PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
REQUISITOS
Sumário

1- A suspeição apresentada contra magistrado consubstancia um incidente, inserível na tramitação de uma causa, que corre por apenso ao processo principal.
Conhece, pois, regulamentação específica, sem embargo de lhe ser aplicável, designadamente quanto a formalidades do requerimento inicial e da resposta, bem como a prazos para esta última e número admissível de testemunhas, as disposições gerais atinentes aos incidentes da instância.
2- Limitando-se o Apelante a suscitar a questão, que designou como de “quebra de imparcialidade”, apenas em sede das alegações do recurso que interpôs para este Tribunal da Relação da decisão de indeferimento liminar, sem que tenha suscitado autonomamente o incidente de suspeição no Tribunal recorrido de modo a seguir-se o processado prevenido no artigo 122º do CPC, utilizando, ademais, fórmula patentemente conclusiva na narrativa utilizada sobre a matéria, não pode, necessariamente, deixar de improceder tal questão.
3- Não se encontra preenchido o requisito respeitante à séria probabilidade da existência do direito invocado pelo Apelante no caso da factualidade alegada pelo mesmo na petição inicial de procedimento cautelar comum por si judicialmente instaurado, complementada com elementos probatórios documentais fornecidos pelo próprio com aquela petição, revelarem que o corte de fornecimento de água efectuado pela Apelada a uma habitação do Apelante foi justificado pelo não cumprimento pontual de dever (pagamento de despesas facturadas relativas aos fornecimentos efectuados), por parte do Apelante e sem que a Requerida tenha violado normas legais excepcionais e temporárias concebidas para fazer face à pandemia gerada pela doença infeciosa Covid 19, por as mesmas não serem aplicáveis ao caso concreto.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Proc. nº 390/20.9T8BNV.E1
Comarca de Santarém – Juízo Local Cível de Benavente
Apelante: (…)
Apelada: Águas do (…) EM, S.A.
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Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663º, nº 7, do CPC)
(…)
***
Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:

I – RELATÓRIO

(…), advogado com cédula (…), pleiteando em causa própria, residente na Rua dos (…), 77, em (…), Benavente, contribuinte fiscal n.º (…), veio intentar Procedimento Cautelar Comum, não especificado, com inversão de contencioso, contra Águas do (…) EM, S.A., NIF (…), com sede na Rua (…), n.º 38, Salvaterra de Magos, peticionando que seja ordenado o restabelecimento do fornecimento de água pela Requerida, com dispensa do contraditório face aos riscos para a saúde, quer do requerente e família, como da comunidade, de forma a evitar pôr em risco o fim da providencia e a efectividade do direito que se pretende acautelar sobretudo as medidas excepcionais por motivo de emergência sanitária inerentes ao Covid 19 face ao justo receio de lesão grave ou irreversível e de difícil reparação do direito que se visa proteger, mais requerendo a inversão do contencioso e a aplicação de sanção pecuniária compulsória por cada dia de incumprimento em montante a fixar pelo Tribunal.
Para o efeito alegou, em síntese, que tem a sua residência na Rua dos (…), 77, (…) e contratou com a Ré o fornecimento de água no referido local, acrescentando que perante as baixas temperaturas que se verificam em (…) no Inverno, e depois, perante à actual crise de Covid 19, deixou de se deslocar à freguesia para acautelar a sua família, sucedendo que em 19 de Maio de 2020 ali voltou, tendo, porém, sido inexplicavelmente surpreendido com o inusitado corte de fornecimento de água e retirada do contador, esclarecendo não ter recebido qualquer pré-aviso.
Mais alegou que em 05.05.2017 solicitou a alteração da morada, razão pela qual desconhece porque motivo a Requerida continua a querer notificá-lo em morada diversa e que os pré-avisos não foram enviados para a nova morada, sendo certo que caso tivessem sido enviados para a morada certa teria invocado a prescrição, como ora invoca.
Sustentou ainda que no dia 19 de Maio reclamou, solicitando a máxima urgência face aos cuidados de higiene inerentes à conjuntura do Covid 19 e que apenas em 12 de Junho a Requerida veio responder, dizendo não ser aplicável a Lei 7/2020.
Acrescentou que a lei não exclui qualquer cidadão, mesmo com dívidas existentes, sendo que não lhe foi dada a possibilidade de celebrar acordo de pagamento para regularizar a sua situação. E que apesar de ter manifestado a sua disponibilidade para regularizar a sua divida, a Requerida não permitiu o restabelecimento do serviço, entendendo que quaisquer que sejam as razoes que a Requerida possa ter nada justifica que não se tenha acautelado com 20 dias de antecedência com pré-aviso adequado, e menos ainda fazer “ouvidos de mercador” perante os pedidos de regularização da divida.
Continuou, invocando que tal situação tem-lhe provocado gravíssimos problemas e prejuízos, obrigou à separação da família por falta de condições mesmo em circunstancias normais, porque se tornou impossível o uso da casa de banho e da confecção de refeições e o lavar da roupa, entendendo ser de grupo de risco nas actuais circunstâncias pandémicas, em virtude de já ter 55 anos aumentando o grave e sério risco para a sua saúde, mais acrescentando que a atitude da Requerida, além dos prejuízos que provoca pela falta de água, põe em risco a vida e a segurança do Requerente e da sua família, ao não respeitar a imperatividade da Lei.
Conclui o seu arrazoado dizendo que a Requerida se recusa a restabelecer o fornecimento, ao mesmo tempo que continua a debitar novas mensalidades sem qualquer tipo de contraprestação e, bem assim, que não está em causa apenas a sua saúde e da sua família, mas a de toda a comunidade onde se inserem.
Tendo os autos sido conclusos à Mmª Juíza a quo foi proferida decisão de indeferimento liminar com o seguinte dispositivo:
Decisão:
Nestes termos, por manifestamente improcedente, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 590.º, n.º 1 e 226.º, n.º 4, alínea b), do CPC:
- Indefere-se liminarmente o procedimento cautelar requerido.
- Custas pelo requerente – cfr. art.º 539.º do CPC.
Valor do procedimento – € 2.000,01.
Notifique.”
*
Inconformado com a decisão, veio o Requerente interpor recurso de apelação da mesma para este Tribunal da Relação de Évora, alinhando as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES:
I. A matéria de facto provada conduzia a decisão a favor da procedência do pedido do Requerente face ao pedido de alteração de morada não assumida pelo Requerido que arrastou a nulidade do pré-aviso de corte, imperativo face ao regime do artº 5º da Lei 23/96, que se demonstra que foi feita para morada desactualizada – motivo que levou ao Requerente não só não a receber como ignorar o seu conteúdo, e cuja desconsideração levaria à condenação do Requerido a esse título peticionado e demais consequências legais;
II. O pré-aviso feito pela requerida em 26 de Novembro de 2019 continha facturas prescritas aquando do corte de água de 28 de Janeiro de 2020 e jamais foi notificada para a nova morada alterada em 05-05-2017 pelo que é nula e sem qualquer efeito;
III. A sentença limitou-se a ignorar a alteração de morada ao afirmar que dirigida a uma mandatária, não vinculava a requerida ao arrepio do artº 258º do CC – o que suscita nulidade da sentença face às alíneas c) e d) do artigo 615º do NCPC!
IV. Logo a omissão de aplicação de lei, em circunstâncias em que é feita prova documental da alteração da morada logo o poder é vinculado mas conclui precisamente o contrário – com a inerente omissão de pronúncia – o que suscita nulidade da sentença face às alíneas b), c) e d) do artigo 615º do NCPC!
V. O requerente requereu ao requerido a celebração de Plano de Pagamentos ao abrigo da Lei 7/2020, 10.04 e este literalmente nem respondeu ao arrepio do previsto no artº 5º da Lei 23/96.
VI. A sentença literalmente confirma o silêncio do requerido desatendendo o regime automático da lei 7/2020 10.04 a todas as dívidas após 20 de Março de 2020 das outras dívidas que deveriam ser regularizadas por Plano de Pagamentos para beneficiar do seu regime – o que suscita nulidade da sentença face às alíneas b), c) e d) do artigo 615º do NCPC!
VII. A douta sentença entende o contrário suscitando uma intolerável discriminação e uma incompreensível inconstitucionalidade bem como violação do Direito Internacional rececionado ao discriminar claramente cidadãos protegidos e cidadãos não protegidos pela lei 7/2020, 10.04 – o que suscita nulidade da sentença face às alíneas b), c) e d) do artigo 615º do NCPC!
VIII. Além do efeito pérfido do entendimento da douta sentença acabar por proteger uma fatura emitida pelo requerido da 2ª metade de Janeiro até à primeira metade de Fevereiro e com data de vencimento a 27 de Março logo dentro da previsão da lei 7/2020, 10.04 o que é aberrante considerar que a lei visa proteger credores... o que é inconstitucional ao violar o princípio da igualdade artº 13º da CRP – o que suscita nulidade da sentença face às alíneas b), c) e d) do artigo 615º do NCPC!
IX. Além da Água é um direito, liberdade e garantia fora do catálogo mas a raiz dos outros como o direito à vida, direito à saúde, ao ambiente e qualidade de vida – o que suscita nulidade da sentença face à sua desconsideração como “prejuízo reparável” face à alíneas b), do artigo 615º do NCPC e inconstitucionalidade por violação artº 204º CRP!
X. E depois a sentença remete-se a um total obscurantismo especulativo em considerar o escritório de advogado do requerente como inqualificavelmente como uma sua 2ª habitação sem ter qualquer base fáctica para semelhante ilação quando está registado como tal na Ordem dos Advogados e no próprio Citius – o que suscita nulidade da sentença face à alínea b), do artigo 615º do NCPC e inconstitucionalidade por violação artº 204º CRP!
XI. Acresce que posição idêntica que já tínhamos confrontado com o pedido de apoio judiciário, insistindo a ilustre magistrada na entrega do requerimento por link eletrónico da Segurança Social ora com a sua entrega pessoal – pese embora não haver link electrónico e a própria lei indicar que a entrega pessoal nos casos excecionais a regulamentar.
XII. Pelo que é notório que toma posição pessoal e altera a lei em conformidade ou as chamadas condições sinépicas da decisão como Menezes Cordeiro chama – o que viola a lei…
A sentença conclui ainda:
XIII. - que o Requerente não fez o pagamento logo não existe a probabilidade séria do direito – mesmo depois da sentença ter ignorado a alteração da morada e mesmo do aviso de pré-corte ter sido notificado para morada errada – não tem o direito de aceder ao direito, liberdade e garantia de usufruir da água nem a sua esposa nem filhos no mesmo molde dos outros cidadãos mesmo nas circunstâncias excepcionais impostos pelo Covid 19;
XIV. - mesmo ter requerido o Plano de Pagamentos e o requerido ter ilegalmente negado com o silêncio;
XV. Sendo claro o perigo de lesão cfr. já descrito no contexto atual de pandemia sobretudo quando agora é inevitável uma segunda vaga e o perigo em que se traduz a privação em operações de simples higiene pessoal e da sua família e para a própria comunidade como é do domínio público em (…) vai agora neste preciso momento no segundo surto com 82 cidadãos brasileiros em isolamento social.
Pelo que o perigo que impende sobre a sua saúde e da sua família é real e atual!
XVI. Mas a sentença conclui pelo contrário...
XVII. Isto sem esquecer a irrisoriedade do hipotético prejuízo desproporcional para o requerido como a fatura em anexo doc. 1 representa no total de € 8,69...
XVIII. Nos autos constatamos uma inclinação a proteger notoriamente a requerida mesmo sendo notório a sua incapacidade para gerir o vencimento das faturas bem como as alterações de morada ora respondendo com o silêncio perante o que a lei obriga a informar previamente cfr. artº 5º da lei 23/96, não concedendo sequer resposta ao pedido de plano de pagamentos… e a sentença claramente privilegiar a requerida já para não falar do sucedido com o apoio judiciário, sendo inevitável suscitar a quebra de imparcialidade da ilustre sra. Magistrada.
XIX. Ora face ao exposto a Sentença deve ser revogada face às nulidades que padece, salvo o devido respeito por melhor entendimento, devendo ser decretada a requerida providência cautelar com dispensa de citação e inversão do contencioso face à evidência do peticionado e da urgência dos direitos, liberdades e garantia em causa que urge acautelar em contexto de prevenção de saúde individual e familiar bem como, por inerência, de saúde pública!
Termos em que nos melhores de direito que nos que farão objecto do Douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a Sentença Recorrida, em conformidade com o alegado e fundamentado.
*
O recurso foi admitido na 1ª Instância como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O recurso é o próprio e foi correctamente admitido quanto ao modo de subida e efeito fixado.
Na sequência de baixa à primeira instância ficou expresso que a Requerida não deveria ser ouvida antes de eventual decretamento da providência (artigo 641º, nº 7, parte final, do Código de Processo Civil).
Corridos os Vistos urge apreciar e decidir.
*
II – AS QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugado com o artigo 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que tange à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que as questões a apreciar e decidir respeitam ao seguinte:
a)Quebra de imparcialidade;
b)Nulidades de sentença;
c)Reapreciação de mérito.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade com interesse decorre do teor do relatório do presente acórdão.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Iniciemos então este segmento do acórdão com a apreciação da questão objecto do recurso definida supra sob a alínea a).
Refere o Apelante nas suas conclusões recursivas mormente no ponto XVIII das mesmas “quebra de imparcialidade” por parte da Srª Juíza do Tribunal a quo, ou seja, pretende colocar em causa a garantia/dever de imparcialidade da mesma na apreciação dos autos ora em recurso.
Justifica o Apelante esse desiderato invocando essencialmente o seguinte, que ora relembramos realçando em itálico:
Nos autos constatamos uma inclinação a proteger notoriamente a requerida mesmo sendo notório a sua incapacidade para gerir o vencimento das faturas bem como as alterações de morada ora respondendo com o silêncio perante o que a lei obriga a informar previamente cfr. artº 5º da lei 23/96, não concedendo sequer resposta ao pedido de plano de pagamentos… e a sentença claramente privilegiar a requerida já para não falar do sucedido com o apoio judiciário, sendo inevitável suscitar a quebra de imparcialidade da ilustre sra. Magistrada.”
Tal remete-nos para a figura da suspeição relativa a magistrado, regulada nos artigos 119º a 126º do CPC.
Ora, dispõe o artigo 122º do dito diploma legal, que regula o modo de dedução e processamento da suspeição, o seguinte:
“1 - O recusante indica com precisão os fundamentos da suspeição e, autuado o requerimento por apenso, é este concluso ao juiz recusado para responder; a falta de resposta ou de impugnação dos factos alegados importa confissão destes.
2 - Não havendo diligências instrutórias a efetuar, o juiz manda logo desapensar o processo do incidente e remetê-lo ao presidente da Relação; no caso contrário, o processo é concluso ao juiz substituto, que ordena a produção das provas oferecidas e, finda esta, a remessa do processo; não são admitidas diligências por carta.
3 - É aplicável a este caso o disposto nos artigos 292º a 295º.
4 - A parte contrária ao recusante pode intervir no incidente como assistente.”
A suspeição apresentada contra magistrado consubstancia assim um incidente, inserível na tramitação de uma causa, que corre por apenso ao processo principal.
Estando em causa o magistrado judicial titular dos autos na primeira instância resulta claro do normativo acima transcrito que o incidente tem de ser suscitado, processado com respeito pelo contraditório e instruído naquela sendo só após o cumprimento desses passos processuais enviado ao Presidente do competente Tribunal da Relação para decisão.
Conhece, pois, regulamentação específica, sem embargo de lhe ser aplicável, designadamente quanto a formalidades do requerimento inicial e da resposta, bem como a prazos para esta última e número admissível de testemunhas, as disposições gerais atinentes aos incidentes da instância.
Ora, no caso em apreço, o Apelante limitou-se a aflorar a questão, que designou como de “quebra de imparcialidade”, em sede das alegações do recurso que interpôs para este Tribunal da Relação da decisão de indeferimento liminar, ou seja não suscitou autonomamente qualquer incidente de suspeição em obediência aos requisitos prevenidos no normativo acima indicado (artigo 122º do CPC), além de que não precisou factualmente qualquer fundamento para a alegada quebra de imparcialidade da Mmª Juíza do Tribunal a quo, limitando-se a referir generalidades, carecidas de substancialidade, traduzíveis em expressões como “inclinação a proteger notoriamente a requerida”, bem como “a sentença privilegiar claramente a requerida”.
Na verdade, não foram alegados factos tendentes a enquadrar um motivo “sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade” do julgador tal como se prevê no artigo 120º, nº 1, do CPC.
Como bem referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 2020, 2ª edição atualizada, pág. 156), a propósito da oportunidade do incidente da suspeição dirigida a magistrado:
“Ocorre, porém, que, com uma frequência que não encontra objetivas razões, acaba por ser desencadeado e substancialmente apoiado apenas numa divergência quanto ao que foi decidido; noutros casos, intui-se o objetivo de “atemorizar” o juiz.
Na maior parte dos casos, como a experiência o comprova, tal iniciativa não encontra justificação alguma, constituindo apenas um expediente que é usado quando faltam argumentos de ordem substancial.”
In casu, como acima já se expôs, a suspeição não foi, desde logo, suscitada autonomamente como incidente processual na primeira instância, sendo certo que ainda que o tivesse sido carecia em nosso entendimento de alegação de factualidade concreta apta a ilustrar fundamento sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador.
Destarte, improcede esta primeira questão objecto do recurso.
Resolvida a questão inicial apreciemos a questão seguinte elencada sob a alínea b):
Decorre do artigo 615º, nº 1, do CPC, que:
“É nula a sentença quando:
[ …]
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;”
Segundo a lição do Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140), só a falta absoluta de motivação constitui nulidade, sendo que a insuficiência ou a mediocridade da motivação afecta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade.
Por seu turno, em douto Parecer (Col. Jur., 1995, 1º - 7), o Prof. Calvão da Silva defendeu que na sentença o tribunal tem de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, sob pena de se verificar falta de fundamentação de direito.
Jurisprudencialmente podemos a este respeito destacar, entre outros, os acórdãos do STJ de 05/05/2005, Proc.º 05B839; de 21/12/2005, Proc.º 05B2287; de 18/05/2006, Proc.º 06B1441; de 19/12/2006, Proc.º 06B3791; de 10/04/2008, Proc.º 08B396, de 06/07/2017, Processo n.º 121/11.4TVLSB.L1.S1, todos acessíveis para consulta in www.dgsi.net, reportando-se os indicados, à excepção do último, ao artigo 668º, nº 1, b), do CPC anterior ao actual CPC, cuja redacção, todavia, é idêntica à do actual artigo 615º, nº 1, b).
Neste último aresto do STJ, de 2017, refere-se a propósito da nulidade prevista no supra citado normativo que:
“A nulidade apontada tem correspondência com o nº 3 do artigo 607º do mesmo C.P. Civil que impõe ao juiz o dever de, na parte motivatória da sentença, «descriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes…».
Significa tal que não basta que o Juiz decida a questão que lhe é colocada, tornando-se indispensável que refira as razões que o levaram a ditar aquela decisão e não outra de sentido diferente; torna-se necessário que demonstre que a solução encontrada é legal e justa”.
Revertendo à situação concreta verificamos que o Apelante considera ser nula a decisão recorrida face à previsão da alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC, com base no que refere nos pontos IV., VI., VII., VIII., IX. e X. das conclusões recursivas.
Porém, não lhe assiste razão!
Na verdade, é o próprio Apelante que em todas as situações referidas nos aludidos pontos deixa claros os pressupostos de facto e de direito, bem como a solução adoptada relativamente a cada um deles constantes da decisão recorrida, precisamente para demonstrar a sua discordância e rebate-los como o faz.
Nesse conspecto naturalmente que não se pode enquadrar a questão na falta de especificação de fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão, mas antes em eventual erro de julgamento por parte do Tribunal recorrido.
Ademais, basta uma simples leitura da decisão recorrida para se concluir que a mesma não enferma da nulidade expressa na alínea b), do nº 1, do artigo 615º, do CPC, devendo esclarecer-se que por se ter decidido indeferir liminarmente precisamente com o fundamento de que os factos alegados pelo Apelante no requerimento inicial conduziriam sempre à improcedência do procedimento cautelar ainda que submetidos a prova por não revelarem sequer a séria probabilidade de existência do direito reclamado, naturalmente que bastava a invocação, ou a referência, a esses factos alegados, que foi sendo feita na decisão recorrida, bem como o enquadramento jurídico que se entendeu adequado, também claramente perceptível na dita decisão.
A propósito de nulidades de sentença dispõe ainda o artigo 615º, nº 1, do CPC, que a sentença é também nula quando:
[…]
“c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Relativamente a esta alínea c) diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, na obra acima citada em anotação ao referido artigo (pág. 763), que:
“A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente”.
Sufragando esta perspectiva surge-nos o acórdão proferido pelo STJ em 03/02/2011 (Proc. 1045/04.7TBALQ.L1.S1), acessível para consulta em www.dgsi.pt, o qual refere que:
“A nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão supõe um vicio intrínseco à sua própria lógica, traduzido em a fundamentação em que se apoia não poder suportar o sentido da decisão que vem a ser proferida”.
Na mesma linha de orientação (adoptada, aliás, pacificamente noutros arestos do mesmo Tribunal), destacamos, ainda, o acórdão proferido pelo STJ de 14/06/2011 (Processo n.º 214/10.5YRLSB.S1), acessível in “Sumários”, 2011, pág. 501, ao sustentar que:
“A nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão, na acepção da existência de uma contradição real entre os fundamentos e a respectiva parte dispositiva, acontece quando os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam, necessariamente , a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, mas não já quando se verifica uma errada subsunção dos factos à norma jurídica aplicável, nem, tão pouco, quando se verifica uma errada interpretação da mesma, situações essas que configuram antes um erro de julgamento”.
Regressando de novo ao caso concreto verificamos que o Apelante entende verificar-se o vício de nulidade da decisão recorrida fundada na previsão da alínea c) do nº1, do artigo 615º, do CPC, com base no que refere nos pontos IV., VI., VII. e VIII. das conclusões recursivas.
Todavia, também neste caso não lhe assiste qualquer razão!
Na verdade, além de confundir omissão de pronúncia com violação do chamado silogismo judiciário (cfr. ponto IV), verifica-se com mediana clareza do sustentado nos outros pontos que o Apelante pretende discordar do modo como o Tribunal a quo interpretou alguns pontos de facto por si alegados e bem assim com o entendimento que aquele Tribunal abraçou no que tange a algumas normas aplicadas aos ditos factos, o que, mais uma vez, podendo revelar um eventual erro de julgamento, não consubstancia a causa de nulidade de sentença invocada, a que ora nos reportamos, sendo certo que no tocante a ininteligibilidade da decisão devido a ambiguidade ou obscuridade da mesma nada foi expressamente invocado.
Nesta sede de nulidades de sentença é ainda “nula a sentença quando:
[…]
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Relativamente a esta nulidade prevista na alínea d) do aludido artigo 615º do CPC, concretamente a chamada “Omissão de pronúncia”, a que alude a primeira parte da dita alínea, diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, ainda na obra acima citada, em anotação ao mencionado artigo (pág. 764), que a omissão de pronúncia afere-se “seja quanto às questões suscitadas, seja quanto à apreciação de alguma pretensão.”
E acrescentam ainda que “[…] o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e, bem assim, as questões de conhecimento oficioso”, não obrigando, todavia, “[…] a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com «questões» […].”
Neste sentido saliente-se, entre vários outros, os acórdãos do STJ proferidos no Proc. n.º 555/2002, de 27/03/2014, Proc. n.º 487/08.3TBVFX.L1.S1 de 30/06/2011 e Proc. n.º 842/04.8TBTMR.C1.S1 de 08/02/2011, todos acessíveis para consulta em www.dgsi.pt.
Neste último aresto de 08/02/2011 decidiu-se de forma bastante clara que:
“Não há que confundir as questões colocadas pelas partes com os argumentos ou razões que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões em determinado sentido: as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões…”. E acrescenta-se ainda no dito acórdão que: “Se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia”.
Por seu turno quanto ao chamado “Excesso de pronúncia”, prevenido na 2ª parte da supra identificada alínea d), os Autores supra citados, ainda na obra igualmente acima identificada (pág. 764), enquadram-no na “apreciação de questões de facto ou de direito que não tenham sido invocadas e que não sejam de conhecimento oficioso”.
Também na dimensão jurisprudencial existem ideias solidificadas quanto a esta nulidade.
De acordo com o acórdão do STJ de 04/03/2004 (Proc. 04B522, acessível para consulta in www.dgsi.pt), a nulidade por excesso de pronúncia “reporta-se a questões e não a motivações, ou seja, apenas se reporta a pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes centralizaram o litígio, incluindo as excepções“, o que afasta naturalmente “… a sua argumentação em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos” (vide acórdão do mesmo STJ de 05/02/2004, Proc. 03B3809, acessível para consulta na mesma base de dados).
Já ao nível dos Tribunais de Relação e na mesma linha orientadora destacamos o acórdão da Relação de Guimarães de 24/01/2012 (Proc. 3782/09, acessível para consulta em www.dgsi.pt), particularmente no excerto em que refere que:
“Não padece de nulidade, por excesso de pronúncia[…], a sentença que, com fundamentos jurídicos diversos dos invocados pelas partes, decide das questões que lhe são colocadas“, pelo que será de considerar verificado tal excesso de pronúncia “relativamente a questões não conexionadas com a causa de pedir, estando o juiz limitado pelo princípio do dispositivo, que exprime a liberdade com que as partes definem o objeto do litigio, não podendo condenar-se além do pedido, nem considerar causa de pedir que não tenha sido invocada“ (vide acórdão da mesma Relação de Guimarães de 10/09/2013, Proc. 4211/11, acessível para consulta in www.dgsi.pt).
Dito de outro modo, “haverá excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido” (Acórdão da Relação Coimbra de 09/04/2013, Proc. 621/09, acessível para consulta in www.dgsi.pt).
Baixando novamente ao caso sub judice, verificamos que o Apelante entende padecer a decisão recorrida da nulidade de sentença fundada na previsão da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, com base, também, no que refere nos pontos IV., VI., VII. e VIII. das conclusões recursivas.
E mais uma vez carece de razão!
Desde logo apenas no que respeita ao ponto IV encontramos alusão a “omissão de pronúncia”, sendo certo que nada do que o Apelante sustenta em qualquer desse e dos outros pontos se mostra enquadrável no vicio de sentença prevenido, seja na 1ª parte, seja na 2ª parte, da aludida alínea d), atento o entendimento doutrinal e jurisprudencial supra descrito.
Na realidade, repete-se, face ao alegado pelo Apelante a existir algum problema na decisão recorrida a mesma centrar-se-á num possível erro de julgamento uma vez que, como bem decorre do exposto pelo próprio Apelante, o Tribunal recorrido pronunciou-se sobre as questões colocadas por si, não concordando, porém, aquele com a solução dada às mesmas pelo referido Tribunal seja no concernente à invocada alteração da morada do Apelante, seja no que tange ao momento temporal a relevar quanto às dívidas daquele respeitantes ao pagamento do consumo de água.
Termos em que se julga improcedente a segunda questão objecto do recurso respeitante às invocadas nulidades de sentença.

Prosseguindo, impõe-se apreciar agora a terceira questão objecto do recurso, respeitante já à reapreciação do mérito, concretamente à (in)verificação do requisito essencial do fumus boni iuris.
O Apelante insurge-se nos pontos XIII a XV das suas conclusões recursivas quanto ao facto de o Tribunal recorrido ter entendido não se verificar a probabilidade séria da existência do direito invocado por si.
Decorre do artigo 362º do CPC atinente ao “Âmbito das providências cautelares não especificadas”, o seguinte:
“1- Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
2- O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
[…]”
Por seu turno resulta do artigo 368º do mesmo Código, epigrafado “Deferimento e substituição da providência”, que:
“1- A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.
2- A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar. […]”
Diz-nos Marco Carvalho Gonçalves (“Providências Cautelares”, Almedina, 3ª edição, 2017), que:
“A concessão de uma providência cautelar depende da formulação de um juízo de probabilidade acerca da verificação do direito invocado pelo requerente e da existência de uma situação de perigo que exija uma tutela provisória e imediata”, acrescentando ainda o referido Autor em jeito de complemento que “[…], o decretamento de uma providência cautelar não especificada, enquanto medida destinada à tutela provisória de um direito e à sua efetivação prática[…], só é admissível quando se verifique o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos processuais: fumus boni iuris, periculum in mora, interesse processual e proporcionalidade da providência” (pág. 167).
Poderemos sustentar, sem margem para rebuços, que os dois primeiros requisitos apontados são os requisitos essenciais, tanto mais que o terceiro configura um pressuposto processual comum às várias demandas dirigidas a tribunal, também não raro conhecido por interesse em agir, enquanto o último configura um requisito de natureza negativa que constitui uma manifestação do principio da proporcionalidade (ver Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, Almedina, 4ª edição, 2019, pág. 40-41).
Para António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa em comentário ao artigo 362º do CPC (obra cit., pág. 438), no âmbito do procedimento cautelar comum constituem requisitos de concessão da tutela cautelar além do fumus boni iuris e periculum in mora a “adequação da providência à situação de lesão iminente e a inviabilidade de encontrar essa tutela através de procedimentos cautelares especificados.”
Sobre os ditos dois requisitos essenciais nenhuma dúvida subsiste de que enquanto fundamentos do pedido da providência têm que ser objecto de alegação por parte do respectivo Requerente através da enunciação de factos concretos que os ilustrem, assim como de prova ainda que sumária (summaria cognitio).
Assim, no que tange designadamente ao requisito da séria probabilidade de existência do direito ou interesse juridicamente tutelado, ou seja o fumus boni iuris, apesar de ser suficiente um juízo de aparência do direito, conforme se alcança das normas constantes dos artigos 365º, nº 1, 368º, nº 1, 388º, nº 2, 392º, nº 1 e 405º, nº 1 , todos do CPC, “por razões que se prendem com os limites intrínsecos decorrentes da sumariedade da cognição cautelar” (Marco Gonçalves , ob. cit., pág. 179), a verdade é que, como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa em anotação ao artigo 368º do CPC (obra cit., pág. 448), “o pressuposto da probabilidade séria supera os meros indícios, mas fica aquém do nível de convicção necessário para decretar a inversão do contencioso (art. 369º, nº 1), e ainda mais longe do que se revela necessário para o reconhecimento do direito na ação principal“.
Exige-se, como tal, um juízo de verosimilhança (ver António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil III, Almedina, 2010, pág. 91), por oposição ao juízo de certeza ínsito a qualquer acção definitiva (sobre este aspecto e pelo seu relevo ver ainda o Acórdão do STJ de 23/01/86, relator Lima Cluny, in BMJ, pág. 376).

Aqui chegados é tempo de regressar aos aspectos factuais do caso concreto.
Na decisão recorrida entendeu-se não ter ficado demonstrada a probabilidade séria da existência do direito invocado pelo Apelante.
Esse direito assenta no fornecimento de água à casa do Apelante sita em (…), Benavente, a cargo da Requerida, por virtude de, no entendimento do Apelante, se mostrar aplicável ao caso o regime excepcional e temporário previsto na Lei 7/2020 de 10/04.
Não tem, todavia, o Apelante qualquer razão no que sustenta sendo que a decisão recorrida o explica de forma clara e com correção.
Com efeito, resulta dos autos e mormente da petição inicial e documentos que a instruíram, juntos pelo próprio Requerente, que o corte de fornecimento de água à morada de (…) por parte da Requerida, com quem o Apelante outorgara o necessário contrato de prestação de serviço, levado a cabo na data de 28/01/2020, teve na sua base o não pagamento pelo Apelante de quatro facturas devidas pela prestação desse fornecimento de água, todas vencidas anteriormente a 25/11/2019, no montante total de € 1.508,95, situação que motivou o envio pela Requerida ao mesmo de uma comunicação de pré-aviso de corte datada de 26/11/2019, no caso do referido montante não ser satisfeito até à data limite de pagamento correspondente a 24/12/2019 (cfr. ficheiro de imagem identificado como “Doc. 4” do processo virtual, e fls. 10 , 11 e 12 do processo físico).
Nas suas alegações recursivas o Apelante insurge-se contra o facto de o pré-aviso de corte de fornecimento ter sido enviado para uma “morada errada”, pois já informara a Requerida da alteração de morada em 05/05/2017, entendendo, consequentemente, não ter sido devidamente notificado da possibilidade de tal corte.
Mas não lhe assiste razão!
Na verdade, resulta de elementos documentais fornecidos pelo próprio Apelante com a petição inicial que o e-mail enviado a 05/05/2017 pelo mesmo dando conhecimento de ter domicilio fixado em Lisboa (e não em …), não foi dirigido à Requerida, mas sim a uma Srª Advogada que iria representar a Requerida num procedimento de injunção a mover contra o ora Apelante, por falta de pagamento de facturas atinentes ao abastecimento de água, saneamento de águas residuais e recolha de resíduos sólidos urbanos respeitantes ao prédio daquele sito em (…), visando a sua citação para tal injunção nesse domicilio Lisboeta (cfr. ficheiro de imagem identificado como “Doc. 2” do processo virtual e fls. 15-vº do processo físico).
Como tal devemos considerar, como bem o fez o Tribunal a quo na decisão recorrida, que o teor do e-mail de 05/05/2017 não consubstancia uma válida comunicação de alteração de morada para efeito de recebimento de ulteriores comunicações ou informações da Requerida uma vez que não foi remetido directamente aos competentes serviços da mesma para a recepção de tal alteração, como se impunha tivesse sido.
Assim, justificava-se que o pré-aviso de corte de abastecimento ou fornecimento de água por parte da Requerida fosse dirigido, como foi, para o local de consumo sito em (…) sendo certo que não obstante o Apelante mencionar na petição inicial ter tido conhecimento do corte apenas em 19/05/2020, ressalta dos autos que tal comunicação foi recepcionada de forma regular na morada de (…) correspondente à casa do ora Apelante na data de 27/11/2017, conforme o atesta o registo dos CTT, de onde consta “objeto entregue”, pelas “16.19”, que integra documentação junta pelo próprio Apelante com a petição inicial e que não foi devidamente colocada em causa (cfr. o supra mencionado ficheiro de imagem identificado como “Doc. 4” com a petição inicial e fls. 11-vº do processo físico).
Por conseguinte, resulta dos autos seriamente indiciado que o ora Apelante foi devidamente informado do pré aviso de corte de fornecimento de água na sua casa de (…) em 27/11/2019, corte esse que veio a ser efectuado em 28/01/2020 por virtude de o Apelante não ter efectuado em prazo a regularização das quantias em dívida para com a Requerida que constituíam condição para a não efectivação do dito corte.

Vejamos de seguida a questão respeitante à aplicabilidade ao caso concreto da legislação excepcional e temporária “Covid 19”, igualmente levantada pelo Apelante nas suas conclusões recursivas.
Neste domínio releva desde logo a Lei 7/2020, de 10/04 de 2020, que no seu artigo 4º preceitua o seguinte:
“1- Durante o estado de emergência e no mês subsequente, não é permitida a suspensão do fornecimento dos seguintes serviços essenciais, previstos no nº 2 do artigo 1º da Lei nº 23/96, de 26 de Julho:
a) Serviço de fornecimento de água;
[…]
4- No caso de existirem valores em dívida relativos ao fornecimento dos serviços referidos no nº 1, deve ser elaborado um plano de pagamento.”
Por seu turno, no artigo 12º do dito diploma, epigrafado “Produção de efeitos”, ficou previsto no seu nº 1 que:
1 - O disposto no artigo 4.º da presente lei produz efeitos relativamente a todos os pagamentos de serviços que sejam devidos a partir de dia 20 de março de 2020.”

Já da previsão do artigo 13º do dito diploma legal resulta claro que o mesmo entrou em vigor no dia 11/04/2020.

A apontada Lei veio a ser alterada pela Lei 18/2020, de 29/05, que, por força do seu artigo 3º, entrou em vigor no dia 30/05/2020, tendo o artigo 4º da Lei 7/2020 passado a ter a seguinte redacção:

“1 - Não é permitida, até 30 de setembro de 2020, a suspensão do fornecimento dos seguintes serviços essenciais, previstos no n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho:”

Tal abrangeu, designadamente, o serviço de fornecimento de água.

Por seu turno, o artigo 12º não sofreu qualquer alteração, sendo certo que até ao momento mais nenhuma alteração foi introduzida no que tange aos artigos acima enunciados.

Ora, como bem alcançou a decisão recorrida, de acordo com os elementos indiciariamente revelados nos autos através do próprio arrazoado da petição inicial e documentação anexada à mesma, já supra apontada neste acórdão, verifica-se, sem margem para rebuços, que as disposições constantes do regime excepcional e temporário consagrado nos diplomas legais acima referidos para fazer face à pandemia provocada pelo vírus SARS – COV 2 e consequente infecção provocada pelo mesmo conhecida por doença COVID 19, não são aplicáveis à situação concreta em análise.

Na verdade, as quantias em dívida devidas pelo Apelante relativamente ao fornecimento de água à sua casa de (…) que motivaram o aviso de corte de abastecimento reportam-se a quatro facturas todas elas já vencidas em 25/11/2019, cujo pagamento integral, a ter ocorrido, o que não sucedeu, até à data limite de 24/12/2019 teria evitado o corte de abastecimento de água no dito imóvel, que, assim, veio a ser efectuado em 28/01/2020.

Ressalta à vista que qualquer uma das mencionadas datas é, desde logo, anterior à data do decretamento em Portugal do estado de emergência, o qual resultou do decreto presidencial n.º 14-A/2030, de 18 de Março de 2020, situação que teve o seu início, com duração (inicial), de 15 dias, no dia seguinte, ou seja em 19 de Março de 2020, tal como, por maioria de razão, é também anterior ao dia 20 de Março de 2020.

Por outro lado, recorde-se, a não permissão de suspensão do fornecimento de água que ainda se encontra em vigor até ao próximo dia 30 de Setembro deste ano só produz efeitos no que respeita a todos os pagamentos de serviços devidos a partir de 20 de março de 2020, o que significa que no caso concreto atendendo à data de vencimento das facturas em dívida pelo Apelante e à data do corte de abastecimento de água ao seu imóvel de (…), nenhuma obrigação impendia sobre a Requerida de acordar com aquele um plano de pagamento da quantia em dívida atinente às ditas facturas.

Apenas quanto a montantes facturados vencidos a partir de 20 de Março e que se venham a vencer até 30 de Setembro de 2020 se coloca imperativamente essa obrigação de planeamento e impedimento de suspensão ou corte de fornecimento de água.

O Apelante alude, ainda, nas suas conclusões recursivas à figura da prescrição das quantias relativas às facturas cuja falta de pagamento motivou o aviso de corte de fornecimento de água.

Porém, também aqui carece de fundamento o que refere, desde logo por falta de suficiente concretização quanto ao pretendido, pois não identifica devidamente quais as facturas que teria em mente estarem já prescritas em 28/01/2020.

Seja como for, resultando dos autos, como já vimos, sérios indícios de que a comunicação de pré-aviso de corte de fornecimento enviada pela Requerida foi devidamente recepcionada na morada do Apelante em (…) em 27/11/2019 e, bem assim, que dessa missiva se extrai com mediana clareza que as facturas vencidas e não pagas respeitam ao ano de 2019, sempre cairia pela base a tese alvitrada pelo Apelante face ao disposto no artigo 310º, g), do Código Civil, ou mesmo do artigo 317º, b), 2ª parte, do mesmo diploma legal.

Do exposto resulta, desde logo, não se encontrar preenchido no caso concreto o requisito respeitante à séria probabilidade da existência do direito invocado pelo Apelante, uma vez que se indicia fortemente pela concertação de factos alegados pelo próprio Apelante na petição inicial, com elementos probatórios documentais por si fornecidos com aquela petição, que o corte de fornecimento de água ao Apelante efectuado na sua habitação sita em (…) foi justificado pelo não cumprimento pontual de dever (pagamento de despesas facturadas relativas aos fornecimentos), por parte do Apelante, não tendo a Requerida violado as normas legais excepcionais e temporárias acima elencadas, por não serem aplicáveis ao caso concreto.

Ora, dependendo a procedência do procedimento cautelar comum da verificação cumulativa de requisitos, mesmo a provar-se o segundo requisito essencial ainda assim tal seria insuficiente para decretar o procedimento.

De todo o modo sempre se rematará este acórdão referindo que ao contrário do expresso em sede de alegações e conclusões recursivas pelo Apelante, não é verosímil considerar a existência de perigo de lesão e prejuízos irreparáveis quando, como bem se refere na decisão recorrida, é o próprio Apelante a referir que o seu domicílio desde pelo menos o ano de 2017 se situa em Lisboa (identificado, ademais, no recente pedido de apoio judiciário apresentado junto da Segurança Social), daí se inferindo que a casa de (…) consubstanciará, pelo menos desde aquele ano, uma segunda habitação do Apelante e sua família mostrando-se assim insuficientemente indiciado o invocado receio de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito que, relembre-se, nada tem a ver com a saúde individual ou saúde pública, nem sequer com o elemento água em si mesmo considerado, mas antes e tão só com o fornecimento ou abastecimento daquela ao seu imóvel de (…), direito cujo reconhecimento e protecção o próprio Apelante colocou em crise ao não proceder ao pagamento pontual de montantes facturados pela Requerida respeitantes precisamente ao serviço de abastecimento disponibilizado por aquela.

Para encerrar, de referir que não se vislumbram na decisão recorrida terem sido aplicadas quaisquer normas geradoras de inconstitucionalidade, designadamente por violação do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, sendo certo que o próprio Apelante tão pouco refere em que se consubstanciariam essas violações pois não explicita devidamente em que medida as normas aplicadas na decisão recorrida contrariam o princípio constitucional de igualdade limitando-se a aludir de forma conclusiva a essa hipotética violação.

Destarte, improcedem “in totum” as conclusões recursivas do Apelante, sendo de confirmar a douta decisão recorrida.
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V- DECISÃO
Termos em que, face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso de apelação interposto pelo Apelante (…) e, consequentemente:
1- Confirmar a decisão recorrida;
2- Fixar as custas integralmente a cargo do Apelante.
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Évora, 24/09/2020
(José António Moita, relator – Assinatura electrónica certificada no canto superior esquerdo da primeira folha do acórdão).
(Silva Rato, 1º Adjunto – Votou o acórdão em conformidade por comunicação à distância, nos termos do disposto no artigo 15º-A do Dec.-Lei nº 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3º do Dec.-Lei nº 20/2020, de 01/05).
(Mata Ribeiro, 2ºAdjunto – Votou o acórdão em conformidade por comunicação à distância, nos termos do disposto no artigo 15º-A do Dec.-Lei nº 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3º do Dec.-Lei nº 20/2020, de 01/05).