RESPONSABILIDADE CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
NULIDADE
Sumário

I- O dever de indemnizar está directamente conexionado com a responsabilidade civil e nesta, cabe tanto a responsabilidade proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes de contratos, de negócios unilaterais ou da lei (responsabilidade contratual), como a resultante da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem (responsabilidade extracontratual)”.
II- E, embora se possa entender que a obrigação de restituição decorrente da nulidade do negócio é uma “obrigação legal” – porque fundada no art. 289 do CC – o pressuposto do seu funcionamento não assenta no incumprimento de uma obrigação (legal ou contratual) ou até necessariamente numa actuação violadora de direitos absolutos, ambos geradores da obrigação de indemnizar, antes o seu pressuposto encontra apoio directo e imediato na declaração de nulidade do negócio.
III- Assim, as obrigações de restituição e indemnização têm a sua génese em fundamentos diversos, por isso também se podendo afirmar que, não seja mister considerar um dano em sentido técnico, um dos pressupostos de funcionamento do instituto da responsabilidade civil.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO.

B………. e mulher C………, residentes na ……, Vila Pouca de Aguiar,
vieram intentar acção, sob a forma sumária, contra

D……… e mulher E………., residentes na Rua …., n.º …., Vila Pouca de Aguiar,

pretendendo a condenação destes últimos a pagarem-lhes a quantia de 10.311,60 euros, acrescida de juros de mora vencidos no montante de 3.128,51 euros e dos vincendos até integral liquidação daquele primeiro quantitativo.

Para o efeito e em síntese, alegaram os Autores que, na sequência de acção que haviam intentado contra os Réus, ficou definitivamente decidido, por Acórdão desta Relação de 19.5.97, padecer de nulidade o contrato de arrendamento para fins comerciais celebrado entre as partes, tendo por objecto as duas “lojas” identificadas na petição inicial, sendo os últimos condenados a entregarem-lhes (aos autores) tais locais, em bom estado de conservação e desembaraçados de pessoas e bens, entrega essa que apenas ocorreu coercivamente em finais de Maio de 1999;
adiantaram que os demandados, pela ocupação desses locais até ao final de Setembro de 1997, procederam ao pagamento ou ao depósito no aludido processo da quantia mensal correspondente ao valor do uso dos locais objecto do mencionado contrato declarado nulo e cuja restituição foi ordenada, sendo que essa restituição, obtida por via judicial em finais de Maio de 1999, o foi sem que os Réus tivessem procedido à liquidação do valor correspondente à utilização dos aludidos locais entre Outubro de 1997 e Maio inclusive de 1999, calculado no valor global de 7.568,22 euros, para além dos mesmos (locais) lhes terem sido entregues com deteriorações várias, cuja reparação importava no montante de 2.743,38 euros.

Os Réus, citados para os termos da acção, apresentaram contestação, em que se defenderam por impugnação, pondo em causa parte da alegação inicial, bem ainda por excepção, neste âmbito arguindo, no aqui importa focar, a prescrição do direito às quantias invocadas, na medida em que assentavam ora no instituto do enriquecimento sem causa, ora no da responsabilidade civil.

Os Autores responderam, pugnando pela improcedência da defesa por excepção deduzida pelos Réus e concluindo nos precisos termos do peticionado.

Após vicissitudes várias, sem interesse de registo para a tarefa que nesta sede cumpre levar a cabo, veio a ser proferido despacho saneador em que, conhecendo-se da excepção de prescrição, se julgou a mesma procedente, nessa medida se absolvendo os Réus do pedido contra os mesmos formulado.

Inconformados com o decidido, interpuseram recurso de apelação os Autores, tendo apresentado alegações em que concluíram pela revogação do sentenciado, devendo a acção prosseguir os seus termos para apreciação das pretensões deduzidas em juízo.

Os Réus não contra-alegaram.

Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito do recurso, sendo que a instância mantém a sua validade.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

A materialidade a atender para o conhecimento do presente recurso vem já enunciada no relatório supra e reconduz-se no essencial à alegação inicial, motivo pelo qual nos dispensamos aqui de a repetir.

E o objecto do recurso circunscreve-se à questão essencial de curar saber se é de verificar a excepção de prescrição do direito invocado pelos Autores em verem-se reintegrados das quantias que vieram reclamar em juízo e cuja responsabilidade pelo seu pagamento imputam aos Réus.

Antes de entrarmos na apreciação desta problemática, convirá referir que os recorrentes, na sequência de acção previamente intentada contra os Réus – nela foi declarado nulo o contrato de arrendamento com fins comerciais celebrado entre as partes, com a consequente condenação daqueles últimos a entregarem aos Autores as lojas objecto desse contrato, em bom estado de conservação e completamente desembaraçadas de pessoas e bens – intentaram esta nova acção, pretendendo a condenação dos mesmos Réus a pagarem-lhes o valor correspondente à utilização dos invocados locais, no período compreendido entre Outubro de 1997 e Maio de 1999 (nesta última data concretizou-se a entrega ordenada), bem assim do montante em que importou a reparação das deteriorações que apresentavam os mencionados locais, aquando dessa entrega.

Para o efeito, como decorre do acima explanado e resulta da alegação inicial, fizeram assentar tais pretensões, por um lado, na circunstância de ser devido o aludido montante pela ocupação dos ditos locais no mencionado período, como consequência da obrigação de restituição a que estavam adstritos e reconhecida na já aludida anterior decisão, para além de fazerem apelo ao regime do instituto do enriquecimento sem causa; sendo que, por outro lado e quanto àquela outra quantia, destinada a repor o estado em que os ditos locais haviam sido entregues aos Réus, invocaram aquela mesma obrigação de restituição reconhecida na mencionada decisão.

Ainda que assim deva apreender-se a fundamentação da presente acção, entendeu o tribunal “a quo” que o direito que subjazia a cada uma dessas pretensões devia ter-se por prescrito.

Assim, no que respeito dizia àquela pretensão atinente ao valor do uso dos identificados locais no dito período, reflectiu-se que a mesma apenas podia assentar na obrigação de restituição decorrente do disposto no art. 289 do CC e já não no instituto do enriquecimento sem causa, ao qual estava reservado no nosso ordenamento jurídico um carácter subsidiário, motivo pelo qual, vindo aquela (pretensão) sustentada no mencionado instituto, tinha de considerar-se prescrito o respectivo direito.

Neste aspecto, destaca-se o seguinte raciocínio expresso na decisão impugnada:
“… o direito à restituição aos Autores do valor correspondente às rendas no período compreendido entre Outubro de 1997 a Maio de 1999, a título de enriquecimento sem causa, prescreveu já, uma vez que tal direito prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento desse direito (art. 482.º CC), e não foi reconhecido em nenhuma das sentenças e acórdãos proferidos, quer na acção principal, quer nos presentes autos, pelo que não beneficiam os Autores do prazo ordinário de prescrição (art. 311.º, n.º 1, do CC), razão pela qual, aliás, foi julgada improcedente a excepção de caso julgado.
O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido e, tratando-se de prestações periódicas, a prescrição corre desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga (arts. 306.º, n.º 1 e 307.º, ambos do CC) …”.

A propósito daquela segunda pretensão – respeitante ao montante necessário para reparação das deteriorações que apresentavam as aludidas lojas – concluiu-se igualmente pela prescrição do respectivo direito com a seguinte argumentação:
“ …Como já se referiu, um contrato nulo não é um nado morto. Basta atentar no que se dispõe no artigo 289.º, n.º 3, do Código Civil. Permite este normativo aplicar, directamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269.º e seguintes em caso de declaração de nulidade ou anulação de negócio jurídico, tendo em vista repor a situação negocial das partes no estado “quo ante” (art. 289.º, n.ºs 1 e 2 CC).

Dispõe o citado art. 1269 que o possuidor de boa fé só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com culpa.
Face ao dispositivo do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, junto a fls. 148 e ss. da acção principal, que declarou a posse dos Réus sobre as lojas insubsistente, não titulada, ilegal e de má fé, decisão esta transitada em julgado, os Réus têm de ser considerados possuidores de má fé.
Cabe perguntar qual o regime aplicável em caso de perda ou deterioração da coisa.
Julgo que por analogia será de aplicar o regime previsto no artigo 807.º, n.º 2 do Código Civil, ou seja, o possuidor de má fé responde pela perda ou deterioração da coisa independentemente de culpa, excepto se demonstrar que os danos ocorreriam na mesma ainda que a coisa estivesse na posse do proprietário.
Todavia, entendo que esta responsabilidade é de natureza extracontratual, face à destruição por efeito da declaração de nulidade do contrato de arrendamento comercial que anteriormente vinculava as partes e, como tal, sujeita ao prazo prescricional previsto no artigo 498.º do Código Civil.
Nos artigos 23º, 24º e 25º da petição inicial os Autores peticionam a condenação dos Réus no pagamento de uma indemnização em virtude destes últimos, em Maio de 1999, terem deixado as identificadas lojas sujas, com paredes negras e riscadas, a casa de banho com os azulejos partidos, bem como o lavatório e a sanita, e ainda partiram quatro vidros exteriores.
Tal direito prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento desse direito e não foi reconhecido em nenhuma das sentenças e acórdãos proferidos, quer na acção principal, quer nos presentes autos, pelo que não beneficiam os AA. do prazo ordinário de prescrição (art. 311.º, n.º 1, do Código Civil).
O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido, o que era possível desde Maio de 1999 …”.

Não cremos que toda esta argumentação possa ser acolhida para concluir pela verificação da dita excepção de prescrição.
Demonstremos.

Na situação descrita nos autos, em causa está avaliar dos fundamentos que sustentam cada uma daquelas pretensões deduzidas pelos impugnantes.

Ora, depreende-se do alegado pelos recorrentes que as ditas pretensões se sustentam nas consequências que decorrem da declaração de nulidade dum negócio – o falado contrato de arrendamento, cuja nulidade foi já decretada em anterior acção que correu termos entre as partes, aí tendo os Réus sido condenados a reconhecê-lo, bem assim condenados a entregarem aos Autores os respectivos locais, em bom estado de conservação e completamente desembaraçados de pessoas e bens – as quais (pretensões) se reconduzem a uma obrigação de restituição, ou seja, declarada a nulidade dum negócio que tiver sido cumprido, deverão as coisas voltar ao “statu quo ante” (quod nullum est, nullum efectum producit).

Daí decorrerá também que esse dever de restituição se baseia na nulidade a que alude o art. 289 do CC e com o alcance nele previsto (restituição do prestado ou o valor equivalente se a restituição não for possível, incluindo os frutos que a coisa possa produzir) – correcto neste aspecto o raciocínio desenvolvido na decisão impugnada, ao rejeitar o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa para sustentar o alcance e medida dessa obrigação de restituição (trata-se de tese dominante na doutrina e jurisprudência, em contrário da argumentação defendida por Vaz Serra, o qual fazia assentar o aludido dever no instituto em último referido) – v., para esse confronto, Vaz Serra, in RLJ, ano 109, págs. 31 e 313 e A. Varela, na Rev. cit., ano 102, pág. 253, nota 1; bem ainda Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, tomo I, ed. 1999, págs. 581 a 582 e Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 4.ª ed. págs. 433 e 625 a 626.

Seguindo esta tese argumentativa, afigura-se-nos que as pretensões deduzidas pelos impugnantes na presente acção – no seguimento do que já se expôs – se baseiam também nas consequências decorrentes da nulidade já declarada do mencionado negócio (contrato de arrendamento), ainda que façam referência ao instituo do enriquecimento sem causa, mas, a nosso ver, em termos conclusivos e em reforço das consequências da referida declaração de nulidade.

Assente esta constatação, carece de fundamento falar-se de prescrição do direito invocado pelos impugnantes/autores, apelando ao regime nesse aspecto estatuído no instituto do enriquecimento sem causa (art. 482 do CC).

Mas também quanto à segunda das pretensões deduzidas pelos impugnantes – montante necessário a repor o estado das lojas objecto do aludido contrato de arrendamento – não poderá sustentar-se a prescrição do respectivo direito por recurso ao instituo da responsabilidade civil (art. 498 do CC), na medida em que estaria em causa uma obrigação indemnizatória.

Para qualquer das pretensões em referência há que ponderar a natureza da obrigação que lhes subjaz.

Ora, no seguimento do já expendido, tais pretensões alicerçam-se nas consequências de um negócio nulo, a que corresponde uma obrigação de restituição, não propriamente uma obrigação indemnizatória.

É que o citado art. 289, por força do qual é imposta uma obrigação de restituição da prestação recebida ou, se tal restituição não for possível, o correspondente valor, não pressupõe a existência dum facto lesivo gerador da obrigação de indemnizar.

O dever de indemnizar está directamente conexionado com a responsabilidade civil e nesta, como escreve A. Varela, “cabe tanto a responsabilidade proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes de contratos, de negócios unilaterais ou da lei (responsabilidade contratual), como a resultante da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem (responsabilidade extracontratual)” – in “Das Obrigações em Geral”, 10.ª ed. págs. 519 a 520.

E, embora se possa entender que a obrigação de restituição decorrente da nulidade do negócio é uma “obrigação legal” – porque fundada no citado art. 289 do CC – o pressuposto do seu funcionamento não assenta no incumprimento de uma obrigação (legal ou contratual) ou até necessariamente numa actuação violadora de direitos absolutos, ambos geradores da obrigação de indemnizar, antes o seu pressuposto encontra apoio directo e imediato na declaração de nulidade do negócio.

Assim, as obrigações de restituição e indemnização têm a sua génese em fundamentos diversos, por isso também se podendo afirmar que, na situação em análise, não seja mister considerar um dano em sentido técnico, um dos pressupostos de funcionamento do instituto da responsabilidade civil – v. a propósito o Ac. da RE de 27.5.99, in CJ/99, tomo 3, págs. 263 a 267.

Seguindo este raciocínio e atento os termos em que os recorrentes fundamentaram as suas pretensões, o que na acção vem perseguido é antes de mais a fixação do alcance duma relação de repristinação, ou seja, a definição dos efeitos conexionados com uma “relação de liquidação” decorrente da nulidade dum negócio, consistindo aquela (liquidação) no restabelecimento tanto quanto possível da situação que existia antes da celebração de acto inválido, a que se seguiram actos de cumprimento – v., neste sentido, Mota Pinto, ob. e loc. cits., notas 854 e 855.

Ora, as pretensões deduzidas pelos impugnantes e acima individualizadas devem ter-se também por integradas naquela obrigação de restituição, inerente à declaração de nulidade do negócio celebrado entre as partes, pois que a aludida obrigação (de restituição) não pode dar-se como integralmente cumprida com a mera entrega dos mencionados locais (lojas), por ela sendo ainda abrangido o valor do seu uso pelo período reclamado, bem assim a reparação das deteriorações neles produzidas indevidamente – v. neste sentido o cit. Ac. da RE e o expresso no Ac. do STJ, cuja cópia vem junta aos autos (fls. 263 a 264).

Significa o expendido que o pedido (ou pedidos) nesta acção formulado (ou formulados) tem a sua sustentação na mencionada obrigação de restituição, que não nos institutos do enriquecimento sem causa ou da responsabilidade civil, na base dos quais se fundamentou o tribunal “a quo” para dar como verificada a excepção de prescrição dos direitos invocados pelos recorrentes/autores (arts. 482 e 498, n.º 1 do CC).

E, porque assim é, deixa de ter sustentáculo a verificação da excepção de prescrição invocada pelos Réus e reconhecida na decisão impugnada, sendo que o direito invocado na acção não está sujeito ao prazo curto de três anos previsto nos normativos em último referidos, quando muito ao prazo ordinário geral (art. 309 do CC), o qual, na situação descrita nos autos, não pode dar-se como verificado.

Retirada esta constatação em contrário do decidido na decisão impugnada, importa também concluir que a acção terá de prosseguir os seus termos para conhecimento das pretensões já assinaladas, sendo que sobre as mesmas vem alegada factualidade que é controvertida entre as partes.



3. CONCLUSÃO.

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, nessa medida, revogando-se a decisão recorrida que julgou verificada a invocada excepção de prescrição, determina-se o prosseguimento dos ulteriores termos da lide, caso nenhum outro obstáculo subsista.

Custas do presente recurso a cargo da parte vencida a final.

Porto, 26 de Outubro de 2006
Mário Manuel baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz