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DIREITO DE PROPRIEDADE
IMÓVEL
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
MASSA INSOLVENTE
Sumário
I) Visando a autora o reconhecimento do direito de propriedade sobre imóvel da ré insolvente e em liquidação e uma vez decorrido o prazo das reclamações sobre a insolvente, os meios processuais legalmente previstos para o exercício de tal direito são, consoante os casos, o previsto no artigo 144.º do CIRE (no caso de o direito à restituição ou separação ser exercido nos 5 dias posteriores à apreensão de bens) ou o previsto no artigo 146.º do CIRE - ação especial para verificação ulterior de créditos ou de outros direitos, como o direito à separação ou restituição de bens (a todo o tempo). II) Verifica-se erro na forma de processo quando o pedido formulado pela parte corresponde ao objecto específico de uma acção com processo especial e o autor deduz o seu pedido através de uma acção com processo comum. III) Considerando as particularidades de tramitação da ação a que se refere o artigo 146.º do CIRE - que corre termos por apenso aos autos de insolvência, é proposta contra “a massa insolvente, os credores e o devedor”, nela tem lugar “a citação dos credores por meio de edital eletrónico publicado no portal Citius, considerando-se aqueles citados decorridos cinco dias após a data da sua publicação”, “proposta a acção, a secretaria, oficiosamente, lavra termo no processo principal da insolvência no qual identifica a acção apensa e o reclamante e reproduz o pedido, o que equivale a termo de protesto” e a instância pode extinguir-se, nos termos do n.º 4 do artigo 146.º do CIRE –que não teve lugar no presente processo, sem que tenha tido lugar a intervenção dos credores da insolvente ou o cumprimento dos preceitos referentes ao termo, não se mostra admissível a convolação da forma de processo comum para a aludida forma de processo especial. IV) O direito de ação não impede a existência de requisitos ou de pressupostos processuais a observar, onde se insere a aferição da propriedade do meio processual utilizado, conforme decorre do artigo 193.º do CPC. V) Não se encontram verificados os requisitos para a ocorrência de conflito de competência enquanto as decisões proferidas forem suscetíveis de recurso (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC).
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório:
JF…, identificada nos autos, instaurou a presente ação declarativa contra MASSA INSOLVENTE DE SOLUDEM – EMPREITEIROS, LDA. também identificada nos autos, pedindo seja proferida sentença que reconheça a A. como dona e legitima proprietária da fração “A”, correspondente à … esquerda –artesanato, sta na Rua … … Amadora, descrita na CRP da Amadora sob a descrição …-A/… e com o artigo matricial de n. … da freguesia da Damaia.
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Alegou, em suma, ser única sucessora de JC…, falecido em 2017, que, por contrato de 05-09-1991, prometeu comprar ao Crédito Predial Português, o prédio urbano designado por lote …-8 sito na Rua … à rua …, freguesia da Damaia, concelho da Amadora, descrito na CRP da Amadora sob o n. …- com o n …/… e inscritos na matriz predial urbana …, composto pelas letras “A” e “B”, correspondentes ás … direita e esquerda respetivamente, destinados a armazém e artesanato. Em 21/5/96, foi inscrita a favor do comprador JR… a fração “B” tendo ficado pendente, por razões que desconhece, a transmissão da fração A. e o registo de propriedade a seu favor. Mas, desde a assinatura do contrato com o Crédito Predial Português em 1991, este transferiu a posse de ambas as lojas para JC…, passando a ter o gozo pleno de ambas e a atuar, pelo menos desde 1996, como seu legítimo proprietário à vista de todos, sendo a sua posse contínua, publica e pacífica, sem oposição de quem quer que fosse, pagando a parte correspondente da fração nas diversas obras do prédio e na quota condominial. Tendo decorrido mais de 20 anos, desde que JR…, passou a exercer com “animus” de proprietário, a posse em nome próprio do referido prédio urbano, adquiriu a propriedade por usucapião.
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A ré contestou pugnando pela improcedência da ação.
Invocou como questão prévia ter requerido, em 14-09-2019, no processo de insolvência, a apensação dos presentes autos àqueles.
Alegou, em suma, que o contrato promessa não é suscetível de, por si só, transmitir a posse ao promitente-comprador, sendo que, se através de um acordo paralelo à promessa, este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus mas não adquire o animus possidendi, ficando na situação de mero detentor ou possuidor precário, pelo que, a autora sabia que não podia atuar como proprietário. A autora é mera detentora, não tendo adquirido a posse e não houve inversão nesse sentido, não tendo logrado provar o animus correspondente ao exercício de um direito de propriedade, que é apenas compatível com os direitos que lhe advém do contrato celebrado, não conduz à aquisição por usucapião.
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Por requerimento de 11-10-2019, a ré veio dar conta nos autos de que a requerida apensação dos presentes autos ao processo de insolvência nº. …/…TYLSB foi indeferida, considerando que a forma processual utilizada é inadequada para a autora fazer valer os seus direitos.
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Na sequência de despacho judicial a tanto dirigido (de 12-11-2019), a autora foi notificada para, querendo, se pronunciar sobre a questão do erro da forma de processo suscitada pela ré.
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Por requerimento de 25-11-2019, a autora invocou que precludiu o direito da ré invocar excepções posteriormente à reconvenção deduzida, concluindo, de todo o modo, inexistir erro na forma de processo.
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Em 08-01-2020 foi proferida decisão, nomeadamente, com termos seguintes: “A ré na sua contestação alega ter requerido, no âmbito do processo de insolvência, a apensação dos presentes autos aos de insolvência, contudo, e atendendo a ainda não haver despacho que recaia sobre aquela sua pretensão e por mera cautela de patrocínio, vem por ora apresentar a sua contestação. Após a contestação, a ré, em requerimento autónomo, de 11-10-2019, alega que tendo sido requerida a apensação dos presentes autos ao processo de insolvência, essa sua pretensão veio, na presente data, indeferida, por, alegadamente, não se incluir no regime insolvencial relativo a bens apreendidos à ordem da massa Insolvente. Concorda com o despacho proferidos nos autos de insolvência para o qual remete e dá por reproduzido e alega que a forma de processo utilizada não é adequada. Na resposta, a autora vem dizer que: A exceção de erro na forma do processo foi invocada para além do prazo da contestação, pelo que não deve ser atendida, ao que acresce que, o requerimento é inepto por falta de fundamentação da exceção invocada. Mantém que o processo é adequado. Do despacho proferido no âmbito do processo de Insolvência nº. …/…TYLSB – Refª. 390660336 – para o qual a ré remete, no aludido requerimento de 11-10-2019, pode ler-se: “Requerim. ref.ª 30592944 (fls. 92) – Não obstante não ser facultada cópia dos articulados da alegada ação de reivindicação por usucapião, a questão suscitada afigura-se-nos simples e de resposta imediata com a conclusão de indeferimento. Para assim concluir vejamos o regime insolvencial relativo a bens apreendidos à ordem da massa insolvente. De harmonia com o preceituado no artigo 141º, nº 1, al. c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) “As disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis: - À reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos () dos quais o insolvente não tenha plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insuscetíveis de apreensão para a massa”. Normação que tem como pressuposto a apreensão indevida de bens para a massa, entre os quais, se preveem os bens pertença de terceiro. Vale por dizer que regula o exercício do direito de fazer separar da massa esses bens por todo aquele que se sinta lesado na sua posse ou propriedade pela apreensão levada a cabo. Como se refere no recente acórdão tirado na RE a Évora, 16 de Maio de 2019, e acessível no website www.dgsi.pt, visa-se a tutela de terceiros que tenham visto bens seus indevidamente apreendidos para a massa, sendo certo que a procedência da reclamação será apreciada de acordo com as regras de direito substantivo aplicáveis em cada caso, regulando-se em tal preceito tão só as condições e termos do exercício do direito à separação. Assim, ocorrendo a pretensão de terceiros em reivindicar o seu imóvel o processo próprio ao seu dispor para o efeito é o processo especial de separação de bens, previsto nos artigos 141º, 144º ou, a todo o tempo, 146º do CIRE, consoante o momento em que ocorreu a alegada violação do direito de propriedade decorrente do ato do administrador da insolvência ao proceder à sua apreensão e subsequente liquidação. Deste modo, temos por pacífico o entendimento extraído no ac. da RL de 19/10/2006, acessível no supracitado website, no sentido de que: “Todo aquele que se sinta lesado na sua posse ou propriedade pela apreensão de bens efetivada pelo administrador da insolvência na sequência de sentença declaratória de insolvência que decretou a apreensão dos bens do insolvente terá de recorrer aos procedimentos para restituição e separação de bens previstos no artigo 141.º e seguintes do mesmo diploma, que correm por apenso ao processo de insolvência”. Como referido, o direito à separação ou à restituição de bens pode ser feito valer a todo o tempo (artigo 146º, nº 2, do CIRE) e, exercido depois de findo o prazo das reclamações e para além dos cinco dias subsequentes à apreensão (artigo 144º, nº 1), por meio de ação proposta contra a massa os credores e devedores ao abrigo do nº1 daquele inciso. Ação para separação e restituição de bens tem como fundamento a apreensão de bens para a insolvência que se revela ilícita porquanto, designadamente, estes são da exclusiva propriedade de terceiro e que consiste numa verdadeira ação autónoma, muito embora corra por apenso ao processo de insolvência, por força do artº 148º do CIRE. No mais, e ainda que os elementos facultados pela senhora administradora da insolvência não permitam ajuizar a questão em apreço, nem para isso tem este tribunal competência, não será de afastar a possibilidade dos pretensos proprietários e ali autores terem usado de uma forma processual inadequada para fazer valer a sua pretensão. A verificação de erro na forma do processo numa determinada ação é causa de nulidade deste e, não obstante acarretar apenas a anulação dos atos que não possam ser aproveitados e a prática dos que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime da forma estabelecida por lei, cf. nº 1 do art.º 193.º do Código de Processo Civil (CPC), no caso em referência o vicio encerrará aspetos formais e substanciais de todo desajustados ao tipo processual que deva ser seguido. Termos em que indefiro a requerida apensação da ação de reivindicação que, alegadamente, tem por finalidade o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), e a restituição da coisa (condemnatio).” Apreciando: Da tempestividade da exceção do erro na forma do processo: Dispõe o artigo 573º do CPC: “1 - Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado. 2 - Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.” O erro na forma do processo é do conhecimento oficioso – cf. art. 196º, 1º segmento do CPC. Pelo que, se integra na previsão do nº 2 do art. 573º do CPC. Deste modo, a exceção de erro na forma do processo foi invocada em tempo. Da falta de fundamentação: A ré remete para o despacho proferido nos autos de insolvência e dá por reproduzida a respetiva fundamentação, que a aproveita à questão dos autos. Assim, não assiste razão à autora. O requerimento, deste modo, mostra-se fundamentado, através do qual se extraem as razões pelas quais se considera que o processo não é adequado. Não se verifica nenhuma das circunstâncias a que alude o artigo 186º, nº 2 do CPC, não se verificando, assim, a aludida ineptidão do requerimento onde é invocada a exceção de erro na forma do processo. Também o tribunal concorda com o explanado naquele despacho proferido nos autos de insolvência. Destaca-se o seguinte: “(…) temos por pacífico o entendimento extraído no ac. da RL de 19/10/2006, acessível no supracitado website, no sentido de que: “Todo aquele que se sinta lesado na sua posse ou propriedade pela apreensão de bens efetivada pelo administrador da insolvência na sequência de sentença declaratória de insolvência que decretou a apreensão dos bens do insolvente terá de recorrer aos procedimentos para restituição e separação de bens previstos no artigo 141.º e seguintes do mesmo diploma, que correm por apenso ao processo de insolvência”. Assim, o processo usado nos presentes autos não é o próprio. Teria a autora de recorrer aos procedimentos para restituição e separação de bens previstos no artigo 141.º e seguintes Verifica-se erro na forma do processo. A ação para separação e restituição de bens segue uma especifica tramitação, v.g. quanto à citação, termo e efeitos do termo, e corre por apenso aos autos de insolvência - cf. art. 146º do CIRE. O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei (cf. art. 193º do CPC). No caso em análise, entende-se não haver possibilidade de aproveitar os atos praticados e convolar a presente ação comum, porquanto, se trata de um processo com uma especial tramitação, que não permite a convolação, e que corre por apenso à insolvência – cf. art. 146º do CIRE. Assim, não se verifica a possibilidade de convolação. Em face do expendido, impõe-se a anulação de todo o processado. E, estando-se na presença de uma exceção dilatória insuprível, conduz à absolvição da ré da instância. Destarte, e ao abrigo do disposto nos arts. 193°, n° 1, 576°, 577º, alínea b) e 578°, todos do C.P.C., absolve-se a ré da instância, o que assim se decide. Custas pela autora - art. 527°, nºs 1 e 2, do C.P.C . Fixa-se à ação o valor de € 49.785,53€ (cf. art. 302º, nº 1 do CPC). Registe e notifique (…).”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela apela a autora formulando as seguintes conclusões: “1- O tribunal do Comércio indeferiu a apensação aos autos de insolvência, por entender não existir fundamento legal para o efeito. 2- O presente tribunal decidiu que deveria ser naquele processo e ao abrigo das disposições legais cabíveis que a pretensão da Apelante deveria ser julgada; ou seja em direta contradição com o lá decidido quanto à apensação. 3- Verifica-se isso sim um conflito negativo de competência, cuja verificação e resolução deverá ser efetuada nos termos dos arts 109º a 114º do CPC, sob pena de ficar em terra de ninguém. 4- O pedido de reconhecimento do direito de propriedade determina que a presente ação se defina como constitutiva e portanto o processo é próprio e adequado, não se verificando a exceção de erro na forma. 5- A presente decisão nega justiça. A douta sentença, violou os arts 2º als 1 e 2 do C.P.C”.
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A ré apresentou contra-alegações concluindo pela manutenção da decisão recorrida, considerando que o processo usado nos presentes autos não é o próprio, sendo que, a recorrente teria de se socorrer dos procedimentos para restituição e separação de bens previstos no artigo 141.º e ss. do CIRE, pelo que se verifica erro na forma de processo.
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Admitido liminarmente o requerimento recursório e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
* 2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as únicas questões a decidir são as seguintes:
A) Saber se ocorreu erro na forma de processo, o que pressupõe apreciar se o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre imóvel, requerido contra massa insolvente, deve ter lugar no processo de insolvência ou em ação autónoma?
B) Saber ocorre conflito de competência?
* 3. Enquadramento de facto:
Constituem elementos processuais relevantes para a apreciação do recurso os constantes do relatório.
* 4. Enquadramento jurídico:
* A) Saber se ocorreu erro na forma de processo, o que pressupõe apreciar se o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre imóvel, requerido contra massa insolvente, deve ter lugar no processo de insolvência ou em ação autónoma?
Cumpre apreciar, desde logo, se o Tribunal recorrido decidiu bem ao considerar que a presente demanda deveria ter tido lugar em ação própria a processar por apenso ao processo de insolvência da ré e ao considerar, por isso, que a presente demanda determinou o vício de erro na forma de processo ou se, ao invés, tal vício não ocorre.
Na presente ação, a autora invoca a sua posição de única sucessora de JC…, falecido em 2017.
Invocou que JC… foi outorgante em contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 05-09-1991 com o Crédito Predial Português.
Juntou tal contrato-promessa aos autos, aí figurando como promitente-comprador, relativamente à fração “A” do prédio urbano designado por lote …-8 sito na Rua … à rua …, freguesia da Damaia, concelho da Amadora, descrito na CRP da Amadora sob o n. … - com o n …/… e inscrito na matriz predial urbana ….
Invocou a autora que o Crédito Predial Português tinha adquirido o imóvel em hasta pública, por processo execução contra a proprietária Electro Radio Miradouro, hoje a ré, em liquidação (sendo que, conforme resulta da certidão permanente junta aos autos, foi declarada a insolvência da empresa SOLUDEM-EMPREITEIROS, LDA. em 13-10-2011, decisão que transitou em julgado em 05-12-2011).
Pela presente ação, a autora pretende o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel relativamente à ré.
A autora - não dando os autos conta de que tenha peticionado o cumprimento do contrato-promessa, nos termos do artigo 106.º do CIRE - vem invocar a posse sobre o imóvel e a aquisição do mesmo por usucapião.
Suscitada a questão da apensação dos presentes autos ao processo de insolvência, o Tribunal de Comércio - Proc. nº …/…TYLSB-H – veio a indeferir a mesma.
No referido despacho de indeferimento, cita-se o artigo 141.º, n.º 1, al. c) do CIRE, menciona-se que o preceito tem como pressuposto a apreensão indevida de bens (de terceiro) para a massa insolvente, refere-se que a norma regula o exercício do direito de fazer separar da massa esses bens por todo aquele que se sinta lesado na sua posse ou propriedade pela apreensão levada a cabo e conclui-se que, ocorrendo a pretensão de terceiros em reivindicar o seu imóvel, o processo próprio ao seu dispor para o efeito é o processo especial de separação de bens, previsto nos artigos 141º, 144º ou, a todo o tempo, 146º do CIRE, consoante o momento em que ocorreu a alegada violação do direito de propriedade decorrente do ato do administrador da insolvência ao proceder à sua apreensão e subsequente liquidação. Mais se salienta em tal despacho - citando-se o ac. da RL de 19/10/2006 – que: “Todo aquele que se sinta lesado na sua posse ou propriedade pela apreensão de bens efetivada pelo administrador da insolvência na sequência de sentença declaratória de insolvência que decretou a apreensão dos bens do insolvente terá de recorrer aos procedimentos para restituição e separação de bens previstos no artigo 141.º e seguintes do mesmo diploma, que correm por apenso ao processo de insolvência”.
Concluiu o Tribunal de Comércio pela impossibilidade de aproveitamento dos presentes autos para seguirem os termos do artigo 146.º do CIRE, como processo de separação ou restituição de bens.
O Tribunal recorrido, acolhendo este entendimento, veio a julgar que “o processo usado nos presentes autos não é o próprio. Teria a autora de recorrer aos procedimentos para restituição e separação de bens previstos no artigo 141.º e seguintes. Verifica-se erro na forma do processo. A ação para separação e restituição de bens segue uma especifica tramitação, v.g. quanto à citação, termo e efeitos do termo, e corre por apenso aos autos de insolvência - cf. art. 146º do CIRE. O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei (cf. art. 193º do CPC). No caso em análise, entende-se não haver possibilidade de aproveitar os atos praticados e convolar a presente ação comum, porquanto, se trata de um processo com uma especial tramitação, que não permite a convolação, e que corre por apenso à insolvência – cf. art. 146º do CIRE. Assim, não se verifica a possibilidade de convolação. Em face do expendido, impõe-se a anulação de todo o processado”.
Ora, conforme decorre do artigo 141.º do CIRE, as disposições do incidente de reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis:
a) À reclamação e verificação do direito de restituição, a seus donos, dos bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente fosse mero possuidor em nome alheio;
b) À reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns;
c) À reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa.
A aplicabilidade das disposições relativas à reclamação e verificação de créditos tem lugar com as adaptações seguintes constantes do artigo 141.º, n.º 2, do CIRE, além das outras que se mostrem necessárias.
