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DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
NULIDADE
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
MÁ-FÉ INSTRUMENTAL
MÁ-FÉ SUBSTANTIVA
OBTENÇÃO DE OBJECTIVO ILEGAL
Sumário
I - Tendo sido julgada extinta a instância, por deserção, e tendo sido formulado pelo Réu/Requerido pedido de indemnização por litigância de má-fé da Autora/Requerente, a correspondente apreciação/julgamento e eventual condenação, constitui objecto de pretensão de que o juiz não pode deixar de conhecer, sob pena de nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do CPC. II - Em sede de procedimentos cautelares, a condenação por litigância de má-fé apenas poderá fundar-se em má-fé instrumental ou, no caso de má-fé substancial, quando respeite a factos que não hajam de ser objecto de apreciação na acção principal. III - Podendo suceder que o destino da acção principal não seja concordante com o do procedimento cautelar, apresenta-se como mais prudente e sensato deixar para aquela acção o juízo definitivo sobre a existência ou não de má-fé substancial. IV - O juízo sobre a má-fé instrumental ou processual, também deve ser relegado para a decisão final a proferir na acção principal quando a conclusão sobre o alegado “uso manifestamente reprovável” da providência cautelar, com o “fim de conseguir um objectivo ilegal” (art.º 542.º/2-d) não dispensa a prova dos factos alegados indicadores da má-fé substancial.
Texto Integral
Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I - Relatório:
1. Helena …, divorciada, residente na Rua …Lisboa, propôs, a 13-08-2019, por apenso a acção para fixação de alimentos definitivos pendente, procedimento cautelar de alimentos provisórios, contra António …, divorciado, residente …Lisboa, pedindo a condenação do Requerido a prestar alimentos provisórios à Requerente, de imediato, e com carácter provisório, no valor mensal de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), até que seja proferida a competente decisão judicial nos autos principais.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em resumo, que está impossibilitada de, por si só, prover pela sua subsistência, face ao mercado de trabalho e que o Requerido, com quem esteve casada durante 28 anos e de quem se divorciou em Dezembro de 2017, tem condições para prestar alimentos à Requerente.
2. Citado, o Requerido apresentou contestação motivada, dizendo, em síntese, que não existem os pressupostos legais estabelecidos para a fixação de alimentos provisórios, nomeadamente não existe “necessidade da requerente”, uma vez que tem trabalho, está apta para o trabalho (em geral e para o trabalho desenvolvido em particular), nem existem as condições de prestar os alimentos por parte do Requerido (face às responsabilidades que já tem e aos rendimentos que aufere),para além de nem estarem em causa necessidades básicas elementares da Requerente.
Termos em que conclui:
1) Seja julgada procedente, por provada, a excepção de inexistência dos requisitos legais da providência cautelar, com todas as consequências daí decorrentes, nomeadamente a absolvição do Requerido do pedido;
2) Caso assim não o entenda, que, subsidiariamente, seja julgada procedente, por provada, a excepção de inexistência dos requisitos legais dos alimentos provisórios, com todas as consequências daí decorrentes, nomeadamente a absolvição do Requerido do pedido;
3) Caso não se compartilhe deste entendimento, que seja a excepção peremptória de indignidade e de cessação do direito aos alimentos por estar em união de facto com outro homem, julgada procedente, por provada, e em consequência declarada judicialmente a indignidade da Requerente para aceder ao direito a alimentos, por sua conduta moralmente reprovável, descrita nos autos, e/ou a cessação do direito a receber alimentos por estar em união de facto com outro homem, devendo o Requerido ser absolvido do pedido com todas as consequências disto decorrentes;
4) Caso assim não o entenda, ainda subsidiariamente, que seja julgada procedente, por provada, a excepção de abuso de direito, ilegalidades e inconstitucionalidades existentes nos autos, com todas as consequências daí decorrentes, com a consequente absolvição do Requerido do pedido;
5) Caso o Tribunal não compartilhe deste entendimento, que seja a presente providência cautelar julgada improcedente, por não provada e, em consequência, o Requerido absolvido do pedido;
6) De qualquer forma devem ser a Requerente e sua Ilustre Causídica ser solidariamente condenadas por litigância de má-fé, com dolo e intenção de entorpecer a Justiça e os tribunais, além de articularem factos que tinham conhecimento que não correspondiam à verdade, em multa a fixar por V.Ex.ª e indemnização a pagar para o Requerido, no valor de 20 UC, acrescido de honorários e despesas de advogado a liquidar em execução de Sentença, ou fixado por V.Ex.ª, devendo ainda ser participados os factos à Ordem dos Advogados, por responsabilidade directa e pessoal da Advogada em causa.
3. Os autos prosseguiram os seus termos e em 16/07/2020, veio a ser proferido Despacho com a ref.ª Citius 396408196, do seguinte teor:
«Na audiência designada para inquirição de testemunhas nestes autos de procedimento cautelar de alimentos provisórios intentada por Helena …contra António …que teve lugar no passado dia 07.10.2019 foi proferido o seguinte despacho : “Veio a ilustre mandatária da autora nos presentes autos e nos autos de procedimento cautelar apresentar renúncia ao mandato, sendo ambos os processos de constituição obrigatório de mandatário. A ilustre mandatária expôs os motivos da renúncia, alegando não estar em condições de exercer o mandato. Assim e apesar de ainda não notificada a renúncia à autora/requerente, afigura-se não ser exigível que a ilustre mandatária exerça neste ato o mandato. Face ao exposto, determina-se a notificação pessoal à autora/requerente da renúncia da sua ilustre mandatária nos termos do art.º 47º nº2 e 3º al. a) do CPCivil. Face ao exposto dão-se sem efeito as datas anteriormente designadas para audiência de julgamento. Caso a autora/requerente não constitua no prazo de 20 dias novo mandatário, suspende-se a presente instância sem prejuízo no disposto do artº 281º do CPCivil…..”
Como resulta da informação “ supra” a Requerente foi pessoalmente notificada da renúncia ao mandado em 10/10/2019, nos autos principais, conforme AR aí junto em 18/10/2019 e não constituiu novo mandatário nem no prazo de 20 dias, nem até ao presente, o que significa que os autos se mostram parados há mais de seis meses por inércia negligente da requerente em promover os seus termos.
Face ao exposto e ao abrigo do disposto no art.º 281º, nº1 e 3 e al. c) do art.º 277º, ambos do C.P.C., declaro deserta e consequentemente, extinta a presente instância.
Custas pela requerente.
Notifique.»
4. Inconformado com o assim decidido, o Requerido apelou para esta Relação, tendo rematado as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
«I) No processo principal e no apenso, com a providência cautelar, o Recorrente pediu a condenação da Autora/Requerente/Recorrida e de sua Ilustre Causídica (no caso da cautelar) por litigância de má-fé.
II) A Douta Sentença não se pronuncia sobre a má-fé.
III) É nula a sentença que não se pronuncia sobre todas as questões que devesse apreciar e a sentença não se pronunciou sobre a má-fé, referida na contestação, a sentença viola portanto o artigo 615 n.º 1 alínea d) do Código do Processo Civil.
IV) Mesmo que as acções em causa sejam extintas por desistência da instância, ou do pedido, ou por deserção por a Autora/Requerente/Recorrida não ter constituído advogado numa causa de constituição obrigatória de advogado, nem no prazo fixado nem após 6 meses (art.º 281.º do CPC), o Tribunal deve apreciar e julgar o pedido de condenação por litigância de má-fé, na parte que já existam nos autos os elementos necessários para o efeito.
V) Interpretação diversa implica a violação do princípio da ampla defesa, do contraditório e da igualdade das partes, além de violar os princípios constitucionalmente consagrados da proporcionalidade, de acesso ao direito e aos tribunais, além dos abaixo mencionados, que o Douto Despacho violou.
VI) Resultam demonstrados nos autos que a Recorrida, com o auxílio e intervenção da Ilustre Causídica, alterou a verdade dos factos, com o objectivo de obter um proveito ilegítimo, em detrimento do Recorrente, como ainda que articulou factos falsos, deturpou a verdade nos factos articulados, que eram de conhecimento pessoal de ambas, pelo menos na providência cautelar em relação a esta última (uma vez que já constavam do CITIUS da I.I. Mandatária em causa, em data anterior à da propositura da cautelar, que a Recorrida não estava de baixa médica, como alegou na sua Douta peça processual). Além disto, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não deveria ignorar, violou gravemente dever de cooperação e utilizou meios reprováveis para obter um resultado ilegal, para impedir a descoberta da verdade e entorpecer a acção da justiça.
VII) Actuação da Recorrida e de sua Ilustre Causídica caracteriza um desrespeito absoluto dos parâmetros de boa-fé processual, uma falta do dever de verdade, ao articularem factos falsos na PI, do processo principal, e no RI, na providência cautelar, posições estas mantidas nas audiências do processo principal, como já foi referido e consta amplamente das peças processuais que instruem o presente recurso.
VIII) Tal actuação configura má-fé com dolo de ambas e justifica a condenação por litigância de má fé, a multa e indemnização, como foi pedido, além de participação à Ordem dos Advogados, termos do disposto no art.º 545.º do CPC, pois agiram de forma consciente, intencional e deliberada.
IX) É lícita a prova obtida e junta aos autos sobre factos ocorridos ou situações existentes após ter sido proferido o Douto Despacho recorrido, devendo, portanto, ser valorada na análise do presente Recurso.
X) Nos presentes autos, estamos diante processos de constituição obrigatória de advogado, exigência que se coloca no julgamento da causa e no julgamento do pedido de condenação por litigância de má-fé.
XI) O Tribunal mesmo perante a desistência do pedido deve pronunciar-se sobre a má-fé conforme já se pronunciou a jurisprudência.
XII) A Recorrida e sua I. Mandatária perante a impossibilidade de desistência usaram a estratégia da renúncia, quando foram confrontadas com a falsidade da existência da baixa médica, impossibilitando a apreciação e o julgamento do pedido, mas não impossibilitando a condenação por litigância de má fé, objectivo da Autora/Requerente/Recorrida e da Ilustre Causídica nestes autos, algo que o Tribunal não pode permitir.
XIII) O Tribunal deve decidir a questão da má-fé, que é independente da questão objecto da acção.
XIV) O Tribunal não pode denegar justiça e não decidir é denegar justiça.
XV) O Tribunal pode e deve ter em conta todos os documentos que constam dos autos e dos respectivos apensos.
XVI) Se uma parte invoca como parte do fundamento do pedido que está de baixa médica, quando sabe que não está, litiga em litigância de má-fé.
XVII) A Mandatária dos Autos tem obrigação de saber o que figura no andamento do processo no seu CITIUS, quer no processo principal como no apenso.
XVIII) A Autora, através da causídica, articulou facto que ambas tinham (ou, no caso da Advogada, deveria ter) conhecimento pessoal e directo, conforme resulta de prova documental, nomeadamente os ofícios da Segurança Social que constam no CITIUS da Causídica, no processo principal, que versa sobre a mesma matéria.
XIX) Diante desta situação, ambas procuraram desvincular-se do processo, no qual era MANIFESTA a litigância de má-fé, primeiro com uma desistência da instância, que não teve prosseguimento diante da respectiva oposição, e depois através da renúncia do mandato, com a não apresentação de novo advogado e respectiva deserção.
XX) Ora, se fosse verdade o motivo invocado, a Ilustre Causídica teria renunciado ao mandato em todos os processos pendentes, nomeadamente o de inventário, e não só nos que a litigância de má-fé está plasmada nos autos (alimentos definitivos e provisórios).
XXI) Sendo certo que existem ainda procedimento disciplinar e processo-crime, relativamente a esta situação, tendo inclusivamente o MP de ofício decidido analisar a questão da baixa médica em causa.
XXII) Tal é um procedimento igualmente censurável, para procurar furtar-se à condenação por litigância de má fé e não deve ser tolerado pelo Tribunal.
XXIII) Estando presente nos autos elementos documentais que demonstram pelo menos parte da litigância de má fé pedida nos autos (articular os factos falsos – baixa médica, cuja falsidade é demonstrada pelos Ofícios do CDSSS), deve o Tribunal na Douta Sentença manifestar-se sobre esta parte do pedido, que já contém elementos inequívocos nos autos, condenando a Autora/Requerente/Recorrida e a respectiva Advogada por litigância de má fé.
XXIV) Mesmo havendo deserção, o Tribunal deve julgar todos os aspectos pedidos, que já existam elementos nos autos para o fazer, como acontece com parte da litigância de má fé dos presentes autos, na parte acima mencionada.
XXV) Ao não o fazer, a Douta Sentença é nula, por não se ter manifestado sobre o assunto em causa, devendo ser revogada e substituída por outra, em que o próprio Tribunal da Relação se pronuncie sobre a matéria em causa (litigância de má fé da contraparte e da Ilustre Causídica) ou ordene o Tribunal a quo a o fazer.
XXVI) É nula a sentença se não se pronunciar sobre todas as questões que devesse apreciar e a sentença não se pronunciou sobre a má-fé, referida na contestação, a sentença viola o artigo 615 n.º 1 alínea d) do Código do Processo Civil.
XXVII) Existe também uma responsabilidade pessoal e directa da Mandatária nesta actuação, nos termos do disposto no art.º 459.º do CPC.
XXVIII) A Douta Sentença violou os artigos 615.º, n.º 1, al. d), 542.º, 543.º, 545.º e 459.º do CPC, bem como os artigos 3.º, n.º 2, 13.º, 18.º e 266.º, 20.º. 25.º, 26.º, 202.º, n.º 2, todos da CRP.
XXIX) A Douta Sentença é nula e deve ser revogada e substituída por outra que o próprio Tribunal da Relação aprecie e julgue a litigância de má fé, nos termos acima mencionados (articular factos cuja falsidade a parte e sua Mandatária tinham conhecimento pessoal e directo), ou determine que o Tribunal a quo o faça, vindo a condenar ambas por litigância de má-fé, a multa e a indemnização, nesta parte do pedido.
Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta Sentença e substituindo-a por outra, na qual seja apreciada e julgada a questão da litigância de má-fé, nos termos acima mencionados, vindo a condenar ambas em multa e indemnização, nos termos do pedido na Contestação, com todas as consequências disto decorrentes e, assim, se fará, como sempre, Justiça!».
5. Não foram apresentadas contra-alegações.
6. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Objecto e delimitação do recurso:
De acordo com o disposto nos artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer oficiosamente, estando esta Relação adstrita à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso (art.º 130º do CPC). Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[1].
Ponderando quer, quer as conclusões do recurso, quer o que emerge da decisão recorrida, importa apreciar, essencialmente, as seguintes questões:
1.ª Saber se a decisão recorrida está ou não ferida de nulidade, por omissão de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC);
2.ª. Em qualquer dos casos, saber se a Recorrida e a Advogada que a representou nos autos podem/devem ser condenadas como litigantes de má-fé.
III – Fundamentação
A) Motivação de Facto
Os factos relevantes para a decisão do recurso são os constantes do relatório que antecede.
B) Do mérito do recurso
B.1 – Primeira questão
O Recorrente invoca a nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia quanto ao pedido de condenação da Autora e Recorrida e da sua Ilustre Advogada por litigância de má-fé por si formulado na oposição à presente providência cautelar e já anteriormente na contestação que apresentou nos autos principais.
Defende que tal pronúncia se impunha, por já constarem dos autos elementos para a apreciação e julgamento de tal questão, não obstante ter sido declarada, como foi, extinção da instância, por deserção. E que interpretação diversa conduziria à violação dos princípios da ampla defesa, do contraditório e da igualdade das partes, além de violar princípios constitucionalmente consagrados, da proporcionalidade e de acesso ao direito e aos tribunais.
Vejamos, então.
Dispõe o artigo 615º do CPC, com o proémio «Causas de nulidade da sentença», dispõe:
“1. É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.”
As nulidades previstas nas alíneas b) e c) reconduzem-se a vícios formais que respeitam à estrutura da sentença e as previstas nas alíneas d) e e) referem-se aos seus limites.
A nulidade prevista na primeira parte da alínea d) do n.º 1 deste artigo 615º do CPC está directamente relacionada com o comando fixado no n.º 2 do artigo 608º, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, não devendo confundir-se questões com argumentos, estando, assim em causa, o dever de conhecer de forma completa do processo, definido pelo(s) pedido(s) deduzido(s) e respectiva(s) causa(s) de pedir.
A nulidade prevista na segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC está directamente relacionada com o comando fixado na segunda parte do n.º 2 do artigo 608º do mesmo diploma legal, nos termos do qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes submetam à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”
Terão, por conseguinte, de ser apreciadas todas as pretensões processuais das partes - pedidos, excepções, etc. - e todos os factos em que assentam, bem como todos os pressupostos processuais desse conhecimento, sejam eles os gerais, sejam os específicos de qualquer acto processual, quando objecto de controvérsia, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Todavia, as questões a resolver para os efeitos do n.º 2 do artigo 608º e da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º, ambos do CPC, são apenas as que contendem directamente com a substanciação da causa de pedir ou do pedido, não se confundindo quer com a questão jurídica quer com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor aos quais o tribunal não tem de dar resposta especificada.
Por outro lado, importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito.
*
A questão é de cariz exclusivamente processual e consiste em saber se, tendo o Requerido, na oposição à providência cautelar pedido a condenação do Requerente e da sua Ilustre Advogada como litigante de má-fé, e vindo a instância, posteriormente, a ser julgada extinta, por deserção, deverá, ainda assim, o tribunal conhecer de tal pedido de litigância de má-fé.
Sobre esta questão, o Tribunal a quo nada disse e por isso concedemos que a decisão recorrida está ferida de nulidade, nos termos art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na medida em que nela não se pronunciou, a qualquer título, sobre questão que deveria ter apreciado. Em suma, face à extinção da instância, por deserção, a Senhora Juiz a quo, deveria ter-se pronunciado sobre a questão da admissibilidade, ou não, do conhecimento de mérito do pedido de condenação Requerente e Recorrida e da sua Ilustre Advogada por litigância de má-fé.
→Importa, assim, suprir tal omissão, com o que se passará a apreciar a segunda questão suscitada na presente apelação, qual seja a de saber se a Recorrida e a Advogada que a representou nos autos podem/devem ser condenadas como litigantes de má-fé.
O Recorrente invoca em abono da sua pretensão o decidido no Acórdão desta Relação de Lisboa, de 05-03-2009, processo n.º 1418/18-8, acessível em www.dgsi.pt., de cujo sumário consta: “Invocada por dois dos Réus a litigância de má fé do Autor e pedida correspondente indemnização, e vindo posteriormente o Autor a desistir do pedido contra tais Réus, nem por isso deixará o Tribunal de conhecer da questão da litigância de má fé.”
Tal decisão, no entanto, no foi unânime, pois foi lavrado o voto de vencido, cujo teor aqui se transcreve:
“No caso presente o Tribunal, que homologou a desistência do pedido não apreciou e decidiu sobre o mérito da causa. Logo, a factualidade apurada permite afastar, liminarmente, do elenco das modalidades de má fé susceptíveis de configurar o caso concreto, precisamente, aquelas a que se reportam as alíneas c) e d), referidas, ou seja, a prática de omissão grave do dever de cooperação [c)] ou a adopção do processo ou dos meios processuais para um uso, manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão [d)], isto é, as duas modalidades de má fé instrumental.
No que concerne à má fé substancial .... Às partes é lícito deduzir, em Tribunal, pedidos ou contestações, objectivamente fundados. Porém, só na altura da prolação da sentença, ou, no mínimo, da decisão proferida sobre a matéria de facto, é que vem a saber-se se a pretensão do autor é fundada, ou se a defesa do réu é conforme ao Direito.
E isto, por que estas atitudes só serão reveladoras de má fé quando se toma uma posição que se sabe ser contrária à lei ou aos factos, mas não quando se expõem factos, que se consideram exactos, e, depois, se articulam factos contrários, porque se veio a averiguar que aqueles não correspondem à verdade[2].
Ora, na hipótese em análise, a acção terminou antes de o Tribunal chegar a conhecer do mérito da causa, em consequência de desistência do pedido, ou seja, não existiu o conhecimento sobre os factos de forma a considerar se o pedido era, conscientemente, injusto, sendo esta injustiça que constitui o dolo da actuação do agente, com a consequente ausência de base para a condenação por litigância de má fé, sob pena de, a entender-se de modo diferente, se vir a classificar como, conscientemente, injusto um pedido quando, por força da desistência, o Tribunal está impedido de o apreciar”
Já a decisão que fez vencimento sufragou a posição contrária, ancorada nos seguintes argumentos, que também se transcrevem:
“É certo que o pedido de condenação do A como litigante de má fé não integra o âmbito de uma reconvenção e não é menos certo que, ao menos em parte, depende do pedido do A. É exactamente por o A alegar que os recorrentes subscreveram enquanto fiadores o contrato de arrendamento, reclamando assim a sua condenação nas rendas vencidas, que os RR invocaram a má fé do A, uma vez que, segundo afirmam, nunca subscreveram nem foram parte em tal contrato.
Contudo, não se esgota nisto a natureza do pedido de condenação por litigância de má fé. Trata-se de matéria que, embora decorrente do articulado inicial do A, visa valores que transcendem a mera controvérsia centrada no plano obrigacional.
Tais valores, consubstanciados no dever geral de probidade plasmado no art.º 266º-A do CPC, impõem às partes o dever de se absterem de pedidos injustos, de articularem factos contrários à verdade e requerem diligências meramente dilatórias.
No fundo, são valores que visam, como princípio crucial do processo civil, permitir que venha a ser obtida “a justa composição do litígio” a que alude o art. 266º nº 1.
Daí que a litigância de má-fé seja do conhecimento oficioso do tribunal, como inequivocamente resulta do nº 1 do art.º 456º.
Ora, se cabe ao julgador conhecer oficiosamente do comportamento das partes face ao focado dever de probidade e condenar em multa a parte cujo comportamento a faça incorrer em litigância de má-fé, por maioria de razão deverá o juiz pronunciar-se sobre a mesma quando esta é invocada por uma das partes, com formulação de pedido de indemnização.
Como se pode ler no Acórdão da Relação do Porto, de 3/6/91 – CJ 1991, III, p. 243 - “não obstante a desistência do pedido, que extingue o direito que se pretendia fazer valer (...) a verdade é que o juiz, quando o processo lhe facultar os necessários elementos, deve condenar a parte que litigou de má fé, pois o conhecimento desta litigância é oficioso”.
No mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 29/10/98, disponível no site www.dgsi.pt/jstj. (…)”.
*
Como se ponderou no Acórdão desta Relação de Lisboa, de 17/02/2009, proc.º n.º 4760/2008-7, disponível em www.dgsi.pt.[[3]] “A questão de saber se é ou não possível conhecer da litigância de má-fé das partes depois da extinção da instância por desistência (do pedido ou da instância), transacção ou por impossibilidade superveniente da lide tem tido dividido a jurisprudência. Uma corrente tem entendido que sim tanto nos casos de má-fé material (ou substancial) como instrumental. Outra defende que só se pode conhecer a má-fé instrumental se antes não tiver sido apurada a matéria de facto que possa permitir apreciar a má-fé material (ou substancial).
Exemplos da primeira corrente:
Ac. do STJ de 20-10-1998[4]; os Acs. da R. do Porto de 03-6-1991[5] e de 12-01-1993[6] e Ac. da R. de Lisboa de 24-10-1991[7].
Exemplos da segunda:
Ac. do STJ de 08-11-1949: BMJ 16 págs. 184 e segs.; Acs. da R. de Coimbra de 07-01-1992: BMJ 413 pág. 625 e 08-06-2004[8] e Ac. da R. de Évora de 06-07-2004[9].
Jacinto Rodrigues Bastos[10], a propósito da questão aqui em apreço, sustenta que «a condenação como litigante de má fé é uma obrigação do juiz, face ao que se dispõe no art.º 456º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, e constitui objecto de uma pretensão, que não pode deixar de conhecer, quando a parte contrária tenha formulado o pedido de indemnização». Neste último caso __ prossegue o autor __, «a acção poderá prosseguir, após o julgamento da desistência ou da confissão, quando a parte contrária ao desistente ou confitente, que tenha pedido a indemnização, fundada em má fé, assim o requerer e o processo não contiver os elementos necessários à formação de juízo nessa matéria». Manuel de Andrade[11] ensina: «Acentue-se, finalmente, que pode haver má fé, tanto substancial como instrumental, por parte do litigante que desiste ou que confessa o pedido. Em qualquer dos casos não há obstáculo a que o juiz possa e deva aplicar as respectivas sanções. Se assim não fosse, no 1.º caso (desistência) qualquer pessoa podia, sem perigo, importunar ou prejudicar outrem com litígios sabidamente infundados (e até, para mais, com a possibilidade de vir a beneficiar da conhecida alea judiciorum); e de modo análogo (mutatis mutandis) quanto ao 2.º caso (confissão). Bastava-lhe desistir ou confessar in extremis (assim, por ex., logo depois das respostas desfavoráveis do colectivo)»[12].
A primeira corrente jurisprudencial tem fundamentalmente assentado nestes argumentos de Jacinto Rodrigues Bastos e Manuel de Andrade.
A segunda corrente apoia-se fundamentalmente na tese do Ac. do STJ de 08-11-1949, acima referido. Neste acórdão argumenta-se que se só se pode condenar por litigância de má fé, quando a litigância doloso for com dolo instrumental, porque a desistência do pedido impede que se conheça deste, e, portanto, impede que se averigúe se ele era conscientemente injusto (ilegal) para o efeito de se reconhecer a existência do dolo substancial. Para esta corrente, isto será assim quando se verifique a desistência do pedido, ou outra forma de extinção da instância antes de estar fixada a matéria de facto dada como provada. Se esta já se encontra fixada, o juiz tem de apreciar a existência ou inexistência da má-fé, nos termos do art.º 456º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil.”
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Ainda a favor da primeira corrente jurisprudencial, perfilam-se os seguintes e mais recentes acórdãos da Relação de Lisboa, ambos disponíveis no sítio www.dgsi.pt.:
- de 21/11/2013, proc. n.º 1063/11.9TVLSB.L1.8, com o seguinte sumário: “Havendo desistência do pedido por parte da autora, devidamente homologado por sentença, e tendo sido formulado pela ré pedido de indemnização por litigância de má fé da autora, a correspondente apreciação e eventual condenação, constitui objecto de pretensão de que o juiz não pode deixar de conhecer, sob pena de nulidade da sentença, nos termos do actual artigo 615º nº 1 alª d), primeira parte, que corresponde ao anterior artigo 668º nº 1 alª d), primeira parte.”
- de 09/01/2020, por maioria, proc.º 2487/17.3T8VFX.L1.2, assim sumariado:
“I - A desistência do pedido não obsta à condenação da parte como litigante de má fé. II - Existindo factualidade alegada sustentadora do pedido de condenação por má fé carecida de ser comprovada, deverá determinar-se a realização da audiência de discussão e julgamento para apurar da sua verificação, só então se decidindo sobre a mesma.”
No mesmo sentido, isto é, a favor da primeira corrente se pronunciou igualmente o Acórdão do Tribunal de Guimarães, de 10-05-2018, proc.º n.º 27/15.8T8TMC.G1, acessível em www.dgsi.pt.
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Vejamos.
O art.º 542.º n.º 2 do CPC, classifica como litigante de má-fé, aquele que, com dolo ou negligência grave:
“a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
“b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
“c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
“d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
Resulta pois do preceito, que a litigância de má-fé pressupõe, uma actuação dolosa ou com negligência grave, consubstanciada, objectivamente numa das diversas situações previstas nas quatro alíneas do n.º 2 do normativo legal transcrito.
No fundo, pode afirmar-se que a má-fé se traduz na violação dos deveres de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias.
A má-fé tanto pode ser material ou substancial (diz respeito ao fundo da causa – als. a) e b) como instrumental (diz respeito à relação jurídica processual – als. c) e d)). Naquele caso, “o litigante espera obter uma decisão de mérito que não corresponde à realidade”; neste caso, “procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta” – Prof. J. A. dos Reis, CPC anotado, anotação ao art.º 465.º.
Teremos porém que ser algo cautelosos quando confrontados com situações que tendem a espelhar determinadas teses jurídicas e que factualmente se não confirmam.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 11/12/2003 (in, www.dgsi.pt) “...a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art.º 456.º [hoje 542.º], do CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a) e b) do n.º 2”.
Na realidade, a ousadia de apresentação duma determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa-fé e da cooperação, havendo por isso que ser-se prudente no juízo a fazer sobre a má-fé substancial.
No regime actual vigente, a condenação por litigância de má-fé pode fundar-se, além da situação de dolo, em negligência grave.
A negligência grave verifica-se nas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida.
Há, porém, que não olvidar, como é referido no acórdão do STJ de 20-03-2014[3], “(…) que hoje a condenação como litigante de má fé deve ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária sendo esta última aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição “cuja falta de fundamento não devia ignorar”, ou seja, não é agora necessário, para ser sancionado, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão”, pois é suficiente a demonstração de lhe ser exigível essa consciencialização.(…).» Uma questão é a alegação factual, outra bem diferente, é a prova alcançada. No caso concreto, os factos invocados pelo Requerido na oposição, que suportam o pedido de condenação da Requerente como litigante de má-fé, ou seja, o invocado “alterar a verdade dos factos”, “omitir factos” e “omitir documentos”, não foram fixados e valorados pela 1.ª instância e subsistem, na sua maioria, controvertidos.
Alega o Requerido e Recorrente que a Requerente/Recorrida instaurou uma acção de alimentos definitivos, alegando basicamente que tinha tido uma diminuição da remuneração, por estar de baixa médica;
- que alegou, igualmente, que tinha um processo pendente de inventário, que também lhe tinha tirado liquidez;
- que omitiu que não paga habitação, nem paga veículo, nem qualquer outra despesa relevante, por estarem a ser suportadas pelo cabeça-de-casal, enquanto despesas de aquisição e manutenção de bens comuns;
- que omitiu que não paga telemóvel, nem seguro de saúde, que são suportadas pela empresa, uma vez que CONTINUA A SER DIRECTORA DE QUALIDADE DA EMPRESA, apesar de não comparecer ao seu local de trabalho;
- que omitiu também que basicamente só paga água, electricidade, gás e TV a cabo, como ainda despesas com cabeleireiro, depilação, restaurantes e outras do género, que não são essenciais à sobrevivência, como quer dar a entender;
. que omitiu ainda que como directora recebe a quantia de aproximadamente 1.800 Euros líquidos;
- que omitiu que além disto desenvolvia actividade paralela de organização e promoção de eventos.
Alega, por fim, que todos estes factos foram reportados na contestação do processo principal e que o Tribunal Recorrido não podia deixar de conhecer dos mesmos.
E que, apesar de todo essa realidade invocada pelo Réu e Requerido, em meados de Agosto de 2019, a Autora/Requerente/Recorrida não se coibiu de instaurou um procedimento cautelar de alimentos provisórios invocando sucintamente os mesmos factos acima descritos.
Tendo pedido alimentos provisórios, para as necessidades essenciais do ser humano, sensivelmente uma semana antes de ir passar férias de verão com a filha na Alemanha (22 de Agosto de 2019).
Com efeito, o Tribunal Recorrido ignorou o pedido de condenação da Requerente como litigante de má-fé, não tendo sequer feito qualquer referência a esta factualidade alegada pelo Requerido, aqui Recorrente, que será essencial para o apuramento da existência, ou não, duma situação de litigância de má-fé, sendo que só o prosseguimento do processo, com vista ao apuramento desses factos controvertidos, com excepção do referente à situação de baixa médica que está provado por documento idóneo, permitirá que se profira decisão em que se elenquem os factos dados como provados e como não provados, para então se decidir de direito sobre esta específica questão da má-fé.
A apreciação do pedido de condenação da Requerente, formulado na oposição pelo Requerido, só poderá ser feita com base na avaliação que se faça de toda a prova produzida/existente nos autos, quanto aos factos atinentes à má-fé, sendo que a decisão a proferir terá que elencar, quer os que resultem provados, quer os que não se provarem e, só então concluir com decisão final.
Assim sendo, numa primeira apreciação - e porque tendemos a subscrever a primeira tese enunciada supra -, poderíamos ser tentados a concluir, como nos Acórdãos desta Relação de Lisboa, de 09-01-2020, proc. n.º 2487/17.3T8VFX.L1-2 e de 21-11-2013, proc. n.º 1063/11.9TVLSB.L1-, disponíveis em www.dgsi.pt., pela revogação da decisão recorrida, por afectada de nulidade, e consequente determinação que os autos prosseguissem os seus termos no Tribunal Recorrido exclusivamente para apreciação, de facto e de direito, da invocada questão da litigância de má-fé da Requerente.
Na verdade, como se ponderou no Ac. desta Relação de Lisboa, de 26/06/2014, proc. n.º 1524/10.7TBCSC.L1, acessível em www.dgsi.pt., “o apuramento e a fixação das ocorrências materiais sobre que pretende assentar-se a existência de má-fé é uma questão de facto que apenas o juiz que assistiu ao seu desenrolar pode valorar para decidir se efectivamente essas ocorrências traduzem ou não má-fé.”
Não obstante, depois de uma maior ponderação, que levou em consideração a natureza cautelar do presente processo, ou seja, as especificidades do caso concreto, entendemos ser outra a orientação a seguir por este Tribunal de Recurso no caso sub judice, na linha, aliás, do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25-01-2005, proc.º n.º 3913/04, disponível no sítio www.dgsi.pt., de cuja fundamentação, na parte que aqui releva e à qual aderimos, se pode ler:
“Apesar da indiscutível natureza de provisoriedade das providências cautelares (cfr. art.º 381º e 392º do Cód. Proc. Civil), nada na lei afasta a aplicabilidade do instituto da má fé em sede dos procedimentos conducentes ao decretamento de tais providências Ac. STJ de 19/10/99, relatado pelo Ex.mo Cons. Ferreira Ramos, in www.dgsi.pt/jstj e Ac. Rel. Coimbra de 27/01/2004, relatado pelo Ex.mo Des. Jorge Arcanjo, in www.dgsi.pt/jtrc., sendo até sustentado no Ac. do STJ de 06/06/2000 que, nesses casos, basta que o requerente não actue com a prudência normal BMJ, nº 498, pág. 179. No acórdão em questão afirma-se textualmente: “Nas providências cautelares bastará, até, que o requerente não tenha agido com a prudência normal, pois neste caso, se a providência for considerada injustificada, o requerente responde pelos danos culposamente causados ao requerido - artigo 390.°, n.° 1”.
Contudo, se bem vemos, também aqui há que distinguir.
Os procedimentos cautelares bastam-se com uma averiguação sumária e provisória (sumaria cognitio) da provável ou aparente existência do direito ameaçado (fumus boni iuris), com vista a evitar, enquanto a acção principal não define a situação, a sua lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora).
Por isso, sendo o processo mais célere e a produção da prova menos aprofundada e segura, é habitual, na decisão de facto, aludir-se a “factos indiciados” e não a “factos provados”. E a improcedência do procedimento cautelar não significa necessariamente a improcedência da acção principal que poderá vir a ser total ou parcialmente procedente Ac. do STJ de 19/10/1999, já referido.
Como escreve Abrantes Geraldes Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 2ª edição, págs. 81/82., são requisitos gerais para o decretamento de providências cautelares não especificadas a probabilidade séria da existência do direito invocado, o fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; a adequação da providência à situação de lesão iminente; e a não existência de providência específica que acautele aquele direito.
No caso da restituição provisória de posse, são pressupostos do decretamento da providência a posse, o esbulho e a violência (art.º 393º do CPC), sendo, pois, a posse, o direito cuja probabilidade séria de existência constitui requisito indispensável.
A circunstância de, em sede de procedimento cautelar, não só não resultar indiciada a existência da posse alegadamente esbulhada, como até resultar indiciada a sua inexistência não implica necessariamente que o mesmo venha a suceder na acção principal.
E a contradição entre a factualidade alegada pelo requerente no que tange à probabilidade da existência do seu direito e a factualidade nessa matéria indiciada no procedimento cautelar, mesmo aliada a indícios de dolo ou negligência grave do requerente, não poderá, se bem vemos, conduzir à condenação imediata por litigância de má fé, sob pena de, finda a acção principal, poder chegar-se à conclusão de que tal condenação foi precipitada e injusta.
Ou seja, afigura-se-nos que em sede de procedimentos cautelares, a condenação por litigância de má fé apenas poderá fundar-se em má fé instrumental ou, no caso de má fé substancial, quando não respeite a factos (designadamente à existência ou não do direito alegadamente ameaçado ou violado) que hajam de ser objecto de apreciação na acção principal.”
Ora, no caso dos presentes autos, a má-fé indiciada, alegada pelo Requerido, é, essencialmente, de natureza material ou substancial, pois os factos alegados que suportam o pedido de condenação da Requerente ou da sua Ilustre Patrona como litigante de má-fé, respeitam ao invocado “alterar a verdade dos factos”, “omitir factos” e “omitir documentos”. Trata-se de factos que hão-de ser objecto de apreciação mais aprofundada e segura na acção principal de alimentos, afigurando-se, assim, como prudente e mais sensato deixar para aquela acção o juízo definitivo sobre a existência, ou não, da alegada má-fé material ou substancial da Requerente, mas também sobre a má-fé instrumental ou processual, já que, no caso em apreço, a conclusão sobre o alegado “uso manifestamente reprovável” do processo e da providência cautelar, com o “fim de conseguir um objectivo ilegal” (art.º 542.º/2-d) não dispensa a prova dos factos alegados indicadores da má-fé substancial.
Entende-se, assim, que a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia e, suprindo tal nulidade, decide-se que o juízo definitivo sobre a alegada má-fé da Autora/Requerente e da sua Ilustre Patrona, Sra. Dra. Susana …., dever ser relegado para a acção principal, mantendo-se, consequentemente, a declarada extinção da instância, por deserção.
Termos em que a apelação apenas procede parcialmente.
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As custas da apelação serão suportadas em partes iguais pela Recorrida/Requerente e Recorrente/Requerido - art.º 527.º do CPC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente:
a) Declaram nula a decisão recorrida, por omissão de pronúncia, na arte em que não apreciou a questão da litigância de má-fé;
b) Suprindo tal omissão, relegam o juízo definitivo sobre a alegada má-fé da Autora/Requerente e da Sua Ilustre Patrona, Sra. Dra. Susana … para a decisão final a proferir na acção principal de alimentos, mantendo a decisão recorrida quanto à extinção da instância, por deserção.
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A Recorrida/Requerente e o Recorrente/Requerido suportarão as custas da apelação em partes iguais.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 24 de Setembro de 2020
Manuel Rodrigues
Ana Paula Carvalho
Nuno Ribeiro
_______________________________________________________ [1] Cf. Geraldes, António Santos Abrantes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª edição, 2017, Almedina, p. 109 [2] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 30, 1946, 5, nota 1. [3] Nota de rodapé para que remete o excerto transcrito: [6] Apelação – Proc. n.º 6998 – Cardoso Lopes – unanimidade. Vd http://www.dgsi.pt.
[7] Agravo – Proc. n.º 1415 Boavida Barros – unanimidade. Vd http://www.dgsi.pt.
[8] Agravo – Proc. n.º 1676/04 – Helder Roque – unanimidade. Vd http://www.dgsi.pt.
[9] Apelação – Proc. n.º 795/04 – 2 – Chambel Mourisco unanimidade. Vd http://www.dgsi.pt.[10] Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. II, 2.ª Ed., Lisboa – 1971 pág. 358 em anotação ao art.º 456º. [11] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Ld.ª - 1979, pág. 359. [12] E abre uma nota para se Cfr. J. A. Reis, em Jurisprudência crítica sobre processo civil, I, pág. 168, onde o Prof. J. A. Reis comenta o Ac. do STJ de 09-11-1949 citado no texto a propósito da segunda tese.