PROPRIETÁRIO
DEVERES DE CONDUTA
OBRIGAÇÃO DE VIGILÂNCIA
PRÉDIO ARRENDADO
PRESUNÇÃO DE CULPA
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
DANO NÃO PATRIMONIAL
Sumário


I- Recai sobre o proprietário o dever de vigilância e conservação do sistema de evacuação de esgotos do seu prédio.
II- A violação de deveres de conduta pelo titular do direito real, causando danos a terceiro, sujeita-o a responsabilidade civil.
III- Tendo-se produzido uma fenda na caixa de esgotos do prédio dos Réus, com a consequente descarga de águas residuais para o exterior, e com isso causado infiltrações na casa dos Autores, a lei presume a culpa daqueles.
IV- Como os Réus não ilidiram a presunção de culpa, são civilmente responsáveis pelos danos causados aos Autores.
V- Na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve ser ponderado o grau de culpabilidade do agente, designadamente o revelado pela sua inércia em fazer cessar a causa dos danos e pela duração do evento lesivo, e, sempre que as circunstâncias do caso o justifiquem, deve também estar presente uma ideia de reprovação da conduta do lesante.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães(1):

I – RELATÓRIO

1.1. A. T. e mulher, E. M., intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra J. M. e mulher, L. C., pedindo que, na procedência da acção, se profira decisão a:

«a) declarar-se que a causa das infiltrações e inundação ocorridos a partir do dia 28 de Março de 2016 na fração propriedade dos Autores tem origem exclusiva na casa dos réus,
b) que a referida infiltração se deve a culpa exclusiva dos réus e da má manutenção das redes de saneamento e escoamento de águas pluviais na fracção de sua propriedade e que é contígua à dos autores;
c) condenar-se os réus a eliminar/consertar a sua rede de águas pluviais e de saneamento de modo a impedir futuras infiltrações dessas;
d) condenar-se os réus a pagar aos Autores os custos necessários para reparação dos danos sofridos na fração em causa e de limpeza da mesma em virtude das infiltrações que surgiram na parede da fracção do autores no lado confinante com a fracção dos réus, cujo custo se estima, de momento, em 1800,00 € (acrescido do IVA) e cujo valor exato se deverá apurar em sede de prova pericial;
e) Condenar-se os réus a pagar aos autores a quantia de 4.000,00€ a título de danos de natureza não patrimonial».

Para fundamentar a sua pretensão, alegaram que em Março de 2016, na única parede do seu prédio que confina com o prédio dos Réus, implantada por trás das escadas do hall de entrada da cave/garagem, detectaram uma escorrência de água, com cheiro pútrido, como se se tratasse de água dos esgotos, e que, afinal, provinha do saneamento do prédio dos Réus.
Alegam ainda que, em consequência da dita infiltração, produziram-se estragos na parede atingida e no revestimento de azulejo que caiu, para cuja reparação será necessário voltar a cimentar e a pintar e ainda colocar novo revestimento de azulejo; sem prejuízo dos trabalhos preparatórios de limpeza especializada, estima-se que tal obra importe o dispêndio da quantia global de € 1.800,00, acrescida de IVA.
Finalmente, alegam que o descrito evento perturbou o seu descanso, trazendo-lhes tristeza, amargura e ansiedade, para cuja compensação será adequada a quantia de € 4.000,00.

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Os Réus apresentaram contestação, sustentando, por excepção, a sua ilegitimidade, em virtude de não habitarem sequer no seu prédio, que se encontra arrendado a terceiros que poderão eventualmente ser os responsáveis, e não terem causado qualquer dano no prédio dos Autores.
Por impugnação, sustentam que a infiltração em causa se deveu a vícios de construção do prédio afectado no que toca à impermeabilização e ao saneamento. Alegam que o saneamento do seu prédio não esteve entupido e não foi causa de qualquer infiltração.
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Os Autores responderam, pugnando pela improcedência da matéria de excepção arguida pelos Réus.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho-saneador, que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade, após o que se dispensou a definição do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.
Os Autores apresentaram articulado superveniente, que foi admitido, alegando a extensão dos danos a outras zonas da casa e ampliando o pedido para a quantia global de € 13.753,18 (treze mil, setecentos e cinquenta e três euros, dezoito cêntimos).

Realizada a audiência de julgamento, proferiu-se sentença a decidir:

«1. condenam-se, solidariamente, os réus à realização das obras necessárias na rede de saneamento de modo a evitar futuras infiltrações de águas residuais no prédio dos autores;
2. condenam-se, solidariamente, os réus ao pagamento aos autores da quantia de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros), para reposição dos estragos produzidos nas paredes, quantia acrescida do IVA, à taxa legal em vigor, e dos juros, calculados à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento;
3. condenam-se, ainda, solidariamente, os réus ao pagamento aos autores da quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros), para compensação dos danos não patrimoniais provocados, acrescida dos juros, calculados à taxa legal, contados desde o presente até integral pagamento».
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1.3. Inconformados, os Réus interpuseram recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1- Os Recorrentes não se podem conformar com a decisão que julgou a presente ação parcialmente procedente e em consequência condenou os réus, à realização das obras necessárias na rede de saneamento de modo a evitar futuras infiltrações de águas residuais no prédio dos autores, ao pagamento aos autores da quantia de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros), para reposição dos estragos produzidos nas paredes, quantia acrescida de IVA, à taxa legal em vigor, e dos juros, calculados à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento e ao pagamento aos autores da quantia de € 4000,00 (quatro mil euros), para compensação dos danos não patrimoniais provocados, acrescido dos juros, calculados à taxa legal, contados desde o presente até integral pagamento.
2- Não se pondo em causa o princípio da livre apreciação da prova, sempre se dirá que, os pontos de facto dados como provados e não provados na douta sentença a quo foram incorretamente julgados, considerando os aqui recorrentes que determinados factos relevantes para a correta decisão da causa foram incorretamente julgados.
3- Verifica-se, na sentença recorrida, uma incorreta apreciação da matéria de facto, quando o meritíssimo juiz “a quo” entende que resultou provado que o facto provado 7, 11, 15, 16 e quando entende que resultou não provado que o facto P dos factos não provados
4- Salvo o devido respeito por melhor entendimento, entendem os RR. que os elementos de prova dos autos impunham decisão diversa da proferida, nomeadamente o relatório pericial de fls.., o qual nas respostas 4 e 5, não é categórica quanto à origem das infiltrações, o depoimento prestado pelo Perito A. B. em audiência de discussão e julgamento.
5- Com o devido respeito, o tribunal a quo não poderia concluir, conforme refere na sua motivação que “a caixa de saneamento do prédio dos réus que está implantada junto à dita parede estava fendida o que somado à circunstância da segunda caixa, junto à rua, estar parcialmente entupida, na tomada de saída, conforme verificou através de experiência no local, fez aumentar o volume de resíduos na primeira caixa, sendo causa, direta e adequada, da abundante saída de resíduos para terreno e, por efeito da gravidade, da infiltração na parede dos prédios”
6- Na sua motivação o Tribunal a quo refere que “ as características da infiltração e ponto de origem, conforme descritos no ponto 7, demonstraram-se mediante a ponderação das declarações do autor ilustradas pelos registos fotográficos juntos com a petição inicial (fls. 12 a 17), sopesando-se esse contributo à luz dos depoimentos das testemunhas S. M. e A. M., F. S. e P. G., todos vizinhos e que visitaram a casa do autor, a seu pedido, nas descritas circunstância; e ainda e sobretudo, à luz das conclusões do relatório pericial (refª 5684964), confirmadas em audiência pelo Sr. Perito.”
7- O relatório pericial apresentado pelo Sr. Perito a fls… apenas refere ser muito provável que a água escorresse do terreno da habitação dos RR., situada no lado nascente e que se infiltraria através da parede exterior da casa dos AA. e ainda a respeito da origem das infiltrações o relatório pericial apenas presume que pelos indícios, a origem da água poderia ser pela passagem de água através das paredes duma caixa de esgotos situada no terreno dos RR perto da parede da habitação dos AA. que apresenta uma fenda junto ao fundo, acrescentando que existe uma segunda caixa, já perto da rua que se encontrava parcialmente entupida e que a ter ligação com a anterior, a água que a ela aflui poderá chegar à primeira caixa, o que aumentará o volume de agua nesta, aumentando assim a quantidade de água que se infiltra na terra, através da fenda detetada na primeira caixa.
8- Contudo, o relatório pericial além do facto de presumir é inconclusivo sobre a questão da origem das infiltrações, não esclarece de forma cabal se efetivamente e com absoluta certeza a caixa de saneamento dos autores é o ponto de origem da infiltração causada no prédio dos Autores.
9- Além disso, o relatório pericial também não esclarece se a parede da habitação dos AA. foi ou não impermeabilizada aquando da construção da habitação, e que portanto se poderia excluir a falta de impermeabilização da parede como causa das infiltrações.
10- Tal resulta do depoimento do perito A. B., prestado no dia 6/11/2019, de minutos 11:56:41 a minutos 12:09:45 - Passagens da gravação de 00:22 a 12:19;
11- E mediante o relatório pericial de fls…, e pelo depoimento do Perito A. B., prestado no dia 6/11/2019, de minutos 11:56:41 a minutos 12:09:45 - Passagens da gravação de 00:22 a 12:19, verifica-se que não poderia ter sido dado como provado que a origem da infiltração provinha da caixa de esgotos construída no prédio id. em 2, junto à parede referida em 5.
12- Pelo que neste ponto, não poderia o tribunal a quo dar como provado os pontos 7, 11, 15 e 16, pois o relatório e o depoimento prestado pelo perito não permitem concluir de forma categórica qual a origem das infiltrações, portanto entendem os recorrentes que deve a sentença recorrida ser alterada, passando a considerar como não provados os referidos pontos.
13- Por outro lado, no caso de ser mantida a decisão quanto a matéria de facto dada como provada (pontos 7, 11, 15 e 16 ), sempre se dirá que não se mostravam preenchidos os pressupostos para a responsabilização dos recorrentes pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos recorridos e dados como provados sob os pontos 18, 19, 20, 21, 22, dado que entendem que a presunção da sua culpa se mostra ilidida.
14- Os danos patrimoniais e não patrimoniais resultaram provados nos seguintes pontos. (facto provado 19 , 20 e 21 e 22
15- Em sede de responsabilidade civil, como é consabido, a regra geral, no que concerne à prova da culpa, reside no n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil, incumbindo ao lesado “provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”.
16- Na segunda parte do citado normativo, prevêem-se as situações de excepção, consagrando a lei, pontualmente, presunções de culpa do lesante, que implicam a inversão do ónus probatório (artigo 350º, n.º 1, do CC), sendo tais presunções ilidíveis mediante prova em contrário (artigo 350º, n.º 2, do CC).
17- Uma das situações em que a lei consagra a presunção de culpa do lesante, está prevista no n.º 1 do artigo 493.º do CC, nestes termos: «Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.»
18- O citado artigo 493º, n.º 1, do CC, faz recair sobre o proprietário de coisa móvel ou imóvel, a quem caiba o dever de vigilância, a responsabilidade pelos danos causados a terceiros, admitindo, todavia, a exoneração de responsabilidade mediante a prova de que «nenhuma culpa houve da sua parte ou de que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.»
19- Na perspetiva dos Recorrentes, ao contrário do decidido em 1ª instância, os mesmos lograram provar factos que devem conduzir à conclusão de que a sua culpa (presumida por serem proprietários do imóvel identificado a fls…) foi ilidida, uma vez que consta aliás do ponto 3 da matéria de facto provada, por escrito datado de 11 de Abril de 2015, os réus J. M. e L. C., declararam dar de arrendamento para a habitação, a P. F., que se encontrava a ocupar o imóvel à data dos factos, e através do contrato de arrendamento constante de fls…
20- Ficou provado que os recorrentes apesar de proprietários do imóvel não habitam lá há vários anos, e à data da ocorrência das infiltrações, a sua moradia se encontrava arrendada, pelo que se os Recorridos alegavam que os danos foram provocados pelo mau uso do esgoto do imóvel dos Recorrentes, sempre ficou provado que os mesmos nenhuma culpa tiveram na produção dos danos, uma vez que não eram estes que se encontravam a habitar no imóvel e a fazer o uso/ ou mau uso do esgoto!
21- Pelo que ao decidir em contrário o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 483 do CC, bem como ao não considerar que a culpa dos Recorridos foi elidida, violou o disposto no artigo 493, n.º 2 CC.
22- Por último e não menos importante, caso se entendesse que os Recorrentes não ilidiram a presunção de culpa, o cálculo da indemnização dos danos morais que os recorridos terão sofrido mostra-se de facto excessivo.
23- Relativamente aos danos não patrimoniais estabelece o art. 496.º, n.º 1 do Código Civil que o tribunal tem que o encargo de apreciar, de acordo com padrões objetivos, se o dano não patrimonial se mostra, ou não, digno de proteção jurídica.
24- A indemnização por danos não patrimoniais, exigida por uma profunda e arreigada consideração de equidade, sem embargo da função punitiva que outrossim reveste, tem por fim facultar ao lesado meios económicos que, de alguma sorte, o compensem da lesão sofrida, por tal via reparando, indiretamente, os preditos danos, por serem hábeis a proporcionar-lhe alegrias e satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que consubstanciam um lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar o havido sofrimento moral.
25- A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, “uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” (cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pág. 578).
26- Quanto aos danos não patrimoniais, e tendo presente as considerações já tecidas a este respeito, resultou dos autos, mesmo tendo sido provado que os AA. sofreram transtornos, que a quantia de € 4000,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos AA. é excessiva.
27- Ora, perante as infiltrações ocorridas numa zona de garagem da habitação dos AA. não nos parece que os autores terão sentido angústia, mas sim apenas um natural transtorno.
28- É o que resulta das regras da experiência comum – as infiltrações causam naturalmente preocupações, pelo que não costumam provocar angústia – e é o que resulta também dos depoimentos das várias testemunhas ouvidas, nomeadamente das testemunhas S. M., do dia 6-11-2019 de minutos 12:10:44 a 12:17:50, A. M. do dia 6-11-2019 de minutos 12:10:44 a minutos 12:17:50 e de P. G., de dia 6-11-2019 de minutos 12:26:56 a minutos 12:35:20, que falaram que os AA. estavam chateados com a situação, mas não mencionaram que os AA. tenham demonstrado angústia.
29- De harmonia com o artigo 496º do CC, os danos não patrimoniais sofridos pelos autores correspondem à preocupação sofrida por causa das infiltrações constantes e ao desconforto que sentiram com os cheiros que se fazem sentir e ainda à perturbação causada nas suas vidas.
30- A extensão destes danos, o tempo que ocorreram levam a considerar ser excessivo o valor de 4000,00 euros fixado na douta sentença, pelo que consideram os recorrentes não ser justa e equilibrada a quantia de 4000 € para a indemnização dos danos não patrimoniais.
31- Tendo em atenção o aludido e apurado quadro fáctico, e atentando ainda nos padrões indemnizatórios geralmente adotados na jurisprudência, não se mostra conforme à equidade, fixar em € 4000,00 o valor do dano não patrimonial traduzido no transtorno, no plano de uma adequada ponderação de interesses, que a justiça do caso concreto, em que a equidade se funda, para além de ser substancialmente despropositado face ao valor dos danos patrimoniais provados em resultado da infiltração – 450 + iva.
32- Com efeito, a indemnização por danos morais, deve ser fixada equitativamente, devendo o tribunal atender às circunstâncias de cada caso, reduzindo-se nesta parte a indemnização fixada por ser excessiva.
33- Em suma por tudo quanto se deixou dito, deverá, pois, dar-se como não provada a matéria dos factos provados 7, 11, 15, 16, da matéria de facto dada como provada, sendo que, outro entendimento constitui uma violação das regras probatórias, designadamente o disposto no artigo 342º do Código Civil pelo que o decidir em contrário, à matéria de facto alegada e provada em audiência de julgamento, a sentença violou por erro na apreciação da prova o disposto no artigo 662, n.º 1 do NCPC.
34- devendo passar a dar-se como não provado os factos provados 7, 11, 15, 16, e em consequência, deverá a douta sentença ser substituída por outra que absolva os recorrentes.
35- Além disso o Tribunal, ao dar como preenchidos os requisitos da responsabilidade civil, violou o disposto no artigo 483 do CC, bem como ao não considerar que a culpa dos Recorridos foi elidida, violou o disposto no artigo 493, n.º2 C.C
36- Ao decidir como decidiu a sentença fez uma incorrecta aplicação do artigo 494º do Código civil no que respeita aos critérios indemnização, devendo a mesma ser fixada equitativamente, devendo o tribunal atender às circunstâncias de cada caso, reduzindo-se o montante fixado.
37- Termos em que V. Exas concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida, nos termos pugnados nas presentes alegações, farão inteira, JUSTIÇA!».
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Os Autores não apresentaram contra-alegações.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. Questões a decidir

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, restrição que não opera relativamente a questões de conhecimento oficioso.
Por outro lado, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes, sendo o seu objecto em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Neste enquadramento, constituem questões a decidir:

i) Erro da decisão sobre a matéria de facto no que respeita aos pontos nºs 7, 11, 15, 16 dos factos provados e ao ponto de facto constante da alínea P) dos factos não provados;
ii) Reapreciação de direito em função da modificação da matéria de facto requerida pelos Recorrentes, o que envolverá apurar:
a) Dependendo da alteração da matéria de facto, se as infiltrações não têm origem no prédio dos Réus, pelo que não constituem a causa dos danos alegados pelos Autores;
b) Mesmo que seja mantida a decisão quanto a matéria de facto dada como provada, se não se mostram preenchidos os pressupostos para a responsabilização dos Recorrentes pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos recorridos e dados como provados sob os pontos 18, 19, 20, 21, 22, por os Réus terem logrado ilidir a presunção de culpa que sobre si recaía;
c) Se a quantia de € 4.000,00 fixada a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos Autores é excessiva.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. O prédio urbano composto por moradia com cave, R/C e andar, com logradouro, sito na Travessa …, lugar do ..., freguesia da ..., concelho de Vila Verde, a confrontar, de Norte, com Irmãos S. M., de Sul, com Travessa ..., de Nascente, com J. M. e L. C. e, de Poente, com M. J., está inscrito na matriz urbana da ... sob o n.º …, e descrito na conservatória competente sob o artigo n.º …, estando aí inscrita a sua aquisição, por compra, a favor dos Autores.
2. O prédio urbano composto por moradia de cave, R/C e andar, com logradouro, sito na Travessa ..., lugar do ..., freguesia da ..., concelho de Vila Verde, a confrontar, de Norte, com Irmãos S. M., de Sul com Travessa ..., de nascente com Rua … e, de Poente, com A. T. e E. M., está inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na conservatória competente sob o n.º …, estando a sua aquisição aí inscrita a favor de J. M. e L. C..
3. Por escrito, datado de 11 de Abril de 2015, os Réus, J. M. e L. C., declararam dar de arrendamento, para habitação, a P. F., que aceitou, o prédio id. em 2., mediante a entrega de contraprestação mensal de € 560,00 (quinhentos e sessenta euros).
4. No entanto, o sobredito prédio foi usado como “casa de acolhimento” para a terceira idade, situação que se verificava na data descrita infra em 5.
5. No final do dia 28 de Março de 2016, pela parede que existe por trás das escadas do hall de entrada da cave/garagem do prédio id. em 1., que dá acesso ao r/c, escorria água.
6. A dita parede confina com o prédio id. em 2.
7. A água que escorria da parede emanava um cheiro pútrido, como água oriunda dos esgotos, provindo da caixa de esgotos construída no prédio id. em 2, junto à parede referida em 5.
8. A caixa de esgotos referida em 7. encontrava-se fendida.
9. No dia 2 de Abril de 2016, compareceu junto da casa dos Autores o Réu, J. M., que informou que já havia falado com um construtor civil para verificação da situação, informando ainda que, se a situação fosse da sua responsabilidade, participaria ao seu seguro.
10. Nesse mês de Abril, na caixa de saneamento do prédio descrito em 2. encontravam-se plásticos, papéis, toalhetes e pensos.
11. Com o passar dos dias, o escorrimento descrito agravou-se e o cheiro pútrido tornou-se insuportável.
12. No dia 06 de Abril, o autor deslocou-se ao posto da GNR da ... onde deu conhecimento da situação ao SEPNA (Serviços de Protecção da Natureza e Ambiente), que fez deslocar uma patrulha ao local e que verificou a situação, elaborando o respectivo auto.
13. No dia 8 de Abril seguinte, os Autores deram conhecimento da situação à Delegação de Saúde de … e à Câmara Municipal ..., que fez deslocar ao local funcionários especializados no saneamento.
14. Após visita ao local, os Serviços da Divisão de Águas e Saneamento declararam, em 22 de Abril seguinte, que não se verificava qualquer ocorrência na rede municipal de saneamento, nem entupimento entre o colector e a caixa de visita do prédio id. em 2.
15. Desde Março de 2016, repetiu-se, noutras ocasiões, não concretamente apuradas, a escorrência descrita em 5. e 7., espalhando o cheiro pútrido no prédio.
16. Em consequência do dito escorrimento, caíram alguns azulejos que revestiam a parede infiltrada.
17. Em consequência da infiltração, formaram-se manchas de humidade, com descasque de tinta, nas paredes do hall da garagem e numa parede da garagem.
18. Para reparação e pintura das paredes, remoção e recolocação dos azulejos, os Autores despenderão cerca de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros), acrescidos de IVA.
19. Os Autores necessitaram de proceder, e procederam, à limpeza do espaço afectado.
20. A existência da infiltração e o cheiro emanado da água dificultou o descanso dos Autores, trazendo-lhes transtorno, ansiedade e tristeza.
21. Vivem com angústia a possibilidade de repetição do sucedido.
22. Sentem tristeza pelos estragos verificados na sua habitação.
23. Os Autores participaram os factos descritos em 5 a 7. à sua seguradora.
24. Por escrito, datado de 7 de Abril de 2016, a .., Seguros, declarou declinar qualquer responsabilidade por haver indícios de que a origem da infiltração resultava da ruptura ou entupimento da drenagem de águas do edifício contíguo.
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2.1.1. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:

«A) No dia 29 de Março, cerca das 08h00, os autores dirigiram-se à moradia dos réus, tendo verificado que as águas tinham proveniência desta habitação.
B) No dia 31 de Março seguinte, os autores comunicaram os factos descritos de 4. a 7. à sua seguradora.
C) Os autores, em desespero, tentaram novo contacto com o réu J. M. para o número de telemóvel que havia fornecido, através de diversas chamadas, as quais aquele nunca atendeu nem retribuiu.
D) No dia 9 de Abril de 2016, da parte da manhã, uma vizinha dos autores e dos réus, de nome M. P., intitulando-se advogada dos réus e dos pais do réu, J. M., convocou o piquete de saneamento da Câmara Municipal ... a comparecer no local, com vista a que estes procedessem a uma verificação técnica do saneamento, não se tendo efectuado a intervenção, porque os Serviços já a tinham verificado na anterior deslocação.
E) Após foi chamado ao local, pela supra referida advogada M. P. um senhor, com a alcunha “X”, supostamente habilitado a limpeza de saneamentos, o qual compareceu no local com o trator cisterna e esvaziou o saneamento da casa dos réus naquela data.
F) Desde Março de 2016 e até à presente data a situação tornou-se insustentável com o passar dos dias, dos meses e dos anos agravando-se, sendo que nos dias de hoje não precisa existir uma descarga dos sanitários dos réus para haver uma inundação na casa dos autores, bastando agora a apenas umas pequenas chuvas e que as águas oriundas da casa dos réus se infiltram em casa dos autores, trazendo não só a água da chuva como todos os resíduos sanitários que se encontram nos tubos da casa dos réus, aumentando o cheiro nauseabundo que já existia, que se tornou insuportável, sendo sentido pelos vizinhos na rua.
G) Nos dois primeiros fins de semana de Novembro de 2018, a passagem, no primeiro fim de semana, da tempestade “Leslie” e depois da depressão “Nelson” -que trouxeram chuvas torrenciais ao distrito de Braga, com forte incidência no concelho de Vila Verde e também na Vila ..., e que tiveram como resultado uma enorme inundação na casa dos autores, com todas as águas que se infiltraram oriundas da casa dos réus que tiveram como resultado um alastrar das áreas de parede e chão afetados pelas águas.
H) Em consequência, os estragos estenderam-se à garagem e a vários materiais como madeiras, nomeadamente rodapés, escadas de acesso ao primeiro piso.
I) As paredes que se encontram já podres ficaram sem possibilidade de recuperação que não seja por serem refeitas, e que necessitam de ser todas picadas para remoção de argamassas podres, tendo que levar nova argamassa de cimento para reparação de paredes exteriores em betão que já apresentam desprendimento de compostos.
J) Existe necessidade de aplicação de argamassa de reboco para aplicação de todo o material cerâmico de lambrim.
K) Terão que ser substituídas as paredes de gesso cartonado hidrófugo, incluindo a selagem de juntas entre as placas e necessidade de substituição de todos os parafusos dessa estrutura, e ainda a necessidade de uma aplicação de “saturação de superfície de um primário uniformizador de absorção, hidrofugante e anti-eflorescências salinas.
L) A reparação descrita de K) a M) demandará o dispêndio da quantia de 7.953,18€.
M) A reparação da parede dos autores, mediante remoção dos azulejos velhos, revestimento de cimento, pintura e colocação de novos azulejos, demandará o dispêndio do montante de 850,00€ acrescido de IVA.
N) Os autores necessitarão de proceder à limpeza de sua casa por gente especializada em desinfecção, que demandará o dispêndio da quantia de 950,00€, acrescida do IVA.
O) Em 2 de Abril de 2016, o réu declarou aos autores que iria resolver a situação, mais dizendo que tinha seguro da habitação junto do Banco … e que iria participar o sinistro no dia 4 de Abril e que depois nesse mesmo informaria os autores do n.º da sua apólice, o que acabou por não fazer.
P) A construção do prédio descrito em 1. não respeitou as normas de impermeabilização e saneamento, o que permitiu a infiltração descrita em 4.
Q) Na limpeza do saneamento verificou-se que dentro do mesmo existiam fraldas e caixas vazias.
R) Os réus realizaram obras no exterior e interior do prédio id. em 2.
S) O tubo que liga a caixa de saneamento do prédio ao colector público dispõe de dimensões que permitem o escoamento das águas».
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.1.1. Em sede de recurso, os Recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
Por referência às suas conclusões, extrai-se que os Réus/Recorrentes consideram incorrectamente julgados os pontos de facto constantes dos nºs 7, 11, 15, 16 dos factos provados e da alínea P) dos factos não provados.

Como se vê nas conclusões 33 e 34 das alegações, os Recorrentes entendem que:

i) Deve «dar-se como não provada a matéria dos factos provados 7, 11, 15, 16, da matéria de facto dada como provada»;
ii) O ponto de facto constante da alínea P) dos factos não provados deve considerar-se provado (passando a constar da matéria de facto provada).
*

2.2.1.2. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à análise de todos os documentos juntos aos autos e do relatório pericial, e à audição integral da gravação das declarações de parte do Autor A. T. e dos Réus J. M. e L. C., dos esclarecimentos prestados pelo perito A. B. (engenheiro técnico civil) e dos depoimentos das testemunhas S. M. (professor aposentado, residente em ..., Vila Verde, que conhece os Autores e os Réus por serem seus vizinhos), A. M. (professora aposentada, residente em ..., Vila Verde, que conhece os Autores e os Réus por serem seus vizinhos), F. S. (militar da GNR, residente em ..., Vila Verde, que é amigo dos Autores e não conhece os Réus), P. G. (residente em ..., Vila Verde, e que conhece os Autores e os Réus por serem seus vizinhos), M. A. (residente em ..., Vila Verde, pai do Réu J. M.) e M. F. (residente em ..., Vila Verde, mãe do Réu).
Como existem nos autos algumas fotografias dos prédios de Autores e Réus (e das infiltrações e suas consequências) aqui em causa, isso permitiu a esta Relação ter uma ideia aproximada dos factos objecto dos depoimentos.
Para melhor percepção das questões factuais colocadas, foram ouvidas as alegações orais dos Advogados das partes.
*

2.2.1.3. Pontos nºs 7, 11, 15 e 16 dos factos provados

No essencial, cabe analisar se a discussão probatória fundamentadora da decisão corresponde à prova realmente obtida ou, ao invés, se a mesma se apresenta de molde a alterar a factualidade impugnada, nos termos propugnados pelos Recorrentes.

Atento o agrupamento de fundamentos feito no recurso pelos Recorrentes, sintetizados nas conclusões 3ª e 12ª, estão concretamente em causa os seguintes factos:

- 7. A água que escorria da parede emanava um cheiro pútrido, como água oriunda dos esgotos, provindo da caixa de esgotos construída no prédio id. em 2, junto à parede referida em 5.
- 11. Com o passar dos dias, o escorrimento descrito agravou-se e o cheiro pútrido tornou-se insuportável.
- 15. Desde Março de 2016, repetiu-se, noutras ocasiões, não concretamente apuradas, a escorrência descrita em 5. e 7., espalhando o cheiro pútrido no prédio.
- 16. Em consequência do dito escorrimento, caíram alguns azulejos que revestiam a parede infiltrada.

Quanto aos quatro primeiros pontos de facto objecto da impugnação, sustentam os Recorrentes que «não poderia o tribunal a quo dar como provado os pontos 7, 11, 15 e 16, pois o relatório e o depoimento prestado pelo perito não permitem concluir de forma categórica qual a origem das infiltrações, portanto entendem os recorrentes que deve a sentença recorrida ser alterada, passando a considerar como não provados os referidos pontos».
Argumentam que o relatório pericial «apenas refere ser muito provável que a água escorresse do terreno da habitação dos RR., situada no lado nascente e que se infiltraria através da parede exterior da casa dos AA.», que, com base em indícios, presume que «a origem da água poderia ser pela passagem de água através das paredes duma caixa de esgotos situada no terreno dos RR perto da parede da habitação dos AA. que apresenta uma fenda junto ao fundo», e que existe uma segunda caixa de esgotos, já perto da rua, que se encontrava parcialmente entupida, que a ter ligação com a anterior, «o que aumentará o volume de agua nesta, aumentando assim a quantidade de água que se infiltra na terra, através da fenda detetada na primeira caixa».
E o seu argumento fundamental é este: «o relatório pericial além do facto de presumir é inconclusivo sobre a questão da origem das infiltrações, não esclarece de forma cabal se efetivamente e com absoluta certeza a caixa de saneamento dos autores é o ponto de origem da infiltração causada no prédio dos Autores».

Portanto, a modificação da matéria de facto pretendida pelos Recorrentes alicerça-se exclusivamente no teor do relatório pericial e nos esclarecimentos do Sr. Perito prestado na audiência de julgamento.
Analisados os meios de prova invocados pelos Recorrentes e procedendo à sua confrontação com os fundamentos invocados na sentença, sem esquecer os demais meios probatórios que esta Relação analisou detalhadamente, entendemos não existirem razões suficientes para modificar a decisão recorrida relativamente a estes pontos de facto.
Além disso, a sentença explica exaustivamente os motivos por que se consideraram provados os pontos 7, 11, 15 e 16, bem como por que se deu como não provado o ponto constante da alínea P) dos factos não provados, em termos que têm inteira correspondência nos meios de prova produzidos e que aqui transcrevemos na parte mais relevante:
«O evento descrito no ponto 5., a situação da parede, conforme descrita no ponto 6., e as características da infiltração e ponto de origem, conforme descritos no ponto 7., demonstraram-se mediante a ponderação das declarações do autor ilustradas pelos registos fotográficos juntos com a petição inicial (fls. 12 a 17), sopesando-se esse contributo à luz dos depoimentos das testemunhas S. M. e A. M., F. S. e P. G., todos vizinhos e que visitaram a casa do autor, a seu pedido, nas descritas circunstâncias; e ainda, e sobretudo, à luz das conclusões do relatório pericial (ref.ª 5684964), confirmadas em audiência pelo Sr. Perito.
Na parte da verificação do evento, as ditas testemunhas – que, além do conhecimento directo que revelaram, depuseram de um modo espontâneo, seguro, distanciado e sentido de responsabilidade, não indiciando qualquer tipo de comprometimento com qualquer dos interesses em conflito – não tiveram dúvidas de que se tratava de uma escorrência de água residual de saneamento, quer pela aparência escura (que não se confundia com água de terra) e espumosa, quer pelo cheiro característico, que se sentia no hall da garagem e, em menor intensidade, do r/c da habitação; assim infirmando as declarações do réu J. M., na parte em que afirmou ter visto uma pequena infiltração de água sem qualquer cheiro.
Os seus depoimentos confirmaram, ainda, a posição do autor relativamente à situação (implantação) da parede infiltrada, na medida em que, tal como se retira dos sobreditos registos fotográficos, atestaram, com clareza, que os prédios são geminados, confinando pela dita parede por detrás da garagem.
Ainda que assim não fosse, relevam as conclusões do Sr. perito, nessa parte, e, sobretudo, quanto à origem do ponto de infiltração, conforme se retira das respostas aos quesitos 4.º e 5.º, ilustradas pelos registos fotográficos anexos. Conforme tratou de sublinhar o Sr. perito, em audiência, a caixa de saneamento do prédio dos réus que está implantada junto à dita parede estava fendida o que, somado à circunstância da segunda caixa, junto à rua, estar parcialmente entupida, na tomada de saída, conforme verificou através de experiência no local, fez aumentar o volume de resíduos na primeira caixa, sendo causa, directa e adequada, da abundante saída de resíduos para terreno e, por efeito da gravidade, da infiltração na parede dos prédios. Nesta parte, o depoimento da testemunha S. M., que exerceu funções como vereador na Câmara Municipal ... e que contribuiu para a averiguação da situação pelo Município, só veio cimentar a convicção quanto à origem da infiltração. Constatou esta testemunha, durante a escavação executada pelos funcionários - que foram chamados ao local na sequência dos pedidos, inicialmente, dos autores e, posteriormente, dos próprios réus -, que a ligação colocada entre as redes doméstica e pública, no prédio dos réus, era demasiado curvada (cotovelo), conforme, aliás, foi confessado pela ré L. C. no seu depoimento, o que, em termos lógicos, só podia dificultar o esvaziamento das caixas e contribuir para a infiltração através da fenda detectada. Além disso, conforme confessaram os réus, na sua contestação, e, posteriormente, em declarações, existiam materiais sólidos na caixa de saneamento do prédio (ponto 9.), que, com toda a probabilidade, produziriam entupimento, o que apuraram na sequência da actuação do réu, conforme descrita em 8.
Os depoimentos de S. M. e de A. M., por seguros e concisos, vieram, também, demonstrar a repetição do sucedido (ponto 14.); pois que se deslocaram à casa dos réus mais do que uma vez, verificando que a situação se mantinha, embora não lograssem concretizar o dia e mês da ocorrência, o que se aceita na medida em que não se tratava de uma situação nova que marcasse um outro momento na sucessão de factos e ainda ante o lapso de tempo entretanto decorrido. O mesmo se dirá do depoimento de F. S. e de P. G.; todos eles unânimes e inequívocos também quanto aos efeitos na parede; descritos nos pontos 15. e 16. Nesta parte, são ainda de salientar as conclusões do relatório pericial que vêm confirmar, definitivamente, a existência de estragos nas paredes do hall e numa parede da garagem, igualmente, perceptíveis nos registos fotográficos juntos com o requerimento sob a ref.ª 7862476, relevando-se o cálculo do Sr. perito para quantificação do valor de reparação, ante a credibilidade que merece o respectivo relatório pericial, não reclamado pelas partes.
A limpeza do espaço, em consequência do sucedido, conforme descrito em 19., além de asseverada à luz da mais elementar experiência comum, foi corroborada por todas as testemunhas que viram, em sucessivas e diversas ocasiões, a autora a limpar o hall da garagem para remoção da água que escorria da parede.
Os efeitos da infiltração e subsequente actuação do autor junto do SEPNA, conforme descrito nos pontos 11. e 12. resultam demonstrados da apreciação conjugada das declarações de A. T., estribadas no teor do auto de notícia, junto aos autos pela própria Secção SEPNA da GNR (ref.ª 5347855), do qual se retira que, nas circunstâncias autuadas, se mantinha a escorrência de água, com odor acentuado e espuma, que conduziu ao levantamento de auto de contra-ordenação».

Resulta da transcrita motivação da decisão de facto que a Sra. Juiz não se alicerçou exclusivamente no relatório pericial e nos esclarecimentos do Sr. Perito, mas também nas declarações de parte do Autor, em documentos juntos aos autos que enumera e nos depoimentos das testemunhas que indica.
É inequívoco, tal como afirmam os Recorrentes que no seu prédio existiam (e continuam a existir) duas caixas de esgotos: uma primeira junto à parede da sua casa e uma segunda junto ao muro que delimita o seu prédio com a rua. O primeiro evento objecto destes autos ocorreu em 28.03.2016, data em que foi constatado uma escorrência de água por uma parede da casa dos Autores confinante com o prédio dos Réus, enquanto o relatório pericial foi elaborado em 13.06.2017, na sequência da deslocação do Sr. Perito ao local, onde realizou os actos de inspecção que entendeu pertinentes e fez uma experiência.

Vários factos inequívocos o Sr. Perito constatou directamente:

a) A existência das infiltrações que tinham sido alegadas pelos Autores nestes autos;
b) A produção de estragos em consequência dessas infiltrações, os quais descreveu;
c) A primeira caixa de esgotos (situada junto à parede da habitação dos Réus) apresentava uma fenda junto ao fundo;
d) A segunda caixa de esgotos, já junto à rua, encontrava-se parcialmente entupida.

Perante isto, o Sr. Perito concluiu que “muito provavelmente” a causa das infiltrações resultava da conjugação de dois factores: a fenda na primeira caixa e o parcial entupimento da segunda caixa. Na sequência de experiência que fez, concluiu que, como a segunda caixa estava parcialmente entupida, «a água que a ela aflui poderá chegar à primeira caixa, o que aumentará o volume de água nesta, aumentando assim a quantidade de água que se infiltra na terra, através da fenda detetada na primeira caixa» (2). Essa água que sai pela fenda da primeira caixa é «que se infiltra através da parede exterior da casa dos AA, precisamente na zona onde as paredes das duas habitações começam a estar encostadas (de sul para norte)».
Portanto, o Sr. Perito estabeleceu a relação de causalidade entre a fenda na primeira caixa de esgotos (associada ao parcial entupimento da segunda caixa de esgotos (3) e o aparecimento de água na parede dos Autores, que escorria pela mesma.
É verdade que o Sr. Perito, ao estabelecer a referida relação de causa-efeito, recorreu à expressão “muito provavelmente”, ou seja, consegue estabelecer um juízo de quase certeza mas não de certeza absoluta.
Tanto quanto conseguimos deduzir do relatório pericial e dos esclarecimentos verbais prestados, o Sr. Perito só conseguiria estabelecer essa conclusão de certeza absoluta através de uma outra experiência complementar (4), designadamente do acto de forçar a passagem de água pela fenda com um marcador apropriado. Como é bom de ver, tal experiência ou outra semelhante iria encarecer o custo da perícia e aumentar os danos, o que provavelmente resultaria em algo desproporcional à situação dos autos e, em todo o caso, teria que ser requerida pelas partes.
Porém, há um elemento nos autos que nos permite formular uma forte convicção sobre a origem das infiltrações, o mesmo é dizer sobre a apontada relação de causalidade.
E esse elemento é o facto, constatado directamente pelas testemunhas S. M., A. M., F. S. e P. G., de a água resultante das infiltrações, que aparecia na parede dos Autores, emanar um cheiro pútrido, semelhante ao oriundo dos esgotos, e ser de cor escura.
Ora, a água da chuva não tem cheiro nem cor. Como pela primeira caixa passava água própria de esgotos, ou seja, fétida, e essa caixa tinha uma fenda que deixava verter a água para o exterior, a conclusão lógica e inelutável só pode ser a de que a água pútrida e suja que se infiltrou na parede dos Autores provinha da caixa de saneamento dos Réus.
Pelo exposto, inexiste fundamento para considerar não provados os pontos nºs 7, 11, 15 e 16 dos factos provados, pois, os meios de prova produzidos confirmam a realidade dos mesmos, tal como amplamente demonstrado na sentença.
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2.2.1.4. Alínea P) dos factos não provados

Na sentença considerou-se não provado, sob a alínea P), que «a construção do prédio descrito em 1. não respeitou as normas de impermeabilização e saneamento, o que permitiu a infiltração descrita em 4.».
Quanto à alínea P) dos factos não provados, os Recorrentes sustentam que «o relatório pericial também não esclarece se a parede da habitação dos AA. foi ou não impermeabilizada aquando da construção da habitação, e que portanto se poderia excluir a falta de impermeabilização da parede como causa das infiltrações».

Analisada a argumentação dos Recorrentes, verifica-se em primeiro lugar que a aludida alínea corresponde ao alegado no artigo 14º da contestação, onde afirmaram que a casa dos Autores «não respeitava as normas de impermeabilização e saneamento». Em segundo lugar, em lado algum os Réus concretizaram que normas eram essas e no que é que se traduzia, factualmente, essa invocada falta de observância em termos de “impermeabilização e saneamento”. Em terceiro lugar, só depois de demonstrado o aludido pressuposto é que seria possível apurar se essa situação “permitiu a infiltração”.
Portanto, o que os Réus alegaram foi um juízo conclusivo, o qual dependia, num primeiro momento, de tradução em factos e, depois, de demonstração através da produção de prova.
Os Réus não lograram fazer nem uma coisa nem outra.
Por isso, a matéria da alínea P) só poderia ser considerada não provada, como se fez a sentença.
Aliás, a Sra. Juiz foi inteiramente explícita sobre a sua convicção na motivação da decisão relativamente a esse ponto: «Nenhuma prova foi produzida no que toca à falta de cumprimento das regras de construção do prédio do autor, na medida em que não bastam as declarações do réu nesse sentido, corroboradas pelo seu pai, em audiência de julgamento, na medida em que este não revelou conhecimento concreto na matéria (al. P)».

Mais, os próprios Recorrentes reconhecem que o relatório pericial não permitia alicerçar uma decisão afirmativa sobre esse ponto, pois alegam que «não esclarece se a parede da habitação dos AA. foi ou não impermeabilizada aquando da construção da habitação».
Se essa matéria não foi esclarecida no relatório pericial, logo não pode, com base no mesmo – único meio de prova invocado no recurso relativamente à alínea P) –, ser dada como provada.

Atento o exposto, não se vislumbra qualquer erro na decisão da matéria de facto no que respeita à alínea P) dos factos não provados, pelo que também nesta parte improcede a impugnação dos Recorrentes.
Termos em que improcede totalmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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2.2.2. Da reapreciação de Direito
2.2.2.1. Da elisão da presunção de culpa

O quadro factual relevante com vista à sua subsunção jurídica é o mesmo que serviu de base à prolação da sentença recorrida.
Como não procede a apelação na parte em que se impugna a decisão da matéria de facto, fica prejudicada a apreciação da primeira questão suscitada pelos Recorrentes sobre as infiltrações não terem origem no seu prédio. A apontada questão dependia totalmente da alteração da matéria de facto, pois está demonstrada a relação de causa e efeito entre a ruptura (fenda) existente na caixa de esgotos dos Réus e as infiltrações de água na parede dos Autores, com os consequentes estragos. As infiltrações resultam, naturalisticamente, da ruptura do sistema de drenagem de águas residuais existente no prédio dos Réus.
Por isso, importa conhecer da segunda questão suscitada pelos Recorrentes, assente no pressuposto da manutenção da matéria de facto dada como provada, consistente em saber se os Réus ilidiram a presunção de culpa que sobre si recaía.
Na sentença considerou-se que os Réus, na qualidade de proprietários, tinham a obrigação de vigiar o seu prédio, a qual constitui «uma manifestação do conteúdo do direito de propriedade (cfr. artigo 1305.º do CC) e ainda do disposto no artigo 128.º do RGEU, que impõe aos donos de edificações a obrigação de manterem permanentemente essas edificações em estado de não poderem constituir perigo para a segurança pública e dos seus ocupantes ou para a dos prédios vizinhos». Sustentou-se que «na qualidade de proprietários do prédio donde provém a infiltração, cabia aos réus alegar e provar que não houve culpa da sua parte na produção do evento e/ou que não havia modo de evitar os danos; por força das presunções de culpa que os oneram extraídas dos artigos 492.º e 493.º do CC». Como os Réus não demonstraram que as infiltrações decorreram de defeitos de impermeabilização e da rede de saneamento do prédio dos Autores, tendo-se até provado coisa diferente, «pode afirmar-se a sua culpa (presumida, e não elidida) na produção do sinistro em apreciação».
Nas alegações, os Recorrentes, sustentam que «lograram provar factos que devem conduzir à conclusão de que a sua culpa (presumida por serem proprietários do imóvel identificado a fls…) foi ilidida, uma vez que consta aliás do ponto 3 da matéria de facto provada, por escrito datado de 11 de Abril de 2015, os réus J. M. e L. C., declararam dar de arrendamento para a habitação, a P. F., que se encontrava a ocupar o imóvel à data dos factos».
Mais argumentam que o seu prédio estava arrendado quando ocorreram as infiltrações, pelo que «ficou provado que os mesmos nenhuma culpa tiveram na produção dos danos, uma vez que não eram estes que se encontravam a habitar no imóvel e a fazer o uso/ ou mau uso do esgoto». Por isso, «ao decidir em contrário o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 483 do CC, bem como ao não considerar que a culpa dos Recorridos foi elidida, violou o disposto no artigo 493, n.º 2 CC».

Analisemos a apontada questão.
O ponto em discussão foi devidamente equacionado na sentença, na medida em que considerou que sobre os ora Recorrentes recaía um dever de vigilância do seu prédio, o que os mesmos admitem nas conclusões 15ª a 19ª das suas alegações. Aliás, afigura-se existir uma certa incongruência entre o alegado nas conclusões 15ª a 19ª e o vertido na conclusão 20ª, pois, se aceitam que sobre si recaía o dever de vigilância (art. 493º, nº 1, do CCiv.), com a inerente presunção de culpa, resta apenas saber se os factos provados demonstram ou não a elisão daquela presunção juris tantum.
Aliás, é actualmente incontestado que a violação de deveres de conduta pelo titular do direito real, causando danos a terceiro, sujeita-o a responsabilidade civil. «O lesado pode, pois, exigir a reparação dos seus danos pelo titular do direito real que violou um dever concreto de conduta, positivo ou negativo» (5).
No âmbito das relações de vizinhança, como forma de prevenir conflitos entre titulares de direitos reais, a lei impõe-lhes deveres de actuação e deveres de abstenção. A violação de tais deveres positivos ou negativos pode constituir fonte da obrigação de indemnizar o titular de um direito real sobre um prédio vizinho.
Além disso, pode até inscrever-se a responsabilização do proprietário do prédio vizinho na violação de deveres emergentes de um princípio geral de manutenção do equilíbrio imobiliário, aflorado em diversas disposições reguladoras do direito de propriedade – artigos 1346º e seguintes do CCiv. –, a que estão subordinados os proprietários de prédios vizinhos ou confinantes e que implica a necessidade de compressão e de actuação mútua no sentido da manutenção do statu quo. Foi Oliveira Ascensão quem entre nós chamou pela primeira vez a atenção para essa problemática. Segundo este autor (6), no âmbito das relações emergentes de direitos reais, «cada titular está vinculado, não só a abster-se da prática de actos que quebrem o equilíbrio imobiliário, como a reparar a falta de execução normal do seu direito, quando pela omissão desse exercício o equilíbrio imobiliário possa da mesma forma vir a ser quebrado». E, no âmbito de relações de vizinhança reais, prescinde-se, mesmo, «de toda a consideração de culpa».

Dito isto, sem necessidade de recorrer sequer ao aludido princípio, afigura-se-nos inquestionável que sobre os Réus, enquanto proprietários, recaía o dever de vigiar e manter o sistema de evacuação dos esgotos do seu prédio em condições adequadas de funcionamento. E essas condições de integralidade da respectiva estrutura e do seu funcionamento destinam-se a permitir que os esgotos sejam despejados rápida e completamente nos colectores públicos ou quaisquer outros receptadores. Em caso algum, o escoamento de esgotos pode ser feito para prédios vizinhos, directa ou indirectamente, o que sempre constituiria uma violação do respectivo direito de propriedade, por limitar o uso e fruição do prédio afectado (art. 1305º do CCiv.). Tal dever emerge directamente do artigo 128º do RGEU, ao dispor que «as edificações serão delineadas e construídas de forma a ficar sempre assegurada a sua solidez, e serão permanentemente mantidas em estado de não poderem constituir perigo para a segurança pública e dos seus ocupantes ou para a dos prédios vizinhos (7)». Acresce que o RGEU impõe, no seu artigo 90º, que «as canalizações de esgoto dos prédios serão delineadas e estabelecidas de maneira a assegurar em todas as circunstâncias a boa evacuação das matérias recebidas» e que, nos termos do artigo 94º, «os dejectos e águas servidas deverão ser afastados dos prédios prontamente e por forma tal que não possam originar quaisquer condições de insalubridade. § único. Toda a edificação existente ou a construir será obrigatoriamente ligada à rede pública de esgotos por um ou mais ramais, em regra privativos da edificação, que sirvam para a evacuação dos seus esgotos».
Aliás, o proprietário do imóvel – em determinadas situações poderá recair sobre o titular de outro direito real de gozo (v., por exemplo, o art. 1472º, nº 1, do CCiv.) – tem o dever de o conservar, de modo a que não cause danos a ninguém (8). Este dever de conservação está implícito no regime jurídico dos artigos 492º e 1350º do CCiv.
Em suma, tal como os Recorrentes admitem e a sentença definiu, sobre estes recaía o dever de vigilância do seu prédio, designadamente do sistema de esgotos que aí se mostrava incorporado.
Portanto, tendo-se produzido uma fenda na caixa de esgotos do prédio dos Réus, com a consequente descarga de águas residuais para o exterior, e com isso causado infiltrações na casa dos Autores, a lei presume a culpa daqueles – artigo 493º, nº 1, do CCiv.
Recaía sobre os Réus o ónus de demonstrar factos susceptíveis de afastar a aludida presunção de culpa. Para isso, tal como expressamente se prevê na parte final do nº 1 do artigo 493º, tinham que «provar que não houve culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua».
Os Réus argumentam que, tal como se provou (pontos nºs 3 e 4 dos factos provados), o seu prédio encontrava-se arrendado e que isso é suficiente para considerar elidida a presunção de culpa.
No nosso entender, o facto de o prédio se encontrar arrendado, à data em que ocorreram as primeiras infiltrações (28 de Março de 2016), não constitui motivo susceptível de demonstrar que não houve culpa da parte dos Réus.
O dito dever de vigilância não recaía sobre o arrendatário, mas sim sobre os Réus, enquanto proprietários, tal como já se demonstrou. Era aos Réus, no âmbito das relações de vizinhança emergentes do confronto entre titulares de direitos de propriedade, que incumbia conservar a rede de saneamento (mantendo-a, designadamente, estanque), enquanto reverso dos seus direitos, plenos, de uso, fruição e disposição do prédio que lhe pertence (cfr. artigo 1305º do CCiv.), dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas, sob pena de responderem pelos danos causados.
Aliás, os Recorrentes suscitam esta questão no recurso lavrando num equívoco: ao contrário do sustentado pelos Recorrentes, a sua condenação na sentença não assenta no mau uso que fizeram do sistema de esgotos do seu prédio, mas sim de, objectivamente, tal sistema de drenagem verter água que se infiltra na casa dos Autores. Não é um problema de “mau uso dos esgotos” mas sim de falta de manutenção da integralidade da caixa de esgotos, com as consequentes infiltrações causadoras de danos aos demandantes.
Por isso, não está em causa o eventual mau uso pelo arrendatário, mas sim a ruptura na caixa de esgotos e se sobre os Réus recaía a obrigação de vigilância do seu prédio. Não está provado que foi o mau uso pelo arrendatário que determinou a passagem de águas residuais para a parede dos Autores. Muito menos está demonstrado que foi esse uso indevido que causou a fendilhação da caixa de esgotos. O que se sabe, com segurança, é que foi devido à fenda existente na caixa de esgotos que as infiltrações se produziram na casa dos Autores. Essa é a causa directa das infiltrações.
Por isso, é irrelevante a conclusão dos Recorrentes, de que «não eram estes que se encontravam a habitar no imóvel e a fazer o uso/ ou mau uso do esgoto». A aludida afirmação até revela um desinteresse pela vigilância do prédio pelo simples facto de nele não habitarem e de, nesse sentido (restrito e imediatista), não o usarem, que é uma das situações que está na origem da criação da aludida presunção de culpa. É que o cerne da responsabilização previsto no artigo 493º, nº 1, do CCiv. assenta na falta de controlo (e não propriamente na perigosidade da coisa), ou seja, na situação da pessoa relativamente à coisa (9), no sentido de não tomar as diligências necessárias para evitar o dano. A coisa só produz um dano por terem sido descurados os cuidados devidos. Portanto, o cerne da responsabilização está na inobservância da vigilância necessária. A dita inobservância até resulta da argumentação desenvolvida pelos Recorrentes, que, em vez de provar a falta de culpa, evidencia o pressuposto incumprimento do dever de vigilância.
Acresce que as infiltrações, devido à ruptura do sistema de esgotos do prédio, não ocorreram apenas no dia 28.03.2016. Se relativamente a este evento ainda podem argumentar que desconheciam a existência de qualquer problema no seu sistema de descarga de esgotos – o que no nosso entender não os exime das obrigações emergentes do dever de vigilância –, já quanto aos posteriores episódios recorrentes de infiltrações não podem sequer invocar tal desconhecimento. Sabiam, desde pelo menos o dia 02.04.2016, da existência das infiltrações e da causa que era apontada para as mesmas. Portanto, tendo conhecimento que o direito de propriedade dos Autores estava a ser afectado em consequência de um evento que se produzia no seu prédio e se repercutia no prédio vizinho, a actuação dos Réus tem necessariamente que ser qualificada como culposa, sendo certo que a situação se arrastou durante quase três anos.
Em suma, os Réus não ilidiram a presunção de culpa, pelo que são civilmente responsáveis pelos danos causados aos Autores (art. 483º, nº 1, do CCiv.), tal como concluiu a sentença.
Improcede, desta forma, a tese dos Recorrentes quanto a esta questão.
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2.2.2.2. Da excessividade da indemnização por danos não patrimoniais

Nas conclusões 22ª a 32ª e 36ª, os Recorrentes invocam que a quantia de € 4000,00, fixada a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos Autores, é excessiva, uma vez que a sentença recorrida «fez uma incorrecta aplicação do artigo 494º do Código Civil no que respeita aos critérios indemnização, devendo a mesma ser fixada equitativamente, devendo o tribunal atender às circunstâncias de cada caso, reduzindo-se o montante fixado».
Alegam que «os danos não patrimoniais sofridos pelos Autores correspondem à preocupação sofrida por causa das infiltrações constantes e ao desconforto que sentiram com os cheiros que se fazem sentir e ainda à perturbação causada nas suas vidas», pelo que «a extensão destes danos, o tempo que ocorreram levam a considerar ser excessivo o valor de 4000,00 euros fixado (…), para além de ser substancialmente despropositado face ao valor dos danos patrimoniais provados em resultado da infiltração – € 450 + IVA».

Para a análise da questão da excessividade do valor da indemnização por danos não patrimoniais é relevante traçar o respectivo enquadramento jurídico.
Quando estão em causa danos não patrimoniais a respectiva indemnização não visa reconstruir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, mas sim compensar de alguma forma o lesado pelas dores físicas e morais sofridas, em suma, pelo seu padecimento.
Na verdade, os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente, sendo possível, todavia, em certa medida, compensar o dano mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro, isto é trata-se de proporcionar ao lesado uma compensação que, de algum modo, alivie os sofrimentos que o facto lesivo lhe provocou, ou lhos faça esquecer.

Ora, no caso de danos não patrimoniais, rege o disposto no artigo 496º do Código Civil, segundo o qual:

«1 - Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. (...)
4 - O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º(...)».

No caso de a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem (artigo 494º do CCiv.).
Os danos não patrimoniais não são avaliáveis em dinheiro, certo que não atingem bens integrantes do património do lesado, antes incidindo em bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o bom-nome e a beleza.
O seu ressarcimento assume, por isso, uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória.
As circunstâncias a que, em qualquer caso, o artigo 496º, nº 4, manda atender são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.

Analisada a argumentação dos Recorrentes, entendemos que a sentença fixou criteriosamente a indemnização e que inexiste qualquer razão para reduzir o seu valor.
As circunstâncias do caso assim o ditam.
Primeiro, quanto à dimensão temporal, tal como correctamente se apontou na sentença, estamos perante uma situação «que se prolongou no tempo». O evento danoso iniciou-se em 28.03.2016 (ponto 5), com as primeiras infiltrações, e repetiu-se várias vezes (ponto 15).
Segundo a Ré declarou na audiência final, a situação terá sido resolvida (pela Câmara Municipal ...) em Janeiro de 2019, enquanto o Réu afirmou, na mesma audiência, que deixou de haver escorrências no seu prédio em Março de 2019. Embora, com alguma imprecisão, a situação iniciou-se seguramente no final do primeiro trimestre de 2016 e aparentemente cessou durante o primeiro trimestre de 2019.
Do exposto resulta que a situação se arrastou durante quase três anos.
Segundo, em termos de repercussões objectivas, as infiltrações produziram-se na «parede que existe por trás das escadas do hall de entrada da cave/garagem do prédio id. em 1., que dá acesso ao r/c» (ponto 6), «com o passar dos dias, o escorrimento descrito agravou-se» (ponto 11).
Em consequência das infiltrações, «caíram alguns azulejos que revestiam a parede infiltrada» (ponto 16), «formaram-se manchas de humidade, com descasque de tinta, nas paredes do hall da garagem e numa parede da garagem» (ponto 17) e «os Autores necessitaram de proceder, e procederam, à limpeza do espaço afectado» (ponto 19). Ainda em sede de descrição da dimensão objectiva, sabe-se que para eliminar os danos materiais os Autores terão que proceder à reparação e pintura das paredes, remoção e recolocação dos azulejos, no que despenderão cerca de € 450,00, acrescidos de IVA.
Terceiro, quanto às repercussões subjectivas, verifica-se que a «a água que escorria da parede emanava um cheiro pútrido, como água oriunda dos esgotos, provindo da caixa de esgotos» dos Réus (ponto 7) e que esse cheiro, com o passar dos dias, tornou-se “insuportável” (ponto 11). Sabe-se que a existência da infiltração e o cheiro emanado da água dificultou o descanso dos Autores, trazendo-lhes transtorno, ansiedade e tristeza (ponto 20), que vivem com angústia a possibilidade de repetição do sucedido (ponto 21) e que sentem tristeza pelos estragos verificados na sua habitação (ponto 22).

Os factos atrás salientados compõem um quadro de traços mistos.
Por um lado, estão em causa “infiltrações de água”, o que traduziria, em princípio, uma gravidade menor. Porém, não é uma água qualquer que se infiltra na parede do prédio dos Autores, mas sim uma água pútrida, por proveniente de esgotos, com um cheiro insuportável.
Por outro lado, sendo certo que as apontadas consequências não são acentuadamente graves, em contraponto, os factos também revelam que a situação danosa se prolongou exagerada e incompreensivelmente no tempo.
Depois, o grau de culpabilidade dos Réus é acentuado, atenta a sua inércia em fazer cessar a causa das infiltrações. Estamos perante uma situação fácil de resolver: a caixa de esgotos tinha uma fenda e, para a água não passar pela mesma e não se infiltrar na parede da casa dos Autores, bastava repará-la, ou seja, tapá-la (10). Assim, com um baixo custo de reparação, impedir-se-ia a produção de danos aos Autores. Não foi isso que fizeram: em Junho de 2017 a fenda continuava a existir na caixa de esgotos e nem sequer está alegado ou declarado, muito menos demonstrado, que a fenda foi entretanto reparada. Em vez de se assegurarem da estanquicidade da sua caixa de esgotos e de tapar a fenda, preferiram discutir se as infiltrações decorreram de defeitos de impermeabilização da parede e da rede de saneamento do prédio dos Autores (v. art. 14º da contestação).
Veja-se a gravidade da situação de um ponto de vista da conformidade com os deveres de boa fé na inter-relação com os outros ou com o padrão comunitário na resolução de problemas semelhantes: a caixa de esgotos não é estanque, tem uma fenda pela qual passam as águas residuais, mas, em vez de se reparar a fenda, como qualquer pessoa de diligência média faria, afirma-se que o problema é a impermeabilização e o saneamento da casa do vizinho, como se fosse normal as caixas de saneamento deixarem correr os esgotos em direcção às paredes do prédio vizinho e estas devessem estar preparadas para esse efeito!

Ora, tal como correctamente se equacionou na sentença, é precisamente para situações como a dos autos que se considera que na fixação da indemnização deve estar presente uma ideia de reprovação de uma conduta. E é essa componente que, in casu, torna justificável e socialmente exigível que o valor da indemnização seja fixado no valor de € 4.000,00 e não num valor um pouco mais baixo.
Como refere Antunes Varela (11), «a indemnização reveste, no caso dos danos patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente».
Em suma: inexiste qualquer fundamento válido para reduzir o valor da indemnização por danos não patrimoniais.
Termos em que improcede a apelação.
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2.3. Sumário

1 – Recai sobre o proprietário o dever de vigilância e conservação do sistema de evacuação de esgotos do seu prédio.
2 – A violação de deveres de conduta pelo titular do direito real, causando danos a terceiro, sujeita-o a responsabilidade civil.
3 – Tendo-se produzido uma fenda na caixa de esgotos do prédio dos Réus, com a consequente descarga de águas residuais para o exterior, e com isso causado infiltrações na casa dos Autores, a lei presume a culpa daqueles.
4 – Como os Réus não ilidiram a presunção de culpa, são civilmente responsáveis pelos danos causados aos Autores.
5 – Na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve ser ponderado o grau de culpabilidade do agente, designadamente o revelado pela sua inércia em fazer cessar a causa dos danos e pela duração do evento lesivo, e, sempre que as circunstâncias do caso o justifiquem, deve também estar presente uma ideia de reprovação da conduta do lesante.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença.
Custas pelos Recorrentes.
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Guimarães, 17.09.2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Aquando dos esclarecimentos também referiu ser «natural que a água subisse à primeira caixa e então ajudasse ainda a aumentar o caudal da água infiltrada».
3. Também ficou demonstrado o motivo da ocorrência do entupimento na segunda caixa. Resultava da ligação colocada entre as redes doméstica e pública, no prédio dos Réus, ser demasiado curvada, ou seja, em cotovelo, tal como resulta do depoimento de S. M., que assistiu aos trabalhos efectuados pelos serviços da Câmara Municipal de …, e até do admitido pela Ré durante as suas declarações.
4. Observa-se nas fotografias da primeira caixa de esgotos, onde é visível a fenda, que à data – Junho de 2017 – não estava em carga (o próprio perito, aquando dos esclarecimentos referiu que «parece que estavam secas»), eventualmente por a casa estar desabitada nessa altura (depois da saída dos inquilinos), sendo certo que a mãe do Recorrente, que foi ouvida como testemunha, disse que os Réus foram para lá viver em finais de 2017, princípios de 2018.
5. José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2ª edição, Almedina, pág. 309.
6. “A previsão do equilíbrio imobiliário como princípio orientador das relações de vizinhança”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 67º, págs. 7 e segs.
7. Negrito da nossa autoria.
8. José Alberto Vieira, ob. cit., pág. 314.
9. Ou ao animal, situação que não releva para os autos.
10. A fenda, para que fique inequívoco.
11. Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, Almedina, pág. 568.