1. A obrigação de apresentação à insolvência não se esgota no momento em que o devedor deixa passar o prazo de 30 dias que a lei lhe confere para o efeito. Tratando-se de um facto continuado, decorrido o prazo legal o devedor permanecerá em incumprimento até se apresentar à insolvência ou até que um terceiro, a quem a lei confira legitimidade para tal, o faça.
2. A presunção de “culpa grave” do nº3 do artigo 186º não prescinde de um juízo de causalidade entre o facto fundamentador da presunção e a criação ou agravamento da situação de insolvência, quer se tenha este por presumido ou se entenda ser este a provar pelo lesado.
3. Da alegação de que, em julho de 2016, a sociedade insolvente se encontrava destituída de qualquer património e inativa há quase um ano, ressalta a irrelevância do atraso na apresentação à insolvência posterior a tal data para a criação ou agravamento da situação de insolvência.
I – RELATÓRIO
Declarada a insolvência de M..., Lda., a credora requerente a..., veio requerer a abertura de incidente de qualificação da insolvência como culposa e que tal qualificação afete o seu gerente J...,
Alegando, para tal, e em síntese:
tendo a sociedade, agora insolvente, sido condenada, por sentença proferida a 21.10.2013, a eliminar, no prazo de 90 dias, os defeitos existentes na moradia que construíra a pedido da Requerente, e incumprida tal obrigação no prazo fixado pela sentença, a Requerente viu-se obrigada a instaurar ação executiva para prestação de facto e para pagamento de quantia certa, para assim dar cumprimento a tal sentença;
contudo, no âmbito da execução não foram encontrados quaisquer bens penhoráveis nem apuradas contas bancárias da insolvente;
desde a data em que foi proferida a sentença que condenou a insolvente na eliminação dos defeitos, que o seu gerente, J..., ludibriou a requerente, fazendo-a acreditar que tudo se iria resolver pela via consensual, ganhando tempo, apenas para, entretanto, conseguir dissipar o património da insolvente, passando-o para a nova empresa por si constituída;
o identificado gerente da insolvente transferiu para a sua nova sociedade “J..., Lda.”, a carteira de clientes da insolvente e muito do seu património;
esta empresa assumiu as obras da insolvente, para a qual foram canalizadas as novas obras, tendo os trabalhadores da insolvente passado a nesta exercer a sua atividade;
na insolvente ficou só o imobilizado obsoleto, sem qualquer valor comercial;
o material da insolvente com algum valor encontra-se parqueado num estaleiro pertencente à nova sociedade e afeto à atividade desta;
a insolvente está desde há muito numa situação de insolvência, em que não conseguia honrar os seus compromissos, com um ativo muito superior ao ativo, e face a uma conduta deliberada do seu sócio-gerente de esvaziamento da sociedade e desvio da sua atividade para outra, em prejuízo inequívoco dos credores, mormente da requerente da insolvência;
Conclui, não poder tal insolvência deixar de considerar-se como culposa, face ao preenchimento das presunções iure et iure previstas nas alíneas a) e g) do nº 2 do artigo 186º CIRE.
Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, o Administrador da Insolvência veio apresentar Parecer no sentido da qualificação da insolvência como não culposa, com a seguinte alegação:
a insolvência da requerida foi requerida a 16 de julho de 2019, pela Requerente/credora A..., e decretada a 6 de novembro de 2019;
a devedora está inativa, tendo apresentado, a 12 de outubro de 2015, nas Finanças, a Declaração de Cessação de Atividade;
não foram localizados nem apreendidos quaisquer bens à insolvente;
o sócio gerente da insolvente constituiu uma outra sociedade, “J..., Lda.”, para a qual passou a atividade as novas obras para a nova empresa deixando inativa a insolvente;
o sócio gerente dissipou todos os seus bens em benefício da nova sociedade, de que é único sócio e gerente;
a insolvência é ainda culposa por força do disposto nº 3 do artigo 186º CIRE, tendo a insolvente incumprido o dever de apresentação à insolvência, pois deveria ter-se apresentado à insolvência em 12 de outubro de 2015, quando apresentou a cessação de atividade para efeitos de IVA;
a atuação do gerente é causa direta e necessária do agravamento do estado de insolvência da sociedade requerida;
encontram-se preenchidas as presunções inilidíveis de culpa previstas na al. a) do nº 3 do art.186º CIRE – incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência –, bem como as previstas nas alíneas a) e f) do nº 2 do citado artigo 186º – respeitantes à ocultação ou destruição do património do devedor, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenha interesse direto ou indireto;
contudo, tendo os factos suscetíveis de fundamentar a qualificação da insolvência como culposa ocorrido antes do inicio do processo de insolvência (nº1 do artigo 186º), conclui que a presente insolvência não deve ser considerada como culposa.
Remetidos os autos ao Ministério Público para os termos do nº 4 do artigo 188º CIRE, este emitiu Parecer no qual, aderindo ao requerimento da Credora A..., bem como ao do Administrador de Insolvência, conclui encontrarem-se preenchidas as alíneas a) e h) do nº 2, e alínea a) do nº 3, todos do artigo 186º do CIRE, com a qualificação da insolvência como culposa, com afetação do seu sócio gerente, J...
J... deduziu oposição, alegando em síntese:
mesmo que se apurem factos dos quais resulte ter havido, por parte dos administradores da insolvente, uma atuação dolosa ou com culpa grave, que tenha criado ou agravado a situação de insolvência da devedora, tais factos deverão ter sido cometidos dentro do período dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
caso assim não suceda, os factos em causa serão irrelevantes para efeitos da qualificação como culposa da insolvência, que não poderá ser decretada com tal fundamento;
centrando-nos no período temporal relevante, quer do requerimento de abertura do incidente, quer do parecer do Sr. Administrador de Insolvência, quer ainda do parecer do Ministério Público, não constam quaisquer factos que datem de tal período de três anos;
a M..., Lda. está inativa e não se encontra a laborar desde, pelo menos, 30 de Setembro de 2015, como se prova pelo teor da Declaração de Cessação de Atividade apresentado no serviço de Finanças em 12 de Outubro de 2015, tendo o processo de insolvência dado entrada a 16 de julho de 2019;
encontra-se também indemonstrado um outro pressuposto essencial para a procedência da qualificação, que é o relativo ao prejuízo que para os credores resulta da insolvência;
sendo o crédito da requerente ilíquido não poderá o mesmo ser considerado em sede de qualificação da insolvência;
atenta a dimensão da empresa em causa, os seus recursos materiais e financeiros próprios (veja-se a cifra do passivo existente), a insolvente jamais comportaria um prejuízo equivalente ao montante do reclamado pela requerente do incidente, pelo que, se a requerente tivesse deduzido o incidente de liquidação (o que não fez) e neste se apurasse um valor aproximado ao reclamado;
Conclui pela improcedência do incidente de qualificação da insolvência como culposa, absolvendo-se a requerida do requerido e qualificando-se a insolvência como fortuita.
Realizada audiência prévia, pelo juiz a quo foi proferido o Despacho, de que agora se recorre, a declarar a insolvência da sociedade M..., Lda., como fortuita.
Inconformada com tal decisão, a Credora Requerente A... dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
...
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida que deverá ser substituída por Acórdão que qualifique a insolvência da “M..., Lda.” como culposa por força alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE e que o seu sócio e gerente J... seja afetado por tal qualificação, assim se fazendo a costumada justiça.
O oponente J... apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se os factos alegados que fundamentam o pedido de declaração da insolvência como culposa ocorreram todos fora no período de três anos anterior ao início do processo de insolvência.
2. Caso algum se situe dentro desse período temporal, se são alegados factos dos quais se deduza que o facto culposo tenha criado ou conduzido a um agravamento da situação de insolvência.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
A decisão recorrida conclui pela declaração da insolvência como fortuita com base na consideração de que “os factos alegados pela Credora da Insolvência e pelo Ministério Público não são aptos a sustentar a declaração da insolvência como culposa e, consequentemente afetar o seu gerente, já que nenhum destes factos ocorreu nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
Tendo fundamentado o seu requerimento de abertura do incidente de qualificação de insolvência, como culposa, no preenchimento das alíneas a) e g) do nº 2 do artigo 186º – relacionados com o facto de a sociedade insolvente ter feito transferir para uma nova sociedade todo o seu património –, e ainda no preenchimento da alínea a) do nº 3 do citado artigo 186º CIRE – falta de apresentação atempada à insolvência –, a Credora Requerente/Apelante conforma-se com a decisão recorrida, na parte em considera que os factos que integram as als. a) e g) do nº 2 do art. 186º CIRE ocorreram fora do período de três anos relevantes para o efeito da qualificação da insolvência como culposa.
Com efeito, insurge-se a Apelante, tão só, na parte em que se decide que “o termo do prazo para que o gerente requeresse a declaração da Insolvência da sociedade ocorreu há mais de 3 anos, tendo em conta a data do início do processo de insolvência”, porquanto o decurso do prazo de apresentação à insolvência estabelecido no art. 18º CIRE, sem que a ela tenha lugar, não faz cessar o dever de apresentação à insolvência, não se tratando de um prazo de caducidade.
Como tal, segundo o apelante, não tendo o recorrido ilidido a presunção de culpa grave resultante da verificação do disposto na al. a) do nº 3 do artigo 186º, e carreada para os autos bastante prova factual da atuação culposa do requerido e estabelecido o nexo de causalidade entre esta atuação e o agravamento da situação de insolvência, a decisão recorrida terá de ser substituída por outra que qualifique a insolvência como culposa.
Nas suas contra-alegações, o Requerido/Apelado, J..., mantém a sua posição de estando a sociedade inativa desde, pelo menos, 30 de setembro de 2015, podendo tomar-se esta data como a mais recente para a contagem de 30 dias para a possível consumação desse dever; tendo o processo de insolvência tido o seu início em 16 de julho de 2019, a omissão em causa deveria ter ocorrido após 15 de julho de 2016. Mais alega que se o nº3 do art. 186º estabelece uma presunção iuris tantum de culpa grave, mas não uma presunção do nexo causal da sua conduta em relação à situação de insolvência, sendo necessário, em primeiro lugar, alegar factualidade idónea demonstrativa do prejuízo que, da falta de apresentação tempestiva à insolvência, decorreu para os credores e ainda se tais comportamentos omissivos criaram ou agravaram uma situação de insolvência. Pelo que, na situação em apreço não se encontrará demonstrado que tal omissão tenha causado prejuízo aos credores (o crédito da requerente seria ilíquido), faltando ainda a alegação de que tal comportamento omissivo tenha criado ou agravado a situação de insolvência.
Relativamente à primeira questão – se o incumprimento do dever de apresentação à insolvência ocorreu dentro do período temporal relevante dos três anos anteriores à data do pedido de declaração de insolvência –, teremos de dar razão à Apelante.
A insolvência é culposa “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” – nº1 do artigo 186º CIRE.
Não se discute que sendo a responsabilidade nascida da qualificação da insolvência indissociável de um comportamento especialmente censurável, para tal efeito só se terá por relevante o comportamento ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Há que relacionar o incumprimento do dever de apresentação do devedor à insolvência, enquanto fundamentador da qualificação da insolvência como culposa, com o disposto no artigo 18º, nº 1 do CIRE, segundo o qual, “o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência ou à data em que devesse conhecê-la”.
Partindo do pressuposto – constante do despacho recorrido e aceite pelos demais intervenientes processuais – de que, a insolvente se consideraria em situação de insolvência, se não antes, pelo menos a 30 de setembro de 2015, data em que apresentou a cessação de atividade para efeitos de IVA, o termo do prazo para a sua apresentação à insolvência teria ocorrido, decorridos 30 dias, a 30 de outubro de 2015.
O decurso do prazo que lhe é concedido para a apresentação à insolvência não significa que ele perca o direito de praticar o ato[1], implicando, sim, que uma vez decorrido tal prazo, o devedor se encontre em incumprimento relativamente à obrigação legal de apresentação à insolvência.
E o dever de cumprimento da obrigação de apresentação à insolvência não se esgota no momento em que deixa passar o prazo de 30 dias que a lei lhe confere para o efeito. Tratando-se de um facto continuado, decorrido o prazo legal o devedor permanecerá em incumprimento até se apresentar à insolvência ou até que um terceiro, a quem a lei confira legitimidade para tal, o faça. Assim sendo, quando a 16 de julho de 2019 a Credora/Apelante veio requerer a tribunal a declaração de insolvência da M..., Lda., esta continuava em incumprimento de tal obrigação de apresentação à insolvência.
Concluindo, podemos afirmar que este incumprimento do dever de apresentação à insolvência se manteve até à data em que um terceiro veio requerer a sua insolvência, encontrando-nos perante um facto – uma omissão – ocorrido no âmbito temporal dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Quando muito, a relevância de tal facto para preenchimento da al. a) do nº3 – ou a circunstância de, por si só, o reconhecimento de que o atraso na apresentação à insolvência ser insuficiente para a qualificação como culposa –, levaria, apenas e tão só, ao prosseguimento do processo para julgamento, uma vez que, na oposição que deduziu ao incidente de qualificação da insolvência, o Requerido impugnou grande parte da factualidade alegada pela Requerente[2].
Aqui chegados, colocar-se-á a questão de saber se é caso de determinar o prosseguimento da ação ou se, como sustenta o Apelado nas suas contra-alegações de recurso, estabelecendo o nº 3 do art. 186º apenas uma presunção iuris tantum de culpa grave, exigir-se-ia ainda a demonstração, nos termos do nº 1 do art. 186º, de que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta, “sendo necessário alegar factualidade idónea demostrativa do prejuízo que, da falta de apresentação tempestiva, decorreu para os credores; e, em segundo lugar, verificar, nas situações do nº 3 do artigo 186º do CIRE, se tais comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência.
Vejamos então: primeiro, se, para além do facto previsto na al. a) do nº3, à Credora/Requerente incumbia ainda a alegação e prova do nexo de causalidade entre o facto omissivo e a criação ou agravamento da situação de insolvência da sociedade devedora; e, em caso afirmativo, se aquela alegou factos suficientes a tal respeito ou, entendendo-se que era ao requerido que incumbia a prova da ausência de tal factualidade, se foi alegada nos autos matéria suscetível de por em causa a ocorrência de tal nexo de causalidade.
Da noção legal de insolvência culposa constante do nº 1 do artigo 186º CIRE, a doutrina vem extraindo os seguintes os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa:
i) uma ação ou omissão do devedor ou dos seus administradores ou gerentes;
ii) dolo ou culpa grave na ação ou omissão;
iii) produção ou agravamento do estado de insolvência;
iv) nexo causal entre o facto e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[3].
Complementando a definição geral dada pelo nº 1, o legislador enumera, sob o nº 2 da citada norma, um conjunto de situações em que a insolvência se “considera sempre culposa” e, sob o nº 3, situações em que se “presume a existência de culpa grave”.
A interpretação de tais normas e a articulação entre as diversas situações previstas nas alíneas dos ns. 2 e 3 e os pressupostos gerais previstos no nº1, não tem sido pacífica, tendo dado lugar a acesa discussão.
A doutrina[4] e a jurisprudência dominantes sustentam que as situações do nº 2 consubstanciam presunções iuis et iure, absolutas ou inilidíveis de insolvência culposa, por contraponto aos comportamentos enumerados sob o nº 3, que constituiriam meras presunções iuris tantum, relativas ou ilidíveis, da existência de culpa grave.
As presunções constantes do nº 3 distinguir-se-iam das anteriores, não só porque permitiriam o seu afastamento mediante prova em contrário, mas, também, porque com o seu funcionamento apenas resultaria demonstrado um dos pressupostos do nº 1, a culpa grave[5].
Na determinação do alcance das presunções consagradas no nº 2 do artigo 186º (e, ainda com maior acuidade, relativamente às presunções contidas sob o nº 3), a doutrina vem-se questionando se, para a qualificação da insolvência como culposa, a par da prova do circunstancialismo previsto nalguma das suas alíneas, haverá ainda que demonstrar a existência de um nexo de causalidade entre os factos aí previstos e a produção e/ou agravamento da situação de insolvência.
Relativamente às situações descritas sob o nº 2 não se têm suscitado grandes dúvidas de que, uma vez apurado qualquer do(s) facto(s) descrito(s), se presume, sem possibilidade de prova em contrário, que existem os dois requisitos fundamentais da insolvência culposa (a culpa qualificada e o nexo de causalidade), ficando o juiz vinculado a declarar esta qualificação[6]. “Tendo lugar alguma das situações previstas, presume-se a culpa (grave) – estando precludida a alegação e demonstração de alguma causa de desculpação –, bem como a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência, sem que haja lugar a prova em contrário[7].
Já relativamente às presunções constantes das alíneas a) e b) do nº 3, a doutrina e a jurisprudência dividem-se claramente entre aqueles que consideram que este número consagra apenas uma presunção de culpa grave, sendo ainda necessário provar a causalidade da conduta em relação à criação ou agravamento da situação de insolvência (posição maioritária)[8], e aqueles que nele vêm autênticas presunções (relativas) de insolvência culposa, ou de culpa qualificada na insolvência, com o sentido de que, também este número consagra uma presunção de causalidade, ficando o lesado dispensado da prova da causalidade fundamentadora da responsabilidade[9].
Para esta última tese[10], a grande diferença entre o alcance das presunções contidas no nº 2 e o das contidas no nº 3, consistiria na possibilidade de prova em contrário relativamente a estas últimas: dispensando a prova do nexo causal entre os factos aí previstos e a criação ou agravamento da situação de insolvência, onera-se o devedor com o ónus de provar que, apesar de terem ocorrido, aqueles factos não criaram nem agravaram a situação de insolvência[11].
Assim invertido o ónus da prova, e regressando ao caso em análise, seria à insolvente, ou ao sujeito relativamente ao qual é proposta a afetação da qualificação da insolvência como culposa, que incumbiria a demonstração de que, apesar de não ter apresentado a sociedade devedora à insolvência no prazo de 30 dias após a declaração de cessação da sua atividade para efeitos de IVA (declaração que apresentou em setembro de 2015), mantendo o incumprimento de tal dever durante os três anos anteriores ao processo de insolvência, levando a que a mesma só viesse a ser declarada em julho de 2019, tal atraso não terá contribuído para o deflagrar ou agravar da situação de insolvência.
De qualquer modo, salientar-se-á que, no caso em apreço, quer optássemos por uma ou outra tese – atribuindo ao lesado o ónus da prova do nexo de causalidade entre o facto constitutivo da presunção e a criação do agravamento da situação de insolvência ou, presumindo tal nexo de causalidade, fazendo recair sobre o devedor o ónus de demonstrar que o mesmo em nada concorreu para a criação ou agravamento da situação de insolvência –, a apreciação final seria a mesma.
Vejamos, então, se dos factos alegados factos se poderá extrair que o atraso na apresentação à insolvência – e só o atraso ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo (ou seja, o atraso posterior a julho de 29016), é relevante – contribuiu para a criação ou agravamento do estado de insolvência da sociedade/devedora, ou se, dos factos alegados nos autos resulta precisamente o oposto, ou seja, a irrelevância do atraso (e apenas o atraso posterior a julho de 2016 pode aqui ser tido em consideração) na apresentação à insolvência na criação ou agravamento da situação de insolvência da devedora.
E, nesta parte, teremos de dar razão ao Apelado.
Segundo a alegação da própria requerente, corroborada pelos Pareceres do Administrador da Insolvência e do Ministério Público, temos por relevantes os seguintes factos:
- por sentença de 21 de outubro de 2013, transitada em julgado, foi a Insolvente condenada a eliminar no prazo de 90 dias todos os defeitos identificados em tal decisão;
- a 13 de Dezembro de 2013, já o gerente da insolvente tinha constituído outra sociedade com o mesmo objeto e que se situava no local da sede da insolvente (art. 20º do Requerimento Inicial);
- a 12 de outubro de 2015 apresentou requerimento de cessação de atividade para efeitos de IVA, reportada a 30 de setembro de 2015;
- quando instaurou a execução para cobrança do seu crédito, em julho de 2016, já a insolvente não tinha bens penhoráveis nem exercia qualquer atividade;
- o Requerimento de declaração da insolvência da insolvência da Requerida deu entrada em tribunal a 16 de julho de 2019.
Da própria alegação da autora ressalta a irrelevância do atraso posterior a julho de 2016 para a criação ou agravamento da situação de insolvência, uma vez que, em tal data, já a sociedade insolvente se encontrava destituída de qualquer património e inativa, pelo menos, desde 30 de setembro de 2015.
Ou seja, dos factos alegados como fundamentadores da qualificação da insolvência como culposa resultará, desde logo, o não preenchimento de todos os elementos necessários à qualificação da insolvência como culposa, com a desnecessidade de prosseguimento dos autos para julgamento.
Não preenchendo os factos alegados os pressupostos necessários à qualificação da insolvência como culposa, haverá que confirmar o juízo de qualificação da insolvência como fortuita[12] constante da sentença recorrida – na ausência de qualquer disposição expressa que a defina, será de considerar insolvência fortuita toda a situação que não recaia no âmbito do artigo 186º.
A apelação é assim de improceder, havendo que confirmar a decisão recorrida, embora por fundamentos não inteiramente coincidentes.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida de qualificação da insolvência como fortuita.
Custas a suportar pela Apelante.
Coimbra, 6 de outubro de 2020
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. A obrigação de apresentação à insolvência não se esgota no momento em que o devedor deixa passar o prazo de 30 dias que a lei lhe confere para o efeito. Tratando-se de um facto continuado, decorrido o prazo legal o devedor permanecerá em incumprimento até se apresentar à insolvência ou até que um terceiro, a quem a lei confira legitimidade para tal, o faça.
2. A presunção de “culpa grave” do nº3 do artigo 186º não prescinde de um juízo de causalidade entre o facto fundamentador da presunção e a criação ou agravamento da situação de insolvência, quer se tenha este por presumido ou se entenda ser este a provar pelo lesado.
3. Da alegação de que, em julho de 2016, a sociedade insolvente se encontrava destituída de qualquer património e inativa há quase um ano, ressalta a irrelevância do atraso na apresentação à insolvência posterior a tal data para a criação ou agravamento da situação de insolvência.
***
[1] A doutrina entende não se tratar de um prazo de caducidade, pelo que o decurso do prazo de apresentação não determina a cessação do correspondente dever, considerando-se o dever incumprido sujeitando-se o devedor às consequências legais – neste sentido, entre outros, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Quid Juris, p.193, e Luís Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 8ª ed., Almedina, pp.82-83.
[2] Nos artigos 17º e 56º da sua Oposição, o Requerido João Maurício impugna especificadamente o alegado nos artigos 8º, 14º, 15º, 24º, 28º, 36º a 41º, 43º, 47º a 56º, e 60º a 62º, do requerimento de abertura do incidente de qualificação de insolvência.
18)Aliás, a conclusão pela não verificação deste
[3] Neste sentido, Catarina Serra, “Decoctor ergo fraudator”? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções”, in Cadernos de Direito Privado, nº 21, Janeiro/Março 2008, pág. 60.
[4] Maria Elisabete Ramos fala em presunções absolutas de insolvência culposa sob o nº2 e em presunções relativas de culpa grave dos administradores de facto ou de direito, sob o nº3, in “Insolvência da Sociedade e Efetivação da Responsabilidade Civil dos Administradores”, pág. 479.
[5] José Manuel Branco, “Novas Questões na Qualificação da Insolvência”, in “Processo de Insolvência e Ações Conexas”, pág. 313, E Book, Dezembro de 20014, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Processo_insolvencia_acoes_conexas.pdf
[6] Catarina Serra, “Decoctor ergo fraudator”? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções”, in Cadernos de Direito Privado, nº 21, Janeiro/Março 2008, pág. 64; em igual sentido, Luís A. Carvalho Fernandes, “A Qualificação da Insolvência e a Administração da massa insolvente pelo devedor”, in Coletânea de Estudos sobre a Insolvência”, QUID JURIS, pág. 262; Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito de Insolvência”, 2016-2ª ed., Almedina, p.419; e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, Almedina, 2011, pág. 284. Adelaide Menezes Leitão defende igualmente que o artigo 186º, nº2, prescinde em parte dos pressupostos do artigo 181º, nº1, designadamente no que respeita a que a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação dos administradores – “Insolvência culposa e responsabilidade dos administradores na Lei nº 16/2012”, in I Congresso de Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina, pág. 275.
[7] Manuel Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos administradores na insolvência”, disponível in http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=50879&ida=50916. Para Rui Estrela de Oliveira a questão terá de ser resolvida caso a caso, sublinhando que, neste número, não estamos perante presunções que facilitam a prova de um dos pressupostos da qualificação, mas perante presunções que facilitam o próprio sentido da decisão – “Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência”, Julgar, nº11- 2010, pág. 237.
[8] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, Almedina 2017, p. 238, Adelaide Menezes Leitão, Insolvência culposa e responsabilidade dos administradores na Lei nº 16/2012, de 20 de abril”, I Congresso de Direito da Insolvência, Coord. Catarina Serra, 2013, pp.274-275. Em igual sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 06.10.2011, relatado por Serra Batista, e do TRP de 07-12-2016, relatado por Beça Pereira.
[9] Segundo Catarina Serra, sob o ponto de vista da sua aptidão para serem causas da criação ou do agravamento da insolvência: tais presunções não são simplesmente de culpa qualificada – no facto praticado –, são de culpa qualificada na insolvência: “Existem para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os sujeitos que violaram obrigações legais. Oneram-se, assim, estes sujeitos com a prova de que não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respetivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – por exemplo a conjuntura ou as condições de mercado”, Decoctor ergo fraudator” (…)”,, pág. 69. Em igual sentido, se pronuncia Nuno Manuel Pinto Oliveira, considerando que o nº 3 consagra uma presunção de culpa na insolvência, dispensando o lesado da prova da causalidade fundamentadora da responsabilidade: “O risco de não esclarecimento (seguro) do evento causador (da insolvência) deslocar-se-á (deverá deslocar-se) para o administrador da sociedade” – “Responsabilidade Civil dos Administradores pela Insolvência Culposa”, I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, Almedina, pág. 208.
[10] Seguida pela aqui relatora, nos Acórdãos do TRC de 22-11-2016 e de 12-07-2017, disponíveis in www.dgsi.pt.
[11] Como se afirma no Acórdão do TRP de 22.05.2007, o legislador entendeu, e bem, que apenas o devedor está em posição de demonstrar que, apesar de não se ter apresentado à insolvência no prazo legal e de não ter depositado as contas na conservatória, tal não criou nem agravou a situação de insolvência – Acórdão relatado por Mário Cruz, disponível in www.dgi.pt. Também Maria do Rosário Epifânio defende que a insolvência pode ser considerada fortuita quando, apesar da violação do dever de apresentação à insolvência ou do dever de depositar as contas, ficar provado que a impossibilidade de cumprimento se deveu, por ex. à insolvência de uma sociedade sua devedora – “Manual do Direito da Insolvência”, 2016º-6ª ed., Almedina, pp.133-134. Ainda em igual sentido, Carina Magalhães, “Incidente de Qualificação da Insolvência. Uma visão geral”, in Estudos de Direito da Insolvência, Coord. Maria do Rosário Epifânio, 2015, Almedina, p. 122.
[12] Temos de discordar da afirmação constante da sentença recorrida de que, a circunstância de os factos alegados pela Credora Requerente da Insolvência e pelo Ministério Público não serem aptos a sustentar a declaração de insolvência como culposa e, consequentemente, afetar o seu agente, implicar uma “incongruência entre a causa de pedir e o pedido, suscetível de nulidade resultante da ineptidão da petição inicial, constituindo uma exceção dilatória que provoca a absolvição do Requerido da instância”. Tal insusceptibilidade de sustentar uma declaração de insolvência como culposa levaria, não à absolvição da instância, mas, tão só, à declaração da insolvência como fortuita (como acabou por declarar).