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COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
REMESSA DO PROCESSO AO TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário
SUMÁRIO (da responsabilidade da Relatora - art. 663.º, n.º 7 do CPC)
I. A competência material do tribunal para o conhecimento da acção afere-se comparando-a (tal como foi configurada pelo autor) com os índices legais de repartição da dita competência material pelos vários tribunais existentes na ordem judiciária
II. A delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de se fazer com base na distinção tradicional entre «actos de gestão pública e actos de gestão privada», assentando agora essencialmente num critério material, fundado na natureza das relações jurídicas em causa («relação jurídica administrativa»), e não na dos respectivos titulares III. Na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de «relação jurídica administrativa», deve entender-se que corresponde a relação jurídica pública, em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público, legalmente definido.
IV. É pressuposto da remessa dos autos para o tribunal onde deveriam ter sido propostos que a incompetência em razão a matéria do tribunal antes escolhido tenha sido judicialmente reconhecida depois de findos os articulados, que esta decisão tenha transitado em julgado, que o autor o requeira nos 10 dias seguintes, e que, tendo sido ouvido, o réu não ofereça oposição justificada.
Texto Integral
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo
Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos; 1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias; 2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.
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I - RELATÓRIO 1.1.Decisão impugnada
1.1.1. M. S. (aqui Requerente e Recorrente), residente em …, ..., União de Freguesias de ... e ..., concelho X, propôs o presente procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo extrajudicial de obra nova, contra o Município X (aqui Requerido e Recorrido),com sede no Largo do …, Vila de X, pedindo que:
· se ratificasse judicialmente o embargo extrajudicial que promoveu, relativo a trabalhos que o Requerido (Município X) ordenou e pretendeu executar, consistentes na remoção de vasos que ele próprio colocara à entrada de propriedade sua, e cuja declaração de domínio público o mesmo igualmente reclama.
Alegou para o efeito, e em síntese, que sendo proprietário de um prédio rústico (que identificou), que confronta a sul com valeta de Estrada Municipal, o murou; e pavimentou o espaço existente entre ele e a dita estrada, tendo aí colocado há meia dúzia de meses duas floreiras de cimento.
Mais alegou que o Requerido (Município X), no dia 6 de Março de 2020, por meio de edital do seu Presidente de Câmara, o intimou a retirar os ditos dois vasos/ floreiras, sob pena de contra-ordenação, remoção coerciva, coimas e multas respectivas, o que porém, não fez, por entender que se encontram em propriedade sua.
Alegou ainda o Requerente (M. S.) que desde então o Requerido (Município X) vem reclamando como público e seu aquele espaço, invocando para o efeito o Regulamento Municipal de Construção e Edificação de X, o que não corresponde à verdade.
Por fim, alegou o Requerente (M. S.) que, pretendendo o Requerido (Município X) proceder à remoção coerciva, em 20 de Maio de 2020, dos dois vasos/floreiras, ele próprio embargou os trabalhos que aquele pretendia realizar para o efeito.
1.1.2. Foi proferido despacho liminar de indeferimentodo procedimento cautelar nominado em causa, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…) Antes de mais, dir-se-á que o facto da obra ou trabalho não ter, sequer, iniciado – como explicitou o requerente na sequência de convite que lhe foi endereçado pelo Tribunal – afastaria a aplicabilidade do procedimento cautelar de que lançou mão. Na verdade, e como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/01/2004, processo 3200/03, relatado por Dr. Jorge Arcanjo e integralmente disponível em ww.dgsi.pt, «Neste sentido, escreve ANTÓNIO GERALDES: “Ao invés do que sucede com as situações sujeitas ao procedimento cautelar comum, em que basta o justo receio de ocorrência de lesão nos direitos do requerente, o embargo exige que as obras ou trabalhos em realização ofendam o direito. É este o resultado de uma opção legislativa que limitou os embargos ao que “se julgue ofendido no seu direito” e não àquele cujo direito esteja sob ameaça. “Deste modo, não se justifica o embargo em situações em que a ofensa é meramente potencial, maxime, quando a obra está apenas em fase de projecto ou de licenciamento ou quando se encontram efectuados apenas trabalhos preparatórios. A ameaça de que a obra cause prejuízo pressupõe, nos termos da lei, a existência de uma ofensa efectiva ao direito de propriedade “ ( loc.cit., pág.245 ).» Ora, não tendo os trabalhos sequer iniciado, não pode o requerente sentir-se ofendido na sua propriedade (sendo a ofensa meramente potencial) e, como tal, não podia embargar, como fez. Mas a verdade é que não o podia fazer por outras razões. Na verdade e sendo certo que subjacente ao diferendo estará a questão da apreciação do caráter público ou privado da parcela, a verdade é que não se oferece qualquer dúvida que a atuação do Município (sem qualquer prejuízo quando ao acerto ou não da posição) está claramente a agir nas vestes públicas e lançando mão do seu ius imperii, tanto assim é que os trabalhos que pretende o requerente atacar consubstanciam a execução coerciva da ordem que o requerido dirigiu ao requerente, para retirada dos vasos de cimento/floreiras, sendo evidência de que assim é que o Edital de 28/02/2020 se reporte expressamente à alegada violação do Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Município X. Na verdade, a atuação do requerido, face à documentação junta pelo requerente e sem prejuízo da apreciação a fazer (e não por este Tribunal, como infra se explicitará) da bondade da posição assumida, inscreve-se no âmbito da tutela da legalidade urbanística, nos termos previstos no artigo 5º, n.º1, do DL 555/99, de 16 de Dezembro, estando as medidas possíveis elencadas nos artigos 102º e ss. do citado diploma, incluindo a ordem de demolição e reposição e/ou de cessação de utilização (artigos 106º e 109º do citado diploma). Estando em causa atuação nas vestes públicas e também ordem de tutela de reposição da legalidade urbanística proferida e a subsequente execução coerciva, não pode o requerente, junto dos Tribunais judiciais, paralisar uma execução coerciva, quando dispõe de meios, na jurisdição administrativa, de reação e tutela dos seus interesses e direitos (veja-se por exemplo o procedimento cautelar de suspensão de execução de ato administrativo), a que se seguiria o ataque, na génese, da própria decisão, através da ação competente para a qual tão pouco seria competente este Tribunal. É que coloca-se, efetivamente e além do mais (isto porque o artigo 399º do CPC afasta o embargo extrajudicial quando haja meios de tutela na jurisdição administrativa),um problema de competência material deste Tribunal para o presente procedimento cautelar. (…) Ademais e repete-se, o artigo 399º do CPC sempre inviabilizaria o recurso ao embargo extrajudicial de obra nova, estando em causa norma que dota de coerência o sistema, sob pena de, fora da jurisdição competente, se paralisar execução coerciva de ato administrativo. Face ao exposto e sem necessidade de ulteriores considerações, indefere-se a requerida ratificação judicial de embargo extrajudicial de obra nova, quer porque não estão reunidos os legais pressupostos (desde logo por não terem iniciado as obras/trabalhos), quer porque não é admissível (por estar em causa obra ou trabalho de autarquia local em execução coerciva de ordem de demolição da mesma e relativamente à qual há meios de tutela na jurisdição administrativa), quer, finalmente, por carecer este Tribunal de competência material para o efeito. Custas pelo requerente – artigo 527º, n.º1 e 2 e 539º do CPC. Notifique e registe. (…)»
1.1.3. O Requerente (M. S.) requereu então a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, lendo-se nomeadamente no seu requerimento: «(…) M. S., requerente nos autos, notificado da douta sentença que julga o Tribunal incompetente em razão da matéria, logo incompetência absoluta, vem requerer a V. Exª, ao abrigo do disposto no artigo 99, nº 2 do CPC, se digne ordenar a remessa do processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que é o Tribunal competente. (…)»
1.1.4. Foi proferido despacho, indeferindo a pretendida remessa dos autos para a jurisdição administrativa, lendo-se nomeadamente no mesmo: «(…) Tendo presente que o Tribunal não se limitou a julgar-se materialmente incompetente (este foi, esclareça-se, o argumento a refutar a possibilidade de transmutar o pedido formulado pelo requerente para o que, efetivamente, poderia ser o adequado), apreciou igualmente a falta de cabimento do meio processual de que lançou mão (ao que acresce a circunstância de que este meio poderá não ser o adequado meio de reacção na jurisdição administrativa), tendo presente, também, que a possibilidade a que alude o requerente (artigo 899º, n.º 2 do CPC) pressupõe que se haja chegado ao final dos articulados e a decisão foi liminarmente proferida, não tem base legal (nem verdadeiramente interesse) o requerido pelo requerente que, como tal, se indefere. Sem custas, dada a simplicidade do incidente. (…)»
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1.2. Recursos
Inconformado com estas duas e sucessivas decisões, o Requerente (M. S.) interpôs de cada uma delas recurso de apelação.
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1.2.1. Recurso do despacho de indeferimento liminar 1.2.1.1. Fundamentos
No recurso de apelação interposto do despacho que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo extrajudicial de obra nova, o Requerente (M. S.) pediu que o mesmo fosse revogado, sendo substituído por acórdão julgando o Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo de Competência Genérica de Monção, competente para julgar os autos, determinado por isso o seu prosseguimento.
Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):
a) O presente Recurso é interposto da sentença que indefere o pedido de ratificação judicial de Embargo extrajudicial de trabalhos que o Autor intentou ao abrigo do disposto no artº 397º do Código de Processo Civil.
b) A sentença diz resumidamente que indefere o requerido quer porque não estão reunidos os legais pressupostos (desde logo por não terem iniciado as obras/trabalhos) quer porque não é admissível (por estarem em causa obra ou trabalho de autarquia local em execução coerciva de ordem de demolição da mesma e relativamente à qual há meios de tutela na jurisdição administrativa) quer, finalmente, por carecer este Tribunal de competência material para o efeito.”
c) Como decorre do texto da sentença em apreço o Tribunal julga-se incompetente em razão da matéria.
d) Estamos assim perante incompetência absoluta – artº 96º do C.P.C. que constitui excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição do Réu da instância ou à remessa do processo para o tribunal competente.
e) A incompetência absoluta do Tribunal em face da violação/infracção das regras de competência em razão da matéria obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa.
f) O tribunal conheceu do mérito da questão em clara violação da lei e errando na apreciação dos factos e na aplicação das normas.
g) O Tribunal ou é incompetente e não se debruça sobre o mérito, ou aprecia os fundamentos do pedido e a causa de pedir e assim julga-se competente. De qualquer forma é um erro a declaração de incompetência em razão da matéria após se ter pronunciado longamente sobre os fundamentos do Embargo, da sua admissibilidade e acerca dos pressupostos do procedimento cautelar constituindo tal violação da lei.
h) Da melhor jurisprudência seja-nos permitido extrair que a competência do tribunal em razão da matéria afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida tal como definida pelo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido.
i) Por todos o Ac. do STJ de 20.6.2006; CJ/STJ 2006, 2º-121 “ A competência dos tribunais em razão da matéria afere-se pelos termos em que a acção é proposta, e determina-se pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos”
j) Os tribunais judiciais são competentes para conhecer duma acção em que se discute a propriedade de um terreno.
k) Nos presentes Autos, o autor coloca a questão como uma violação pela administração Pública do seu direito de propriedade sobre um imóvel sua propriedade e que adquiriu.
l) É exemplar o teor do Acórdão do STJ de 13.3.2008, Proc. 08ª391, dgsi, net, e citamos:I- Para decidir a matéria da excepção de incompetência material há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, a “causa petendi” e também o pedido nos precisos termos afirmados pelo demandante. (…) v – Os tribunais judiciais – jurisdição comum ou residual -são os competentes para conhecer uma acção de reivindicação de um terreno privado intentada contra um Município, fundada em violação do direito de propriedade sem que esteja em causa a aplicação de qualquer norma ou princípio de direito administrativo (…).”
Sentencia expressamente o STJ no seu Acórdão de 21.5.2002 Agr. Nº 904/02-1ª, citado no Código de Processo Civil anotado de Abílio Neto, Lisboa 2015, Ediforum, pág. 506 “É competente para conhecer e julgar a providência cautelar de ratificação judicial de embargo de obra nova requerido por um particular contra a Câmara Municipal em alegada violação do seu direito de propriedade o tribunal comum.”
m) No caso vertente o Autor foi notificado para retirar de uma propriedade sua, dois vasos, duas floreiras por alegadamente ser público o terreno onde estavam colocadas.
n) O Município, Réu, afirma-se proprietário de um terreno, sem ter justificado a sua aquisição por qualquer forma legal de aquisição de propriedade.
o) O autor, recorrente, está colocado perante uma grave ofensa do direito de propriedade privada praticado pelo Município Réu que nunca referiu expressamente que norma ou direito administrativo havia sido violado pelo autor com a colocação em propriedade sua de duas floreiras.
p) Estamos no domínio do direito privado – a discussão sobre o carácter privado de um terreno que legalmente o recorrente adquiriu. Daí a competência dos tribunais comuns, daí a competência do tribunal judicial de Viana do Castelo – Juízo de Competência Genérica de Monção para a presente acção.
q) A ameaça era real, eminente, presente no local o Réu pelos seus homens para realizar o trabalho, estava a obra de facto em curso e havia de ser impedida nesse momento porque de facto consistia tão só em levantar as floreiras do solo e removê-las.
r) Estavam verificados os pressupostos para o Embargo que consistiu como é de lei no aviso verbal dirigido ao responsável da obra para a não continuar.
s) Viola assim a sentença o disposto nos artºs 397º e 400º do C.P.C. e bem assim o disposto nos artºs 64º, 96º e 99º do C.P.C.
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1.2.1.2. Contra-alegações
Citado para o efeito, o Requerido (Município X) não apresentou contra-alegações, no recurso da decisão que que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo extrajudicial de obra nova (limitando-se a deduzir oposição ao mesmo).
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1.2.2. Recurso de não remessa dos autos para a jurisdição administrativa
1.2.2.1. Fundamentos
No recurso de apelação interposto do despacho que indeferiu a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, o Requerente (M. S.) pediu que o mesmo fosse anulado, sendo substituído por acórdão ordenando aquela remessa, por ser o dito tribunal o materialmente competente para julgar a lide.
Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):
a) O presente Recurso é interposto do despacho que indefere a requerida remessa dos Autos ao Tribunal competente, ao abrigo do disposto no nº2 do art° 99° do C.P.C..
b) A sentença diz resumidamente que indefere o requerido quer por falta de base legal e por não ter verdadeiro interesse.
c) O Tribunal reconhece-se no despacho recorrido materialmente incompetente
d) Assim estamos perante incompetência absoluta - art° 96D do C.P.C. que constitui excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição do Réu da instância ou à remessa do processo para o tribunal competente.
e) Foi em tempo requerida pelo autor recorrente a referida remessa nos termos do n° 2 do art° 99° do C.P.C.
f) A incompetência absoluta do Tribunal em face da violação/infracção das regras de competência em razão da matéria obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa.
g) O tribunal conheceu do mérito da questão em clara violação da lei e errando na apreciação dos factos e na aplicação das normas.
h) O Tribunal ou é incompetente e não se debruça sobre o mérito, ou aprecia os fundamentos do pedido e a causa de pedir e assim julga-se competente.
i) Da melhor jurisprudência seja-nos permitido extrair que a competência do tribunal em razão da matéria afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida tal como definida pelo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido.
j) Por todos o Ac. do STJ de 20.6.2006; CJ/STJ 2006, 2°-121 ”A competência dos tribunais em razão da matéria afere-se pelos termos em que a acção ê proposta, e determina-se pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos"
k) É exemplar o teor do Acórdão do STJ de 13.3.2008, Proc, 08a391, dgsi, net, e citamos: I- Para decidir a matéria da excepção de incompetência material há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, a "causa petendi" e também o pedido nos precisos termos afirmados pelo demandante. (...) v - Os tribunais judiciais - jurisdição comum ou residual -são os competentes para conhecer uma acção de reivindicação de um terreno privado intentada contra um Município, fundada em violação do direito de propriedade sem que esteja em causa a aplicação de qualquer norma ou princípio de direito administrativo (…)."
Sentencia expressamente o STJ no seu Acórdão de 21.5.2002 Agro N° 904/02-1 a, citado no Código de Processo Civil anotado de Abílio Neto, Lisboa 2015, Ediforum, pág. 506 “É competente para conhecer e julgar a providência cautelar de ratificação judicial de embargo de obra nova requerido por um particular contra a Câmara Municipal em alegada violação do seu direito
l) Estavam verificados os pressupostos para o Embargo que consistiu como é de lei no aviso verbal dirigido ao responsável da obra para a não continuar.
m) Declarando-se incompetente em razão da matéria, assiste ao recorrente o direito de requerer a remessa dos autos para o Tribunal competente, nos termos do disposto no n° 2 do art°99°do C.P.C.
n) O Autor fê-lo regularmente e em tempo.
o) Viola assim a sentença o disposto no art°s 397° e 400° do C.P.C. e nomeadamente o disposto nos art°s 96° e 99° do C.P.C.
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1.2.2.2. Contra-alegações
Citado para o efeito, o Requerido (Município X) não apresentou contra-alegações, no recurso do despacho que indeferiu a remessa dos autos para a jurisdição administrativa.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR
2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, 03 questões encontram-sesubmetidas à apreciação deste Tribunal ad quem:
1.ª - É o Tribunal a quo materialmente incompetente para conhecer da matéria dos autos (ou, pelo contrário, assiste-lhe essa competência, devendo por isso apreciar o respectivo mérito) ? 2.ª - Concluindo-se pela competência material do Tribunal a quo, é a providência cautelar nominada em causa manifestamente improcedente - por falta de requisitos legais -, justificando-se o seu indeferimento liminar (ou, pelo contrário, os ditos pressupostos mostram-se aparentemente reunidos, devendo os autos prosseguir para julgamento) ? 3.ª - Concluindo-se pela incompetência material do Tribunal a quo, deveria o mesmo ter ordenado a remessa dos autos para a jurisdição administrativa (ou, pelo contrário, faltavam os pressupostos legais que o permitiam) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Organização dos tribunais em função da matéria 4.1.1.1. Princípio de especialização
Lê-se no art. 209.º, n.º 1 da CRP, que, para além «do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) o Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) o Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais».
Mais se lê, no n.º 2 do mesmo preceito, que podem «existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz».
Lê-se ainda, no art. 37.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - LOSJ) que, na «ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território».
Assim, no plano interno, o poder jurisdicional divide-se por diversas ordens e categorias de tribunais - que se situam no mesmo plano horizontal -, de acordo com a natureza da matéria das causas.
A competência de um tribunal será então, em sentido abstracto ou quantitativo, a medida da sua jurisdição, ou seja, a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída, (a determinação das causas que lhe cabem); e será, em sentido concreto ou qualitativo, a susceptibilidade de exercício, pelo tribunal, da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 1976, págs. 88 e 89).
Implicitamente, aceita-se que subjacente à competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão, complexidade e especificidade das normas que os integram (conforme Manuel de Andrade, ibidem 1). Logo, a distribuição de competência por vários tribunais especializados, assenta no pressuposto da maior idoneidade de cada um deles para a apreciação da matérias que lhe está atribuída, de forma a que as causas sejam julgadas por magistrados com a preparação específica adequada (Alberto dos Reis, Comentário ao Processo Civil, Coimbra Editora, Volume I, pág. 107). Trata-se, pois, da habilitação funcional do tribunal relativamente a certa matéria.
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4.1.2. Forma de determinação
A competência material, consubstanciando um pressuposto processual, atende à matéria da causa, ou seja, ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial pleiteada.
Logo, «afere-se pelo pedido do autor, sendo uma questão a resolver, unicamente, de acordo com os termos da sua pretensão, compreendidos, aí, os respectivos fundamentos», isto é, a respectiva causa de pedir (Professor Alberto dos Reis, Comentário aoCódigo de Processo Civil, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 111 (2)).
Por outras palavras, «o pressuposto processual da competência material, fixado com referência à data da propositura da acção, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objectiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjectiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor» (Ac. do STJ, de 22.10.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 678/11.0TBABT.E1.S1, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).
Compreende-se, por isso, a consagração do princípio doperpetuatio fori, lendo-se no art. 38.º, nº 1 da LOSJ, onde se lê que a «competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei».
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4.1.1.3. Competência dos tribunais administrativos
Lê-se no art. 212.º, n.º 3 da CRP que compete «aos tribunais administrativos (…) o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas».
Reiterando-o, lê-se: no art. 144.º, n.º 1 da LOSJ que «aos Tribunais administrativos (…) compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas»; e no art. 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, posteriormente alterada, nomeadamente pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro - ETAF) que estes «são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Logo, nos termos do art. 1.º do ETAF, a delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de se fazer com base na distinção tradicional entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, baseando-se agora essencialmente num critério material, assente na natureza das relações jurídicas em causa e não na dos respectivos titulares (3).
A mesma ideia é reafirmada no art. 4.º, n.º 1, do ETAF (que procede a uma enumeração, não taxativa, de litígios cometidos à jurisdição administrativa), nomeadamente na sua al. a), onde nomeadamente se lê que compete «aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à tutela «de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais».
Compreende-se, por isso, que se afirme que o «conceito de relação jurídica administrativa erigido pela CRP (também com expressão no artº 1º/1 do ETAF) deve ser entendido como o elemento chave de distinção na repartição de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos, sendo que, na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de relação jurídica administrativa, deve entender-se que tem o sentido tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a relação jurídica pública, em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público,actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» (Ac. do TCAN, de 30.05.2018, Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão, Processo n.º 00298/17.5BEPNF, com bold apócrifo) (4).
Há ainda quem enfatize que a relação jurídica administrativa será «aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração» (Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Volume III, pág. 439-440).
«Assim, no fundo, há que averiguar se a invocada relação jurídica é uma relação de direito privado ou de direito público, pois é essa averiguação que irá determinar qual o tribunal competente para o julgamento da causa».
Ora, um dos critérios mais utilizados nesta distinção (entre o direito privado e o direito público) é o designado por «teoria dos sujeitos», de Carlos Alberto da Mota Pinto, «nos termos do qual, o direito privado regula as relações jurídicas estabelecidas entre particulares ou entre particulares e o Estado ou outros entes público, mas intervindo estes despidos de «imperium» ou poder soberano. Se a relação jurídica disciplinada pela norma não se apresenta com estas características, estamos perante uma norma de direito público, onde, pelo menos um dos sujeitos da relação disciplinada é um ente titular de autoridade e que intervém nessa veste, sendo, pois, detentor do poder de emitir comandos que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade dos destinatários» (Ac. da RL, de 20.01.2015, Pimentel Marcos, Processo n.º 375014/09.5YIPRT).
Logo, integrará necessariamente uma relação administrativa a actuação de uma autarquia local, desenvolvida na prossecução dos fins públicos que lhe estão cometidos, ao abrigo de disposições de Direito Administrativo; e tal juízo mantêm-se independentemente de a mesma actuação interpretar e aplicar correctamente, ou não, o Direito a que está sujeita (sendo essa sindicância questão posterior à determinação da respectiva sede de apreciação) (5).
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4.1.1.4. Competência dos tribunais judiciais
Lê-se no art. 211.º, n.º 1 da CRP que os «tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».
Reiterando-o, lê-se: no art. 64.º do CPC que são «da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional»; e no art. 40.º, n.º 1 da LOSJ, que «os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
Logo, os tribunais judiciais têm uma competência em razão da matéria residual, isto é, cabe-lhes julgar as causas que não sejam atribuídas a outros tribunais (por isso também se dizendo tribunais comuns).
Por fim, lê-se no art. 40.º, n.º 2 da LOSJ que «a competência, em razão da matéria, entre tribunais judiciais de primeira instância» é repartida entre as «juízos de competência especializada dos tribunais de comarca» ou os «tribunais de competência territorial alargada» (v.g. tribunal da propriedade intelectual, tribunal de concorrência, regulação e supervisão, tribunal marítimo, tribunal de execução de penas, tribunal central de instrução criminal, juízos cíveis, juízos criminais, juízos de instrução criminal, juízos de família e menores, juízos do trabalho, juízos do comércio e juízos de execução); e, quando a matéria da causa não se integrar em qualquer um daqueles tribunais de competência territorial alargada ou especializados, aquela será da competência dos juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica, que assumem uma competência residual (conforme art. 130.º, n.º 1, al. a), da LOSJ).
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4.1.1.5. Consequência processual da incompetência absoluta
Violando-se a repartição de competência em razão da matéria, ter-se-á que reconhecer que o tribunal onde a acção foi proposta é absolutamente incompetente para dela conhecer, o que constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta a que aquele conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição do réu da instância (arts. 60.º, n.º 2, 96.º, 97.º, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, al. a), todos do CPC).
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4.1.2.Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.1.2.1. Concretizando, e tal como o Requerente (M. S.) configurou a acção, verifica-se que o mesmo reage com ela à execução coerciva de uma ordem camarária de remoção de dois vasos/floreiras em cimento, que apôs à entrada do seu prédio rústico, em faixa de terreno que considera sua, mas que o Requerido (Município X) defende ser pública.
Com efeito, e sempre segundo a sua própria alegação e os documentos que juntou para a instruir, realizou um embargo extrajudicial dos trabalhos intentados levar a cabo pelo Requerido (Município X), na sequência da «NOTIFICAÇÃO PARA REMOÇÃO VOLUNTÁRIA DE VASOS», executada por meio de «EDITAL» por ele emitido, e onde nomeadamente se lê: «(…) A. J., Presidente da Câmara Municipal X, faz saber que, de acordo com o artigo 8.º, n.º 1 do Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Município X, “a ocupação do espaço público está sujeita aos regimes da mera comunicação prévia, comunicação prévia com prazo ou licenciamento, nos termos e com as exceções constantes do presente Regulamento”. Na Rua das …, União de Freguesias de ... e ..., concelho X, verificou-se que M. S., residente no local mencionado, ocupou o espaço público com 2 vasos/floreiras na zona de acesso à sua propriedade sem ter apresentado qualquer pedido de comunicação prévia ou licenciamento para a referida ocupação. Acresce que a ocupação em causa não respeita o disposto no artigo 34.º, alíneas c), f) e h) do Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Município X. Face ao exposto, verificando-se a ocupação do espaço público de forma abusiva, em violação do disposto no mencionado Regulamento, notifica-se M. S. para, nos termos do artigo 50º do Regulamento, desocupar voluntariamente o espaço público e remover os vasos/floreiras, no prazo de 5 (cinco) dias a contar da afixação do presente edital. Mais se informa que, no mesmo prazo, deve proceder à limpeza e reposição do espaço nas condições em que se encontrava antes do início da ocupação. No caso de incumprimento do dever de remoção e reposição, no prazo mencionado, fica ainda notificado que será ordenada a remoção coerciva e o depósito dos bens em armazém municipal (artigo 51.º do Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Município X), sendo o notificado responsável por todas as despesas efectuadas referentes à remoção e depósito. Comunica-se ainda que constitui contraordenação, ao abrigo do artigo 48.º, n.º 1, alíneas b), f) e k) do Regulamento de Ocupação do Espaço Público, Publicidade e Propaganda do Município X, a não realização de comunicação prévia ou licenciamento, punível com coima de € 350,00 a € 2500,00 (pessoa singular), e o não cumprimento do dever de remoção e reposição dentro do prazo imposto, punível com coima de € 250,00 a € 2500,00 (pessoa singular). Frustradas as tentativas de notificação postal e pessoal é utilizada a notificação por via de edital ao abrigo do artigo 112.º, n.º1, alínea d) do Código de Procedimento Administrativo». (…)»
Age, assim, o Requerido (Município X), pessoa colectiva de direito público (Município), com vista à realização do interesse público que lhe está cometido (aqui, a defesa e o ordenamento do espaço publico), invocando para o efeito normas de natureza eminentemente administrativa (Regulamento Municipal), que lhe outorgam o poder de coercivamente as impor (quer pela sua execução forçada, quer pelas sanções inerentes ao seu incumprimento).
Do mesmo modo o terá entendido o Requerente (M. S.), quando inicialmente reagiu ao dito edital, requerendo ao «Presidente da Câmara Municipal X» que enviasse «uma equipa de técnicos da Câmara Municipal para no local determinarem sem margem para dúvidas e em face do direito público, mas que respeite os direitos de propriedade adquiridos, qual a faixa de espaço público existente»; e avisando-o depois que, a persistir na sua inicial intenção de remoção (reafirmada em posterior despacho), «e no prazo devido terá de recorrer a Tribunal para requerer a anulação do despacho de V. Exª em tudo ilegal e incompreensível vindo do seu punho».
Manteve ainda o Requerente (M. S.) este seu entendimento quando qualificou como «acto administrativo» a concordância manifestada pelo Presidente da Câmara, em 15 de Maio de 2020, com a prévia «Informação Técnica» dos seus Serviços, reiterando a ordem de remoção coerciva dos vasos/floreiras; e reclamado como prazo para a sua própria audiência prévia, «nos termos e no domínio do direito administrativo de pelo menos 10 dias úteis, aliás prazo que» o dito Presidente de Câmara «deveria ter fixado».
Ora, é precisamente face à pretensão de execução coerciva do despacho do Presidente da Câmara a ordenar a remoção dos vasos/floreiras do que considera ser terreno público, e que o Requerente (M. S.) considera próprio, que este procede extrajudicialmente ao embargo cuja ratificação judicial aqui pediu, lendo-se expressamente no «AUTO DE EMBARGO DE OBRA NOVA E TRABALHOS» que os «trabalhos de remoção de dois vasos de cerâmica/cimento/floreiras (…) estavam a ser levados a cabo pelos representantes do Município X».
Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o objecto do litígio não coincide com a reivindicação da faixa de terreno onde se encontram depositados os vasos/floreiras (embora a discussão sobre a sua natureza - pública ou privada - neles esteja implicada), mas sim com a reacção/impugnação do acto que determinou a sua remoção coerciva (decidida efectuar por meio do embargo extrajudicial dos trabalhos destinados a executá-la).
Encontram-se, assim, as partes no âmbito de uma relação jurídica administrativa, cuja discussão e decisão cabe à jurisdição administrativa e não a esta, comum.
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4.1.2.2. Concretizando novamente, tendo o Requerente (M. S.) proposto num tribunal judicial (comum) uns autos que deveriam ter sido apresentados perante um tribunal administrativo, violou as regras de repartição da competência em razão da matéria.
Deveria, assim, o Tribunal a quo ter-se abstido de conhecer do mérito da causa (nomeadamente, da ajuizada manifesta improcedência do procedimento cautelar nominado sub judice), declarando-se ao invés incompetente em razão da matéria para o efeito, e absolvendo o Requerido (Município X) da instância.
Não o tendo feito, deverá este Tribunal ad quemcorrigir oficiosamente aquele seu juízo (uma vez que o Recorrente, no primeiro recurso que interpôs, defendeu a competência material do Tribunal a quo, para julgar e decidir os autos).
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4.2. Remessa dos autos (de tribunal incompetente em razão da matéria para os julgar) para o tribunal onde deveriam ter sido inicialmente propostos
4.2.1. Lê-se no art. 99.º, n.º 2 do CPC que se «a incompetência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada».
Logo, é pressuposto desta remessa que a incompetência tenha sido judicialmente reconhecida depois de findos os articulados, que esta decisão tenha transitado em julgado, que o autor o requeira nos 10 dias seguintes, e que, tendo sido ouvido, o réu não ofereça oposição justificada.
Compreende-se, por isso, que se afirme que para que «a oposição da ré à remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, seja eficaz, é indispensável, pois, que tal oposição seja justificada, não bastando uma oposição pura e simples, ou seja, imotivada» (Ac. da RC, de 12.02.2015, Carvalho Martins, Processo n.º 141591/13.3YIPRT.A.C1).
Avançou a actual lei, em relação ao art. 105.º, n.º 2 do anterior CPC, em que se exigia o acordo das partes para esse aproveitamento; mas avançou menos do pretendido no Anteprojecto de revisão daquele diploma, em que a remessa era feita a simples requerimento do autor, não relevando qualquer eventual oposição que o réu deduzisse.
Este aproveitamento dos autos é uma clara «manifestação do princípio da economia processual, na vertente de economia de atos e formalidades processuais» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, pág. 204, com bold apócrifo).
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4.2.2.Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
Concretizando, verifica-se que, tendo o Tribunal a quo indeferido liminarmente o procedimento cautelar nominado sub judice, fê-lo por (alegada) manifesta improcedência do mesmo, e não por se ter declarado materialmente incompetente para o apreciar e decidir.
Verifica-se ainda que: quando assim decidiu, o Requerido (Município X) não tinha sido citado, para deduzir a sua eventual oposição, não estando por isso terminada a fase dos articulados; e tendo o Requerente (M. S.) pedido então a remessa dos autos para a jurisdição administrativa, o Requerido (Município X) não foi igualmente ouvido sobre essa sua pretensão.
Logo, não podia o Tribunal a quo, por falta de requisitos legais, deferir esta pretensão do Requerente (M. S.); e, por isso, bem andou ao indeferi-la.
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Importa, pois, decidir em conformidade, pela improcedência de ambos os recursos de apelação interpostos.
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V - DECISÃO
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedentes os dois recursos de apelação interpostos por M. S., e em conhecer oficiosamente da incompetência material do Tribunal a quo para apreciar e decidir os presentes autos, e, em consequência, em:
· Revogar a primeira decisão recorrida, declarando o Tribunal a quo materialmente incompetente para apreciar e decidir os autos (sendo materialmente competente para esse efeito a jurisdição administrativa), e por isso absolvendo o Requerido (Município X) da instância;
· Confirmar a segunda decisão recorrida, mantendo o despacho que indeferiu a remessa dos autos para a jurisdição administrativa.
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Custas pelo Recorrente (art. 527.º, n.º 1 do CPC).
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Guimarães, 24 de Setembro de 2020.
O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos
Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos; 1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias; 2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.
1. No mesmo sentido, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Almedina, 2.ª edição, pág. 207; e Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 95.
2. No mesmo sentido, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 1979, págs. 91-95., onde afirma que a competência se afere pelo «quid disputatum» - «quid decidendum», em antítese com o que será mais tarde o «quid decisum». Ainda Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 104.
3. Neste sentido, Ac. do STJ, de 31.12.2006, Nuno Cameira, Processo n.º 06A2917.
4. No mesmo sentido, Ac. do TC, de 17.05.2018, José Raínho, Processo n.º 02/18, onde se lê que «o critério material que enforma a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa reporta-se ao conceito de relação jurídica administrativa enunciado no mencionado art.º 212.°, n.º 3, da CRP, isto é, ao conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público. (O conceito de relação jurídica administrativa consta, também, da aI. o) do n.º 1 do art.º 4.°, que se assume como uma norma residual, que abrange os litígios jurídico-administrativos não enunciados no mesmo n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.)».
5. De forma conforme, Ac. do Tribunal de Conflitos, de 08.12.2010, Processo nº 020/10, onde se lê que, sendo «o conceito de relação jurídica administrativa (…) decisivo para determinar a competência entre os Tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais», «importará analisar em que termos foi desenhada a causa de pedir e qual foi o pedido formulado, pois será essa análise que indicará se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa», sendo «certo que para esse efeito é irrelevante o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão, por se tratar de questão atinente ao seu mérito».