.
Das condições pessoais
4. A arguida é cozinheira de profissão e trabalha num restaurante, onde faz um pouco de tudo.
5. Aufere € 534,00.
6. Vive com o marido, uma filha de 20 e um filho de 10 anos.
7. Paga de renda € 450,00 por mês.
8. O marido trabalha.
9. Tem o 8.º ano de escolaridade.
10. Entre 2006 e 2007 era consumidora de estupefacientes, mormente cocaína.
11. Em 05/09/2007 estava a ser seguida pelo médico JLR, por síndrome depressivo, medicada com Alprazolam, Escitalopram.
12. Do relatório médico datado de 20/10/2019 e subscrito pelo médico JLR consta: “… a toma destes medicamentos (referidos em 11) associada ao consumo de álcool e drogas, como a D. EB diz ter feito, pode agravar as alterações de comportamento e perturbações da memória causadas por estas últimas substâncias tóxicas”.
13. Do seu certificado de registo criminal nada consta.
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7. E não se provou que:
a) Ao prestar declarações pela forma e na qualidade processual descrita, a arguida agiu com o propósito concretizado de relatar factos que sabia não corresponderem à realidade e contraditórios, ciente que o fazia na qualidade de testemunha e perante entidade competente.
b) A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.
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8. O tribunal formou a sua convicção – escreve-se na fundamentação – na análise “de forma livre, crítica e conjugada, (d)a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, de acordo com o artigo 127 do Cód. Proc. Penal, respeitando o disposto no artigo 355 do mesmo Código e os critérios da experiência comum e da lógica.
Deste modo, foram tidos em conta:
• Certidão de fls. 2 A;
• Transcrição de fls. 38;
• Suporte digital da audiência de discussão e julgamento do Processo n.º 21/16.1PEEVR;
• Declaração médica junta em audiência;
• Certificado de registo criminal.
E ainda as declarações da arguida e o depoimento da testemunha ouvida.
Quanto à testemunha, confirmou os factos constantes da inquirição que levou a cabo, mas nada disse de relevante quanto ao concreto comportamento da arguida no dia em causa.
Por outro lado, a arguida assumiu integralmente as diferenças existentes entre as declarações prestadas, admitindo que as possa ter feito em contradição, mas referiu que a verdade é aquilo que disse no julgamento, que não quis mentir perante a PSP, que nessa data estava muito nervosa, com medo e sob o efeito de cocaína que consumiu na véspera.
Aliado o consumo à medicação para a depressão, teve momentos de esquecimento e admite que o que disse foi por estar alterada.
Ora, nada nos fez duvidar das declarações prestadas pela arguida, que não foram contraditadas, e, por outro lado, o consumo de estupefacientes em conjunto com a medicação para a depressão podem, como consta do relatório médico, ter-lhe causado alterações de comportamento que não lhe permitiam, à data, na PSP, ter total noção do que estava a dizer.
Estatui o artigo 17 do Código Penal, sobre a epígrafe, “Erro sobre a ilicitude”: 1. Age sem culpa quem atuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2. Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respetivo, a qual pode ser especialmente atenuada.
Conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/11/2014 [em que é relator o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Belmiro Andrade], “Ensina o Professor Figueiredo Dias (O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, pp. 341 e 342) quanto ao critério pessoal, objetivo da censurabilidade da falta da consciência da ilicitude: «Se lograr comprovar-se que a falta de consciência de ilicitude ficou a dever-se, direta e imediatamente, a uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade do agente, aquela deverá sem mais considerar-se censurável. (…) São, por seu turno, requisitos daquela retitude e da respetiva atitude:
1) Que a questão da licitude concreta (seja quando se considera a valoração em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação) se revele discutível e controvertida; e isto, não porque nos outros casos se pretenda reverter à velha ideia jusnaturalista do inatismo e evidência de certas valorações, mas a questão há-de ser uma daquelas em que se conflituem diversos pontos de vista de estratégica ou oportunidade, estas também juridicamente relevantes.
2) Que a solução dada pelo agente à questão da ilicitude corresponda a um ponto de vista de valor juridicamente reconhecido, por forma a poder dizer-se que ele conduziria à ilicitude da conduta se não fosse a situação de conflito anteriormente aludida licitude da conduta se não fosse a situação de conflito anteriormente aludida.
3) Que tenha sido o propósito de corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante ou, quando não o propósito consciente, pelo menos o produto de um esforço ou desejo continuado de corresponder às exigências do direito, para prova do qual se poderá lançar mão dos indícios fornecidos pelo conhecimento do seu modo-de-ser ético-jurídico adquirido o fundamento da falta de consciência da ilicitude»”.
Tem a jurisprudência entendido que é matéria de facto saber se o agente age com erro e sem consciência da ilicitude, mas que é matéria de direito a questão de saber se tal erro é ou não censurável.
O circunstancialismo em que a arguida praticou os factos – na PSP - é, a nosso ver, revelador de que o mesmo poderia não ter o domínio ou discernimento necessário para se poder dizer que estava a agir consciente e voluntariamente.
Na verdade, o consumo de cocaína altera o comportamento, e mais o faz se associado a medicação, pelo que admitimos como possível que não tenha agido com consciência da ilicitude do facto de estar a prestar declarações que não correspondiam exatamente à verdade.
Como é sabido, a estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo.
O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objetivo – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável.
O elemento volitivo consiste na vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo direto – a intenção de realizar o facto – o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta – e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta.
Atentas as declarações não contrariadas da própria arguida, nesta parte entendemos que não existe prova de que o arguido, nesta sede, tenha agido com dolo, e bem assim, que tenha agido com consciência da ilicitude do facto.
Mais julgamos que neste caso concreto o erro com que tenha agido não lhe é censurável, pois que sob o efeito da cocaína não podemos concluir que se encontrasse em perfeitas condições de alcançar as consequências da sua conduta”.
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9. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art.º 412 do Código de Processo Penal).
Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no de direito – elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso (ver art.ºs 412 n.ºs 1 e 2 e 410 n.ºs 1 a 3, ambos do CPP, e, entre outros, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
Feitas estas considerações, e tendo em conta as conclusões da motivação do recurso apresentado pelo Ministério Público, são as seguintes as questões colocadas pela recorrente à apreciação deste tribunal:
1.ª – Se a sentença recorrida enferma do vício de erro notório na apreciação da prova (art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP);
2.ª – Se o tribunal, em face das provas produzidas, devia ter dado como provado:
- que a arguida, “ao prestar declarações pela forma e na qualidade em que o fez, agiu com o propósito concretizado de relatar factos que sabia não corresponderem à realidade e contraditórios, ciente de que o fazia na qualidade de testemunha e perante entidade competente”;
- que a arguida “agiu livre, deliberada e conscientemente, e sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento”.
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Antes de conhecer estas questões, uma outra se suscita e que deve proceder o conhecimento daquelas, pois que – a proceder – torna inútil o conhecimento das questões suscitadas pelo recorrente.
Na acusação deduzida, descrevendo-se, em síntese, as declarações prestadas pela arguida, enquanto testemunha, no dia 5 de setembro de 2017, pelas 10 horas e 45 minutos - na Esquadra de Investigação Criminal de ……….. da Polícia de Segurança Pública, no âmbito do Processo n.º 21/16.1PEEVR - e no dia 24 de abril de 2018, em sede de audiência de julgamento do Processo n.º 21/16.1PEEVR, no Juízo Central Cível e Criminal de …… – J2, concluiu-se que:
a) Ao prestar declarações pela forma e na qualidade processual descrita, a arguida agiu com o propósito concretizado de relatar factos que sabia não corresponderem à realidade e contraditórios, ciente que o fazia na qualidade de testemunha e perante entidade competente.
b) A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente e sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.
E, em consequência, foi imputada à arguida a prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 360 n.ºs 1 e 3 do CP, ou seja, porque os depoimentos que prestou em sede de inquérito (em 5.09.2017) e em audiência de julgamento (em 24.04.2018) - este após prestar juramento e ter sido advertida de que era obrigada a responder com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade penal - sem que se diga qual dos depoimentos é falso, em qual deles faltou, deliberadamente, à verdade, são contraditórios.
Ora, em primeiro lugar deve dizer-se que não consta da acusação que o depoimento falso seja aquele que a arguida prestou em audiência de julgamento, pelo que não se percebe porque razão lhe é imputada a prática do crime p. e p. pelo art.º 360 n.ºs 1 e 3 do CPP, pois que este crime supõe, por um lado, que a alegação de que o depoimento falso foi prestado “depois do agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expôs”, por outro, que – havendo contradição entre depoimentos prestados pelo agente em momentos diferentes do processo - seja esse o depoimento falso (o prestado depois da arguida ter prestado juramento e ter sido advertida das consequências penais da falsidade do depoimento), factualidade que não consta da acusação.
Depois, a alegação de que a arguida prestou dois depoimentos contraditórios em fases distintas do processo, sem que se saiba – e tal seja alegado na acusação - qual deles é falso não é bastante para que se considerem preenchidos os elementos objetivos do crime p. e p. pelo art.º 360 n.º 1 do CP.
De facto, dispõe o art.º 360 n.ºs 1 e 3 do CP (crime pelo qual foi a recorrente condenada):
“1. Quem, como testemunha… perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova depoimento… prestar depoimento, apresentar relatório… falsos, é punido…”.
“3. Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois do agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expôs, a pena é de prisão até cinco anos ou…”.
Afinal, qual foi o depoimento que a arguida prestou que não corresponde à verdade, qual deles é falso? Qual foi o depoimento cuja verdade a arguida adulterou para ludibriar a justiça?
Tal não consta da acusação, sendo esta que, como é sabido, delimita o objeto do processo e, como tal, deve ser dada conhecer à arguida para que possa exercer o seu direito de defesa, o que pressupõe que lhe seja dada a conhecer a conduta concreta que lhe é imputada, incluindo todos os elementos que preenchem o tipo de crime que lhe é imputado (quando, onde e em que circunstâncias prestou o depoimento falso, faltando à verdade?).
Não tendo tal conduta sido descrita na acusação não pode optar-se, em sede de julgamento – sob pena de violação do princípio da vinculação temática – por este ou aquele depoimento, conforme as “conveniências” do momento, pois que no campo dos princípios até podem ser os dois falsos e a contradição entre eles não é bastante, a nosso ver, para preencher os elementos objetivos do referido crime.
Por outras palavras, a prestação de dois depoimentos contraditórios, sem que conste da acusação qual deles é falso, em suma, em qual deles a arguida mentiu (ou, até, se mentiu nos dois) não permite ter como verificados os elementos objetivos (e subjetivos) do tipo, já que estes têm que se verificar em relação a uma conduta concreta e determinada.
De facto, como escreve A. Medina de Seiça, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, t. III, 477, “… a falsidade da declaração afere-se pela sua desconformidade com o acontecimento real a que ela se reporta… caso a narração do declarante se afaste do acontecido, isto é, daquilo que o tribunal, em face da produção da prova, tenha dado por acontecido, é falsa…”, o que, a nosso ver, supõe a alegação e demonstração de qual a declaração concreta que é falsa, que não corresponde à verdade.
No caso em apreço não está demonstrado – nem foi alegado em sede de acusação - qual o depoimento que a arguida prestou que não corresponde à verdade, que é falso, sendo certo que o dolo e a consciência da ilicitude terão de se reportar também àquela conduta concreta (à prestação do depoimento falso), pelo que – ainda que viessem a ser dados como provados os factos impugnados pelo recorrente – sempre teríamos de concluir que não se mostram preenchidos todos os elementos do crime imputado à arguida (neste sentido também Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade católica Editora, Lisboa, 2008, 848, e os acórdãos da RP de 11.03.2015, Proc. 749/13.8TAPFR.P1, e da RE de 8.04.2010, Proc. n.º 533/07.5TALGS.E1, e de 10.04.2012, Proc. n.º 77/09.3TAFAL.E1, que teve como relator o mesmo deste autos, todos in www.dgsi.pt).
Não se desconhece que a questão não é pacífica na jurisprudência (em sentido divergente podem ver-se, v.g, os acórdãos da RC de 30.10.2013 e da RP de 31.05.2017, in www.dgsi,.pt), incluindo neste tribunal, como nos dá conta o acórdão de 3.11.2015, Proc. 49/13.3T3STC.E1, in www.dgsi.pt, de que foi relator o Exm.º Desembargador António Latas, e onde são expostas as duas posições em confronto e alguma jurisprudência, num e noutro sentido, que se vem debruçando sobre a questão: uma no sentido de que comete o crime a testemunha que, em dois momentos distintos, presta depoimentos contraditórios sobre a mesma realidade, não se provando qual deles é verdadeiro, e outra no sentido de que, não se provando qual dos depoimentos é falso não se pode afirmar que se encontra preenchido o elemento objetivo do tipo, ou seja, que o arguido – com referência ao dia, hora e local em que prestou determinado depoimento – mentiu, prestou depoimento que não corresponde à verdade.
Temos para nós, como já anteriormente defendemos (acórdão de 10.04.2012, Proc. n.º 77/09.3TAFAL.E1, in www.dgsi.pt) - posição que não vemos razões para alterar - que o crime previsto no art.º 360 do CP – crime de falsidade de testemunho – atento o princípio da legalidade, pressupõe a demonstração de que esse depoimento concreto, nas circunstâncias em que foi prestado, não corresponde à verdade; não se fazendo tal prova não se pode afirmar que o agente prestou depoimento falso apenas porque há divergência entre os dois depoimentos prestados, sem que se apure em qual deles o agente mentiu.
E como supra se deixou dito, a procedência desta questão – onde se conclui que os factos alegados na acusação, tal como dela constam, não preenchem os elementos objetivos do tipo de crime pelo qual a arguida foi acusada – prejudica o conhecimento das demais, pois que, ainda que tais factos fossem dados como provados (em suma, que a arguida prestou tais depoimentos contraditórios com o propósito de relatar factos que sabia não corresponderem à realidade) sempre ficaria por demonstrar a prática do crime imputado à arguida, por os factos alegados não preencherem os seus elementos objetivos (a concretização do depoimento que a arguida – deliberada e conscientemente – prestou faltando à verdade, sabendo que era falso).
Improcede, por isso, o recurso.
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10. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.
Sem tributação.
(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)
Évora, 22/09/2020
(Alberto João Borges)
(Maria Fernanda Pereira Palma)