IMPUGNAÇÃO DA ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
POSSE
PRESUNÇÃO DE POSSE
AQUISIÇÃO DERIVADA DA POSSE
Sumário


I- A ação de impugnação da escritura de justificação notarial não está sujeita a qualquer prazo de caducidade, preclusivo do exercício do direito;
II- Revestindo a ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116.º, n.º 1, do CRP e 89.º e 101.º do CNot a natureza de simples apreciação negativa, incumbe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga;
III- Tendo a ré afirmado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, incumbe-lhe, para além do mais, a prova dos factos que integram uma atuação sobre a coisa por forma correspondente ao exercício do direito – o denominado “corpus” –, com a intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto – o que se designa por “animus”, em que a posse se traduz;
IV- Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º, nº 2, do CC), desta presunção se extraindo que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, interpretação firmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, de 14/05/1996;
V- Todavia, o art. 1252º, nº 2, do CC salvaguarda do âmbito do aí estatuído os casos do n.º 2 do art. 1257.º, do mesmo código, isto é, os casos em que se deve presumir que “a posse continua em nome de quem a começou”, pelo que excluídos estão do âmbito da presunção da posse em nome próprio naquele estabelecida os casos em que o detentor (ou aparente possuidor) não foi o iniciador da posse;
VI- No caso de ação de impugnação de justificação notarial em que o justificante não se apresentou como possuidor desligado dos antecedentes, antes produziu uma afirmação do animus possessório referenciado ao ato de aquisição derivada da posse, como é o caso de uma doação verbal, com tal alegação se excluiu o justificante do leque de beneficiários da presunção prevista no art. 1252º, nº 2, do CC.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

H. C. intentou contra J. A. e J. C. ação declarativa, com processo comum, pedindo se declare a nulidade da escritura de justificação notarial e se ordene o cancelamento da inscrição do artigo ... urbano da União de Freguesias de ..., no Serviço de Finanças, da inscrição da aquisição do prédio ..., da freguesia de ..., na Conservatória do Registo Predial ..., e de todo e qualquer outro registo que tenha por base a referida escritura.

Para tanto, e em síntese, alega, no que para agora interessa, que recebeu por partilha da herança de seus pais o prédio urbano registado na 1ª Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... de ..., registado a favor dos autores da herança pela inscrição Ap. 3 de 1927/05/09 e a seu favor pela inscrição AP. 1145 de 2015/03/06, aí constando também o seu endereço em França, onde reside; o prédio está inscrito na matriz sob o art. ... da União de Freguesias de ...; em 2017, por não ter rececionado a notificação para pagamento do IMI, descobriu que o prédio já não estava inscrito em seu nome, mas em nome da R., assim como também não se encontrava descrito a seu favor na Conservatória do Registo Predial, mas a favor da R., desde 24/05/2016 (sendo o registo provisório por dúvidas); o fundamento do pedido da alteração da inscrição do prédio a favor da R. foi a escritura de justificação notarial junta aos autos; na referida escritura o notário não fez menção à licença de utilização nem à sua eventual dispensa, sendo que o objeto da mesma é um prédio urbano; a R. e os seus pais viveram no prédio em causa por mero favor dos pais da A. e depois da própria A. e de seu irmão; são falsas as declarações das testemunhas e da R. na escritura de justificação.
Os RR., devidamente citados, contestaram.
O R. J. A. invocou nulidades e exceções, apreciadas no saneador, impugnou os factos constantes da petição inicial, e pediu a condenação da A. como litigante de má fé.
A R. J. C. invocou nulidades e exceções, apreciadas no saneador, e sustentou que o prédio em causa é sua pertença, alegando, em suma, que, tal como consta da escritura de justificação notarial, em Agosto de 1941 C. J. e mulher, J. C., doaram oralmente a P. M. e M. F. com o encargo destes lho (a ela, Ré) transmitirem por sua morte o prédio urbano identificado na dita escritura e, desde então, tem usufruído o prédio como coisa autónoma, própria e exclusiva, à vista de todos e sem qualquer interrupção, delimitando e resguardando a casa com a construção de muros, retirando todas as utilidades do prédio, colhendo frutos das árvores que plantou, suportando os encargos disso provenientes, sem a oposição de quem quer que seja desde aquela data, “sendo reconhecido por todos, a R. J. C. e seus pais, como donos e proprietários do prédio em causa”. Mais alegou que, ainda que assim não fosse, nos anos 70, por altura do verão, confrontou e contrariou a A. que pretendia entrar no imóvel, tendo publicamente afirmado em voz alta e de forma categórica que a casa, os terrenos e as leiras eram seus e que os usava de pleno direito, ao que a A. não se opôs até hoje.
Ambos os RR. excecionaram a caducidade do direito da A. de intentar a ação, defendendo que, visando a impugnação a declaração de nulidade da escritura de justificação tem a mesma de ser deduzida no prazo de um ano a contar do conhecimento da escritura, conhecimento que a Autora teve logo após a sua celebração. Ocorrendo, por via disso, a caducidade do direito que a Autora vem exercer, de acordo com o artigo 1282.º CC.
A decisão desta exceção foi relegada para final.

Efetuada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, o Tribunal:
. julga improcedente a invocada excepção de caducidade do direito da A. intentar a presente acção;
. julga a presente acção procedente, por provada, e, consequentemente:
- declara a nulidade da escritura de justificação notarial relativamente ao prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ..., com o n.º ..., de ...;
- determina o cancelamento dos registos prediais do direito de propriedade obtidos por meio desse título;
- determina o cancelamento da inscrição matricial em nome da R. J. C. nos Serviços de Finanças.

*
Inconformada, a Ré J. C. interpôs o presente recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

1. O Tribunal de 1:ª Instancia na douta sentença de que se recorre, na matéria de facto que considerou provada, entendeu que não ficaram demonstrados os factos narrados na escritura de justificação, nomeadamente a doação e os atos de posse da R. sobre o prédio objecto da presente acção;
2. Com tal conclusão a Recorrente não concorda, conforme se demonstrará a seguir;
3. De relevar, que o Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 2, reflecte na sua sentença uma anterior decisão doutro Tribunal, noutro processo, confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 219/09.9TCGMR, da 1.º Vara Mista de Guimarães, processo em que a Recorrida H. C. intentou contra o seu sobrinho P. C., mulher e M. A. (filha da Recorrente) e marido, em que foi anulada uma usucapião realizada por aquele seu sobrinho;
4. Transparece da sentença de que se recorre, um prendimento a este último Processo n.º 219/09.9TCGMR, da 1.ª Vara Mista de Guimarães, situação que nada tem a ver com o caso nos Autos, influenciando assim aquela;
5. O Tribunal a quo começa por sustentar a sua tese, no argumento de que nem a própria Recorrente confirmou integralmente a versão dos factos narrados na escritura de justificação e que teriam sido declarados por ela, trocando na audiência de julgamento da identidade dos doadores do prédio;
6. Contrariamente ao que o Tribunal aqui conclui, a Recorrente confirmou integralmente os factos narrados na escritura, e não é por um erro na identificação da identidade dos doadores do prédio, tendo confundido o nome dos pais com o dos seus avós, cometido por uma pessoa de 90 anos, que isso inquina a doação fideicomissária;
7. Relativamente à doação do prédio feito pelos seus pais com a condição de ficar para si, com a sua morte, não ter sido confirmado pelos seus irmãos - que no entender do tribunal têm conhecimento directo dos factos - deve-se destacar que os mesmos eram, à data da doação, em 1941, recém-nascidos ou ainda não existiam sequer;
8. Mais relevante ainda, todos os seus irmãos partiram desde muito novos para o Estrangeiro, França e Alemanha, como o tribunal pôde constatar, mas que olvida de forma flagrante;
9. Assim, estes testemunhos, apesar de terem disso prestados por três dos seus nove irmãos, não podem ser considerados como testemunhas directas, porquanto estiveram praticamente todo o tempo das suas vidas até hoje fora de Portugal; com mais de sessenta anos de ausência, facto que o Tribunal desconsidera por completo;
10.Aliás, considerou-os até, pelo contrário, as únicas testemunhas com conhecimento direto dos factos, tendo os seus depoimentos sido considerados credíveis, isentos e objetivos;
11.A Recorrente é de uma família de nove irmãos, por isso, quando as suas testemunhas R. F., genro, e M. B. filha, dizem que ouviam dos seus tios e todas as pessoas conhecidas que a casa tinha ficado para si, dizem a verdade;
12.Os irmãos da Recorrente M. G. e J. F. não são os únicos, há mais oito, e conforme consta da audiência, nomeadamente dos depoimentos de A. C. e F. F., estes encontravam-se zangados ou interessados no desfecho do processo contra a sua irmã aqui J. C., a primeira irmã por vingança pessoal e o segundo pelo interesse em recuperar o seu dinheiro, sendo a este apenas possível com a vitória da Recorrida H. C. no presente processo;
13.Não se concorda assim com a afirmação do Tribunal de que os testemunhos em apreço são imparciais e objetivos, tendo aliás baseado a decisão final de que se recorre;
14.Aliás, é público que o presente processo sempre foi instruído, financiado e elaborado pelo irmão da Recorrente J. F., que emprestou dinheiro a filha desta sua irmã para comprar o prédio dos autos ao sobrinho da Recorrida H. C.;
15. R. F. (00.13.18 – Ficheiro: 20190917104050_5517651_2870526), M. B. (00.04.46 e 00.06.59 - Ficheiro:20190917110200_5517651_2870526, e F. F. (00.21.25 -Ficheiro: 20191001102111_5517651_2870526) foram unânimes e claros, ao afirmar que a Recorrente realizou obras no prédio; confirmando assim as afirmações desta, tal como a testemunha J. F. (00:10:04 -Ficheiro: 20190916142123_5517651_2870526)
16.Ficou provado que a Recorrente delimitou e resguardou a casa com a construção de muros que não existiam para delimitar a casa e procedeu à sua reparação;
17.Igualmente ficou provado que plantou árvores e colheu os seus frutos;
18.Cultivou hortas, semeou hortaliças;
19.Isto perante toda a gente da terra, de forma pacífica, de boa-fé, com exclusão de outrem, sem oposição da Recorrida;
20.Ficou provado que, desde 1941 até hoje, P. M. e M. F., pais da Recorrente, e esta, sempre têm usufruído o mesmo prédio como coisa própria, autónoma e exclusiva, habitando-o, nele fazendo benfeitorias, dele retirando utilidades normais de que é susceptível, sendo reconhecidos como seus donos por toda a gente, fazendo-o de boa-fé, praticando os poderes de facto inerentes ao direito de propriedade plena na convicção de não lesarem direito de outrem, de forma ininterrupta, pacificamente e a vista de todos, pelo que, na impossibilidade de poder comprovar a aquisição do identificado imóvel, resultando da doação verbal aqueles P. M. (fiduciários) com o encargo destes o transmitirem por sua morte a J. C. (fideicomissários), pelos meios normais, justificaram assim, nos termos da lei civil, de forma originaria a sua aquisição por usucapião, por um lapso superior a vinte anos;
21.Mas mesmo que assim se não entendesse, em 1970, dá-se a inversão da posse, porquanto a Recorrida H. C. tentou entrar na casa, mas foi impedida, tendo de viva voz e à frente de todos a isso se oposto, facto que foi confirmado forma direta pela testemunha F. F., que assistiu ao sucedido (00:17:04 –Ficheiro 20191001102111_5517651_2870526) sendo ainda este facto também do conhecimento das outras testemunhas;
22.O Tribunal dá como provado este facto, mas entende que a Recorrente não sabia quem era a pessoa, o que é normal, porque até aí nunca a tinha visto, pois a Recorrida H. C. nasceu em França e era a primeira vez que vinha a Portugal;
23.A testemunha da Recorrida M. G., irmã da Recorrente mentiu quando disse que intercedeu junto desta para que a irmã continuasse no prédio justificado, depois de efectuada a partilha;
24.Aliás, dito por as suas testemunhas, como A. C. (00:23:48 - Ficheiro: 20190917100705_5517651_2870526) e F. F. (00:26:57 - Ficheiro: 20191001102111_5517651_2870526) M. G. (00:22:18 - Ficheiro: 20190916112936_5517651_2870526) tornou-se uma feroz inimiga da Recorrente, querendo vingar-se de si, e tendo um interesse no desfecho do presente processo, porquanto culpa ainda hoje a sua irmã pelo facto de uma das suas filhas ter casado com o seu ex-marido (a sobrinha “roubou-lhe” o marido), pelo que toda a credibilidade do seu testemunho está em causa, e este não deveria ter sido considerado pelo Tribunal;
25.Da mesma forma que a testemunha J. F., irmão da Recorrente, que foi quem emprestou dinheiro à filha desta para comprar o imóvel em causa nos autos, ao sobrinho da Recorrida H. C., P. C., negocio que depois foi objecto de anulação, tendo o mesmo interesse no desfecho, porque é publico que pretende recuperar o seu dinheiro se o prédio justificado ficar para a Recorrida;
26.De relevar que no próprio dia em que foi ouvido como testemunha da Recorrida neste processo, no fim da audiência, proferiu em voz alta, perante várias testemunhas, “já ganhámos isto!!!”;
27.(A testemunha da Recorrente, a sua filha M. B., não disse que a H. C. poderia la continuar a viver...)
28.Assim, contrariamente ao entendimento do Tribunal, as testemunhas da Recorrida, os seus irmãos C. J. e M. G., prestaram depoimentos comprometidos, interessados, não podendo ser considerados credíveis;
29.Para além de que, não vivem em Portugal há mais de sessenta anos, vivendo na França e Alemanha, aonde também vivem os seus filhos;
30.Já as testemunhas da Recorrente depuseram com conhecimento dos factos, nomeadamente quanto à justificação posse pela Recorrente, que resultou da vivência de mais de quarenta anos;
31.Os depoimentos dos irmãos da Recorrente C. J. e M. G., testemunhas da Recorrida H. C., não põem em causa o seu depoimento de parte, porque foram parciais, interessados, nada isentos e nada objectivos;
32.Os depoimentos que foram credíveis, isentos e objectivos, foram os das testemunhas F. F., R. F., M. B. e A. C.;
33.Assim, ressalvado o devido e maior respeito, deverá a decisão de facto ser alterada pelo Tribunal da Relação e dar como provados os seguintes factos (que constam da sentença como factos não provados com relevância para a decisão da causa):
- (8) A A. teve conhecimento da escritura de justificação logo após a sua celebração;
- (9) Em Agosto de 1941 C. J. e mulher, J. C., doaram oralmente a P. M. e M. F. com o encargo destes o transmitirem por sua morte a J. C. o prédio urbano identificado na escritura de Justificação;
- (10) Desde Agosto de 1941 que a Ré J. C. tem usufruído o prédio como coisa autónoma, própria e exclusiva;
- (11) A vista de todos e sem qualquer interrupção;
- (12) Delimitando e resguardando a casa com a construção de muros, retirando todas as utilidades do prédio, colhendo frutos das árvores que plantou, suportando os encargos disso provenientes, sem a oposição de quem quer que seja desde aquela data;
- (13) Sendo reconhecido por todos, a R. J. C. e seus pais, como donos e proprietários do prédio em causa;
- (14) Nos anos 70, por altura do verão, a R. J. C. confrontou e contrariou a A. que pretendia entrar no imóvel, tendo publicamente afirmado em voz alta e de forma categórica que casa, os terrenos e as leiras eram seus e que os usava de pleno direito, ao que a A. não se opôs até hoje;
34.No que concerne ao direito aplicável é entendimento da Recorrente que da legislação aplicável a escritura de justificação notarial é válida pelo facto do prédio ser anterior a 1951 opinião sufragada pela maioria da doutrina e da jurisprudência, que não existindo licença de utilização há uma dispensa de apresentação da mesma;
35.Relativamente à caducidade do direito da Recorrida pedir a nulidade da escritura de justificação verifica-se pelo facto de a mesma ter intentado a presente ação após o decurso do prazo para o poder fazer, nos termos gerais do código civil;
36.Por último, a Recorrente demonstrou através da prova que se produziu na Audiência de Julgamento, aqui neste recurso exposta, que adquiriu o referido prédio por usucapião quer nos termos do que está declarado na escritura de justificação de posse, quer sobretudo pela inversão de posse que se operou em 1970, facto assumido pela própria Recorrida que admite quer neste processo, quer no outro a que faz referência que foi o ano que pela primeira vez esteve em Portugal;

Termina as suas conclusões pedindo se revogue a decisão proferida pela primeira instância.
A Autora/Recorrida contra-alegou, pugnando pela rejeição da impugnação da matéria de facto apresentada, por incumprimento das alíneas a) e b) e c) do art. 640º do CPC. Subsidiariamente, pugnou pela improcedência do recurso.
**
II. QUESTÃO PRÉVIA

- Da rejeição da impugnação da matéria de facto

A questão que, neste momento, se coloca é a de saber se a impugnação da matéria de facto deverá ser rejeitada, como defende a Recorrida.

Vejamos.

Nos termos do art. 640º, nº 1, do Cód. Proc. Civil:

“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

E, nos termos do nº 2 do citado artigo:

“No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)”

O incumprimento de tal ónus implica, portanto, a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.

A propósito da razão de ser destas imposições, diz Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, pág. 128 e 129: “Pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1.ª instância e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção da prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas. (…) Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.

Sublinha o citado Autor, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, pág. 165: “Os aspectos fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição clara do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido”.

A orientação predominante no Supremo Tribunal de Justiça é a de considerar que, não obstante a literalidade do preceito em análise, o cumprimento do ónus ali consagrado – exceção feita, por razões de objetividade e de certeza, aos concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação (Acórdão do STJ de 19.02.2015) – pode efetuar-se no corpo das alegações, devendo, na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, os aspetos de ordem formal ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, evitando-se a exponenciação de tal ónus ou uma interpretação demasiado rigorista do mesmo (cfr. entre outros, Acórdão do STJ de 28.04.2016 – Relator Abrantes Geraldes – e de 12.07.2018 – Relator Ferreira Pinto).

No caso, a Recorrente indicou claramente, nas suas conclusões, quais os pontos de facto objeto da impugnação, bem como a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, defendendo que todos os pontos de facto por si enunciados devem ser considerados provados.
Cumpridos se mostram, pois, quanto a tais pontos impugnados, os requisitos previstos em a) e c) do citado art. 640º, nº 1, do CPC.

Quanto à indicação dos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os aludidos pontos da matéria de facto diversa da recorrida, verifica-se que, exceção feita ao ponto 8 dos “Factos não provados”, a mesma se encontra efetuada, embora com deficiências, relativamente a parte dos meios de prova indicados, devendo, por isso, considerar-se o alegado – exceto no que respeita ao referido ponto – no limiar do suficiente para efeito de conhecimento da impugnação por parte deste Tribunal. Coisa diversa é saber da relevância, desses depoimentos que foram indicados de modo minimamente correto, para as preconizadas alterações.
Já não assim no que tange ao mencionado ponto 8 dos “Factos não provados”, na medida em que, quanto ao mesmo, não foram indicados – nem nas conclusões, nem no corpo das alegações – os meios de prova que, segundo a Recorrente, imporiam decisão diversa da tomada relativamente a este concreto ponto, o que, de harmonia com a previsão contida na alínea c) do citado art. 640º, nº 1, do CPC, implica a rejeição dessa parte da impugnação.
Face ao exposto, indefere-se à requerida rejeição da impugnação, exceção feita à impugnação relativa ao ponto 8 dos “Factos não provados”, de que não se conhecerá.
*
III. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).

No caso vertente, as questões a decidir são as seguintes:

- Indagar se a decisão relativa à matéria de facto padece de deficiência, havendo necessidade de a ampliar;
- Saber se, no que toca aos pontos de facto impugnados que importa reapreciar, ocorreu erro relativo à decisão sobre a matéria de facto;
- Saber se o direito à impugnação de justificação notarial está sujeito a prazo de caducidade;
- Saber se a Ré demonstrou ter adquirido o prédio objeto da escritura de justificação notarial em crise nestes autos por usucapião, nos termos declarados na escritura ou por inversão do título da posse.
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IV. FUNDAMENTOS:

Os factos.
Na primeira instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

A) No processo de inventário para partilha dos bens das heranças abertas por óbito de C. J. e de J. C., pais da Autora, H. C., foi relacionado o único bem das heranças existente em Portugal:
- Prédio urbano composto por uma morada de casas térreas, telhadas, com leiras de terrenos de horta com árvores de vinho, tudo junto e unido, limitado por parede, valado e silvado, sito no lugar de ..., freguesia de ... do concelho de Guimarães, descrito na 1.ª Conservatória do registo Predial ... sob o n.º ... de ..., registado a favor dos autores da herança pela inscrição Ap. 3 de 1927/05/09, omisso à matriz, com o valor atribuído de € 10.000,00 (Processo n.º 4302/12.5TBGMR, J1- da Instância Local Cível de Guimarães).
B) Este prédio foi depois participado e inscrito na matriz sob o art.º ... da União das freguesias de ...; foi ordenada a correspondente anotação à relação de bens por despacho de fls. 131 do processo de inventário; e foi adjudicado à interessada, H. C.; e a respectiva aquisição foi registada na referida Conservatória, pela inscrição AP. 1145 de 2015/03/06, cujo teor se transcreve:
CAUSA: Partilha de Herança SUJEITO ACTIVO
** H. C. NIF …
Casada com D. V., sob o regime da separação de bens.
Morada: …, Rue ..., ... Localidade: França -
SUJEITOS PASSIVOS
** J. C. ** C. J.
C) A. A. reside em …, Rue ..., ..., França, país onde nasceu e sempre viveu, e para receber as notificações da Autoridade Tributária e Aduaneira, indicou M. D., residente na Travessa das …, Vila do Conde, que aceitou o mandato.
D) No ano de 2017, M. D. não recebeu a notificação para pagamento do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) relativo ao identificado prédio e na sua deslocação à Repartição de Finanças de Guimarães, foi informada de que o prédio já não se encontrava inscrito em nome da A.
E) Consultada a caderneta predial, nela constava:
Identificação dos TITULARES inscritos:
Identificação fiscal: ...
Nome: J. C.
Morada: R …
Tipo de titular: Propriedade plena Parte: 1/1
Documento: IMPOSTO SUCESSÓRIO
Entidade:
ISELO …;
F) E da Informação em Vigor, emitida pela Conservatória do Registo Predial ..., no dia 31 de Maio de 2017, constava:
“AP. 1698 de 2016/05/24 14:33:04 UTC - Aquisição Registado no Sistema em: 2016/05/24 14:33:04 UTC PROVISÓRIO POR DÚVIDAS
Causa: Usucapião SUJEITO(S) ACTIVO(S)
** J. C. Viúva
Morada: Lugar de ..., à Rua …
Localidade: …”.
G) O pedido do registo da inscrição referida no artigo anterior foi instruído com a escritura de justificação outorgada no dia 04 de Abril de 2016, no Cartório Notarial no …, na Rua do ..., perante o notário J. A., cuja certidão foi junta com a petição inicial, transcrevendo-se o seguinte:
“Justificação

No dia quatro de Abril do ano dois mil e dezasseis, no Cartório Notarial da cidade do … à Rua do ..., nº …, …, perante mim J. A., respectivo Notário, compareceram como outorgantes:
Primeiro: J. C., viúva, natural da freguesia de ..., concelho de Guimarães, onde é residente, no Lugar de ..., à Rua ..., C.P. …, possuidora do Bilhete de identidade número … de 16-04-1982 (vitalício), NIF ....
Segundo: - a)- F. F., casado, residente na freguesia de … (…), concelho de Guimarães, à Rua …, titular do Bilhete de Identidade número … de 11-01-2008;
b)- P. R., solteiro, maior, residente na freguesia de …, do concelho de Guimarães, no Lugar da …, à Rua do …, nº …, portador do Cartão de Cidadão número … válido até 09-07-2019;
c)-M. M., solteira, maior, residente na União de Freguesias de ... e ... concelho de Guimarães, à Rua …, titular do Bilhete de Identidade número … de 21-09-2007, todos eventualmente residentes no Lugar de ....
Verifiquei a identidade dos intervenientes por exibição dos mencionados Bilhetes de Identidade emitidos pelos "Serviços de Identificação Civil de Lisboa (o da primeira), Braga (os dos segundos das alíneas a) e c) e Cartão do Cidadão emitido pela República Portuguesa mas impresso pelos Serviços da Imprensa Nacional Casa da Moeda (o do segundo da alínea b).

E PELA PRIMEIRA INTERVENIENTE FOI DITO:

Que ela, J. C., é dona e legítima possuidora com exclusão de outrem, do seguinte imóvel, sito na União de freguesias de ... e ..., concelho de Guimarães:
Prédio urbano: - no Lugar de ..., casa da habitação de um piso, logradouro, sendo a área total de novecentos e cinquenta metros quadrados (sc = 220,00 m2; sd=730,00 m2) a confrontar: do Norte com Rio ...; Sul e Nascente: Estrada Nova e Rua ...; Poente: "B. e Irmão, Lda”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... (Freguesia de …) sob o número … (...), inscrito na matriz sob o artigo …, com o valor patrimonial tributável (e atribuído) de 32.390,00 €uros.
Que no entanto na Conservatória do Registo Predial ... aquele imóvel está registado definitivamente a favor de H. C. (ou H. C.) casada com D. V., no regime da separação de bens, residente em parte incerta da Europa, filha de C. J. e de J. C..
Que este imóvel foi doado em princípios do mês de Agosto de mil novecentos e quarenta e um, através de meras conversação verbais, pelos então titulares inscritos, ou seja, C. J., e mulher, J. C. (ou J. C.), casados no regime da comunhão geral de bens, residentes que foram no citado Lugar de ..., com o encargo destes o transmitirem por sua morte (ocorridas em 11 de Maio de 1976 e 25 de Janeiro de 1991, respectivamente) a J. C. (fideicomissária).
Que desde aquela data (Agosto de 1941) até hoje, P. M. e M. F., e J. C., sempre têm usufruído o mesmo prédio como coisa própria, autónoma e exclusiva, habitando-o, nele fazendo benfeitorias, dele retirando as utilidades normais de que é susceptível, sendo reconhecidos como seus donos por toda a gente, fazendo-o de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, praticando os poderes de facto inerentes ao direito de propriedade plena na convicção de não lesarem direito de outrem, de forma ininterrupta, pacificamente e à vista de todas a gente, pelo que, na impossibilidade de poder comprovar a aquisição do identificado imóvel, resultante da doação verbal àqueles P. M. (fiduciários) com o encargo destes o transmitirem por sua morte a J. C. (fideicomissária - com a condição de incomunicabilidade ao marido desta) pelos meios normais, justifica assim, nos termos da lei civil, de forma originária a sua aquisição por usucapião.
E tudo isto por um lapso de tempo superior a vinte anos.
DISSERAM OS SEGUNDOS OUTORGANTES:
Que por serem totalmente verdadeiras confirmam as declarações prestadas pela primeira interveniente.
Preveni a primeira e os segundos outorgantes de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público, se dolosamente ou em prejuízo de outrem as tiverem prestado ou confirmado.
ASSIM O DISSERAM E OUTORGARAM.
Notifiquei nos termos do artigo 99º do Código do Notariado os titulares inscritos bem como os seus herdeiros.
Arquivo:
a) Certidão permanente obtida via internet no dia 04 de Abril corrente [Código de Acesso: …...] disponibilizada em 04/04/2016 e válida até 04/10/2016 da qual extraí a descrição em vigor.
b) Documentos que integram o referido processo de notificação prévia.
Exibiram: - Caderneta Predial Urbana obtida via internet no dia de hoje [04-04-2016] mas oriunda do Serviço de Finanças do concelho de Guimarães [1] pela qual verifiquei o artigo e valor patrimonial tributável.
Esta escritura foi lida aos outorgantes e aos mesmos explicado o seu conteúdo em voz alta e na presença simultânea de todos os intervenientes.”
H) A escritura de justificação reproduz o teor do requerimento que deu origem ao processo de notificação edital prévia; e o teor do próprio EDITAL, que o notário J. A. emitiu e fez publicar.
I) A justificante J. C. nasceu no dia - de Julho de 1929, contando com 12 anos de idade, no mês de Agosto de 1941.
J) O declarante P. R. nasceu no dia - de Junho de 1987.
L) O R., notário, não enviou, e a A., titular inscrita do prédio, não recebeu qualquer notificação, por carta registada, ou por qualquer outro meio, na morada indicada no respectivo registo - …, Rue ..., ..., França.
M) No período da Páscoa do ano de 2009, a A. deslocou-se a Portugal e constatou que M. A. e marido J. L., haviam construído um edifício, em tosco, e diversos barracos, no prédio da herança, sem o seu conhecimento nem consentimento.
N) A A. intentou a acção de petição da herança contra P. C. e mulher, M. S.; e M. A. e marido, J. L. (Processo n.º 219/09.9TCGMR da 1.ª Vara Mista de Guimarães).
O) Nessa acção, as instâncias deram como provados os seguintes factos:
1. No dia 10 de Setembro de 1941, em …, da República Francesa, faleceu C. J., no estado de casado com J. C., nascido no dia - de Dezembro de 1896, na freguesia de ..., desta comarca (alínea A).
2. No dia 20 de Agosto de 1957, em …, faleceu, J. C., que também usava J. C., no estado de viúva (alínea B).
3. Como únicos e universais herdeiros de C. J. e de J. C., sucederam os dois filhos do casamento de ambos, E. C. e a ora Autora H. C., nascidos em França, respectivamente, no dia - de Dezembro de 1927 e no dia - de Abril de 1930 (alínea C).
4. Das heranças ainda ilíquidas e indivisas abertas por óbitos dos pais da Autora fazem parte os seguintes bens imóveis, situados no lugar de ..., da freguesia de ..., desta comarca:
Verba número UM
Uma morada de casas térreas, telhadas, com leiras de terrenos de horta com árvores de vinho, tudo junto e unido, limitado por parede, valado e silvado. A confrontar do Nascente com a estrada nova, do Sul com a estrada nova e caminho público, do Norte com o rio ... e terra do Casal da … e do Poente com caminho e terra do Casal da …. Este prédio está omisso à matriz, mas descrito na 1.a Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... da freguesia de ....
Foi desanexado do prédio descrito sob o nº ..., a fls. 155 do Livro ... e a respectiva aquisição, por doação, inscrita a favor de J. C. conforme Ap. 3 de 1927/05/09 (cfr. cópia do registo predial junta a fls. 23 dos autos);
Verba número DOIS
Leira de terreno de monte, do outro lado da estrada, confronta do Norte com caminho público, do Poente com caminho público e terra do Casal de …, do Sul com a estrada nova e terra de mato do Casal de … e do Nascente com a estrada. Este prédio está omisso à matriz, mas descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial ... sob o número … da freguesia de .... Foi desanexado do prédio descrito sob o n.º ..., a fls. 155 do Livro ... e a respectiva aquisição, por doação, inscrita a favor de J. C. conforme AP. 3 de 1927/05/09 (cfr. cópia do registo predial junta a fls. 26 dos autos) (alínea D);
5. Por documento público outorgado perante o notário no dia 17 de Setembro de 1988, em …, França, E. C. e mulher J. N., declararam conferir ao Réu P. C. o poder de, por eles e em seu nome, gerir e administrar todos os seus bens, direitos e negócios, presentes e futuros, situados em Portugal (alínea E).
6. P. C. e mulher M. S. intentaram contra incertos no dia 07.01.1992, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 284/84 de 22 de Agosto, acção judicial que correu termos pela 5.ª Secção do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães – Processo n.º 8/92 – em que pediram fosse reconhecido que o prédio rústico denominado “Leira ...”, sito no lugar ..., freguesia de …, concelho de Guimarães, com área de 1007 m2, a confrontar de Norte com o Rio ..., Sul com Estrada Municipal, Nascente com Estrada Nacional n.º ... e Poente com prédios da firma “B. & Irmão, Limitada”, omisso à respectiva matriz pertence exclusivamente aos Autores, ordenando-se que na Conservatória do Registo Predial ... seja registado a favor dos Autores a aquisição desse mesmo prédio, nos termos e com os fundamentos de facto que constam do documento junto a fls. 36 e ss. dos autos (alínea F).
7. Encontra-se registado sob o n.º 00216/140193 da freguesia de ..., na 1.ª Conservatória do Registo Predial ... a descrição, o prédio com a seguinte descrição:
“RÚSTICO – Lugar ... – Norte, Rio ...; Sul, estrada municipal; Nascente, estrada nacional n.º ...; e Poente, prédios da firma B. & Irmão, Limitada – Leira ... – 1.070 m2, inscrito na respectiva matriz sob o art.º …”.

Do registo constam as seguintes Inscrições – Averbamentos – Anotações:

“G – 1 Ap. 51/140193 – AQUISIÇÃO – a favor de P. C., c. c. M. S., na comunhão de adquiridos – lugar ... – … – por usucapião”;
“G – 2 Ap. 01/27052005 – AQUISIÇÃO – a favor de M. A. casada com J. L., na comunhão de adquiridos – Lugar ..., n.º 2, ..., Guimarães – por compra (alínea G).
8. O averbamento ao registo referido em 7) – aquisição por usucapião – foi efectuado a requerimento do Réu P. C., instruído com os seguintes documentos:
a) Certidão da sentença proferida na acção de justificação judicial que os Réus P. C. e mulher M. S. intentaram contra incertos e correu termos sob o n.º 8/92 pela 5.ª Secção do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães;
b) Certidão passada pela 1.ª Repartição de Finanças de Guimarães, no dia 13 de Janeiro de 1993, por fotocópia do requerimento apresentado pelo mesmo Réu, naquela Repartição, para inscrição do prédio na matriz;
E nesse requerimento, o Réu P. C. fez as seguintes declarações complementares:
“1.os ANTEPOSSUIDORES – Manuel, casado, residente no lugar de ..., freguesia de ..., Guimarães.
2.os ANTEPOSSUIDORES – F. J., casado, residente no lugar ..., freguesia de ..., Guimarães.”
“A composição do Prédio é a constante do Pedido de Inscrição Matricial agora apresentada” (alínea H).
9. Por escritura de compra e venda outorgada no dia 25 de Maio de 2005, no Cartório Notarial sito na Avenida …, desta cidade, do Notário C. T., os Réus P. C. e mulher M. S. declararam vender aos Réus M. A. e marido J. L. e estes declararam aceitar, pelo preço de sete mil e quinhentos euros, o prédio rústico composto por leira ..., situado no lugar ..., da freguesia de ..., descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial ... sob o número …, identificado em 7) (alínea I).
10. A Autora não se deslocava a Portugal desde 1970 (alínea J).
11. Eliminado
12. O prédio urbano identificado na verba número um do ponto 4) supra era ocupado, em parte, por F. F., ao abrigo de uma cedência temporária pela mãe da Autora com pagamento de contrapartida (quesito 2º).
13. A parte restante do mesmo prédio era ocupada por P. M., cedida, por mero favor e gratuitamente, pelos pais da Autora (quesito 3º).
14. Após o falecimento dos seus pais, o P. M. continuou a habitar na parte do prédio que os pais da Autora lhe haviam destinado (quesito 4º)
15. Mantendo-se a gratuitidade e favor dessa situação (quesito 5º).
16. B. F., morador que foi na Rua de …, da freguesia de …, procedia à cobrança das rendas devidas pela ocupação de F. F., a partir de 1970 autorizado pela Autora e seu irmão E. C. (quesito 6º).
17. Em Fevereiro de 1973 os herdeiros de F. F. puseram termo à referida ocupação (quesito 7º).
18. Após o referido na resposta ao quesito 7º, a J. C. passou a ocupar essa parte da casa por mero favor e gratuitamente, (quesito 8º).
19. Posteriormente, também, por mero favor e gratuitamente passou a ocupar a parte da casa e dos terrenos de horta deixados vagos pelo falecimento de P. M. (quesito 9º).
20. Passando J. C., a partir de então e até hoje, a ocupar todo o prédio identificado na verba número um do ponto 4) supra (artigo 10º).
21. Em data não apurada os Autores foram informados que os Réus P. C. e mulher M. S. teriam vendido o prédio identificado na verba número um do ponto 4) supra aos Réus M. A. e marido J. L. e que estes já teriam construído um edifício e barracos nos terrenos de horta do mesmo prédio (quesito 11º).
22. Na Páscoa de 2009, os Autores verificaram no local que tinham sido construídos um edifício de rés-do-chão e andar, com paredes de tijolo não rebocadas exteriormente e barracos nos terrenos de horta do prédio urbano descrito na verba “um” do ponto 4) supra (quesito 12º).
23. O prédio referido nas alíneas G) e I) é constituído apenas pelos terrenos de horta do prédio urbano identificado na verba “um” da alínea D) (quesito 13º).
24. Os Réus M. A. e marido J. L. tinham e têm conhecimento do facto referido no anterior artigo (quesito 14º).
25. E que esse prédio pertencia e pertence às heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito C. J. e de J. C. (quesito 15º).
26. Os Réus praticaram os actos alegados mencionados em 6), 8) e 9), concertadamente, com o único propósito de se apropriarem do prédio referido em “um” do ponto 4) supra (quesito 16º).
27. O prédio referido na verba 1a do ponto 4) supra tem um valor de mercado de € 50.000, sendo € 30.000 correspondente aos terrenos de horta (quesito 17.º).
28. Devido à actuação dos Réus, descrita em 23) a 26), os Autores deslocaram-se e fizeram estadias em Portugal, assim como buscas para recolha de documentos, despendendo quantia não apurada (quesito 18).
29. A actuação dos Réus, descrita em 23) a 26) causou à Autora dor e tristeza (quesito 19º).
P) E por sentença proferida nessa acção, confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça do dia 10/07/2012, foi declarada a nulidade do negócio jurídico de compra e venda; ordenado o cancelamento do registo; e condenados os Réus M. A. e marido J. L. a restituir, aos Autores, o prédio que foi objecto da escritura de compra e venda.
Q) A sentença foi dada à execução, no dia 04 de Setembro de 2015, e a entrega judicial do prédio viria a ser efectuada no dia 16-06-2016, com a intervenção da G.N.R., que expulsou as pessoas que se encontravam no interior da habitação, e se recusaram a sair voluntariamente.
R) A R. fez reparações no prédio e muro, sem a oposição de quem quer que seja, e cultivava a terra.

E, no que tange aos factos não provados, ali se consignou:

FACTOS NÃO PROVADOS, com relevância para a decisão da causa

1- Quando foi outorgada a escritura de justificação, a R. dependia, inteiramente, do auxílio de terceiros para executar as tarefas pessoais mais simples.
2- E não tinha capacidade para decidir, nem para se deslocar da sua residência à cidade do Porto e, nomeadamente, não tinha capacidade de querer nem de entender as declarações que lhe são atribuídas na escritura de justificação e nos documentos que integram o respectivo processo de notificação prévia.
3- O requerimento de notificação edital prévia foi apresentado em nome da requerente J. C., mas não é da sua autoria, nem foi assinado pelo seu punho, na presença do notário, nem fora dela.
4- O procedimento da notificação prévia, e a escritura de justificação e respectivo registo foram concebidos e postos em execução por M. A. e marido J. L., filha e genro da justificante, J. C..
5- Os quais recrutaram os abonadores e conduziram a justificante ao cartório notarial do notário J. A., da cidade do Porto, e aí a puseram a fazer o desenho tosco e imperceptível da sua suposta assinatura sobre a escritura de justificação, documento com base no qual foi efectuado o registo da aquisição do prédio dos autos, por usucapião, e a sua inscrição na matriz, a favor da alegada justificante.
6- M. A. e marido J. L. agiram com a consciência e perfeito conhecimento de que são falsos e fraudulentos os factos descritos na escritura de justificação, e no pedido da notificação edital prévia, e no respectivo EDITAL, e lançaram mão desse expediente, com a colaboração dos abonadores que recrutaram, e do notário que escolheram, para se apropriarem do prédio dos autos, ilicitamente e contra a vontade da sua real proprietária e possuidora, a ora Autora, H. C..
7- A A. litiga utilizando o expediente da presente acção para alegar factos absolutamente falsos e com o intuito de “obter” o resultado indevido pelos mesmos, com intuito de protelar ou engendrar uma situação contra legem e por conseguinte conseguir o enriquecimento ilegítimo a custa do R.
8- A A. teve conhecimento da escritura de justificação notarial logo após a sua celebração.
9- Em Agosto de 1941 C. J. e mulher, J. C., doaram oralmente a P. M. e M. F. com o encargo destes o transmitirem por sua morte a J. C. o prédio urbano identificado na escritura de justificação.
10- Desde Agosto de 1941 que a Ré J. C. tem usufruído do prédio, como coisa autónoma, própria e exclusiva.
11- À vista de todos e sem qualquer interrupção.
12- Delimitando e resguardando a casa com a construção de muros, retirando todas as utilidades do prédio, colhendo frutos das árvores que plantou, suportando os encargos disso provenientes, sem a oposição de quem quer que seja desde aquela data.
13- Sendo reconhecidos por todos, a R. J. C. e seus pais, como donos e proprietários do prédio em causa.
14- Nos anos 70, por altura do verão, a R. J. C. confrontou e contrariou a A. que pretendia entrar no imóvel, tendo publicamente afirmado em voz alta e de forma categórica que a casa, os terrenos e as leiras eram seus e que os usava de pleno direito, ao que a A. não se opôs até hoje.
*
O Direito

- Da deficiência da decisão relativa à matéria de facto

Ao nível da decisão da matéria de facto, esta pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, sendo que algumas “poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento” (Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 291), assim sucedendo quando as decisões se revelam total ou parcialmente deficientes em resultado “da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, “de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso” (autor e obra citados, pág. 293).
No caso de se apresentar um tal vício, para além de o mesmo ser sujeito a apreciação oficiosa da Relação, esta poderá supri-lo, substituindo-se ao tribunal recorrido (art. 665º, nº 2, do CPC), conhecendo das questões não tratadas pela primeira instância, sempre que os elementos que constam do processo ou da gravação o permitam.
Continuando a seguir a explanação do mesmo Autor, pode ainda a 2ª Instância deparar-se com uma situação que “exija a ampliação da matéria de facto por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal “a quo”, faculdade esta que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, devendo nesse caso a Relação, se estiverem acessíveis todos os elementos probatórios relevantes, proceder à apreciação e introdução na decisão da matéria de facto das modificações que forem consideradas oportunas” (pág.´s 294 e 295).
Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que a sentença recorrida, no elenco dos factos provados e não provados, não faz qualquer referência à matéria alegada pela Ré no art. 39º da sua contestação, no sentido de que (desde a doação alegadamente ocorrida em 1951) sempre habitou o prédio objeto da justificação notarial, não tendo, aparentemente, tomado uma decisão sobre a dita matéria.
Assim sendo, considerando que a Ré invoca a usucapião como causa de aquisição do prédio em referência, é inegável que a decisão recorrida se revela deficiente em resultado da referida falta de pronúncia ao nível da decisão relativa à matéria de facto.
Atento o disposto no já referido art. 665º, nº 2, do CPC, caberá, então, a esta Relação suprir tal deficiência, substituindo-se ao tribunal recorrido, conhecendo, ao nível da decisão relativa à matéria de facto dessa questão, uma vez que, como infra melhor se verá, os elementos que constam do processo e da gravação o permitem.
O conhecimento de tal questão far-se-á, para uma melhor sistematização, aquando da apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, por forma a definir-se em conjunto o quadro factual relevante.

- Da impugnação da matéria de facto

Importa, neste momento, recordar que está em causa saber se ocorreu erro de julgamento por parte da primeira instância ao considerar não provados os seguintes pontos fácticos:
9- Em Agosto de 1941 C. J. e mulher, J. C., doaram oralmente a P. M. e M. F. com o encargo destes o transmitirem por sua morte a J. C. o prédio urbano identificado na escritura de justificação.
10- Desde Agosto de 1941 que a Ré J. C. tem usufruído do prédio, como coisa autónoma, própria e exclusiva.
11- À vista de todos e sem qualquer interrupção.
12- Delimitando e resguardando a casa com a construção de muros, retirando todas as utilidades do prédio, colhendo frutos das árvores que plantou, suportando os encargos disso provenientes, sem a oposição de quem quer que seja desde aquela data.
13- Sendo reconhecidos por todos, a R. J. C. e seus pais, como donos e proprietários do prédio em causa.
14- Nos anos 70, por altura do verão, a R. J. C. confrontou e contrariou a A. que pretendia entrar no imóvel, tendo publicamente afirmado em voz alta e de forma categórica que a casa, os terrenos e as leiras eram seus e que os usava de pleno direito, ao que a A. não se opôs até hoje.

Em primeiro lugar, impõe-se salientar que, segundo a jurisprudência uniformizada do STJ, constante do AUJ n.º 1/2008, citado na sentença recorrida, no caso, sob reapreciação está, em relação a todos os impugnados pontos facticos, matéria que, como infra melhor se explanará, se insere no âmbito do ónus da prova da Ré/Recorrente.
Quer isto dizer que, quantos a tais factos não basta à Ré/Recorrente pôr em crise a credibilidade da prova favorável à versão da Autora, cumprindo-lhe, antes, em primeira linha, demonstrar a existência de prova produzida capaz de sustentar a sua própria versão dos factos: só constatada a existência de prova suscetível de conduzir a uma decisão favorável à versão da Ré se justifica analisar a credibilidade da prova tendente a contrariar tal versão.
Daí que essencial seja começar por analisar a prova que, do ponto de vista da Recorrente, alegadamente sustenta os pontos fácticos a que aquela alude.
Da leitura das conclusões e do próprio corpo das alegações resulta que, pela positiva, a Recorrente apenas invoca o teor das suas próprias declarações, bem como, no que concerne aos factos 9 a 13, os depoimentos de R. F., seu genro, M. B., sua filha, e, ainda, exclusivamente no que toca a obras, J. F., certo que apesar de referir o depoimento de A. C. como impondo decisão no sentido por si preconizado, quanto ao depoimento desta testemunha a Recorrente só refere a existência no respetivo conteúdo de matéria tendente a pôr em causa a credibilidade da testemunha M. G..
Mas vejamos com mais detalhe o que invoca a Recorrente.
Segundo a mesma, concretamente, no que toca ao ponto nº 9 dos “Factos não provados”, aquando das declarações por si prestadas, confirmou integralmente os factos narrados na escritura. Mais defende que, por seu turno, as duas primeiras testemunhas dizem que ouviam dos seus tios e todas as pessoas conhecidas que a casa tinha ficado para si.

Certo é, porém, que a Recorrente não localiza na gravação (ou transcreve) qualquer passagem, nem das suas próprias declarações nem dos aludidos depoimentos, com conteúdo a tal matéria respeitante.
O não cumprimento de tal ónus conduz, em rigor, à desobrigação da audição das referidas declarações pelo tribunal de recurso.

Mas, como a este respeito, na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto se lê que (…) nem a própria R. confirmou integralmente a versão dos factos narrados na escritura de justificação e que teriam sido declarados por ela, trocando na audiência de julgamento a identidade dos doadores do prédio, assim revelando terem sido aquelas declarações fundamentais à decisão firmada e porque, fosse como fosse, a mesma sempre se imporia para efeito do supra referido suprimento da constatada deficiência relativa à matéria de facto, procedeu este Tribunal à respetiva audição.
Ouvidas as declarações sobre esta matéria, o respetivo teor revela que a troca de identidade em que a Ré incorreu – e que, nas alegações de recurso, a Recorrente desvaloriza porquanto se trataria de confusão do nome dos pais com o dos seus avós, cometido por uma pessoa de 90 anos – não se deu entre as pessoas referidas no recurso mas sim entre os avós daquela – que a declarante afirmou categoricamente serem os donos do prédio – e as pessoas por ela indicadas como doadores na escritura de justificação, pessoas que, sendo seus tios, em audiência de julgamento, aquela declarou desconhecer, não podendo dizer se alguma vez foram donos do prédio em questão, não sendo, pois, o referido, ao contrário do que agora se quer dar a entender, um caso de uma simples confusão entre nomes mas antes o de uma crucial e inexplicável divergência entre o declarado na escritura e o relato efetuado em tribunal.

Acresce que a Declarante revelou estar no uso pleno das suas faculdades, mostrando-se perfeitamente orientada em termos de espaço e de tempo, não denotando as suas declarações qualquer confusão mental que pudesse justificar tal divergência.

Por outro lado, nas aludidas declarações, a Ré/Recorrente mostrou-se incapaz de explicar a razão que teria conduzido a sua filha M. A. a comprar (em 2005 e a P. C.) algo que, na versão da sua mãe (a Ré), era desta (correspondendo o terreno comprado a uma parcela do prédio objeto da justificação notarial).

Assim sendo, independentemente do teor dos depoimentos – cujas passagens, frise-se mais uma vez, não foram identificadas nos termos legais – e da credibilidade das testemunhas acima referidas (e, mais ainda, da suposta falta de credibilidade das restantes indicadas com depoimentos favoráveis à tese da Autora), certo é que nunca o Tribunal recorrido poderia, com base em tais declarações e no, segundo a Recorrente, alegado conteúdo do declarado a R. F. e M. B. pelos tios destas testemunhas, ter considerado provado que Em Agosto de 1941 C. J. e mulher, J. C., doaram oralmente a P. M. e M. F. com o encargo destes o transmitirem por sua morte a J. C. o prédio urbano identificado na escritura de justificação (ponto 9 dos Factos não provados).