Por seu turno, estatui o artigo 144.º do CIRE – com a epigrafe “Restituição ou separação de bens apreendidos tardiamente” que: “1 - No caso de serem apreendidos bens para a massa, depois de findo o prazo fixado para as reclamações, é ainda permitido exercer o direito de restituição ou separação desses bens nos cinco dias posteriores à apreensão, por meio de requerimento, apensado ao processo principal. 2 - Citados em seguida os credores, por éditos de 10 dias, o devedor e o administrador da insolvência, para contestarem dentro dos 5 dias imediatos, seguem-se os termos do processo de verificação de créditos, com as adaptações necessárias, designadamente as constantes do n.º 2 do artigo 141.º”.
Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, de acordo com o disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CIRE.
Assim, como dá nota Filipa Afonso Aguiar (“Incidente de restituição e separação de bens – regime jurídico e análise jurisprudencial”, in Julgar, n.º 31, 2017, pp. 126-127): “Existem três momentos temporais para o exercício do direito à separação e restituição de bens, que se norteiam pela fase processual em que o requerente toma conhecimento da necessidade do exercício do seu direito, previstos nos artigos 141.º, 144.º e 146.º do CIRE. Esta opção legislativa de simplificação processual consta do Preâmbulo do CIRE e efectivamente veio agilizar a tramitação, bem como o exercício desse direito. Assim, querendo exercer-se este direito, e ainda estando a decorrer o período da reclamação de créditos, pode apresentar-se uma reclamação ao administrador da insolvência, aplicando-se, então, o processo relativo à reclamação e verificação de créditos, com as adaptações que se mostrem necessárias (artigo 141.º do CIRE). No caso de se querer exercer o direito quando existiu apreensão tardia dos bens, ou seja, quando esta se realizou depois de findo o prazo fixado para a apresentação das reclamações, este pode exercer -se por meio de requerimento, apensado ao processo principal de insolvência, desde que este requerimento seja feito nos cinco dias posteriores à apreensão (artigo 144.º do CIRE). Pode, ainda, exercer -se aquele direito através de acção proposta, a todo o tempo, contra a massa insolvente, os credores e o devedor, em verificação ulterior, lavrando -se termo de protesto no processo principal de insolvência (artigo 146.º do CIRE). Estes são os únicos meios admitidos, pois não é possível reagir contra uma apropriação indevida por meio de embargos de terceiro nos termos do artigo 351.º do CPC. Até porque, nos termos do n.º 2 do artigo 351.º do CPC, a lei exclui expressamente “a dedução de embargos relativamente à apreensão de bens realizada no processo especial de recuperação de empresa e falência”. Parece-nos, ainda, que, dentro do espírito da lei, além de estar vedado ao lesado o recurso aos embargos de terceiro, está também vedado o recurso a qualquer outro procedimento que vise o mesmo fim (a restituição provisória da posse dos bens apreendidos pelo administrador da insolvência), por contrariarem o espírito do legislador e o fim que este pretende atingir com aquele artigo 351.º do CPC. A lei permite, assim, àqueles que pela apreensão se sintam lesados na sua posse ou propriedade obter a restituição ou a separação de bens que tenham sido indevidamente apreendidos para a massa insolvente por via do procedimento a que aludem os artigos que supra indicamos, “defendendo-se e acautelando-se, dessa forma, os direitos do reclamante e o procedimento de apreensão para a massa insolvente e sua repercussão na fase da liquidação”.
O direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo – cfr. artigo 146.º, n.º 2, do CIRE – e, entre outros, os acórdãos do STJ de 16-04-1996 (CJ, Ano IV, tomo 2, p. 17) e de 05-06-2018 (P.º 783/15.3T8BGC-F.G1.S1, rel. FONSECA RAMOS), da Relação de Évora de 16-05-2019 (Pº 2489/18.2T8STB.E1, rel. CONCEIÇÃO FERREIRA) e da Relação do Porto de 14-07-2020 (Processo 3579/19.0T8VNG-C.P1, rel. JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA). “As ações de verificação ulterior de créditos e de outros direitos correm sempre por apenso aos autos de insolvência” (assim, Catarina Serra; Lições de Direito da Insolvência; Almedina, 2019, p. 289). “Este processo consiste numa verdadeira ação autónoma intentada simultaneamente contra a massa insolvente, os credores (os quais são, no entanto, apenas citados por meio de edital eletrónico publicado no portal Citius, considerando-se a citação efetuada decorridos 5 dias após a data da sua publicação) e o devedor (art. 146.º, n.º 1)“ (assim, Maria do Rosário Epifânio; Manual de Direito da Insolvência; Almedina, 7.ª ed., 2019, pp. 298-299).
Ora, conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-03-2019 (Pº 7829/17.9T8PRT.P1, rel. ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA) “verifica-se o erro na forma do processo quando o pedido formulado pela parte corresponde ao objecto específico de uma acção com processo especial e o autor deduz o seu pedido através de uma acção com processo comum”.
Por outro lado, conforme se concluiu na decisão recorrida, não se verifica que ocorra possibilidade de convolação da forma de processo em apreço para a ação especial prevista no artigo 146.º do CIRE – não havendo lugar à consideração de mecanismos de adequação formal e de gestão processual (a que se reportam os artigos 6.º e 547.º do CPC) atenta a disciplina específica de tal ação para restituição ou separação de bens da massa insolvente, desde logo, na citação dos réus, em particular, os credores da insolvente.
Na realidade, considerando que a ação especial do artigo 146.º do CIRE, que corre termos por apenso aos autos de insolvência, está sujeita a tramitação particular – designadamente, a ação é proposta contra “a massa insolvente, os credores e o devedor”, tem lugar “a citação dos credores por meio de edital eletrónico publicado no portal Citius, considerando-se aqueles citados decorridos cinco dias após a data da sua publicação” e “proposta a acção, a secretaria, oficiosamente, lavra termo no processo principal da insolvência no qual identifica a acção apensa e o reclamante e reproduz o pedido, o que equivale a termo de protesto”, sendo que, a instância pode extinguir-se, nos termos do n.º 4 do artigo 146.º do CIRE – tramitação que não teve lugar, não tendo, ademais, tido lugar a intervenção dos credores da insolvente, nem o cumprimento dos preceitos referentes ao termo, não se mostra admissível a convolação da forma de processo comum para a aludida forma de processo especial.
Pode sintetizar-se que:
a) Visando a autora o reconhecimento do direito de propriedade sobre imóvel da ré insolvente e em liquidação e uma vez decorrido o prazo das reclamações sobre a insolvente, os meios processuais legalmente previstos para o exercício de tal direito são, consoante os casos, o previsto no artigo 144.º do CIRE (no caso de o direito à restituição ou separação ser exercido nos 5 dias posteriores à apreensão de bens) ou o previsto no artigo 146.º do CIRE - ação especial para verificação ulterior de créditos ou de outros direitos, como o direito à separação ou restituição de bens (a todo o tempo);
b) Verifica-se erro na forma de processo quando o pedido formulado pela parte corresponde ao objecto específico de uma acção com processo especial e o autor deduz o seu pedido através de uma acção com processo comum;
c) Considerando as particularidades de tramitação da ação a que se refere o artigo 146.º do CIRE - que corre termos por apenso aos autos de insolvência, é proposta contra “a massa insolvente, os credores e o devedor”, tem lugar “a citação dos credores por meio de edital eletrónico publicado no portal Citius, considerando-se aqueles citados decorridos cinco dias após a data da sua publicação”, “proposta a acção, a secretaria, oficiosamente, lavra termo no processo principal da insolvência no qual identifica a acção apensa e o reclamante e reproduz o pedido, o que equivale a termo de protesto” e a instância pode extinguir-se, nos termos do n.º 4 do artigo 146.º do CIRE –que não teve lugar no presente processo, sem que tenha tido lugar a intervenção dos credores da insolvente ou o cumprimento dos preceitos referentes ao termo, não se mostra admissível a convolação da forma de processo comum para a aludida forma de processo especial.
A decisão recorrida não merece, pois, censura.
E a mesma não é denegadora de Justiça.
Na realidade, o direito à tutela jurisdicional efetiva é um direito fundamental, com assento constitucional nos artigos 20.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa, respeitando a todos os cidadãos (carácter de universalidade), respondendo a uma exigência social constante (permanência) e referente às necessidades básicas da pessoa que o Estado se compromete solenemente a atender (fundamentalidade) (cfr. José de Melo Alexandrino; Direitos Fundamentais, Introdução Geral, Principia, 2007, p. 20 e ss.).
A garantia do acesso ao direito e aos tribunais não admite a consagração, no plano legal, de exigências que consubstanciem condicionantes processuais desprovidas de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessivas, não sendo admissível o estabelecimento de ónus desinseridos da teleologia própria da tramitação processual e cuja consagração não prossiga quaisquer interesses dignos de tutela – cfr. acórdão do TC n.º 384/98 (rel. FERNANDA PALMA).
Contudo, como evidenciam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2010, p. 439) “o princípio pro actione, assim afirmado, não impede, naturalmente, a existência de requisitos ou de pressupostos processuais” a observar, onde se insere a aferição da propriedade do meio processual utilizado, afigurando-se – prima facie e em abstrato - possível a tutela jurisdicional da pretensão da autora, por via da interposição da ação – a tramitar por apenso ao processo de insolvência – a que se reporta o artigo 146.º do CIRE, resultando, consequentemente, intocado o aludido princípio, decorrente da garantia constitucional de acesso ao direito e aos Tribunais.
Certo é que, como se viu, a presente ação não é aquela a que se reporta este preceito legal (sendo de salientar que o Tribunal de Comércio indeferiu a apensação dos presentes autos, pelos motivos supra expostos, mas não referenciou, de algum modo, ser inadmissível a tutela da pretensão da ora autora, por via do recurso ao mecanismo do artigo 146.º do CIRE).
Não se mostram, pois, violados os dispositivos dos n.ºs. 1 e 2 do artigo 2.º do CPC.
* B) Saber ocorre conflito de competência?
Entende a recorrente que ocorre direta contradição entre o decidido no Tribunal de Comércio e no Tribunal recorrido, concluindo ocorrer conflito negativo de competência, “cuja verificação e resolução deverá ser efetuada nos termos dos arts 109º a 114º do CPC, sob pena de ficar em terra de ninguém”.
Sobre este ponto há apenas que referir três notas:
1.ª Não se mostram – atentas as considerações supra expendidas – inconciliáveis as duas decisões proferidas: Delas resulta que a ação própria para o fim pretendido pela autora é a exercitação do meio processual a que se reporta o artigo 146.º do CIRE;
2.ª Não houve declaração de incompetência no âmbito da questão incidental decidida no Tribunal de Comércio – a apensação dos presentes autos àqueles;
3.ª Não ocorre trânsito em julgado das duas decisões proferidas.
Inexistem, pois, verificados os requisitos para a ocorrência de conflito de competência, sendo certo que, conforme decorre expressamente do n.º 3 do artigo 109.º do CPC, “não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência”.
Ora, desde logo, da decisão recorrida foi interposto recurso que só agora foi objeto de julgamento.
*
Em conformidade com o exposto, improcedendo todas as conclusões da apelante, a apelação deverá ser julgada improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Nos termos do disposto nos n.ºs. 1 e 2 do artigo 527.º do CPC, a responsabilidade tributária atinente, incidirá sobre a apelante/recorrente, atento o seu integral decaimento.
* 5. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2.ª Secção Cível, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em manter a decisão recorrida, proferida em 08-01-2020, nos seus precisos termos.
Custas pela recorrente.
Notifique e registe.
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Lisboa, 8 de outubro de 2020.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes