ARRENDAMENTO COMERCIAL
TRESPASSE
FIANÇA
Sumário

Estando a fiança inteiramente ligada ao contrato de arrendamento celebrado entre o arrendatário e o senhorio, caindo este contrato, a garantia, automaticamente, extingue-se.

Texto Integral

Proc. nº 1675/19.2T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto - Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
“B…, SA” intentou contra C… e D… a presente acção declarativa com processo comum.
Invoca, para o efeito, que os réus se constituíram fiadores no âmbito de contrato de arrendamento não habitacional celebrado com entidade terceira.
Mais dá conta que, posteriormente, o estabelecimento situado no locado foi trespassado. Que cessado tal contrato de arrendamento por denúncia da trespassária, o locado não lhe foi restituído no estado em que se encontrava aquando da celebração do contrato de arrendamento. Refere que a alteração do locado foi levada a cabo pela arrendatária originária. Que se encontram por pagar diversas rendas, vencidas após a ocorrência do trespasse.
Pede, assim, que os réus, enquanto garantes das obrigações do arrendatário, sejam condenados a pagar-lhe a quantia necessária à reposição do locado no estado em que se encontrava, no montante de 9.878,40 €, e as quantias relativos às rendas em dívida, acrescidas da indemnização devida pela mora, no montante de 26.250 €, tudo no valor global de 36.128,40 €.

Contestaram os réus, alegando, desde logo, a sua ilegitimidade passiva.
Mais invocaram, além do mais, que a fiança prestada aquando da celebração do contrato de arrendamento se extinguiu por força do trespasse subsequentemente ocorrido.
Pedem, assim, a improcedência da acção.

A autora pronunciou-se quanto à matéria alegada em sede de contestação.

Foi proferido o seguinte despacho:
“Fixo à presente acção, nos termos dos arts. 296º, nº 1, 297º, nºs 1 e 2, e 306º, nº 2, do CPC, o valor de 36 128,40 €.

*
Invocam os RR., em sede de contestação, a excepção de ilegitimidade passiva.
Vejamos.
Dispõem os nºs. 1 e 2 do art. 30º do CPC que o autor e réu são partes legítimas quando, respectivamente, têm interesse directo em demandar ou em contradizer, sendo que aquele interesse exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e este pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
Por seu turno, o nº 3 de tal preceito dispõe que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como ela é configurada pelo autor.
Adoptou, assim, a nossa lei processual civil um conceito estritamente formal de legitimidade: para aferir se uma parte é ou não legítima, não deve o juiz, perante os factos que lhe chegam ao conhecimento no decorrer da lide, perguntar-se quem devia propor e contra quem devia a acção ser proposta. Basta-lhe conferir, isso sim, se as partes em juízo têm interesse em demandar ou em contradizer tendo como exclusiva referência a relação controvertida tal como ela é descrita pelo autor na petição inicial, sem levar em consideração os factos que ao longo do processo foram alegados (e, eventualmente, provados) pelas partes, nomeadamente, pelos réus.
Visto isto, o A. alegou, em sede de petição inicial, factos que, no seu entender, levam a concluir que a fiança prestada pelos RR. ao trespassante (anterior inquilino) se estendeu ao trespassário (inquilino actual), sendo, por isso, responsáveis pelo pagamento das quantias peticionadas.
Tendo isto em conta, resulta evidente que os RR. têm interesse em contradizer os factos alegados pela A. (designadamente, impugnando os factos e a subsunção jurídica fundadores daquela conclusão), assim obstando à procedência, já em sede de apreciação do mérito da causa, do pedido por esta formulado.
Pelo exposto, de acordo com o critério estabelecido na nossa lei processual, serão os RR. parte legítima, no lado passivo, na presente acção.
Julgo improcedente, assim, a referida excepção de ilegitimidade.”

As partes foram notificadas para se pronunciar, por escrito, quanto ao conhecimento imediato do mérito da acção.

Foi então proferida sentença a julgar a presente acção improcedente e a absolvendo os réus dos pedidos formulados pela autora.

A autora B…, SA veio interpõe recurso, concluindo:
- No caso de trespasse de estabelecimento comercial instalado em prédio com base em contrato de arrendamento acompanhado de contrato de fiança, a posição emergente do contrato de arrendamento mantem-se a mesma, apenas se verificando a modificação subjectiva pela substituição do primitivo arrendatário pelo trespassário. Por isso,
- O trespasse não envolve a extinção das obrigações principais garantidas pela fiança prestada e emergentes da posição da arrendatária transmitida.
- O trespasse não determina ipso facto a extinção da fiança contratada simultaneamente com o arrendamento, devendo a sua subsistência ser ponderada tendo em atenção os termos em que foi celebrada, nomeadamente o prazo a que ficou subordinada com carácter vinculativo convencionado pelas partes, a sua vontade real efectiva revelada nomeadamente durante a sua execução, e bem assim o efectivo, pessoal e real interesse dos fiadores na relação principal garantida, enquanto titulares de uma participação social no capital social da arrendatária, na qual em deles era gerente.
- Mercê da titularidade de participação social no capital da sociedade dominante da sociedade trespassante, os fiadores não foram alheios desinteressados a operação de trespasse, prévia e necessariamente autorizada pela sociedade dominante.
- Reconhecendo os fiadores que o trespasse teria necessariamente de envolver a fracção locada pelo recorrente e a fracção vizinha pertencente a terceira, o negócio titulado na escritura de fls. 21 e sgs. dos autos, pela qual a transmissão se circunscreveu à fracção da recorrente, não respeitou o disposto na al. a) do n.º2 do art.º 1112º, do C.C., pelo que não representou um verdadeiro trespasse; e por isso,
- A cedência da posição da arrendatária para a adquirente dependia forçosamente da autorização da recorrente que, não havendo sido prestada deixou incólume a responsabilidade dos recorridos.
- A interpretação da disposição do art.º 1112º, do C. Civil, subscrita na douta sentença recorrida, ao determinar a extinção da obrigação principal e da fiança por força do pretenso trespasse realizado, desvinculando automaticamente os recorridos fiadores da garantia prestada com carácter essencial para a celebração do arrendamento, durante o prazo de vigência contratado para a fiança, transferindo para a senhoria da insolvabilidade da trespassária, sem a possibilidade de exigir a substituição da garantia que repusesse o equilíbrio do contrato de arrendamento, encerra uma interpretação normativa da citada disposição legal que, porque lesiva do princípio do Estado de Direito, gera a sua inconstitucionalidade à luz do art.º 2º, da C.R.P.;
- Ainda que assim se não entenda, a posição dos recorridos de afastarem a sua responsabilidade como fiadores por força de uma operação por si autorizada, que não representou um verdadeiro trespasse, desrespeitando o prazo a que se haviam vinculado, constitui um efectivo abuso de direito.
- Deverá, assim ser o presente recurso julgado procedente e revogada consequentemente a douta sentença proferida, condenando-se os recorridos a indemnizar a recorrente nos termos do pedido formulado, assim se fazendo JUSTIÇA

Os réus apresentaram contra-alegações, pedindo que seja negado provimento ao recurso.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se o trespasse não determina ipso facto a extinção da fiança contratada simultaneamente com o arrendamento.

II. Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou:
Factos provados:
1 - Por contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado em 07.03.2014, constante de fls. 11-verso e segs., a Autora arrendou a “E…, LDA.”, pessoa colectiva n.º ………, representada pelo seus sócios-gerentes, o Réu C… e seu filho, F…, a fracção autónoma designada pela letra A, no rés-do-chão do prédio constituído sob o regime da propriedade horizontal sito à Rua …, n.º…, no Porto, então inscrita na matriz urbana da freguesia … sob o art.º 2664-A, agora na matriz urbana da União das Freguesias … sob o art.º 2277-A, descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º37930, a fls. 57, v.º, do Livro B116.
2 - O arrendamento teve início em 07.03.2014, sendo celebrado pelo prazo vinculativo de sete anos, mediante o pagamento da renda mensal de € 2.000,00, nos dois anos iniciais, e de € 2.500,00 a partir do terceiro ano e até ao quinto ano, sendo a partir de então actualizável por aplicação dos coeficientes de actualização divulgados pelo INE.
3 - A fracção dada de arrendamento destinava-se exclusivamente à actividade de comércio a retalho de produtos alimentares, higiene e outros,
4 – Ficou acordado que a renda mensal seria paga até ao dia oito do mês a que respeitasse, mediante transferência bancária para a conta da senhoria.
5 - Mais ficou convencionado assistir à Autora o direito de exigir a reposição da fracção no seu primitivo estado mediante a eliminação das inovações e adaptações levadas a cabo pela arrendatária, ainda que consentidos pela Autora.
6 – Consta da cláusula 7ª desse contrato que “Em garantia do pontual e integral cumprimento de todas as obrigações da Arrendatária emergentes do presente contrato de arrendamento, os terceiros outorgantes, C… e D… [ora Réus], declararam constituir-se fiadores daquela, obrigando-se a satisfazer todas as suas obrigações perante o Senhorio, a título principal e com exclusão do benefício de excussão prévia”.
7 – Os RR. C… e D… apuseram as suas assinaturas nesse contrato, na qualidade ali indicada de “fiadores”.
8 – Por instrumento escrito de 01.05.2016, constante de fls. 17-verso e 18, a primitiva arrendatária, entretanto designada por “E1…, LDA.”, cedeu a sua posição de arrendatária à sociedade “E2…, LDA.”, com sede no mesmo local, pessoa colectiva n.º ………, ambas representadas pelo sócio-gerente comum F….
9 - À referida cessão de posição de arrendatária a Autora prestou o seu consentimento, tendo os ora RR., através do referido documento de fls. 17-verso e 18, na cláusula IV, declarado que “(…) aceitam a referida cessão e transferem a fiança prestada para a empresa cessionária”.
10 - Posteriormente, por carta registada em 07.06.2017, subscrita pelo familiar dos Réus, o dito F…, na qualidade de sócio-gerente da mencionada cessionária arrendatária, comunicou à Autora que se propunha no decurso daquele mês de Junho trespassar o estabelecimento comercial instalado na loja arrendada à terceira “G…, UNIPESSOAL, LDA”, com todas as existências, equipamentos e pessoal trabalhador, pelo preço de € 80.000,00, expressando à Autora que lhe assistiria o direito de preferência, nos termos do n.º4 do art.º 1112º, do C. Civil.
11 - Em resposta àquela carta, também por carta registada de 12 seguinte, a Autora comunicou à arrendatária que não pretendia exercer o direito de opção.
12 - O anunciado trespasse teve lugar através de escritura pública, constante de fls. 21 e segs.. lavrada a fls. 100 do Livro n.º 175-B do 1º Cartório de Competência Especializada do Porto, em 20.06.2017, dela constando que “E2…, Lda.” declara trespassar a “G…, Unipessoal, Lda.” o estabelecimento comercial sito no locado, e esta última declara aceitá-lo.

III – Fundamentação de direito
O que importa indagar é se a fiança que os réus prestaram no contrato de arrendamento se transferiu com o contrato de trespasse do estabelecimento comercial.
Perscrutando a norma do artigo 1112º, nº 1, al. a) do Civil, a qual permite que, no caso de trespasse de um estabelecimento comercial instalado em prédio arrendado, ocorra a transferência da posição de arrendatário sem que para tal seja necessária a autorização do senhorio, poderá equacionar-se uma resposta positiva.
E neste sentido JANUÁRIO DA COSTA GOMES, em Assunção fidejussória de dívida, Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, pág.789, defende que se deve presumir que a fiança relativamente a arrendamentos comerciais perdura para além do trespasse ou da cessão da posição de arrendatário. E compete ao fiador provar que a prestação de fiança perante o credor estava de tal modo ligada ao arrendatário trespassante ou cedente que deveria caducar com o trespasse ou a cessão, sustentando, assim, a sua posição no princípio in dúbio pro fideiussore.
Precisamos, contudo, de atentar na figura da fiança, cujo regime consta dos artigos 627º e ss. do C. Civil, que é uma garantia pessoal das obrigações, através da qual um terceiro assegura a realização de uma obrigação do devedor, responsabilizando-se pessoalmente com o seu património por esse cumprimento perante o credor.
Em regra as garantias podem ser classificadas como reais ou fidejussórias também ditas pessoais.
Como ressalta do disposto no artigo 627º, nº 2 do C. Civil, as características principais da fiança são a acessoriedade e a subsidiariedade.
A primeira significa que a obrigação do fiador se apresenta na dependência estrutural e funcional da obrigação do devedor, sendo determinada por essa obrigação em termos genéticos, funcionais e extintivos. O fiador é um verdadeiro devedor, mas a obrigação que assume é acessória da que recai sobre o obrigado, sendo que a obrigação que assume é a do devedor (principal) e não uma obrigação própria e autónoma da daquele.
A subsidiariedade é um benefício estabelecido exclusivamente a favor do fiador e que se traduz no princípio segundo o qual o fiador só responderá pelo pagamento da obrigação se e quando se provar que o património do devedor (afiançado) é insuficiente para a solver. Quer dizer, a subsidiariedade concretiza-se no chamado benefício de excussão, o qual, por sua vez, consiste no direito que o fiador tem de recusar o cumprimento da obrigação enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal, tal como decorre do disposto no artigo 638º do C.Civil:
1. Ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito.
2.É lícita ainda a recusa, não obstante a excussão de todos os bens do devedor, se o fiador provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do credor.”
Rematando, pode dizer-se que a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (artigo 634º); depois de estabelecida está vocacionada para cessar quando terminar a obrigação garantida (artigo 651º); em regra a fiança não é válida se o não for a obrigação principal (artigo 632º).
Assim caracterizada a fiança tem conduzido a doutrina e a jurisprudência maioritárias a considerar que estando a fiança inteiramente ligada ao contrato de arrendamento celebrado entre o arrendatário e o senhorio, caindo este contrato, a garantia, automaticamente, extingue-se.- V.g. Ac. desta Relação do Porto, de 29-03-201, proc. 1120/14.0T2OVR-A.P1in www.dgsi.pt.
Fernando de Gravato Morais, no estudo A TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DE ARRENDATÁRIO POR EFEITO DO TRESPASSE DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL, Lusíada. Direito. Porto n. º 4- 2º Semestre (2011), em file:///C:/Users/MJ01132/Downloads/2061-7989-1-PB%20(3).pdf, argumenta que:
Se é certo que se pode afirmar que, por via do trespasse de estabelecimento comercial, há uma perda da garantia para o credor (aqui senhorio), não pode deixar de se relevar, em primeiro lugar, que o fiador, em regra, presta a garantia em função da específica pessoa do devedor. Diz-se, por isso, que a garantia é prestada intuitu personae.
A lei não intervém expressamente resolvendo a questão. Mas pode retirar--se da lei reflexamente um argumento: o facto de se privilegiar, no art. 1112°, n° 1, al. a) do CC, NRAU, a circulabilidade do estabelecimento comercial, faculta a outrem o ingresso na situação jurídica do anterior arrendatário. Ora, esta circulabilidade do estabelecimento - admissível à luz da lei actual, tal como o era no passado - colide com o facto de a fiança ser um negócio de elevado risco.
Com efeito, o fiador não pode pôr fim à garantia que subjaz ao negócio locatício, não lhe sendo fácil igualmente transmiti-la. Isto ao contrário do que se passa com o inquilino - que pode denunciar a todo o tempo o contrato de arrendamento ou transferir a sua posição de arrendatário por efeito do trespasse de estabelecimento- e com o senhorio, que pode opor-se à prorrogação do contrato de arrendamento ou alienar a coisa, sem que isso modifique a situação jurídica do garante.
Acresce que o novo inquilino pode ser uma pessoa pouco solvente, o que se traduz num risco demasiadamente grave e desmesurado para o fiador. A ideia de consciência do âmbito da sua vinculação deve aqui prevalecer. Á luz do NRAU, a matéria da fiança prestada pelas obrigações do locatário encontra-se na livre disponibilidade das partes. Desta sorte, é o próprio contrato que ditará a sorte da garantia prestada no caso de trespasse.
No silêncio do clausulado quanto ao âmbito da fiança, consideramos que esta não se transfere com a cessão da posição de arrendatário.”
Portanto, seguindo este entendimento temos de concluir que com o trespasse a fiança dada em garantia do arrendamento não subsiste.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 14 de Julho de 2020
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
Atesta-se que o presente acórdão tem voto de concordância do Exmº Desembargador Adjunto José Carvalho, nos termos do disposto no artigo 15º-A do DL 10-A/2020, de 13/3, na redacção introduzida pelo artigo 3º do DL 20/2020, de 1/5.