Face ao exposto, sempre seria de julgar improcedente a impugnação quanto a este ponto de facto.
Não deixará, porém, de, desde já, se acrescentar que, ouvidos os depoimentos das referidas testemunhas, o que de tal audição resulta é o acentuar das contradições da prova supostamente tendente, segundo a Recorrente, a favorecer a sua versão dos factos no que tange à doação e ao ânimo com que a partir de então aquela atuou sobre o prédio.
Com efeito, o que M. B., filha da Ré/Recorrente, disse para justificar a sua afirmação de que o prédio em questão é da mãe, foi ter ouvido aos seus tios, irmãos da sua mãe, dizer a esta última, a respeito de tal prédio, “ficas tu com os pais e um dia é teu”, explicando que a sua mãe ficou a tomar conta dos seus avós porque era a única filha a ter permanecido em Portugal, conversa que, para além do mais, pressupõe que, para os intervenientes em tal conversa, o dito prédio não era da sua mãe (a ora Recorrente). Por seu turno, a testemunha R. F. mais não fez do que corroborar essa mesma narrativa.
E, face ao que se foi dizendo e ao mais que a seguir se dirá, forçoso também será julgar improcedente a impugnação relativa aos pontos fácticos nºs 10 a 13, que se reportam a atos alegadamente ocorridos desde a indemonstrada doação, ao ânimo (de proprietário) por tal doação supostamente justificado e à representação que terceiros faziam da relação da Recorrente com o prédio.
Deve, aliás, dizer-se que, também quanto a estes pontos, a Recorrente não localiza na gravação (ou transcreve) qualquer passagem das suas próprias declarações. Apenas no que toca aos depoimentos das supra referidas testemunhas e, segundo a própria, no que toca às obras realizadas, indica o local de início das passagens da gravação que entende relevantes (mas já não o local do respetivo termo), fazendo-o nos seguintes termos: R. F. (00.13.18 – Ficheiro: 20190917104050_5517651_2870526), M. B. (00.04.46 e 00.06.59 - Ficheiro:20190917110200_5517651_2870526, e F. F. (00.21.25 -Ficheiro: 20191001102111_5517651_2870526) foram unânimes e claros, ao afirmar que a Recorrente realizou obras no prédio; confirmando assim as afirmações desta, tal como a testemunha J. F. (00:10:04 -Ficheiro: 20190916142123_5517651_2870526)
Não obstante, procedeu este Tribunal à audição da totalidade das declarações da Ré e dos aludidos depoimentos.
Ora, após tal audição o que se pode dizer é que toda a referida prova se revela extremamente confusa e contraditória, sendo, por isso, insuscetível de fundamentar qualquer convicção (ainda que desligada da alegada doação) favorável à versão da Ré/Recorrente no sentido de que a atuação que levou a cabo no prédio em causa foi efetuada com ânimo de proprietária (ou, nas palavras usadas na contestação, que a Ré J. C. tenha usufruído o prédio como coisa autónoma, própria e exclusiva).
Para além do que já se referiu a propósito das declarações da Ré e do depoimento da M. B., refira-se ainda que esta última mencionou que a sua irmã pediu dinheiro a um tio para comprar o que, na versão da própria Recorrente, constitui parte do prédio agora em questão, o que acentua a incoerência da versão que a Ré/Recorrente visa sustentar nestes autos (e a versão que anteriormente relatou na justificação notarial), reconhecendo também a referida M. B., sem uma explicação minimamente clara e lógica, ter prestado depoimento favorável à tese da sua tia ora Autora no processo pela mesma intentado contra o já referido P. C. e a sua própria irmã M. A., processo esse onde, para além de declarada a nulidade do negócio jurídico de compra e venda a que acima se aludiu, foram condenados os Réus M. A. e marido J. L. a restituir, aos Autores (entre eles a sua tia aqui Autora), a parte do prédio ora em causa objeto do dito negócio, sendo certo que, como se deduz do seu depoimento, prestou tal depoimento não obstante saber que a tia “queria ficar com aquilo”.
Assim, impõe-se a conclusão de que tal prova para além de se mostrar insuscetível de fundar uma convicção no sentido de que a atuação da Ré em relação ao prédio (que infra melhor se detalhará) em questão tinha subjacente o ânimo de quem exerce um direito próprio, de propriedade, acaba por indiciar, inclusive, o oposto: uma consciência, por parte da Ré, de estar a atuar sobre coisa alheia (ainda que com alegada expetativa de a mesma vir a ser sua), com uma representação, por parte dos familiares da mesma Ré, em consonância.
Por outro lado, nenhuma da referida prova contém referência ao plantio de árvores pela Ré sendo também certo que, no que toca a obras por esta última realizadas, da análise dos depoimentos das supra referidas testemunhas apenas resulta de forma plausível a reconstrução de muros já existentes – factualidade correspondente ao espontaneamente referido pela testemunha R. F. e em sintonia com a associação das obras no muro às ocasiões em que “o rio subia” constante do depoimento da testemunha M. B. – e não a alegada construção original dos mesmos pela Ré com vista à delimitação do prédio em questão (nenhuma referência a qualquer obra nos muros existindo sequer nas declarações da Ré).
Assim, coerentemente, da matéria a tal respeito alegada pela defesa, para além do óbvio que em seguida se destacará na ampliação que importa efetuar, outra coisa não se poderia considerar provado, face à prova invocada pela Recorrente, senão aquilo que a sentença recorrida considerou provado na alínea R), ou seja, que a R. fez reparações no prédio e muro, sem a oposição de quem quer que seja, e cultivava a terra, sendo, portanto, injustificado o ataque à sentença recorrida baseado num suposto “prendimento” ao Processo n.º 219/09.9TCGMR, da 1.ª Vara Mista de Guimarães.
Pacífico é, porém, face a toda a prova produzida e ao alegado pela própria Autora na petição inicial, que desde data não concretamente apurada mas não ulterior a 1957 (certo que a mãe da Autora faleceu nesse ano e a Autora diz que já em vida dos seus pais os pais da Ré – com quem esta sempre viveu – habitavam no prédio em causa, embora, ao contrário do defendido pela Ré, por mero favor daqueles) e até 04 de Setembro de 2015 (data em que, por força da sentença proferida no supra aludido processo, ocorreu a restituição à Autora da parte do prédio onde então a Ré habitava com a sua filha) que a Ré J. C. habitou (com seus pais, sozinha ou com outros familiares) no prédio referido em G) dos “Factos provados”.
Corresponde isto a parte da matéria expressamente alegada pela Ré no art. 39º da sua contestação, não refletida, como já se disse, nem no elenco dos “Factos provados”, nem no elenco dos “Factos não provados”, matéria essa que, como também já se referiu, por se mostrar relevante para a decisão de mérito em causa, é forçoso que seja aditada à referida alínea R).
Por último, quanto ao ponto de facto constante do nº 14 dos “Factos não provados”, defende a Recorrente que foi confirmado de forma direta pela testemunha F. F., que assistiu ao sucedido (00:17:04 – Ficheiro 20191001102111_5517651_2870526) sendo ainda este facto também do conhecimento “das outras testemunhas”, sem dizer quais, nem identificar as passagens em causa, o que reduz a base da impugnação ao depoimento da supra referida testemunha e às declarações da ora Recorrente.
Ora, mais uma vez, apesar de, como se refere na própria sentença recorrida, a testemunha F. F. ter declarado ter visto a A. junto à casa, situando esse facto em 1970, mas que a R. não a deixou entrar, certo é também que, como é dito na sentença, a Ré, nas suas declarações, quanto a esta matéria, admitiu a visita de uma senhora (…) dizendo ainda que desconhecia a intenção da mesma, constatando-se pela audição feita que, quando instada sobre o assunto, a mesma explicitou não saber “para quê” tinha essa senhora lá ido porque a mesma não lho chegou a dizer, nada referindo sobre ter afirmado fosse o que fosse sobre a titularidade do direito de propriedade sobre a casa e os terrenos do prédio, pelo que, mais uma vez, tendo em conta a inexistência de qualquer indício de falta de lucidez por parte da Ré, impossível seria, após tais declarações da mesma e não obstante a afirmação da testemunha R. F. de que a sogra lhe teria dito que “foi lá uma senhora dizer que aquilo era dela”, formar qualquer convicção no sentido de que a R. J. C. confrontou e contrariou a A. que pretendia entrar no imóvel, tendo publicamente afirmado em voz alta e de forma categórica que a casa, os terrenos e as leiras eram seus e que os usava de pleno direito, ao que a A. não se opôs até hoje: na realidade, o laconismo da Ré impede qualquer conclusão sobre a ocorrência de um qualquer confronto, entre aquela e a Autora, que tivesse tido por objeto a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em causa.
Face ao exposto, indiferente se torna indagar da credibilidade das testemunhas arroladas pela Autora, uma vez que, independentemente do que estas afirmaram, é o conteúdo das declarações da própria Ré que, no confronto com os depoimentos das testemunhas pela mesma indicadas no recurso, inelutavelmente determina o insucesso das pretensões da Recorrente.
Impõe-se, pois, julgar a referida impugnação da matéria de facto improcedente, aproveitando-se, porém, a oportunidade para aditar ao elenco dos “Factos provados” a supra referida factualidade relativa ao alegado no art. 39º da contestação.

A alínea R) dos Factos provados passará, pois, a conter a seguinte factualidade:

- Desde data não concretamente apurada mas não ulterior a 1957 e até 04 de Setembro de 2015 que a Ré J. C. habitou no prédio referido em G) dos “Factos provados”, fez reparações no prédio e muro, sem a oposição de quem quer que seja, e cultivava a terra.

- Subsunção jurídica dos factos

Começando pela invocada exceção da caducidade do direito da Recorrida pedir a nulidade da escritura de justificação.
Defendeu a Ré, na sua contestação, que, visando a impugnação a declaração de nulidade da escritura de justificação tem a mesma de ser deduzida no prazo de um ano a contar do conhecimento da mesma, conhecimento que os Autores tiveram logo após a sua celebração. Ocorrendo, por via disso, a caducidade do direito que os Autores vieram exercer, de acordo com o artigo 1282.º CC.
Que dizer?
Em primeiro lugar, só por lapso a Ré terá convocado o indicado preceito.
Com efeito, segundo aquele, “a ação de manutenção, bem como as de restituição da posse, caducam, se não forem intentadas dentro do ano subsequente ao facto da turbação ou do esbulho, ou ao conhecimento dele quando tenha sido praticado a ocultas”, sendo certo que, na hipótese em apreço, estando em causa, como está, a impugnação de uma justificação notarial, do que se trata não é da tutela de uma situação possessória, mas sim da impugnação do próprio direito de propriedade sobre o prédio que, através do referido ato notarial, se pretendeu justificar, sabendo-se que “tal impugnação, por via judicial, se configura com uma ação de simples apreciação negativa, incluída no elenco do contencioso petitório, tendente a derrubar os factos e direito arrogados, a qual não prescreve pelo decurso do tempo, sem prejuízo dos direitos entretanto adquiridos por usucapião, nos termos do artigo 1313.º do CC” (Acórdão do STJ de 12 de maio de 2016, Relator – Manuel Tomé Soares Gomes), aqui se aproveitando o ensejo para realçar que, em rigor, o que resulta da procedência de uma ação desta natureza é a “ineficácia do ato de justificação notarial e a consequente impossibilidade do registo da aquisição visada ou o cancelamento do registo entretanto efetuado nessa base” (cfr. citado acórdão do STJ), não fazendo, pois, também qualquer sentido defender a limitação do exercício do referido direito de impugnação ao período temporal legalmente previsto para o exercício do direito à anulação de um ato jurídico.
Isso mesmo tem sido defendido pela jurisprudência, de tal sendo exemplo o acórdão da Relação de Coimbra de 16.11.2004 (de que é Relator Helder Almeida) – onde se pode ler que “a acção de impugnação da escritura de justificação notarial não está sujeita a qualquer prazo de caducidade, preclusivo do exercício do direito” –, o que mostra se reafirmado na fundamentação do já indicado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2008.
Improcede, pois, sem necessidade de quaisquer outras considerações, a pretensão da Recorrente no que à invocada exceção de caducidade concerne.
Face à decisão assumida quanto à caducidade, passemos, então, a analisar se o aditamento introduzido no quadro factual que esteve na base da decisão de mérito proferida pela primeira instância conduzirá a uma distinta solução jurídica do caso em apreço.
Revestindo, como já se disse, a ação ora em causa a natureza de simples apreciação negativa, incumbe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (art 343.º, nº 1, do CC).
Constitui, aliás, jurisprudência uniformizada do STJ, constante do AUJ n.º 1/2008, citado na sentença recorrida, que: “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116.º, n.º 1, do CRP e 89.º e 101.º do CNot, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do art. 7.º do CRP”.
E, como se sabe, são, antes do mais, factos constitutivos do direito de propriedade fundado na usucapião os que integram uma atuação sobre a coisa por forma correspondente ao exercício do direito – o denominado “corpus” –, com a intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto – o que se designa por “animus”, em que a posse se traduz (art. 1251º e art. 1253º, “a contrario”, ambos do CC).
Apesar de assim ser, também não deixa de ser certo que, podendo a posse ser exercida quer pessoalmente, quer por intermédio de outrem (art. 1252º, nº 1, do CC), situações há em que os atos praticados se apresentam como equívocos, devendo, então, em caso de dúvida, presumir-se a posse naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º, nº 2, do CC).
Desta presunção da posse naquele que exerce o poder de facto, extrai-se que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, interpretação firmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, de 14/05/1996, publicado no Diário da República, II Série, n.º 144, de 24/06/1996.
Deste modo, em tais casos inverte-se o ónus da prova no que ao “animus” respeita, ficando aquele que se arroga o direito livre do encargo de o provar, cabendo, antes, àquele que pretende ver derrubado o direito arrogado, a prova de factos tendentes a ilidir a aludida presunção.
Sucede, porém, que o referido art. 1252º, nº 2, cuida de ressalvar que o ali prescrito é “sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º”, preceito segundo o qual se presume que “a posse continua em nome de quem a começou”.
Importa, por isso, sobremaneira, proceder à devida articulação entre estas duas presunções, de tal articulação extraindo as necessárias consequências.
Na verdade, se o art. 1252º, nº 2, salvaguarda do âmbito do aí estatuído os casos do n.º 2 do art. 1257.º, isto é, os casos em que se deve presumir que “a posse continua em nome de quem a começou”, então excluídos estão do âmbito da presunção da posse em nome próprio naquele estabelecida os casos em que o detentor (ou aparente possuidor) “não foi o iniciador da posse” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 8).
“Significará isto – como se preconiza no citado acórdão do STJ de 12 de maio de 2016 – que, para funcionar a presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 1252.º do CC importa que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse, desligado portanto de qualquer possuidor antecedente, como nos casos de aquisição originária da posse por prática reiterada ou por inversão do título de posse, previstos, respetivamente, nas alíneas a) e c) do artigo 1263.º do CC. Já nos casos de aquisição derivada da posse, como sucede com a tradição material ou simbólica, efetuada pelo anterior possuidor, prevista na alínea b) do mesmo artigo, prevalecerá a presunção ilídivel estabelecida no n.º 2 do art.º 1257.º, segundo a qual se presume que a posse continua no anterior possuidor, competindo assim ao adquirente provar não só a mera materialidade da traditio mas também a intencionalidade subjacente, mormente o negócio em se fundou aquela traditio.”
Ora, na presente ação, exatamente tal como naquela que estava em causa no acórdão em referência, a verdade é que “a justificante alicerçou o direito arrogado na aquisição derivada da posse, ainda que por doação inválida do anterior possuidor, na sequência do que teria ocorrido uma prática reiterada, com publicidade, de uso e fruição do referido prédio, dele retirando todas as utilidades, durante vinte anos, nomeadamente demarcando-o, limpando-o, colhendo os seus frutos e pagando os respetivos impostos, sem oposição de ninguém e na convicção de que não lesava direitos de outrem”, pelo que, também “in casu” se pode afirmar que, do próprio conteúdo da alegação da Ré, não resulta que a justificante se tenha apresentado como possuidora desligada dos antecedentes, isto é, como possuidora que “tivesse praticado aqueles atos como iniciador da posse, em nome próprio, desligado do anterior possuidor”, antes “se colhe uma afirmação do animus possessório referenciado ao ato de aquisição derivada da posse, como é a dita doação verbal, a qual, mesmo inválida, potencia o sentido de transferir para o adquirente uma posse exclusiva, em nome próprio”, com tal alegação se excluindo a própria Ré do leque de beneficiários da presunção prevista no art. 1252º, nº 2, do CC.
Nessa medida, não tendo a Ré logrado provar a invocada doação, o apurado “corpus” não pode constituir base da aludida presunção, pelo que, para fazer valer a sua pretensão, lhe restaria provar, por força da regra geral que faz impender o encargo da prova sobre aquele que se arroga o direito (art. 342º, nº 1, do CC), que os atos por si praticados tinham subjacentes a intencionalidade de exercer sobre o dito prédio, como sua titular, o direito de propriedade – o que aquela não logrou fazer –, não havendo, pois, que exigir à Autora o afastamento da aludida presunção de posse (que, como se frisou, nestes casos, não funciona) mediante prova de que, pelo contrário, tais atos foram praticados pela Ré por mera tolerância dos sucessivos titulares do aludido direito.
Em conclusão, a ampliação da matéria de facto provada – a que se procedeu para uma total clarificação e análise adequada da situação em apreço – em nada alterou a solução a dar ao caso.
Sublinhe-se que a orientação a que aderimos foi recentemente reafirmada pelo STJ em Acórdão de 12.09.2019, relatado por Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho.
Por último, como se frisa no último dos citados arestos, por força da presunção prevista no art. 1257º, nº 2, do CC, a posse “continua a existir até que ocorra alguma das circunstâncias que, nos termos do art. 1267º, podem levar à sua perda, nomeadamente por haver uma nova posse por parte de outrem que a adquira por inversão do título de posse, “ex vi” art. 1263º, al d)”, pelo que, mesmo que se entendesse que a Ré, subsidiariamente, não logrando provar o que declarou na escritura de justificação notarial, poderia ainda sustentar a posse invocada para efeito de usucapião numa base circunstancial distinta, certo é que, no caso em apreço, não tendo a Ré logrado demonstrar o subsidiariamente alegado ato de oposição mediante o qual a inversão do título da posse se teria dado (art. 1265º do CC), estando em causa, como está, recorde-se mais uma vez, uma ação de simples apreciação negativa, sempre seria de considerar – na hipótese de, subsidiariamente, se aceitar essa outra base de sustentação diversa – que a Ré, mais uma vez, falhou na prova dos factos constitutivos do direito que se arrogou.
Por demonstrar restando que a Ré tivesse adquirido a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio em questão por força da invocada usucapião, forçoso é concluir pela procedência da ação impugnatória.
Nessa medida prejudicada fica a questão de saber se, no caso concreto era ou não necessária a existência de licença de utilização por, segundo a Recorrente, o prédio ser anterior a 1951: com efeito, fosse qual fosse o entendimento que se viesse a assumir sobre a matéria, sempre o recurso seria de julgar improcedente.
*
Sumário:

I - A ação de impugnação da escritura de justificação notarial não está sujeita a qualquer prazo de caducidade, preclusivo do exercício do direito;
II – Revestindo a ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116.º, n.º 1, do CRP e 89.º e 101.º do CNot a natureza de simples apreciação negativa, incumbe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga;
III - Tendo a ré afirmado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, incumbe-lhe, para além do mais, a prova dos factos que integram uma atuação sobre a coisa por forma correspondente ao exercício do direito – o denominado “corpus” –, com a intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto – o que se designa por “animus”, em que a posse se traduz;
IV - Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º, nº 2, do CC), desta presunção se extraindo que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, interpretação firmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, de 14/05/1996;
V- Todavia, o art. 1252º, nº 2, do CC salvaguarda do âmbito do aí estatuído os casos do n.º 2 do art. 1257.º, do mesmo código, isto é, os casos em que se deve presumir que “a posse continua em nome de quem a começou”, pelo que excluídos estão do âmbito da presunção da posse em nome próprio naquele estabelecida os casos em que o detentor (ou aparente possuidor) não foi o iniciador da posse;
VI – No caso de ação de impugnação de justificação notarial em que o justificante não se apresentou como possuidor desligado dos antecedentes, antes produziu uma afirmação do animus possessório referenciado ao ato de aquisição derivada da posse, como é o caso de uma doação verbal, com tal alegação se excluiu o justificante do leque de beneficiários da presunção prevista no art. 1252º, nº 2, do CC.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a apelação, nessa medida confirmando a sentença recorrida.
Custas do recurso pela Recorrente.
Guimarães, 17.09.2020

Margarida Sousa Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues