1. Celebrado um contrato de permuta mediante o qual uma das partes se obrigou a entregar à outra, como contrapartida da aquisição de um lote de terreno para construção, três frações prediais e correspondentes às letras “H”, “L” e “O” do prédio a constituir em propriedade horizontal e a edificar nessa parcela de terreno, o direito de propriedade do terreno transfere-se imediatamente para o adquirente, por efeito do contrato de permuta, enquanto a aquisição da propriedade dessas frações só ocorre no momento da constituição da propriedade horizontal, porque é esse título que as autonomiza e lhes confere autonomia jurídica.
2. Tendo o adquirente do terreno constituído hipoteca para garantia do financiamento concedido para essa construção, face ao princípio da indivisibilidade (arts. 691.º, n.º 1, al. c), e 696.º, do C. Civil), essa hipoteca incide inicialmente sobre a parcela de terreno adquirida e estende-se posteriormente à implantação física do imóvel no terreno e às respetivas frações prediais aquando a sua constituição em propriedade horizontal.
3. A aquisição da propriedade das frações em data posterior à constituição da hipoteca e no momento da constituição da propriedade horizontal não paralisa os efeitos jurídicos desse direito real de garantia, o qual beneficia de registo anterior e prevalece sobre aquele direito de propriedade, ou seja, tendo sido registada em primeiro lugar a hipoteca, sendo validamente constituída a favor do credor hipotecário, este pode opor aos adquirentes das frações o direito de prioridade que lhe advém do registo (art. 6.º, n.º 1, do C. R. Predial).
4. Por força do direito de sequela que assiste ao credor hipotecário, a hipoteca mantém-se inerente, grudada ao imóvel e subsequentes frações prediais, apesar destas passarem para a esfera jurídica de terceiro que não é o devedor. A hipoteca garante a obrigação enquanto esta se não extinguir, quem quer que seja o devedor ou o titular do imóvel onerado.
5. Para que se verifique abuso de direito é necessário que o titular do direito, nas circunstâncias concretas do seu exercício, o exerça de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito – art.º 334.º do C. Civil. (sumário do relator)
2. Da escritura aludida em 1) resulta: "os primeiros outorgantes (ora Executados) cedem à sociedade representada do segundo outorgante (J…), que aceita, no valor de trezentos e trinta mil euros o prédio urbano composto de lote de terreno para construção, designado por lote dezoito, com a área de trezentos e vinte vírgula cinquenta metros quadrados, denominado "P…", ( ... ) no qual irá ser edificado pela sociedade representada do segundo um prédio urbano suscetível de ser constituído em regime de propriedade horizontal, cuja construção foi licenciada ( ... ) ".
3. Mais resulta que, em troca, a J… "cede aos primeiros outorgantes, E… e mulher M…, que aceitam (…) as três seguintes frações autónomas, a integrar no referido prédio urbano a construir, e a identificar na futura propriedade horizontal, respetivamente, pelas letras "H", "L" e "O ", no valor atribuído a cada uma de cento e dez mil euros: a)Segundo Andar Frente, para habitação, tipo T-Três; b)Terceiro Andar Frente , para habitação, tipo T-Três; e c) Quarto Andar Frente, para habitação, tipo T-Três”.
Todas estas frações (…), farão parte do edifício a construir no lote de terreno objeto da presente permuta pela dita sociedade (…), que irá, oportunamente, submeter o referido prédio ao regime de propriedade horizontal”.
4. Ficou ainda consignado que "os bens são permutados livres de quaisquer ónus ou encargos".
5. Da escritura supra aludida em 1 consta, igualmente: “O referido prédio urbano é cedido à sociedade “J… Sociedade de Construções, Lda.” em plena propriedade, pelo que a mesma poderá sobre ele constituir quaisquer hipotecas”.
6. Encontra-se registada, a favor da “J… Sociedade de Construções, Lda.” pela AP.2853 de 2010/09/27, a aquisição por permuta, do prédio aludido em 2), que se encontra registado na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior sob o n.º ….
7. Após a celebração da escritura supra aludida, a J…, a fim de aí promover a construção que veio efetivamente a erigir, celebrou com a Embargada escrito designado de “contrato de abertura de crédito com hipoteca, com a identificação interna n.º PT 00350696009249591”.
8. Para garantia do escrito designado em 7), a sociedade J… constituiu a favor da Embargada hipoteca sobre o imóvel aludido em 2).
9. A referida hipoteca foi registada pela Ap. 577 de 2010/10/21.
10. Foi constituída e registada a propriedade horizontal relativa ao prédio urbano aludido em 2) pela AP. 945/ de 2011/12/15, com as seguintes frações: A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q.
11. Os Executados procederam ao registo da propriedade das frações aludidas em 3) ( “H”, “L” e “O”), pela Ap.668 de 2012/01/20.
12. Aquando da inscrição da aquisição das frações penhoradas nos presentes autos, os Embargantes não procederam ao cancelamento das hipotecas que incidem sobre as frações autónomas aludidas em 3) e 11).
13. A sociedade J… foi declarada insolvente no âmbito do processo 55/12.5TBRMR corre termos no 11 da Secção de Comércio da Instância Central de Santarém do Tribunal da Comarca de Santarém.
14. A Embargada reclamou créditos no âmbito do processo aludido em 10, tendo já recebido a quantia de € 398.050,00.
15. A embargada tinha conhecimento da permuta.
Após a celebração desse negócio, a Sociedade “J…”, a fim de proceder à construção do imóvel, celebrou com a Embargada/recorrente um “contrato de abertura de crédito com hipoteca”, constituindo a seu favor uma hipoteca sobre o mencionado lote de terreno, que registou na C. R. Predial pela Ap. 577 de 2010/10/21.
A Sociedade “J…” construiu o edifício e registou a propriedade horizontal pela AP. 945/ de 2011/12/15, com as seguintes frações: A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q.
Os embargantes procederam ao registo da propriedade das frações “H”, “L” e “O”, pela Ap.668 de 2012/01/20, as quais foram penhoradas na presente execução.
Perante esta situação, o tribunal a quo deu razão à pretensão dos embargantes, sustentando:
“(…) Atenta a factualidade assente, dúvidas não há de que as partes quiserem e celebraram contrato de permuta: os embargantes cedem a propriedade de um prédio urbano (lote de terreno) e, em troca, recebem 3 frações autónomas do prédio que aí se vier a construir.
…
Aqui chegados, não cremos que se possa retirar da declaração constante da escritura de permuta de que a sociedade J... estava autorizada a constituir quaisquer hipotecas sobre os bens adquiridos pelos Embargantes, mas apenas e só quanto ao bem por si adquirido.
A declaração de que: “O referido prédio urbano é cedido à sociedade “J… Sociedade de Construções, Lda.” em plena propriedade, pelo que a mesma poderá sobre ele constituir quaisquer hipotecas” não só se nos afigura irrelevante (se adquire a propriedade plena de um bem, naturalmente que o pode onerar), como, interpretando a vontade das partes, não nos suscita dúvidas que o que as partes quiseram declarar, e assim o fizeram, foi que a construtora poderia onerar o bem que adquiriu.
E que bem é esse?
Naturalmente que é o prédio urbano (lote de terreno) cuja propriedade adquiriu; o bem que lhe foi cedido e não outro, ou seja, não abrange tal declaração a possibilidade de onerar igualmente os bens que, em troca do que recebeu, deu.
Tal conclusão é consubstanciada pela circunstância de no contrato de permuta se ter feito expressamente constar que os bens permutados o eram livres de quaisquer ónus e encargos, bem como da circunstância de os Embargantes não terem tido qualquer intervenção no financiamento obtido junto da Embargante e de o próprio representante legal da Sociedade J… ter tentado excluir de forma expressa as frações permutadas da hipoteca.
A vontade das partes nunca foi a de autorizar ou pretender que a hipoteca abrangesse as frações autónomas permutadas, de tal circunstância está o Tribunal seguro.
Aqui chegados, concluímos desde logo que inexistindo autorização para a constituição de hipoteca quanto a bens de terceiro, sem a necessária autorização, não é a hipoteca constituída quanto às frações autónomas adquiridas pelos Embargantes válida (…).
Discorda a recorrente, por considerar, no essencial, que o facto de no contrato de permuta se referir expressamente que os bens permutados o eram livres de quaisquer ónus e encargos não lhe é oponível, pois “a hipoteca constituída por empresa construtora a favor de um banco, com vista a garantir o empréstimo concedido para a construção do prédio e fração permutada com o respetivo terreno, é válida e eficaz e prevalece sobre os registos posteriores a ela, não sendo oponível ao credor hipotecário, não interveniente no contrato de permuta, a cláusula determinante da cedência da fração predial no sentido de ser transmitida livre de quaisquer ónus ou encargo”, conforme jurisprudência que citou.
E a razão está inteiramente do seu lado, como sumariamente se tentará demonstrar, como tem vindo a ser decidido uniformemente pela nossa jurisprudência.
Resulta da factualidade apurada que embargantes e a Sociedade de Construções, Lda., celebraram um contrato de permuta, qualificação que não é questionada pelas partes.
Como refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, Vol. III, Contratos em Especial, 4.ª edição, Almedina, pág. 165, “A troca ou permuta consiste no contrato que tem por objeto a transmissão recíproca da propriedade de coisas ou outros direitos entre os contraentes”.
E sendo um contrato atípico, é-lhe aplicável essencialmente o regime do contrato de compra e venda, por força do art.º 939.º do C. Civil, desde que não sejam incompatíveis com o mesmo.
Como sublinha o Autor (ob. cit., pág. 166), trata-se de “um contrato consensual, uma vez que não se exige a tradição para que o contrato se constitua, antes pelo contrário, ambas as partes ficam obrigadas à entrega das coisas trocada (art.º 879.º, al. b), não se estando dessa forma perante um contrato real quoad constitutionem”
E acrescenta que a troca é um contrato de natureza obrigacional “na medida em que faz surgir a obrigação de entrega para as duas partes e real quoad effectum, uma vez que se transmite, por mero efeito do contrato, a propriedade dos bens trocados (art.º 879.º, al. a e 408.º/1 do C. Civil”.
Assim, com a celebração desse contrato é imediata a transferência da propriedade sobre ambos os bens, salvo nos casos de bens referidos no n.º2 do art.º 408.º, como é o caso de bens futuros.
Na verdade, se a permuta se referir a bens presentes e bens futuros (art.º 408.º, n.º 2, do CC), a transmissão da propriedade da coisa permutada continue a ter como causa o próprio contrato (de permuta), mas os efeitos podem ficar dependentes de um facto futuro, como a aquisição da coisa pelo alienante (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil, Anotado”, II, pág. 168).
Flui, pois, deste regime, que em caso de alienação de bens futuros, seja mediante contrato de compra e venda, seja por permuta, a transferência do direito de propriedade para o adquirente dá-se por mero efeito do próprio contrato, mas a transferência para o adquirente não ocorre imediatamente, como sucede quanto aos bens presentes, antes só ocorre quando a coisa for adquirida pelo alienante ou for determinada com o conhecimento de ambas as partes - arts. 408.º, n.º 2, 879.º, al. a), e 939.º do C. Civil.
Ora, se a permuta tiver por objeto um terreno por frações autónomas de edifício a construir nesse terreno, o direito de propriedade do terreno transfere-se imediatamente para o adquirente, por efeito do contrato de permuta, mas a transferência do direito de propriedade relativo às frações autónomas do edifício a construir (bens futuros) para os permutantes adquirentes, pese embora seja também um efeito desse contrato só se produz após a construção do edifício e com a constituição do regime da propriedade horizontal, que é o título que as individualiza e lhes confere autonomia jurídica (arts. 1417.º e 1418.º do Código Civil) – neste sentido o Acórdão do STJ de 8/10/2015, proc. n.º 6998/13.1TBBRG.S1 (João Camilo), e Acórdãos do T. Rel. de Coimbra, de 11/03/2014, proc. n.º 1483/11.9TBVIS.C1 (Carvalho Martins) e de 12/03/2013, proc. n.º 2458/11.3TBVIS.C1 (Francisco Caetano), disponíveis em www.dgsi.pt, entre outros.
Nesta conformidade, forçoso será concluir que, em 21/10/2010, a sociedade “J… Sociedade de Construções, Lda., proprietária do lote de terreno, tinha todo o direito de o onerar com a constituição de uma hipoteca, para garantir o financiamento bancário destinado à construção do edifício nesse lote de terreno, pois em 27 de setembro de 2010 ( data do contrato de permuta) adquiriu a propriedade plena desse terreno, pois como se escreveu no citado Acórdão do STJ, 8/10/2015, “ tais poderes se enquadram nos poderes de disposição do proprietário, conforme resulta do artigos 1305.º, 688.º. n.º 1, alínea a) e 715.º do Cód. Civil (neste sentido, relativamente a questões similares com as dos autos, cfr. os Acs. da R.P. de 07/09/2009, Proc. nº 2813/08.6TBPRD-A.P1 e de 09/02/2010, Proc. nº 4575/08.8TBMAI-A.P1, ambos publicados em www.dgsi.pt/jtrp)”.
E quanto à extensão da hipoteca às frações autónomas, na sequência da constituição da propriedade horizontal, em 15/12/2011, transcrevemos o que a propósito se escreveu no mencionado Acórdão do STJ de 8/10/2015, em caso idêntico ao dos presentes autos, que acompanhamos:
“Relativamente à extensão da hipoteca às frações autónomas, esta afigura-se-nos inequívoca perante o princípio da indivisibilidade da hipoteca aflorado no art. 696º do Cód. Civil (a hipoteca subsiste por inteiro sobre cada uma das partes que constituam ou em que se venha a dividir a coisa onerada), ainda que na escritura pública respetiva nenhuma menção tivesse sido feita a essa extensão.
E estender-se-ia, também, por força do disposto no art. 691º nº 1 al. c) do Cód. Civil.
Aliás, é jurisprudência pacífica (citada no já mencionado Ac. da R.P., de 07/09/2009, Proc. nº 2813/08.6TBPRD-A.P1) a que vem decidindo no sentido de que: “1 - Se há, para garantia de uma determinada dívida, uma hipoteca incidindo sobre um terreno para construção e se, sobre esse terreno, é construído um prédio em propriedade horizontal, há uma nova realidade predial que surge. 2 - Em tal caso, a hipoteca transfere-se para a nova realidade predial, e transfere-se por forma em que cada uma das frações garante a totalidade do crédito.” - Ac. STJ, de 12.02.2004, proc. 03B2831. No mesmo sentido, vejam-se, Ac. STJ, de 12.07.2005, proc. 05B2012; Ac. RL, de 12.10.2006, proc. 4943/2006-8, todos disponíveis em www.dgsi.pt e Ac. RE, de 15.04.1999, CJ, II, p. 270-272.
Na doutrina, pugnando pelo mesmo entendimento, veja-se Salvador da Costa, “O Concurso de Credores”, Almedina, 3.ª Edição, pág. 90 e Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, in “Garantias de Cumprimento”, Almedina, 4.ª Edição, pág. 197.
Assim também ensina Menezes Leitão, in “Garantia das Obrigações”, Almedina, 2012, 4.ª Edição, pág. 190/191, afirmando que “Em consequência da indivisibilidade da hipoteca (art.º 696.º do C. C.), se por exemplo for constituída hipoteca sobre um prédio em ordem a permitir o funcionamento da construção e depois o referido prédio vier a ser construído em propriedade horizontal, cada fração autónoma responde por toda a dívida em causa, pelo que, mesmo que seja satisfeita parte da dívida correspondente, só a renúncia do credor hipotecário permite que a fração fique desonerada”.
Assim, atento o disposto nos arts. 691º, nº 1, alínea c) e 696º, ambos do Cód. Civil, no caso dos autos, a hipoteca está constituída sobre as frações em causa desde a sua implantação física no terreno e antes da sua transformação legal em propriedade horizontal.
Quando o terreno urbano primitivo se alterou na sua identificação legal passando a propriedade horizontal com a constituição desta, a hipoteca manteve-se a mesma, apenas se alterando a identificação do imóvel sobre que versa, sem necessidade de proceder a qualquer outro título de constituição da hipoteca.
Ora, tendo a aquisição das frações pelos recorrentes ocorrido temporalmente apenas com a constituição da propriedade horizontal, nunca se poderia dizer, com se faz na sentença recorrida, que quando a hipoteca foi constituída o objeto da hipoteca era dos recorrentes e não da sociedade que constituiu a hipoteca.
O mesmo caminho seguiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.2014, processo n.º 1483/11.9TBVIS.C1 (Carvalho Martins), onde se pode ler: “Constituída hipoteca sobre terreno destinado a construção, a extensão da hipoteca ao edifício nele construído ocorre ipso lege, por força do disposto no art. 691.º, n.º 1, al. c) do Código Civil. Mas essa hipoteca só produz efeitos em relação às frações autónomas do edifício, enquanto unidades prediais independentes, quando se opera a sua individualização e autonomização jurídica através da constituição do regime da propriedade horizontal.
No caso, os proprietários das frações e o credor hipotecário são adquirentes do mesmo autor comum de direitos incompatíveis entre si (o direito de propriedade e a hipoteca), e, como tal, são entre si terceiros para efeitos de registo (art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial).
Por isso, tendo sido registada em primeiro lugar a hipoteca validamente constituída a favor do credor hipotecário, este pode opor aos adquirentes das frações o direito de prioridade que lhe confere o registo (art. 6.º, n.º 1, do Código do Registo Predial)”.
Ora, a hipoteca foi constituída, em 21/10/2010, a favor da exequente/embargada, pela legítima proprietária do terreno, pelo que de acordo com o disposto nos arts. 691º, nº 1, alínea c) e 696º, do C. Civil, essa hipoteca incide sobre as frações em causa desde a sua implantação física no terreno e antes da sua transformação legal em propriedade horizontal.
Pois como se realça no citado Acórdão do STJ, “Quando o terreno urbano primitivo se alterou na sua identificação legal passando a propriedade horizontal com a constituição desta, a hipoteca manteve-se a mesma, apenas se alterando a identificação do imóvel sobre que versa, sem necessidade de proceder a qualquer outro título de constituição da hipoteca”.
Assim sendo, e tendo a aquisição das frações penhoradas nos autos, pelos embargantes, ocorrido em data posterior à constituição da hipoteca e apenas com a constituição da propriedade horizontal, a hipoteca, porque beneficia de registo anterior, prevalece sobre esse direito de propriedade, ou seja, tendo sido registada em primeiro lugar a hipoteca, validamente constituída a favor do credor hipotecário, no caso a recorrente/exequente, esta pode opor aos embargantes, adquirentes das frações penhoradas, o direito de prioridade que lhe advém do registo (art. 6.º, n.º 1, do C. R. Predial).
Com efeito, a hipoteca constitui um direito real de garantia que se caracteriza por conferir ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis (ou equiparadas), pertencentes ao devedor ou terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade de registo, podendo ter a sua origem num contrato ou declaração unilateral – art.ºs 686.º/1 e 712.º do C. Civil.
Citando Carvalho Fernandes, Direitos Reais, 4.ª Edição, 2005, pág. 152, a propósito da proibição do “pacto comissório”, que “este regime não prejudica o credor hipotecário por os atos subsequentes de alienação ou oneração lhe serem inoponíveis. Nomeadamente, no caso de transmissão, isso significa que ele pode fazer executar a coisa hipotecada no património do adquirente, sendo esta uma manifestação da sequela do direito de hipoteca”. E adianta o Professor que no caso do adquirente dos bens hipotecados, este tem, em alternativa, a faculdade de optar entre: a) pagar aos credores hipotecários as dívidas garantidas pelo bem hipotecado; b) declarar-se disposto a entregar aos credores hipotecários o bem, para pagamento dos respetivos créditos, até à quantia pelo qual o adquiriu ( art.ºs 721.º do C. Civil).
Assim também ensina Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 12.ª Edição, pág. 955, onde refere que “os bens hipotecados podem ser transmitidos, embora o respetivo ónus os acompanhe”, concedendo-se à pessoa que os adquire a faculdade de fazer extinguir esse ónus real, é o que na terminologia técnico-jurídica se chama expurgação da hipoteca.
Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 4.ª Edição, pág. 551 e segs., considera apropriado falar-se em “preferência”, como princípio característico dos direitos reais de garantia, no confronto com outros direitos legítimos, mas incompatíveis, considerando a “sequela” uma consequência necessária do direito real, nos termos da qual “uma coisa é funcionalmente afeta a um sujeito, que todos os outros, quando entram em contato com a essa coisa, têm de se submeter à atribuição que já foi realizada”.
E Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, afirmam que “o meio de o credor hipotecário tornar efetivo o seu direito em relação aos bens hipotecados é a execução, regulada no C. P. Civil”. Sendo que a “ação executiva por dívida provida de garantia real e, portanto, de hipoteca, pode seguir diretamente contra o possuidor dos bens onerados (sequela)”.
Portanto, por força do direito de sequela que assiste ao credor hipotecário, a hipoteca mantém-se inerente, grudada ao imóvel, apesar de ele poder passar para a esfera jurídica de terceiro que não é o devedor. A hipoteca garante a obrigação enquanto esta se não extinguir, quem quer que seja o devedor ou o titular do imóvel onerado.
E quanto à proteção dos direitos de terceiro decorrente o art.º 5.º/1 do C. R. Predial, “que visa proteger o terceiro que, confiando na aparência de uma situação registral desconforme à realidade substantiva, celebra um negócio jurídico inválido com o titular inscrito e regista a sua aquisição”, como se refere na sentença recorrida, transcreve-se, pela sua clareza, o que se exarou no citado Aresto do STJ de 8/10/2015:
“Tal como é pacificamente aceite – cfr. ac. de Uniformização de Jurisprudência, nº 3/99 de 18/05, publicado no Diário da República I série A, de 10-07-1999 - terceiros para efeito do art. 5º do Cód. de Registo Civil, são os adquirentes de boa-fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.
Ora como vimos, quando a ré II recebeu como beneficiária a hipoteca sobre o terreno para construção, este pertencia à sociedade JJ – ou pelo menos estava registado em nome da mesma e como tal se presumia.
Por isso esta sociedade tinha plena legitimidade para dar aquele em hipoteca em garantia à ré II.
Já o direito dos recorrentes sobre as frações era então futuro e, como dissemos, só com a constituição da propriedade horizontal é que as referidas frações passaram para a propriedade dos recorrentes.
Por outro lado, o direito de propriedade adquirido pelos recorrentes sobre as referidas frações, não constitui direito incompatível com o direito de hipoteca da ré II.
Ambos os direitos reais são compatíveis”.
2.2. Do abuso de direito.
Os recorridos invocam ser abusivo o exercício do direito de hipoteca sobre as frações em causa, pois que a exequente/embargada abusou do direito ao deduzir a execução depois de ter prescindido da hipoteca sobre as três frações autónomas dos executados, acionando essa garantia sobre bens com os quais nunca contou para garantir o seu crédito.
Por outro lado, a exequente/recorrente conhecia as circunstâncias em que foi celebrado o contrato de mútuo com hipoteca, nomeadamente sempre soube, e em tempos assim o reconheceu, que as frações objeto da hipoteca que agora executa não lhe estavam hipotecadas e devia ter permitido que os executados/embargantes providenciassem pelo respetivo cancelamento.
É, porém, manifesta a falta de razão, pois que não alegaram factos concretos, e, por isso, também não os demonstraram, que permitissem o seu enquadramento nesse instituto jurídico.
Com efeito, como flui do art.º 334.º do C. Civil, apenas será ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Ensina Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, 2ª Edição, 2000, Almedina, pág. 249/251, que “a conceção geral do abuso de direito postula a existência de limites indeterminados á atuação jurídica individual. Tais limites advêm de conceitos particulares como os de função, de bons costumes e da boa-fé”. E integra nessa categoria o venire contra factum proprium, que exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios.
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 300, acentuam que “a nota típica do abuso de direito reside na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido.”
E ensina o Professor Almeida Costa, ob. cid. Pág. 83, que “ocorrerá tal figura de abuso quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social”. E acrescenta, “os efeitos do abuso de direito equiparam-se aos da pura falta de direito”.
Para o Professor Vaz Serra [1] : “Há abuso de direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado”.
Posição também defendida por Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 2005, Almedina, 3.ª Edição, pág. 660, no que respeita ao venire contra factum proprium, sublinhando que o direito deve ser exercido sem frustrar expetativas criadas pelo seu titular, pelo que “Quem, através de um comportamento ativo ou omissivo, cria em outrem uma confiança fundada em certo modo de exercício do direito – uma boa fé - não pode, depois, mudar bruscamente de comportamento e exercê-lo de um modo contraditório.”
Pelo mesmo caminho seguiu o Acórdão do STJ, de 27/04/2017 (Garcia Calejo), proc. n.º 1192/12.1TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado:
“I - Para que ocorra o abuso do direito, é necessário que o titular do direito o exerça de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito. Não é necessária a consciência de que se excederam os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. É suficiente que esses limites sejam ultrapassados. O excesso deve ser manifesto. II - Como modalidade do abuso do direito, a doutrina e a jurisprudência, apontam o venire contra factum proprium, abuso que ocorre quando o exercício do agente contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo mesmo”.
Em resumo, para que se verifique abuso de direito é necessário que a pessoa a quem tal direito assiste, em termos formais, nas circunstâncias concretas do seu exercício, o exerça de modo que, face aos valores consagrados na lei, constitua manifesta injustiça.
Ora, perante os factos assentes, não se vislumbra que o Autor, ao propor a presente execução para cobrança da dívida hipotecária, nomeadamente com a penhora das três frações prediais em causa, exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, ou seja, que seja abusivo o exercício do seu direito (art.º 334.º do C. Civil).
Dito de outro modo, não se vê como se possa invocar abuso de direito relativamente à pretensão de pagamento do empréstimo bancário, com garantia de hipoteca do terreno onde foram construídas as frações prediais, visto não resultar da hipoteca qualquer evidente injustiça e não ofender o sentimento de justiça dominante na comunidade social.
Aliás, tal consta expressamente da escritura pública que formalizou o contrato de permuta, que a sociedade J… podia constituir sobre o terreno “quaisquer hipotecas” (facto n. º5).
E o facto de a exequente ter conhecimento da permuta não permite concluir, sem mais, exercer abusivamente o seu direito ao executar a hipoteca.
A exequente/recorrente não interveio no contrato de permuta, e não está alegado, nem demonstrado, que deu o seu consentimento, conhecia e concordou com os termos da permuta ou que tenha tomado comportamento contrário ao exercício do direito de penhorar todas as frações do prédio em causa.
A afirmação dos embargantes de que a exequente prescindiu da hipoteca sobre as três frações autónomas que lhes foram dadas em permuta do terreno e que veio, agora, acionar essa garantia sobre bens com os quais nunca contou para garantir o seu crédito, carece de correspondência com a factualidade provada e não questionada pelas partes.
Resumindo, não se pode sustentar que ocorre abuso de direito, posto que para tal importaria demonstrar outras circunstâncias que no caso não se demonstraram.
Improcede, pois, este fundamento.
Assim sendo, não podia deixar de proceder a apelação, devendo a sentença recorrida ser revogada, por ter aplicado incorretamente o direito à factologia apurada.
Vencidos no recurso e na ação, suportarão os embargantes as custas respetivas – art.º 527.º/1 e 2 do CPC.