ILEGITIMIDADE DO ASSISTENTE
CRIME DE VIOLAÇÃO DE REGRAS URBANÍSTICAS
Sumário


Não assiste legitimidade ao recorrente para intervir nos autos na qualidade de assistente relativamente ao crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal e, consequentemente, para prosseguir criminalmente contra a arguida desacompanhado do Mº Pº e obter a sua pronúncia em sede de instrução.
Verificando-se a exceção de ilegitimidade do recorrente relativamente ao crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal, mostra-se, quanto a tal crime, prejudicada a apreciação do mérito da questão, com a consequente não pronúncia da arguida pela prática deste crime por falta deste requisito formal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora

Nos autos de Instrução que com o nº 2262/13.4TAFAR correm seus termos no Juízo de Competência Genérica de Vila Rela de Santo António, J2, da Comarca de Faro, realizada que foi a instrução, com produção de prova documental e testemunhal, bem como com declarações do assistente, datada de 25-03-2019, foi proferida a seguinte decisão instrutória:

“Declaro encerrada a instrução.

O tribunal é competente.

Nos presentes autos, findo o inquérito o Mº Pº proferiu despacho de arquivamento em relação aos factos denunciados pelo assistente JMPA, o qual, não se conformando com o despacho de arquivamento, veio requerer a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia de IVTF, imputando-lhe a prática dos crimes de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal, de usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo art. 215º do Código Penal, de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal e de fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal.

O requerimento de abertura de instrução foi rejeitado por despacho de fls. 1265 e ss., com fundamento na omissão de descrição de factos integradores de todos os elementos do tipo, tendo por Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora sido revogada a decisão e determinada a admissão da instrução, a qual foi admitida (fls. 1313 e ss.).

Em sede de instrução, foi produzida prova por declarações do assistente, prova documental e testemunhal.

Realizou-se, de acordo com as formalidades legais, o debate instrutório.

Inexistem nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.

Cumpre, no entanto, apreciar questão prévia da ilegitimidade do assistente no que respeita ao crime de violação de regras urbanísticas que imputa à arguida no RAI.

Os presentes autos iniciaram-se com a denúncia apresentada por JMPA.

Por despacho de fls. 475, proferido em sede de inquérito, foi o mesmo admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente.

Findo o inquérito e na sequência de despacho de arquivamento, veio o assistente requerer a abertura de instrução, imputando, como supra referido, a IF a prática dos crimes de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal, de usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo art. 215º do Código Penal, de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal e de fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal.

Pese embora JA tenha sido admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente, tal admissão ocorreu em momento anterior ao despacho final do inquérito e, consequentemente, à apresentação do RAI.

No que respeita aos crimes que o assistente imputa à arguida no RAI, desde logo não há dúvidas de que assiste legitimidade ao assistente para lhe imputar e poder vir a obter a pronúncia da mesma pela prática dos crimes de usurpação de coisa imóvel, dano e fotografias ilícitas, porquanto se trata de crimes de natureza semi-pública (arts. 215º, nº 3, 212º, nº 3 e 199º, nº 2 e 198º do Código Penal), em que de acordo com a versão do queixoso o mesmo é a vítima/ofendido da prática desses ilícitos criminais.

Já, porém, no que respeita ao crime de violação de regras urbanísticas, verifica-se que se trata de crime de natureza pública.

Quanto a crimes desta natureza, desde logo se refira que para dar início ao procedimento criminal pela prática dos mesmos, basta ao Mº Pº tomar conhecimento da notícia do crime, pelo que qualquer pessoa pode dar a conhecer ao Mº Pº tal ocorrência (ou eventual ocorrência).

Já, no entanto, contrariamente ao que sucede quanto aos crimes de natureza semi-pública, nos crimes públicos nem sempre assiste legitimidade às pessoas que dão a conhecer ao Mº Pº a notícia do crime para que, desacompanhadas deste, possam prosseguir criminalmente contra a pessoa denunciada.

Com efeito, apenas pode prosseguir criminalmente desacompanhado do Mº Pº (é dizer, apenas pode requerer a abertura de instrução em relação a factos objeto de arquivamento pelo Mº Pº ou deduzir acusação particular nos casos de crimes dessa natureza – arts. 285º e 287º, nº 1, al. b) do CPP) o assistente e apenas nas situações em que a sua admissão nessa qualidade é possível, o que se verifica, como já vimos, nas situações em que o procedimento criminal depende de queixa ou acusação particular (art. 68º, nº 1, al. b) do CPP) e também em certas situações de vítimas menores ou incapazes (art. 68º, nº 1, al. d) do CPP), em certos tipos de crime expressamente previstos (art. 68º, nº 1, al. e) do CPP) e, finalmente, quando é o ofendido, ou seja, quando é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (art. 86º, nº 1, al. a) do CPP). Por fim, as situações plasmadas em legislação especial.

Daqui resulta, portanto, que estando em causa um crime de natureza pública, apenas pode haver intervenção como assistente por parte do titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, é dizer, o titular do bem jurídico protegido com a norma ou então estando em causa um dos crimes tipificados na al. e) do nº 1 do art. 68º do CPP ou em legislação especial.

Desde logo o crime de violação de regras urbanísticas não se insere entre os tipos de crime previstos nessa alínea e) do nº 1 do art. 68º do CPP ou em legislação especial, pelo que resta analisar se o assistente é, no que respeita ao crime de violação de regras urbanísticas, o titular do bem jurídico protegido com a incriminação.

A respeito do art. 278º-A, refere António Fernando Cruz Novo, in “ A violação de regras urbanísticas” (tese de mestrado), que este preceito visa sancionar os particulares que levem a efeito operações urbanísticas em solo não urbanizável ou em bens e imóveis protegidos por lei especial ou regulamentar. Citando CARMO DIAS, refere que “podemos dizer que se protege o uso racional do solo”. Este, o solo, é assim, o bem jurídico protegido.

No mesmo sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Cometário do Código Penal, anot ao art. 278º-A, segundo o qual “o bem jurídico é a preservação da natureza, na sua vertente de solo. A proteção penal é feita mesmo contra a vontade do proprietário do imóvel, como resulta claro da sua inserção sistemática deste novo tipo penal no título IV do livro II (Dos crimes contra a vida em sociedade), entre os tipos de danos contra a natureza e o tipo da poluição”.

Esta posição não é, no entanto, unânime na doutrina. João Miguel Ferreira Rodrigues, por seu lado, in “Reflexões Teórico-práticas sobre os novos crimes urbanísticos”, sustenta que a “legalidade urbanística” como o conjunto de normas vigentes reguladoras do ordenamento do território é a formulação mais fiel ao que terá sido a intenção do legislador ordinário e constitucional, resultando claro que, no artigo 278.º-A, o bem jurídico é a legalidade urbanística.

Sendo embora desde logo as interpretações dos autores acerca do bem jurídico protegido, teremos, no entanto, de concluir que, estejamos perante uma ou outra das interpretações, desde logo o preceito não protege de qualquer forma qualquer bem jurídico do assistente, antes estando em causa um bem jurídico supra individual.

Assim, ainda que o assistente pudesse ficar prejudicado com a violação da norma penal, não são os seus interesses aqueles que a norma penal especialmente visou acautelar.

A esse respeito veja-se o Ac do TRP, de 12/01/2011, in www.dgsi.pt, segundo o qual “para efeitos de assegurar a legitimidade da intervenção nos autos como assistente, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. No caso de crime público em que o interesse tutelado seja exclusivamente público, a regra é de que ninguém poderá constituir-se assistente”.

É o que sucede in casu, em que estamos perante um crime público que tutela um interesse exclusivamente público. Face ao bem jurídico protegido neste tipo de crime, não se pode concluir que JA seja o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

Consequentemente, não lhe assiste legitimidade para intervir nos autos na qualidade de assistente quanto a este tipo de crime.

É certo que o mesmo foi admitido, de forma genérica (sem referência a qualquer ilícito criminal), a intervir nos autos na qualidade de assistente. Porém, tendo o despacho de admissão sido proferido no âmbito do inquérito, sem que se apreciasse especificamente a sua legitimidade quanto a este concreto tipo de crime (já vimos que foram denunciados pelo mesmo vários crimes de natureza semi-pública em que é queixoso), não se mostra vedado o conhecimento desta questão, ou seja, da ausência de legitimidade de JMPA intervir nos autos na qualidade de assistente relativamente ao crime de violação de regras urbanísticas e, consequentemente para em instrução obter a pronúncia da arguida pela prática deste crime. Neste sentido, entre outros, o Acórdão do TRL, de 20/06/2007, de acordo com a qual “ A decisão que admite o assistente a intervir como tal nos autos não faz caso julgado formal, mas sim caso julgado rebus sic stantibus, podendo a questão da legitimidade ser decidida diferentemente em momento posterior do processo. A legitimidade para intervir como assistente, em inquérito, afere-se pela denúncia, enquanto a legitimidade a apreciar subsequentemente prende-se com a natureza dos crimes a que se refere a acusação, o requerimento de abertura de instrução ou a decisão recorrida, em caso de recurso.

Assim sendo, não assiste legitimidade a JMPA para intervir nos autos na qualidade de assistente relativamente ao crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal e, consequentemente, para prosseguir criminalmente contra a mesma desacompanhado do Mº Pº e obter a sua pronúncia em sede de instrução.

Face ao exposto, verificando-se a exceção de ilegitimidade de JMPA relativamente ao crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal, mostra-se, quanto a tal crime, prejudicada a apreciação do mérito da questão, com a consequente não pronúncia da arguida pela prática deste crime por falta deste requisito formal.

Sempre se diga, porém, que ainda que assim não sucedesse, atendendo a que, como resulta da redação do art. 278º-A, nº 1 do CPP, que não são quaisquer obras que integram o tipo de crime em análise, mas apenas as que são levadas a efeito sobre a via pública, terreno da REN, da RAN, bem do domínio público ou terreno especialmente protegido por disposição legal, que das várias obras que foram denunciadas pelo assistente, apenas as respeitantes a parte do parque de estacionamento poderiam integrar o elemento típico, já que apenas em relação a estas se descreve no RAI que foram levadas a efeito em parte terreno agrícola e da RAN, embora se referindo também o muro construído com a altura de 3 metros como violador do PDM de VRSA (havendo ainda a questão da data da construção, segundo o assistente em data posterior a 2010 e segundo a sentença proferida no âmbito do processo de contraordenação referente a tal construção, em data anterior, sendo que o tipo de crime em questão apenas se mostra tipificado desde 2010 – cfr. certidão de fls. 337 a 345), tendo já sido reposta a situação, com a demolição daquele parque em terreno da RAN e construção do parque de estacionamento noutro terreno entretanto adquirido pela assistente, tal como foi reconhecido pelo próprio assistente e referido por AR, se verificariam os requisitos de aplicação do art. 280º, nº 2 do CPP – obviamente dependente da concordância do Mº Pº, não carecendo, contrariamente ao que sucede com a suspensão provisória do processo, da concordância do assistente).

No mais, a instância inexistem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpre conhecer.

Assim, quanto aos demais ilícitos penais imputados pelo assistente à arguida, cumpre conhecer e decidir.

Cumpre apreciar e decidir.

Antes de mais, cumpre fazer uma breve análise dos fins que regem a fase de instrução.

De acordo com o disposto no art. 286º/l, do Cód. Proc. Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão final proferida em sede de inquérito (acusação ou arquivamento do inquérito), em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Tem-se em vista, nesta fase processual, que é uma fase facultativa, a formulação de um juízo seguro sobre a suficiência dos indícios recolhidos relativos à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 308º/1 do Cód. de Proc. Penal).

Concluindo-se pela suficiência dos indícios recolhidos haverá que proferir despacho de pronúncia, caso contrário, o despacho será de não pronúncia.

Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.

Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como vimos, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.

Não se pretende alcançar a demonstração da realidade dos factos mas apenas uma razoável probabilidade da existência de um crime praticado por determinado arguido. Mas, porque a decisão de submeter determinado arguido a julgamento se reveste de alguma gravidade para este, a nossa doutrina bem como os nossos mais altos Tribunais têm entendido que a possibilidade razoável de condenação, em sede de julgamento, deverá ser mais positiva que negativa, querendo isto significar que o arguido deverá apenas ser pronunciado quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos se forme a convicção de que é mais provável que tenha cometido o crime do que o inverso. Esta forte probabilidade de responsabilização do arguido pelos factos que lhe são imputados na acusação, deverá, ainda, brotar da matéria fáctica recolhida durante a investigação e não de meros considerandos de direito.

Daí que, nos termos do disposto no art. 308º, nº 1 do C. P. P., “se, até ao momento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos”.

Nos termos do disposto no art. 283º, nº 2, ex vi do art. 308º, nº 2, ambos do C. P. P., “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Nestes termos, impõe-se que a análise dos factos concretos se limite à apreciação indiciária do cometimento do crime por parte dos arguidos.

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, “para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pis, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.

Esta possibilidade é uma probabilidade mais do que negativa; o juiz só pronuncia o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” (cfr. Curso de Processo Penal, Vol. III, 3ª ed., p. 181 e 182).

Fixadas as diretrizes, que de acordo com a lei, nos devem orientar na prolação da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, interessa agora, apurar, por um lado, se em face da prova recolhida até ao momento se indicia suficientemente a prática pela arguida dos factos que lhe são imputados no RAI do assistente.

E, ponderada a prova produzida no inquérito e na instrução, consideram-se suficientemente indiciados e não indiciados os seguintes factos.

Factos suficientemente indiciados

1- O assistente é dono e legítimo possuidor do prédio misto sito em Av…………..,….,freguesia de ……………., descrito na Conservatória do Registo Predial de……………….. sob a ficha …………….. e inscrito na respetiva matriz sob o art. …..da secção….(rústico).

2- A arguida no seu prédio contíguo a poente daquele, inscrito então na respetiva matriz rústica da mesma freguesia sob o art…….da secção……construiu ao abrigo do Alvará …….. um prédio urbano.

3- A arguida, em data que não pode precisar, mas anterior a 18 de Fevereiro de 2008, colocou um portão que impede o assistente de aceder às traseiras das suas dependências agrícolas por esse local e efetuou obras de pavimentação com sobreelevação da cota do terreno em cerca de 40 cm para afetação a parque de estacionamento.

4- Em data não concretamente apurada, mas entre 2008 e 2013, a arguida efetuou novas obras de pavimentação com sobreelevação da cota do terreno em cerca de 40 cm.

5- Devido a estas obras, as águas pluviais passaram a fluir em maior volumetria para dentro da parte urbana do prédio do assistente.

6- Em data não concretamente apurada, mas antes de dezembro de 2013, a arguida colocou na fachada nascente do edifício que construiu no seu prédio duas câmaras de videovigilância orientadas a que, pelo menos uma delas, a orientada para norte/nascente, alcança uma entrada pelo lado poente do prédio do assistente e uma pequena parte do seu logradouro que medeia entre a construção principal a norte, onde se situa a entrada principal e as instalações agrícolas e armazém.

7- Tal câmara de vídeo vigilância gravava permanentemente a referida zona de entrada do prédio do assistente e uma pequena parte do logradouro, pelo que a imagem do assistente é gravada quando circula por esse local.

8- O assistente nunca autorizou a colocação das referidas câmaras que lhe gravam a imagem, antes a ela sempre se opôs.

Factos não suficientemente indiciados

1- O portão referido em 3 dos factos indiciados está a ocupar uma parte do prédio do assistente.

2- Não obstante a Câmara Municipal de ………………………. tenha em 16/05/2008 ordenado à arguida a desocupação da parcela ocupada, a mesma não deu cumprimento à ordem.

3- As obras referidas em 4 dos factos indiciados consumaram a ocupação dos terrenos do assistente.

4- As obras referidas em 4 dos factos indiciados consistiram também no entaipamento de uma caixa de esgotos existente nessa parcela do terreno.

5- Com a ocupação do terreno e execução das obras o assistente ficou impedido de entrar e sair livremente do seu referido prédio.

6- Os factos descritos em 5 dos factos indiciados danificaram os pavimentos e os móveis e utensílios existentes no prédio urbano do assistente.

7- A arguida bem sabia que o todo o seu comportamento descritos nos factos suficientemente indiciados e não indiciados era proibido por lei e causa graves prejuízos ao assistente.

Não se consideraram nos factos indiciados e não indiciados os factos descritos no RAI apenas atinentes ao crime de violação de regras urbanísticas, atenta a decisão proferida supra quanto a este ilícito criminal.

O decidido, quanto aos factos indiciados e não indiciados funda-se no seguinte.

Quanto aos factos indiciados:

A titularidade dos prédios e construção de prédio urbano pela arguida não se mostra posta em causa nos autos, resultando de resto do teor da vasta documentação junta aos autos, mormente de fls. 144 a 145, 173 a 177, 247 e ss.

Quanto à colocação do portão e data da mesma, o decidido funda-se no teor da denúncia apresentada pelo assistente à ……………, em 18/02/2018, em que já nessa data refere a colocação do portão (cfr. fls. 154 a 155), sendo que o próprio assistente, nas declarações que prestou em sede de instrução referiu a realização das obras que acompanharam a colocação do portão em 2008.

Quanto à data da elaboração das demais obras, embora o assistente tenha em sede de instrução referido que a arguida continuou a efetuar obras de monta até 2012 e que efetuou obras de pavimentação por cima do seu prédio (o nº 70) já após as primitivas obras referentes ao parque de estacionamento, não foi preciso quanto à data em que tais obras foram levadas a efeito, referindo que quando foram feitas ainda ficou sem ser tapado o escoador das águas pluviais, apenas tapado em 2015.

Assim, embora persista a dúvida quanto à data em que tais obras foram levadas a efeito, sabe-se que foi antes de dezembro de 2013, porquanto aquando da apresentação da queixa, nessa data, o assistente já as menciona.

Quanto à indiciação de que passou a existir maior volumetria de águas pluviais no prédio do assistente, o decidido funda-se na circunstância de, além de mencionada pelo assistente, ser visível acumulação de água nas fotografias de fls. 87 (ainda que de escassa relevância), 88, 89, 842 a 843 (embora se desconheça o estado em que ficava o espaço visível nas fotografias antes das obras, mormente em dias de grande pluviosidade) e, bem assim, de resultar das regras da experiência comum que um solo em terra absorve maior quantidade de águas pluviais do que um solo em pavers, material usado para a pavimentação pela arguida. Sempre se diga, porém, que o próprio espaço do logradouro do prédio do assistente.

Por fim quanto à indiciação suficiente da colocação das câmaras de videovigilância e sua captação (factos descritos em 6 a 8 dos factos indiciados), o decidido funda-se no teor das fotografias de fls. 68, 73, 99, 101, 102, fotogramas extraídos da câmara apontada ao local e que constam de fls. 798 a 802 (parte integrante da certidão extraída do processo 33/14.0GAVRS), em conjugação com as declarações do assistente e depoimentos de EDP (tio do assistente – fls. 944 a 945) e RFDP (primo do assistente – fls. 946 a 947). O primeiro refere ter visto duas câmaras e em momento ulterior apenas uma e o segundo refere ter visto apenas uma câmara, mas ambos referem estar direcionada à propriedade do assistente, na área habitacional.

Vejamos agora quanto aos factos não indiciados.

Quanto à não indiciação de a Câmara Municipal ter notificado a arguida para a desocupação do terreno ocupado (nº 2 dos factos não indiciados), o decidido funda-se no seguinte: se é certo que o documento de fls. 63 contém a indicação de que deve ser notificada a arguida do mesmo, o que dele resulta não é a notificação da arguida para desocupar o terreno, mas antes para em 30 dias se pronunciar ao abrigo do art. 100º do CPA acerca da conclusão por parte da edilidade da existência de ocupação indevida dos limites do terreno e de que a mesma deveria ser desocupada. Acresce que a fls. 327 consta apreciação da assessora jurídica da ……. com a indicação de que na sequência da referida notificação à arguida a mesma requereu uma reunião no Instituto Geográfico Português, que teve lugar em 24/06/2008 e que aí foi a Câmara informada que as coordenadas que haviam sido fornecidas e pelas quais haviam concluído pela ocupação indevida pela arguida poderão conter um erro médio quadráctico de entre 90 cm a 2,5m2. E que a Câmara não possui meios para aferir a legitimidade do requerente. Daí que tenha concluído que tratando-se os limites da propriedade de uma questão entre particulares, do domínio privado, nada lhe cabia determinar nessa matéria e que nada havia a opor à emissão de licença.

Quanto à não indiciação de que com a colocação do portão e obras de pavimentação tenha sido ocupado o prédio do assistente e este privado de aceder ao seu prédio (factualidade descrita em 1, 3 e 5 dos factos não suficientemente indiciados), o decidido funda-se na circunstância de essa questão da delimitação dos terenos ser objeto de ação de demarcação intentada pela aqui arguida contra o aqui assistente e que corre termos pelo Tribunal de ……….. No âmbito dessa ação (ação de processo sumário …………..) foi proferida sentença em 08/01/2019, ainda não transitada em julgado (pelo menos à data da remessa da certidão respetiva a estes autos – cfr. fls. 1192 a 1308 e 1327 a 1328), que julgou a ação procedente e improcedente a reconvenção e determinou a demarcação entre os dois prédios (do assistente e da arguida) em conformidade com o que havia sido requerido pela autora, tendo ainda o ali réu/reconvinte e aqui assistente sido condenado como litigante de má fé em multa de 5 UC.

Embora tal sentença não tenha ainda transitado em julgado, não se mostra possível concluir, face ao teor da mesma (não contrariada por outros elementos de prova constantes dos presentes autos, salvo as declarações do assistente, insuficientes a tal), que a colocação do portão e parte das obras de pavimentação tenham sido levados a efeito no prédio do assistente. Antes pelo contrário, o que resultou dessa ação é que a parte do terreno em que foram levadas a efeito essa ações integra o prédio da arguida e que inclusive uma parte da construção usada pelo assistente integra o prédio da arguida.

No que concerne à não indiciação de que a arguida tapou uma caixa de escoamento das águas pluviais (factualidade descrita em 4 dos factos não indiciados), o decidido funda-se na circunstância de tal ser mencionado apenas pelo assistente, tendo sido negado pelo então arguido e pai da arguida, DF (fls. 952 a 954). Nenhuma outra prova foi produzida no sentido de tal situação ter ocorrido, sendo certo que em nenhuma das fotografias juntas aos autos (mormente de fls. 68, 87, 103, 104, 370 a 373) se mostra visível tal situação (embora as de fls. 103 e 104 mostrem uma caixa, mas que se desconhece de que caixa se trata, sendo certo que também na de fls. 87 se mostra visível uma outra caixa) e que a testemunha MRAG fiscal da ………………, referiu não ter detetado qualquer problema com caixas de esgoto ou outas. AJGGS, também fiscal municipal referiu que não obstante em uma das fiscalizações tenha sido mencionada essa situação e se encontrasse cerca de 1 m2 em que haviam sido removidos os pavers, não eram visíveis quaisquer esgotos (locais de escoamento).Também o auto de vistoria de fls., 364, por parte da …., …………, dá conta de, na sequência da reclamação por parte do assistente, não ter sido detetada qualquer anomalia, embora no que respeita ao escoamento de águas residuais domésticas, não referindo de forma expressa o escoamento das águas pluviais. Mas sempre se diga que quanto à tapagem desta caixa de escoamento, não consta a mesma da queixa apresentada nem se mostra referida nas declarações prestadas no âmbito do inquérito pelo assistente (fls. 347 a 355 e 453 a 459), em que apenas se referem as obras de pavimentação e elevação do terreno, mas nenhuma referência à tapagem da caixa de esgoto, pelo que sempre esta não poderia ser considerada como conduta ilícita (por falta de exercício atempado do direito de queixa), ainda que tivesse resultado como suficientemente indiciada.

Também nenhuma prova foi produzida no sentido de que o aumento de volumetria das águas pluviais ter causado danos nos pavimentos, móveis e utensílios existentes no prédio urbano do assistente (facto descrito em 6 dos factos não indiciados). Com efeito, nas declarações prestadas pelo mesmo em sede de inquérito e instrução não foi feita qualquer referência concreta a quaisquer pavimentos, móveis ou utensílios danificados, sendo certo que nas fotografias de fls. 87, 88 a 89, 103 não são visíveis quaisquer danos. Nenhuma outra prova foi produzida neste sentido.

No que respeita à não indiciação suficiente dos factos atinentes ao elemento subjetivo (factos descritos em 7 dos factos não suficientemente indiciados), desde logo no que respeita a esta factualidade reportada ao imputado crime de dano, cumpre referir por um lado que não resultando demonstrada a existência de danos ou destruição ou tornar não utilizável coisa alheia, não se pode concluir que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e que com a mesma quis causar prejuízos ao assistente. Mas ainda que assim não sucedesse, sempre se diga que resultando da sentença proferida na já referida ação de demarcação que o local em que a arguida levou a efeito as obras de pavimentação é sua pertença e não do assistente, a mesma não estava com o simples ato de pavimentação a ofender coisa pertença do assistente. Por outro lado, ainda que se demonstrasse que do aumento da volumetria das águas pluviais resultaram danos para o assistente, sempre se diga que não se pode concluir que a arguida ao efetuar as obras de colocação de pavers o fizesse com intenção de danificar coisas do assistente ou sequer que tivesse chegado a representar essa possibilidade, conformando-se com a mesma. Embora seja normal que da pavimentação resultasse um aumento da volumetria das águas pluviais, já não ao ponto de se poder concluir que daí resultassem danos para pavimentos, móveis ou utensílios do assistente e que, portanto, a arguida tenha representado a possibilidade que da sua conduta resultassem esses danos conformando-se com ela (sendo certo que o crime de dano não é punido a título negligente).

Por fim e no que concerne à não indiciação suficiente dos factos atinentes ao elemento subjetivo (factos descritos em 7 dos factos não suficientemente indiciados) reportados ao crime de fotografias ilícitas, o decidido funda-se no seguinte:

Pese embora tenha resultado indiciada a colocação das câmaras de vigilância pela arguida, uma das quais capta imagens de local utilizado pelo assistente para entrar no seu prédio e parte do logradouro do mesmo, desde logo resulta do teor do documento de fls. 833 a 855 e 929 a 931 que a Comissão de Proteção de Dados autorizou a colocação de uma das câmaras no local (zona da receção/parque de estacionamento exterior), tendo DF invocado essa autorização nas declarações que prestou.

É certo que de acordo com essa mesma autorização, apenas se mostra licenciada uma das câmaras e que a recolha de imagens deve confinar-se à propriedade do responsável, não podendo abranger imagens da via pública ou de propriedades limítrofes.

Não obstante, refira-se que apenas uma das câmaras se mostrava apontada para o local por onde se efetua a entrada no prédio do assistente, estando a outra apontada em sentido oposto.

E mostrava-se apontada para o local por onde se fazia a entrada para o parque de estacionamento da então hospedaria.

É certo que o assistente invocava que parte desse espaço é sua pertença, tendo sido ocupado/usurpado ilegitimamente pela arguida.

Porém, tal como supra referido, por sentença proferida na ação de demarcação intentada pela arguida contra o assistente (embora ainda não conhecido o seu transito em julgado), foi considerado provado que todo esse espaço de que o assistente se arroga integra o prédio da arguida. E que inclusive as casas velhas que são captadas pelas câmaras de vigilância (cfr. fls. 1064 a 1065 e 801 a 802) estão em parte colocadas sob o prédio da arguida e haviam sido doadas pela tia do assistente ao seu irmão, falecido pai do assistente, aquando da divisão dos prédios para que este as demolisse e tivesse acesso autónomo à parte agrícola do prédio, o que o mesmo, no entanto, não fez. Que o ora assistente passou a usar o prédio agora da arguida para esse fim e passando ainda aceder ao seu prédio pelo prédio da assistente, o que nunca sucedera antes. E a demarcação que foi determinada pela sentença abrange ainda uma dessas casas velhas, que, contrariamente ao referido pelo primo e tio do assistente, não correspondem à parte habitacional do prédio do assistente, que possui entrada pela EN ……..

Resulta ainda da referida ação que a tia do assistente, CC, vendedora do prédio à arguida, lhe enviou uma carta dando-lhe conta de toda a referida factualidade no que diz respeito à divisão do prédio, em data anterior à colocação das câmaras, tendo a arguida intentado a referida ação de demarcação em 2011.

Ora, resultando da referida sentença que é o assistente que usa o prédio da arguida e que passou a usar esse prédio sabendo que não lhe pertencia e que as casas confinantes com o prédio da arguida deviam ser demolidas para que tivesse acesso a partir da via pública à parte rustica do seu prédio, factos que foram comunicados por escrito à arguida pela vendedora do prédio, tia do assistente e, bem assim, que o assistente estava ciente destes factos, tanto mais que foi condenado como litigante de má fé, perante todo este circunstancialismo não se pode concluir que a arguida sabia que o seu comportamento era proibido e que estava a prejudicar o assistente.

Na verdade, tendo o assistente um acesso à sua habitação pela via pública e sabendo que aquele terreno por onde acedia ao seu imóvel integrava o prédio da arguida, o mesmo colocou-se na situação de ser filmado pelas câmaras de videovigilância de livre vontade.

E estando a arguida convicta de que todo aquele espaço era integrante do seu prédio e que o arguido apesar de o usar sabia que não lhe pertencia e que o mesmo tinha outro acesso ao seu imóvel, não se pode concluir pela referida factualidade integrante do elemento subjetivo do tipo.

Do enquadramento jurídico

Do crime de usurpação de coisa imóvel

Quanto a este crime, desde logo no que respeita às obras levadas a efeito em 2008 terá de se concluir pela prescrição do procedimento criminal.

Com efeito, tal como resulta do disposto no art. 215º, nº 1 do Código Penal, o crime em análise é punido com pena de prisão até dois anos ou multa.

Face a tal moldura abstrata, o prazo de prescrição é de 5 anos (art. 118º, nº 1, al. c) do Código Penal).

Tendo a arguida efetuado tais obras em data não concretamente apurada, mas anterior a Fevereiro de 2008 e tendo a queixa sido apresentada apenas em Dezembro de 2008, terá de se concluir que aquando da apresentação da queixa já havia decorrido o prazo de prescrição do procedimento criminal.

O mesmo se diga quanto às demais obras, em relação às quais não se apurou a data exata da sua realização, mas concluindo-se que terá sido entre Fevereiro de 2008 e 2013, vindo a arguida a ser constituída nessa qualidade apenas em 03/07/2014, desconhecendo-se a data exata da prática dos factos, mas podendo ser mais de cinco anos antes dessa constituição (fator interruptivo da prescrição – art. 121º, nº 1, al. a) do CPP), também nessa possibilidade, se terá de concluir pelo decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal.

Mas ainda que assim se não entenda, não se tendo demonstrado que a coisa imóvel em que a arguida levou a efeito a colocação do portão e as obras de pavimentação com sobreelevação da cota fosse alheia, facto que constitui elemento objetivo do tipo, impõe-se, sem necessidade de ulteriores considerações a não pronuncia da mesma pela prática do crime de usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo art. 215º, nº 1 do Código Penal que lhe é imputado pelo assistente.

Do crime de dano

Quanto a este crime, não tendo resultado indiciado que com a sua conduta, mormente de pavimentação e sobreelevação do terreno a arguida tenha causado danos, destruído ou tornado não utilizável coisa alheia (mormente pavimentos, móveis e utensílios) do assistente, terá a arguida igualmente de ser não pronunciada pela prática do crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal que lhe é imputado pelo assistente.

Do crime de gravações ilícitas

No que respeita a gravações ilícitas haverá de considerar o disposto nos arts. 192º, nº 1, al. d) do Código Penal e o art. 199º, nº 2, al. a) do mesmo diploma legal.

Dispõe o art. 192º, nº 1, al. b):

Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual:

b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagens das pessoas ou de objetos ou espaços íntimos.

Tal como resulta das fotografias de fls. 800 a 802, a câmara mostra-se apontada para um espaço que viria a ser reconhecido na ação de demarcação como espaço integrante da propriedade de IF.

E embora sejam captadas imagens das paredes de imóvel utilizada pelo assistente e, bem assim, uma porta, também resultou provado na ação de demarcação que parte delas integram ainda o prédio da arguida e que a outra parte foi acordado ficar do lado do pai do assistente para ser demolida, o que não só não sucedeu, como passou o assistente a usar o prédio da assistente para aceder às mesmas e ao seu logradouro, o qual poderia aceder a partir do interior da casa de habitação, com outra entrada.

Ora desde logo se refira que no que respeita ao espaço captado, nem todos os espaços são merecedores da tutela penal, mas apenas os espaços ou objetos íntimos, não estando em causa espaço dessa natureza.

No que respeita ao registo de imagem do assistente quando por ali se desloca, cumpre referir que o tipo de crime em análise exige a demonstração de que atuação, além de sem consentimento, com, intenção de devassar a vida privada, mormente a intimidade da vida familiar ou sexual.

Ora, não só esta intenção de devassar a vida privada, mormente a intimidade da vida familiar ou sexual, não se mostra articulada de qualquer forma pelo assistente, que se limita a referir que a atuação da arguida visou causar-lhe prejuízos (não se confundindo claramente a intenção de devassar a vida privada com a intenção de causar prejuízos), como também não resultou suficientemente indiciada esta factualidade.

Com efeito, a assistente pediu autorização para a colocação de câmara na zona da receção do empreendimento e com vista a captar o acesso ao parque de estacionamento, de forma a que pudesse controlar as entradas e saídas do estabelecimento de alojamento local.

A câmara mostra-se colocada de forma a captar esse acesso.

Neste circunstancialismo não se pode concluir que a arguida tenha atuado ao colocar a câmara com intenção de devassar a vida privada do assistente, sendo certo que à verificação do tipo de crime em questão não basta o dolo genérico.

Vejamos agora quanto ao crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º, nº 2, al. a) do Código Penal.

Dispõe tal preceito:

Na mesma pena incorre quem, contra vontade:

a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em evento em que tenha legitimamente participado.

Embora tenha resultado indiciado que pelo menos uma das câmaras estava apontada a uma zona por onde o assistente acede ao seu prédio e que sempre que por aí se desloca é captada a sua imagem, já não resultou demonstrado que a arguida estivesse ciente da proibição da sua conduta e, bem assim, que quisesse causar prejuízo ao assistente.

Como supra referido, a arguida mostra-se autorizada pela CPD à utilização de uma câmara (embora em determinado momento tenha colocado duas em funcionamento, mas apenas uma apontada ao local em discussão) e o espaço para que está apontada é, de acordo com a sentença proferida na ação de demarcação, pertença da mesma, sendo que é o assistente quem viola o direito de propriedade da arguida ao entrar nesse espaço para aceder à sua propriedade, o que o mesmo estava ciente.

Não se pode, assim, neste circunstancialismo concluir que a ilicitude da conduta da arguida se mostra excluída, dada a sua atuação no exercício de um direito (art. 31º, nº 1, al. b) do Código Penal).

Daí não terem resultado indiciados os factos alegados no RAI que integram o elemento subjetivo do tipo, o que determina a não pronúncia da arguida pela prática deste crime.

Em face do exposto, decide-se:

Não pronunciar a arguida, IVTF, pela prática dos crimes de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A, nº 1 do Código Pena, usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo art. 215º, nº 1 do Código Penal, dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal e gravações ou fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º, nº 2, al. a) do Código penal que lhe são imputados pelo assistente JMPA no RAI.”

Inconformado com o decidido, recorreu o assistente JMPA, nos termos da sua motivação constante de fls. 1397 a 1403, concluindo nos seguintes termos:

I- O bem jurídico protegido pela criminalização da violação das regras urbanísticas (art. 278-A do Cod. Penal) não é só a legalidade, mas principalmente, a defesa do ambiente, qualidade de vida dos cidadãos e sua sustentabilidade à face da terra.

II- Tais bens jurídicos são iminentemente pessoais, designadamente dos vizinhos dos locais onde esses bens jurídicos forem violados por serem os primeiros a sofrer os seus efeitos nefastos.

III- O assistente e ofendido é assim titular do interesse legalmente protegido pela incriminação prevista no art. 278-A do Código penal pelo que tem legitimidade para se constituir assistente do MP nos termos do disposto no art. 68 nº 1 al. a) do CPP.

IV- O despacho que admitiu o ofendido e ora recorrente como assistente do MP nos presentes autos transitou em julgado pelo que faz caso julgado formal conferindo assim legitimidade ao assistente para fazer prosseguir os presentes autos e interpor o presente recurso.

V- Transitou igualmente em julgado o douto acórdão que reconhecendo legitimidade ao ora assistente determinou a abertura de instrução.

VI- O crime de violação de legalidade urbanística (construção de parque de estacionamento impermeabilizado sobre RAN) não se mostra prescrito face às verificações da sua construção, efectuadas pelo Ministério da Agricultura no local em 2013, conforme se verifica pelas certidões que constituem os docs nº 5 e 6 juntos com a apresentação da queixa que estabeleceu a data da construção em 2012.

VII- A prova documental junta aos autos prova indiciariamente a prática do crime p. e p. no art. 278-A do Cod. Penal pela arguida e decorre desse mesma prova que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e mesmo assim manteve-a até que lhe foi ordenada a demolição.

VIII- A verificação do crime de usurpação de coisa imóvel p. e p. pelo art. 215 do Cod. Penal depende da prova indiciária de propriedade (ou não) da área usurpada, que, no caso, se prova indiciariamente pela planta cadastral junta como documento nº 9 cuja delimitação, configuração geométrica e área fazem presunção nos termos do disposto no art. 5º nº 4 do Decreto Regulamentar nº 177/95.

IX- Tal presunção de configuração geométrica do prédio da arguida não foi elidida, pelo que haveria que concluir, indiciariamente pelo menos, que as áreas de terreno ocupadas pela arguida exteriores pelo lado nascente à linha de delimitação geométrica dos prédios do assistente e da arguida, de acordo com o cadastro predial de ………………….., foram usurpados pela arguida.

X- O elemento subjetivo (culpa e conhecimento da ilicitude da sua conduta pela arguida) decorre dos elementos objectivos do crime provados indiciariamente, pois que a arguida, sabendo quais os limites da sua propriedade, não podia ignorar que ocupando terrenos exteriores a ela estava a apoderar-se de terreno alheio o que é do sendo comum ser proibido.

XI- Provado que a arguida entre 2008 e 2013 sobrelevou a quota do seu terreno em 40 centímetros e que por esse efeito as aguas pluviais passaram a fluir em maior volumetria para dentro da parte urbana do prédio do assistente (facto 4 e 5) conjugado com as fotografias da casa do assistente tiradas na altura e juntas aos autos verificam-se provados os elementos objetivos do crime de dano mesmo não se tendo provado o seu valor monetário.

XII- O elemento subjectivo da pratica de tal crime de dano decorre dos elementos objectivos que o integram pois a arguida conhecia o local e, ao sobrelevar a cota do seu terreno, não podia ignorar que as aguas pluviais iriam correr para dentro da casa do assistente, sendo também do senso comum que a entrada das aguas pluviais dentro de uma casa lhe causa danos.

XIII- Provou-se indiciariamente que a arguida colocou duas camaras de videovigilância, pelo menos uma orientada para a porta de entrada da casa do assistente e para dentro do logradouro da casa deste, aí colhendo imagens sempre que ele por aí passava (factos 6 e 7) e contra a sua vontade (facto 8).

XIV- Tais factos são indícios suficientes da prática pela arguida do crime p. e p. pelos arts. 192 nº 1 al.b) e 199 nº 1 e 2 do Código penal.

XV- Com o seu comportamento a arguida quis registar imagens do assistente dentro da sua própria casa (logradouro) no âmbito da sua vida privada e sabia que o não podia fazer tanto mais que pediu autorização legal para colocar uma camara para segurança do seu estabelecimento hoteleiro e montou duas, uma das quais virada para a casa do assistente.

XVI- Tal facto (elemento subjectivo da culpa e consciência da ilicitude) decorre do comprovado comportamento material da arguida, não existindo qualquer fundamento ou prova de que “ arguida não estava ciente da proibição da sua conduta”.

XVII- Verificam-se provados indiciariamente nos autos, por prova documental, factos materiais que comportam todos os elementos objectivos e subjectivos que constituem a prática pela arguida dos crimes de:

-Violação de regras urbanísticas p. e p pelo art.278 A do Código Penal

-Usurpação de coisa imóvel p. e p. pelo art. 215 do Código Penal.

-Dano p e p pelo art. 212 nº 1 do Código Penal.

-Gravações e fotografias ilícitas p.e p pelo art. 192 nº 1 al. d) e 199 nº 2 al. a) do Código Penal.

XVIII- Foram violadas as disposições conjugadas dos arts. 278-A, 215, 212 nº 1, 192 nº 1 al. d) e 199 nº 2 al. a) todos do Código Penal e ainda as disposições dos arts. 68 nº 1 al. a) e 287 ambos do Código Processo Penal.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicável deve o presente recurso merecer provimento e em consequência ser revogado o douto despacho recorrido de não pronúncia e substituído por um outro que pronuncie a arguida pela prática dos crimes que se mostram suficientemente indiciados, com o que se fará a costumada Justiça

O Ministério Público respondeu, nos termos que constam de fls. 1409 a 1415, pronunciando-se, assim, pela manutenção do decidido:

“Os fundamentos do recurso

O Juízo de Instrução Criminal a quo não pronunciou a arguida IVTF; primeiro, porque considerou-a parte ilegítima para prosseguir a acção penal relativamente ao crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. p. art.º 278.º A do Código Penal; depois, porque considerou não haver indícios suficientes do cometimento por aquela de, respectivamente, um crime de usurpação de coisa imóvel, p. e p. p. art.º 215.º do Código Penal, um crime de dano, p. e p. p. art.º 212.º, n.º 1 do Código Penal e de um crime de fotografias ilícitas, p. e p. p. art.º 199.º, nºs. 1 e 2 do Código Penal.

O Assistente discorda do Juízo a quo e o recurso versa a seguinte matéria controvertida:

 Legitimidade do Assistente;

 Indícios do cometimento pela Arguida do crime de violação de regras urbanísticas;

 Indícios do cometimento pela Arguida do crime de usurpação de imóvel;

 Indícios do cometimento pela Arguida do crime de dano;

 Indícios do cometimento pela Arguida do crime de gravação e fotografias ilícitas.

Vejamos

LEGITIMIDADE DO ASSISTENTE

A Arguida construiu um parque de estacionamento num terreno que parcialmente estava abrangido pela RAN.

No que toca ao parque de estacionamento, a situação foi reposta pela Arguida em data que não se pode precisar.

O despacho recorrido

O Juízo a quo considerou que, independentemente, da data da prática do crime para efeitos de incriminação da conduta, o Assistente carecia de legitimidade para intervir processualmente, uma vez que se trata de um crime público no âmbito do qual o particular não é o titular do bem jurídico protegido pela incriminação (cf. art.º 68.º, n.º 1, al. a) do CPP).

Ainda segundo o Juízo a quo, a apreciação da legitimidade do assistente para intervir processualmente não ficou vedada com o despacho que o admitiu a intervir nessa qualidade, porquanto este apenas faz caso julgado enquanto não for posto em causa (rebus sic stantibus).

O recurso

O Assistente considera que o interesse protegido pela incriminação prevista pelo art.º 278.º-A do Código Penal é a defesa do ambiente, a qualidade de vida dos cidadãos e a sua sustentabilidade à face da terra. Por isso, “tais bens jurídicos são iminentemente pessoais, designadamente dos vizinhos dos locais onde esses bens jurídicos forem violados por serem os primeiros a sofrerem os seus efeitos nefastos”; razão pela qual tem legitimidade para se constituir como assistente.

O Assistente considera também que o despacho que o admitiu a intervir como assistente faz caso julgado formal.

Apreciando

O juízo a quo tratou exaustivamente a questão da legitimidade do Assistente em intervir no âmbito do crime de violação de regras urbanísticas.

Consideramos que o bem jurídico protegida pela incriminação é o interesse que o Estado tem na preservação comunitária da natureza, neste caso, o solo. Assim e de acordo com o despacho recorrido, entendemos que não assiste razão ao Assistente porquanto não é o titular do bem jurídico tutelado pelo crime.

No que concerne à questão de saber se o despacho que admitiu o Assistente faz caso julgado formal, achamos que discutindo-se a titularidade do interesse protegido pela incriminação, ter-se-á que discutir consequentemente a legitimidade do Assistente.

Não é lógico que um sujeito intervenha processualmente quando a lei não lhe confere essa capacidade.

De acordo com o despacho recorrido, a admissão do Recorrente a intervir no processo como assistente só faz caso julgado rebus sic stantibus.

CRIME DE VIOLAÇÃO DE REGRAS URBANÍSTICAS

O despacho recorrido

No que concerne à invocada prática do crime p. e p. p. art.º 278.º A do Código Penal, o Juízo a quo entende que ficou prejudicado o seu conhecimento face à ilegitimidade do Assistente para a prossecução criminal do mesmo e à ausência de acusação por parte do Ministério Público.

No entanto, referiu que:

• Só as obras do parque de estacionamento poderiam integrar a previsão do crime de violação de regras urbanísticas e já não quaisquer outras; designadamente, a de um muro com três metros de altura que violaria o PDM do concelho de ……………...

• Não se sabe a data concreta da construção do parque de estacionamento, se anterior ou posterior a 2010 – o que põe em causa a incriminação da Arguida pelo crime p. e p. p. art.º 278.º A do Código Penal, atenta a data da tipificação!

• Uma vez que a Arguida já repôs o terreno na situação anterior à construção do parque de estacionamento, poder-se-ia aplicar o disposto no art.º 280.º, n.º 2 do CPP.

O recurso

Em resumo útil, o Assistente vem referir que o crime de violação de regras urbanísticas está suficientemente indiciado, que a data da sua consumação situa-se em 2012 e que a não dedução de acusação pelo Ministério Público não tem os efeitos da figura da dispensa de pena.

Apreciando

Brevitatis causa, atenta a ausência de acusação e face à ilegitimidade do Assistente para intervir processualmente no que concerne ao crime p. e p. p. art.º 278.º A do Código Penal, não nos iremos pronunciar sobre esta temática.

CRIME DE USURPAÇÃO DE COISA IMÓVEL

O despacho recorrido

O Juízo a quo deu como provado que:

 “A arguida em data que não pode precisar, mas anterior a 18 de Fevereiro de 2008, colocou um portão que impede o assistente de aceder às traseiras das suas dependências agrícolas por esse local e efectuou obras de pavimentação com sobreelevação da cota do terreno em cerca de 40cm para afetação a parque de estacionamento” (facto 3).

 “Em data não concretamente apurada, mas entre 2008 e 2013, a arguida efectuou novas obras de pavimentação com sobreelevação da cota do terreno em cerca de 40cm” (facto 4).

O Juízo a quo deu como não provado que:

o “O portão referido em 3 dos factos indiciados está a ocupar uma parte do prédio do assistente”;

o “As obras referidas em 4 dos factos indiciados consumaram a ocupação dos terrenos do assistente”.

o “Com a ocupação do terreno e execução das obras o assistente ficou impedido de entrar e sair livremente do seu referido prédio”.

O recurso

Segundo o Assistente, através do cadastro geométrico do concelho de ………………. conclui-se que as obras efectuadas pela Arguida ficam no seu terreno.

De acordo com o disposto no art.º 5.º, n.º 4 do Decreto Regulamentar n.º 172/95 “a localização, configuração geométrica e área de um prédio, determinado nos termos do presente diploma legal fazem presunção para todos os efeitos da sua real localização, configuração e área”.

Assim, por presunção legal, devia-se ter dado como indiciado a usurpação de parte do terreno pertença do Assistente.

Apreciando

Como sobressai da criteriosa análise da prova produzida em sede de instrução e exarada no despacho recorrido, há que realçar:

O Instituto Geográfico Português informou a Câmara Municipal de que as coordenadas que haviam sido fornecidas e pelas quais haviam concluído pela ocupação indevida pela Arguida do terreno em que efectuou as obras, poderão conter um erro médio quadrácito de entre 90cm a 2,5m2.

Na acção com processo sumário ……………resultou que as obras foram efectuadas pela Arguida no seu terreno e que, inclusivamente, uma parte da construção usada pelo assistente integra o prédio da Arguida.

Portanto, não assiste razão ao Recorrente.

CRIME DE DANO

O despacho recorrido

Conforme se referiu supra, o Juízo a quo deu como assente que a Arguida fez obras de sobreelevação no seu terreno.

Também, deu como provado que “devido a estas obras, as águas pluviais passaram a fluir em maior volumetria para dentro da parte urbana do prédio do assistente” (facto 5).

No entanto, deu como não provado que “os factos descritos em 5 dos factos indiciados danificaram os pavimentos e os móveis e utensílios existentes no prédio urbano do assistente”.

E que, “os factos descritos em 5 dos factos indiciados danificaram os pavimentos e os móveis e utensílios existentes no prédio urbano do assistente”.

O recurso

Segundo o Assistente, o facto dado como provado em como a Arguida sobreelevou o terreno em 40cm com o consequente escoamento de águas pluviais para o seu prédio urbano, aliado à prova resultante da fotografia junta aos autos da casa do Assistente inundada com água, devia ter levado o Juízo a quo a dar como indiciado o crime p. e p. p. art.º 212.º, n.º 1 do Código Penal.

Apreciando

Como refere o Juízo a quo “nas declarações prestadas pelo (assistente) em sede de inquérito e instrução não foi feita qualquer referência concreta a quaisquer pavimentos, móveis ou utensílios danificados, sendo certo que nas fotografias (…) não são visíveis quaisquer danos”.

Por isso, bem andou o Juízo a quo a decidir como decidiu.

DAS GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS ILICITAS

O despacho recorrido

Consta da matéria dado como indiciada no despacho recorrido que:

“Em data não concretamente apurada, mas antes de Dezembro de 2013, a arguida colocou na fachada nascente do edifício que construiu no seu prédio duas câmaras de videovigilância orientadas a que, pelo menos uma delas, a orientada para norte/nascente, alcança uma entrada pelo lado poente do prédio do assistente e uma pequena parte do seu logradouro que medeia entre a construção principal a norte, onde se situa a entrada principal e as instalações agrícolas do armazém” (facto 6).

“Tal câmara de vídeo vigilância gravava permanentemente a referida zona de entrada do prédio do assistente e uma pequena parte do logradouro, pelo que a imagem do assistente é gravada quando circula por esse local” (facto7).

“O assistente nunca autorizou a colocação das referidas câmaras que lhe gravavam a imagem, antes a ela se opôs” (facto 8).

E da matéria dada como não indiciada que:

“A arguida bem sabia que todo o seu comportamento descritos nos factos suficientemente indiciados e não indiciados era proibido por lei e causa graves prejuízos ao assistente”.

O recurso

O Assistente considera que os factos descritos sob os nºs 6, 7 e 8 são suficientes para indiciar a Arguida pelo crime p. e p. pelos art.ºs 192.º, n.º 1, al. b) e 199.º, nºs. 1 e 2 do Código Penal - tanto mais que a Arguida só tinha autorização para colocar uma câmara e colocou duas!

Apreciando

Acontece que, a câmara que está direcionada para o prédio do Assistente capta a zona a que a acção de demarcação dá como sendo propriedade da Arguida. O Assistente entra para a sua propriedade utilizando a zona que a acção de demarcação julgou pertencer à Arguida, sendo que o podia fazer por outra via. Tanto assim, que foi condenado como litigante de má fé!

A acção do Assistente toca a fronteira do venire contra factum proprium!

De qualquer forma e em consonância com o despacho recorrido, não se pode concluir pela intenção da Arguida em devassar a intimidade da vida privada do Assistente.

Termos em que, deve ser negado provimento ao recurso.

Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer, no qual concluiu no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Vejamos então:

Conforme dispõe o artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

No caso em apreço a abertura da instrução foi solicitada pelo assistente, já que o Ministério Público se decidiu pela não acusação.

Juntos que foram alguns documentos e realizado o debate instrutório, a Mmª Juiz de instrução proferiu despacho de não pronúncia.

É este despacho que ora está em causa, cumprido avaliar da sua correção.

Trata-se de um despacho de não pronúncia por insuficiência dos indícios da verificação dos crimes em causa, proferido nos termos do disposto no artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, já que foi entendido que até ao encerramento da instrução não foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança.

Sobre o que sejam indícios suficientes preceitua o artigo 283º, nº 2, do citado diploma adjectivo, considerando-os como tal, sempre que dos mesmos resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Conforme acentuam a doutrina e a Jurisprudência dominantes sobre a matéria, a lei não exige para a pronúncia a prova, no sentido da certeza, da existência do crime, mas sim meros sinais que possam induzir no comum das pessoas a convicção da existência de uma razoável possibilidade de determinado arguido haver incorrido na prática de determinados factos, estes qualificados como crime.

"A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação critica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação" - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pg. 179.

Assim, e como entendeu o Ac. desta Relação de Évora, de 18.12.74, BMJ - 243 - 337, citado na obra referida "As expressões indícios bastantes de culpabilidade e prova indiciária significam o conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado pelo crime que lhe imputam".

Conforme já se referiu, o assistente, ora recorrente, não se conformando com o despacho de arquivamento, veio requerer a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia de IVTF, imputando-lhe a prática dos crimes de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal, de usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo art. 215º do Código Penal, de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal e de fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal.

Ora, os factos apurados são os que constam como tal do aludido despacho de não pronúncia, este acima reproduzido, não se vislumbrando motivo para a consideração de outros como igualmente provados, atenta a prova testemunhal e, essencialmente, a prova documental constante dos autos e produzida ao longo do inquérito.

E, atenta essa matéria fáctica, não se vislumbra que a arguida IVTF tenha incorrido na prática dos ditos crimes de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal, de usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo art. 215º do Código Penal, de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal e de fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal.

Desde logo, cumpre aferir da legitimidade do assistente para, desacompanhado do Ministério Público, deduzir acusação contra a arguida I relativamente à prática do crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal, isto não obstante não se haver apurado o momento exato em que aquela construiu o parque de estacionamento objeto de discórdia, entretanto saído desse lugar, já que essa construção poderá, eventualmente, ter ocorrido em momento anterior à entrada em vigor da lei que presentemente pune a atuação.

Ora, como o refere a decisão recorrida, não se repetindo os argumentos aí aduzidos, a fim de não sermos redundantes, o crime em causa possui natureza pública, não possuindo o assistente a qualidade de titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (art. 86º, nº 1, al. a) do CPP), independentemente de se considerar que o valor jurídico protegido pela norma incriminadora seja o uso racional do solo ou a legalidade urbanística.

E, como também acima se refere, citando o Acórdão do TRL, de 20/06/2007, de acordo com o qual “ A decisão que admite o assistente a intervir como tal nos autos não faz caso julgado formal, mas sim caso julgado rebus sic stantibus, podendo a questão da legitimidade ser decidida diferentemente em momento posterior do processo. A legitimidade para intervir como assistente, em inquérito, afere-se pela denúncia, enquanto a legitimidade a apreciar subsequentemente prende-se com a natureza dos crimes a que se refere a acusação, o requerimento de abertura de instrução ou a decisão recorrida, em caso de recurso.”

Assim sendo, no que respeita ao aludido crime, entende-se que o assistente não possui legitimidade para, desacompanhado do Ministério Público, prosseguir a acção penal contra a arguida I.

Porém, assiste legitimidade ao assistente para lhe imputar e poder vir a obter a pronúncia da mesma pela prática dos crimes de usurpação de coisa imóvel, dano e fotografias ilícitas, porquanto se trata de crimes de natureza semi-pública (arts. 215º, nº 3, 212º, nº 3 e 199º, nº 2 e 198º do Código Penal), em que de acordo com a versão do daquele é vítima da prática desses ilícitos criminais.

Quanto a estes ilícitos, dada a matéria de facto apurada e não apurada no inquérito, bem como da instrução a que se procedeu, mormente, na certidão da sentença que consta de fls. 1192 a 1308 dos autos, e sem embargo de se repetir o que acima se referiu, entende-se que bem andou o Tribunal a quo ao não pronunciar a arguida, como o fez.

Com efeito, esteve e está em causa uma demanda, esta de natureza cível, envolvendo o assistente e a arguida, os quais possuem prédios contíguos junto à Estrada Nacional ………., no……………...

Na acção cível que correu seus termos no Juízo de Competência Genérica de ………………………, esta uma acção de demarcação intentada pela arguida, se bem que ainda não transitada, a cuja sentença acima se aludiu, e na qual se discutia, em suma, a questão de fundo ora em apreço, isto é, a demarcação dos prédios do assistente e da arguida, similarmente ao apurado nestes autos de natureza criminal, independentemente da não verificação dos respetivos elementos subjetivos dos tipos legais de crime em apreço, por parte da arguida, dada a materialidade objetiva apurada e não apurada.

Com efeito, não se apurou que a arguida tivesse ocupado qualquer terreno do assistente, nem tão pouco que lhe tivesse causado quaisquer danos no património, ou vigiasse a entrada na sua propriedade através de câmaras, sendo este o cerne da questão e o objeto do recurso da não pronúncia apresentado pelo assistente.

Pelo exposto, entende-se que não se verificam os tais meros sinais ou indícios que possam induzir no comum das pessoas a convicção da existência de uma razoável possibilidade doa arguida haver incorrido na prática dos apontados crimes.

É certo que poderão estar em causa, eventualmente, questões de natureza cível, como já se disse, que devam ser conhecidas em sede própria, caso assim seja entendido pelos interessados.

Porém, e pelo que se referiu, não é este processo de natureza criminal o meio próprio para dirimir o conflito subjacente à participação apresentada.

Assim, e pelo exposto, acordam os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso, mantendo, na íntegra, o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC's, com os legais acréscimos.

Évora, 14 de julho de 2020

Maria Fernanda Palma

Isabel Duarte