PROVA DOCUMENTAL
CONTRADITÓRIO
COBERTURA
Sumário

I – O Código de Processo Civil, visando a simplificação, celeridade e economia processuais, limitou os momentos concedidos às partes para a junção de documentos, a fim de reforçar a regra da inadiabilidade da audiência final e impedir expedientes processuais que possam ser utilizados como instrumentos de atraso do julgamento e da decisão final.
II – Na ponderação do dever de procura da verdade material (artigo 411º CPCiv), o Código Processo Civil estabeleceu diversos momentos temporais para a apresentação de documentos no processo (artigo 423º CPCiv.), pelo que a invocação do princípio do inquisitório não deve, em regra, sobrepor-se aos deveres das partes na apresentação tempestiva de documentos nos autos que têm em seu poder.
III – É intempestiva a junção de documento apresentado na audiência final, excedendo o prazo de resposta e contraprova de 10 dias concedido à parte, quando esta já dispunha de tal documento nesse prazo, mas apenas o apresenta posteriormente.

Texto Integral

• Rec. 8097/18.0T8PRT-A.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa. Decisão recorrida de 17/2/2020.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Razão do Recurso
Recurso de apelação interposto na acção com processo comum de declaração nº8097/18.0T8PRT-A, do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim.
Autora – B…, Ldª.
– C…, Unipessoal, Ldª.

Nos presentes autos, em 22/1/2020, no decurso da audiência de julgamento e do depoimento da testemunha D… (testemunha apresentada pela Autora), a Ilustre Mandatária da R. requereu a junção aos autos de facturas emitidas pela empresa E…, Ld.ª à Ré (C…), relativamente aos meses de Março, Abril, Maio e Junho de 2010.
Mais requereu a junção aos autos de documentos que comprovariam o fim da relação contratual entre a empresa E…, Ld.ª, e a C….
Pela Ilustre Mandatária da A., foi requerido prazo para sobre elas se pronunciar, tendo a Mm.ª Juiz a quo proferido despacho admitindo a junção aos autos dos documentos apresentados pela R., concedendo o prazo de 10 dias à A. para sobre eles se pronunciar.
Por requerimento datado de 3/2/2020, a Autora veio impugnar a autenticidade do documento e a veracidade do respectivo conteúdo.
Em 12/2/2020, a Autora veio juntar documento, dimanado do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., datado que se encontrava de 31/1/2020, tendente a demonstrar que a empresa E…, Lda., detinha, no período em que alegadamente terá decorrido o contrato entre a mesma e a Ré (03/2010 e 10/2010) seis licenças comunitárias, relativamente a veículos de transporte nacional/internacional de mercadorias.
Sobre a referida junção de documento, a Mmª Juiz a quo proferiu o seguinte despacho em acta de 17/2/2020, despacho esse que vem agora impugnado por esta via de recurso:
“(…) Já depois de ter impugnado os documentos que foram juntos na audiência, veio a Autora, em 12/02/2020, juntar um documento para confirmar as declarações da testemunha D… e infirmar as prestadas pela testemunha F…, visando o documento junto descredibilizar os que haviam sido juntos pela R. em 22/01/2020 ou, pelo menos, permitir outra leitura dos mesmos.”
“O documento junto tem a data de 31/01/2020.”
“A Ré pronunciou-se pela inadmissibilidade da junção do documento.”
“Como é bom de ver pela própria data que consta do documento, o mesmo deveria ter sido junto aos autos pela Autora quando, em 03/02/2020, se pronunciou sobre os documentos juntos pela parte contrária.”
“E, se então não o tinha fisicamente em seu poder, deveria ter solicitado uma prorrogação de prazo e, não, como aconteceu, juntá-lo aos autos 12 dias após a sua emissão.”
“Quer isto dizer que o requerimento de 12/02/2020 e o documento junto foram apresentados manifestamente fora do prazo e não existe direito ao “apuramento da verdade” que justifique a sua apresentação nesta fase processual.”
“Assim, considera-se não escrito o requerimento de 12/02/2020 e não se admite a junção do documento apresentado pela Autora com esse requerimento.”

Conclusões do Recurso de Apelação:
1.ª O presente recurso vem interposto dos doutos despachos proferidos em 21/01/2020 e 17/02/2020, com referência Citius 411409358 e 412418762, respetivamente, proferidos pelo Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim – J1, que rejeitou os meios de prova requeridos pela Autora em 17/01/2020 e 12/02/2020, respetivamente.
2.ª A Recorrente não se conforma com os doutos despachos proferidos posto que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é licito conhecer, sendo que, a rejeição de meios de prova que visam o apuramento da verdade, constituí violação do exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa.
3.ª Como se verá, os despachos proferidos não poderão manter-se na ordem jurídica, devendo ser declarados nulos, por omissão do mencionado poder-dever de indagação oficiosa.
4.ª A Recorrente intentou uma ação declarativa contra a ora Recorrida com vista a obter a condenação desta no pagamento de faturas vencidas em 2010 e uma indemnização por resolução unilateral, verbal e sem invocação de justa causa de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e a Recorrida em 2010.
5.ª Em sede de contestação, a ora Recorrida veio, entre outras alegações, arguir o abuso de direito e a litigância de má fé, por, alegadamente, ter aguardado cerca de oito anos para intentar a dita ação.
6.ª Mais referiu que a ora Recorrida que durante os mencionados oito anos que distaram entre a resolução do contrato e a instauração da presente ação, inexistiram contactos entre as partes ou entre os respectivos Mandatários.
7.ª Como meio de prova do que alegava, a Ré indicou como testemunha o Exmo. Sr. Dr. G…, Ilustre Mandatário da Ré à data dos factos.
8.ª Em outubro de 2019, o Ilustre Mandatário da Autora, Dr. H… renunciou à procuração que lhe havia por esta sido conferida.
9.ª Nesse mesmo mês, foi constituída como Mandatária da ora Recorrente a signatária do presente recurso.
10.ª Em 12/12/2019, iniciou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido ouvida, em declarações de parte a legal representante da Autora, ora Recorrente, que disse, entre outras coisas, que pelos seus Ilustres Mandatários lhe foi dito que não poderia contactar diretamente a Ré e que apenas poderiam existir contactos entre Mandatários.
11.ª Mais referiu a legal representante da Autora que inicialmente, aquando da cessação do contrato de prestação de serviços que ocorreu em 2010, o Mandatário constituído era o Exmo. Sr. Dr. I… e, posteriormente, veio a ser o Exmo. Sr. Dr. H….
12.ª Para esse mesmo dia, 12/12/2019, estava prevista a inquirição do Exmo. Sr. Dr. G…, Ilustre Mandatário da Ré à data dos factos em discussão, que não compareceu.
13.ª Em 16/01/2020 a Ré veio prescindir do depoimento da testemunha em causa, Exmo. Sr. Dr. G…, Ilustre Mandatário da Ré.
14.ª Ora, é neste contexto que, em 17/01/2020 a ora Recorrente apresenta o requerimento com referência Citius 24837105, através do qual requer a inquirição do Exmo. Sr. Dr. H…, bem como a sua notificação para juntar aos autos todas as comunicações escritas trocadas com o(s) Mandatário(s) da Ré.
15.ª Tal requerimento veio a ser alvo de indeferimento por despacho datado de 21/01/2020, com referência Citius 411409358, por extemporâneo.
16.ª Já em 12/02/2020, por requerimento com referência Citius 25111149, veio a Autora/Recorrente pedir a junção aos autos de uma certidão emitida pelo IMT em 31/01/2020.
17.ª Por despacho de 17/02/2020, com referência Citius 412418762, o Tribunal a quo indeferiu a pretensão da Autora, por extemporaneidade.
18.ª A razão para a rejeição dos meios de prova requeridos em 17/01/2020 e 12/02/2020 foi o prazo.
19.ª Porém, a renúncia ao mandato por parte do Exmo. Sr. Dr. H…, a circunstância de a Autora ter afirmado perante o Tribunal, em declarações de parte, que não teve qualquer contacto com a Ré desde 2010 por instruções do seu Mandatário, uma vez que quer a Autora, quer a Ré tinham Advogado constituído, e o facto de a Ré ter prescindido do depoimento do Exmo. Sr. Dr. G…, alteraram todo o panorama relativo à contraprova quanto ao abuso de direito e litigância de má-fe.
20.ª Efetivamente, é neste contexto que, no dia 17/01/2020, um dia após a Ré ter prescindido do depoimento do Exmo. Sr. Dr. G…, a Recorrente vem peticionar a inquirição, como testemunha, do Exmo. Sr. Dr. H… e a junção aos autos, por parte do mesmo, de todas as comunicações escritas trocadas com o(s) Mandatário(s) da Ré até à submissão da presente ação, que ocorreu em 06/04/2018.
21.ª Tal requerimento, atendendo a este circunstancialismo, não pode ter-se por extemporâneo.
22.ª Já quanto à prova documental junta em 12/02/2020, como anota, e bem, o Tribunal a quo, a mesma visou permitir outra leitura dos documentos juntos pela Ré em 22/01/2020.
23.ª Tal documento está datado de 31/01/2020, sendo que se trata de uma certidão emitida pelo IMT, a qual não fica imediatamente disponível.
24.ª No entanto, entendeu o Tribunal a quo que, a junção do dito documento 12 dias após a sua emissão é determinante para a sua não admissão.
25.ª De salientar que, em nenhum dos despachos o Tribunal a quo rejeita o meio de prova requerido por desnecessário ou irrelevante.
26.ª Quer isto dizer que, o Tribunal a quo enfatizou o tempo em detrimento da necessidade da prova, o que não se concebe.
27.ª O art. 411.º do CPC, consagrador do princípio do inquisitório determina incumbir ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
28.ª E, acrescenta o artigo 526.º, nº 1, do mesmo Código, que “quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor”.
29.ª Traduzem estes preceitos, como é consensualmente aceite pela doutrina e jurisprudência, a consagração legal do princípio do inquisitório; ou seja, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade. E quando se refere todas as diligências, quer-se mesmo significar que o juiz pode e deve determinar a produção de qualquer meio de prova em direito permitido, desde que o mesmo tenha aptidão para fazer corresponder a realidade processual à extraprocessual.
30.ª Por maioria de razão, se uma parte requer um meio de prova, o qual, aos olhos do Tribunal é importante e relevante para o apuramento da verdade, como é o caso, impõe-se que o Tribunal defira e ordene a realização da prova.
31.ª O juiz, ao não ordenar a diligência, que até julgou pertinente, porque não a indeferiu por desnecessária, mas sim por extemporânea, viola o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, cuja consequência é a nulidade.
32.ª Neste sentido, pode ler-se no douto Acórdão do Tribunal d Relação do Porto, processo 18884/18.4T8PRT-A.P1, de 21/10/2019: “A inobservância do inquisitório, a gerar nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do CPC - porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa – pode, validamente, ser suscitada no recurso da decisão interlocutória de não audição, apelação autónoma e imediata da decisão de rejeição de meio de prova (al. d), do nº2, do art. 644º, do CPC).”
33.ª Assim, deverão os despachos proferidos em 21/01/2020 e 17/02/2020 ser declarados nulos e por isso, revogados e substituídos por outros que defiram os meios de prova solicitados pela Recorrente em 17/01/2020 e 12/02/2020.

Por contra-alegações, a Ré sustenta a confirmação do despacho recorrido.

Entretanto, em função de despacho judicial proferido, não foi admitido, por extemporâneo, o recurso interposto do despacho de 22/1/2020, referenciado nas doutas alegações de recurso.

Factos Provados
Encontram-se provados os factos relativos à tramitação processual, à alegação das partes e ao conteúdo do despacho recorrido, supra resumidamente expostos.

Discussão e Decisão
Em função da esquematização das conclusões da Recorrente, a matéria a abordar na solução do presente recurso será a de saber se o despacho recorrido, que recusou documento junto por extemporâneo, violou o exercício do poder-dever de indagação oficiosa com vista ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, cometido ao tribunal.

I
O âmbito da Proposta de Lei nº 113/XII, contendo o Código de Processo Civil de 2013, contribui para o esclarecimento das relações entre a matéria do momento processual previsto para a junção de documentos e o citado poder-dever de indagação oficiosa com vista ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, cometido ao tribunal.
De tal Proposta se extrai que o Código de Processo Civil visou a simplificação, celeridade e economia processuais, e daí limitou os momentos concedidos às partes para a junção de documentos, a fim de reforçar a regra da inadiabilidade da audiência final, impedir expedientes processuais que possam ser utilizados como instrumentos de atraso do julgamento e da decisão final, defendendo uma litigância mais leal.
Isto posto, na conjugação do dever de procura da verdade material (artº 411º CPCiv) com a necessidade de uma justiça tempestiva e menos formal, foram estabelecidos pelo artº 423º CPCiv, nos seus diversos números, de 1 a 3, diversos momentos temporais para a apresentação de documentos no processo, podendo os mesmos ser apresentados seja com o articulado onde são invocados determinados factos, seja até 20 dias antes da audiência final (com condenação em multa, excepto com a prova da impossibilidade de obtenção na fase dos articulados), e finalmente, após o limite temporal de 20 dias, p.e., no decurso da audiência de julgamento, quando a sua apresentação não tenha sido possível até ao momento ou só se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Portanto, como primeira conclusão, debalde se pode esgrimir o princípio do inquisitório contra a apresentação intempestiva de documentos no processo, posto que as normas atinentes, do Código de Processo Civil, foram elaboradas na previsão e conjugação das ocorrências processuais com a necessidade de justa composição do litígio.
II
No caso dos autos, encontramo-nos perante uma junção de documento ditada “por ocorrência posterior”, designadamente por via da contraprova à junção de documentos admitida à Ré, no decurso da audiência de 22 de Janeiro, como expressamente se admite no requerimento de junção, datado de 12 de Fevereiro.
É necessário salientar, por um lado, que, em 3 de Fevereiro, já a Autora se havia pronunciado quanto aos documentos juntos pela Ré, e também que o documento que visou juntar, e que fundamenta a presente impugnação recursória, vem datado de 31 de Janeiro.
Também se invoca agora, nas doutas alegações de recurso, que a certidão “não fica imediatamente disponível”, mas, com o devido respeito, certidões anteriormente juntas na audiência de 22/1 tinham como data de emissão o dia anterior, 21 de Janeiro.
O que nos remete para a questão da disciplina da junção de documentos, v.g., em audiência, por força de ocorrência posterior.
Do facto de o artº 423º nº3 CPCiv permitir a junção de documentos em momento que ultrapasse 20 dias antes da data da audiência final, não se extrai que os documentos possam ser juntos em qualquer momento, designadamente porque a ocorrência posterior pode ser concretizada temporalmente.
No caso dos autos, a ocorrência posterior era a junção de documentos pela parte contrária, na audiência de 22/1 – para a pronúncia sobre tal junção tinha sido atribuído à Autora o prazo de 10 dias.
Esse referido prazo incluía necessariamente a junção de documentos para contraprova dos documentos juntos pela parte contrária, mais a mais se obtidos esses documentos dentro do prazo de 10 dias antes atribuído à parte apresentante.
Por isso, ultrapassado o prazo concedido para a resposta da Autora, é manifesto que não nos encontrávamos perante a “ocorrência posterior” que justifica a apresentação posterior do documento, à luz da norma do artº 423º nº3 CPCiv.
Neste sentido, veja-se os Drs. Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo CPC, 2013, pg. 341, quando sustentam que o impedimento, prolongado para além do prazo previsto no nº2 do artº 423º (20 dias antes da audiência) apenas legitima a apresentação imediata do documento, não podendo a parte aguardar por um derradeiro momento pressuposto da norma de dilação (eventualmente, o encerramento da discussão da causa).
Cumpre assim, sem necessidade de outros considerandos, puros obiter dicta, concluir pela necessária confirmação do douto despacho recorrido.

Resumindo a fundamentação:
………………………………
………………………………
………………………………

Deliberação (artº 202º nº1 CRP):
Na improcedência do recurso interposto, confirma-se o douto despacho recorrido.
Custas pela Apelante.

Porto, 14/7/2020
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença