Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS EM INSOLVÊNCIA
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
NULIDADES DA DECISÃO
Sumário
I – Ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das nulidades da sentença, o Tribunal de recurso não deve proceder à remessa imediata do processo para o Tribunal «a quo», apenas o podendo fazer se não dispuser dos elementos necessários para decidir. II – A hipoteca é a garantia especial que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certas coisas imóveis ou a ela equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros. III – A hipoteca limita-se às faculdades de executar a coisa e de obter pagamento sobre o seu valor, com preferência em relação aos demais credores do devedor. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Processo nº 1586/17.6T8EVR-A.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Juízo Local Cível de Évora – J2
* Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório:
Na insolvência de (…) foi proferida decisão de graduação de créditos e o “Banco BIC Português, SA” e o “Banco Comercial Português, SA – Sociedade Aberta” não se conformaram com a sentença proferida, sustentando que foram omitidas garantias decorrentes de hipotecas inscritas a seu favor.
*
Nos presentes autos de verificação e graduação de créditos, o administrador judicial veio apresentar a lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do artigo 129º, nºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Esta lista não foi alvo de qualquer impugnação.
*
Posteriormente, o Administrador Judicial apresentou uma nova lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos reformulada.
Em 19/11/2018, ao ter obtido conhecimento da junção aos autos da nova lista a que alude o disposto no artigo 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o “Banco Comercial Português, SA – Sociedade Aberta” veio apresentar impugnação, em cumprimento do disposto no artigo 130º do mesmo diploma.
*
Foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 131º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
Foi ordenada a notificação do Administrador de Insolvência para juntar aos autos certidão do registo predial de todos os imóveis apreendidos a favor da massa insolvente.
*
Em 08/02/2019, o Administrador de Insolvência juntou documentos e informou que «está apenas por liquidar a verba nº 1, que aguarda a avaliação por parte do credor hipotecário».
*
Em 14/03/2019, foi proferido o seguinte despacho: «uma vez que o que se encontram apreendidos a favor da massa insolvente não são os prédios, em si, mas as quotas que a insolvente detinha sobre os prédios, em compropriedade, deverão os autos aguardar o encerramento da liquidação (e as suas vicissitudes), para se proceder à graduação de créditos – visando evitar-se, assim, a prolação de uma decisão que, muitas vezes, se torna inútil e incorrecta, face à alteração superveniente do auto de apreensão».
*
Em 05/11/2019, “Banco Comercial Português, SA” veio requerer que fosse proferida sentença de verificação e graduação de créditos, por forma a que o Banco, na qualidade de credor hipotecário, possa vir a ser ressarcido do seu crédito.
*
Em 23/04/2020, o Juiz «a quo» lavrou o seguinte despacho: «antes do mais, notifique o AI para que esclareça se, em vista da liquidação em curso, mantém a lista de créditos reconhecidos, e bem assim a classificação dos mesmos».
*
Em 15/05/2020, o Administrador Judicial veio informar que se mantinham os reconhecimentos conforme relação de créditos junta em 12/11/2018.
*
Em 20/05/2020 foi proferido despacho com o seguinte conteúdo: «porque nos fica a dúvida, tendo em conta que da lista de créditos reconhecidos constam 3 créditos garantidos, mas apenas dois se encontram justificados e o imóvel sobre o qual versa a hipoteca identificado, notifique o AI para que venha informar qual o imóvel sobre que recai a garantia do Banco Comercial Português, SA».
*
Em 22/05/2020, o Administrador Judicial informou que o “Banco Comercial Português, SA” tinha hipoteca voluntária no bem imóvel correspondente à verba n.º 1, único bem por liquidar.
*
Em sede de sentença, o Tribunal «a quo» reconheceu os créditos relacionados pelo administrador de insolvência. *
Em 27/05/2020 foi proferida sentença nos seguintes termos: «Através do produto da venda do bem imóvel – identificado sob a verba 1 do auto de apreensão de bens: 1.º As dívidas da massa insolvente saem precípuas; 2.º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito garantido do Banco Comercial Português; 3.º Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos comuns, em igualdade e em rateio; 4.º Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados».
*
O recorrente “Banco BIC Português, SA” não se conformou com a referida decisão e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
1. A ora recorrente é credora hipotecária da Insolvente, tendo hipoteca transmitida e registada a seu favor sobre a verba nº 2 – Prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António, sob o nº (…), fracção “Q”, da freguesia de Monte Gordo e inscrito na matriz predial urbana sob o nº (…)-Q, da referida freguesia.
2. Metade da fração acima identificada foi apreendida para os autos sobre a verba 2 do auto de apreensão.
3. Segundo informação prestada pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência, a ½ da fração em causa foi vendida no âmbito dos autos, tendo sido cumprido um contrato promessa previamente existente e nos termos do artº 102º do CIRE, pelo montante de € 64.000,00.
4. O valor resultante da venda da fração em causa – € 64.000,00 – foi depositado na conta da massa insolvente e está à ordem da mesma.
5. A Sentença a quo parte do pressuposto errado que a fração foi vendida no âmbito de outro processo, onde a outra ½ se encontra apreendida.
6. No entanto, nos termos da informação trazida aos autos, a ½ apreendida para estes autos, foi aqui vendida, dando-se cumprimento ao contrato promessa celebrado que havia sido anteriormente outorgado.
7. Partindo de tal pressuposto errado a Sentença a quo acaba por não proceder à graduação dos créditos no que se refere ao produto da venda da verba nº 2, o que deveria ter ocorrido.
8. Sendo certo que, tendo o ora recorrente, hipoteca registada em primeiro lugar, terá, necessariamente, de ser graduado em primeiro lugar, aliás, o que resulta da fundamentação da Sentença, não fosse o lapso em que incorreu.
9. Nestes termos, requere-se que na Sentença passe a constar a graduação que caberá ao produto da venda referente à verba nº 2.
*
O recorrente “Banco Comercial Português, SA – Sociedade Aberta” não se conformou com a referida decisão e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
I – A douta decisão recorrida não deve manter-se pois não consagra a justa e correta aplicação das normas legais e dos princípios jurídicos aplicáveis.
II – A douta sentença recorrida viola o disposto nos artigos 604.º, 686.º, n.º 1, 687.º, todos do Código Civil, o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, bem como os artigos 47.º, 130.º, n.º 3, 131.º n.º 3 e 140.º, todos do CIRE.
III – O princípio da graduação de créditos vem previsto no artigo 604.º, n.º 1, do CC, de acordo com o qual “não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito a ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.”
IV – Existindo, porém, causas legítimas de preferência, a lei confere a prioridade no pagamento a esses credores, em relação aos credores comuns.
V – Foi o Credor Reclamante notificado da decisão de verificação e graduação de créditos de fls. dos autos, proferida nos termos do n.º 3 do art.º 130.º do CIRE, a qual refere expressamente que “a lista não sofreu impugnação ou reclamações”.
VI – Contudo, tal não corresponde à verdade, uma vez que foi apresentada uma impugnação à lista de créditos reconhecidos e foi dado cumprimento às competentes notificações aos intervenientes processuais para os termos do disposto no art.º 131.º do CIRE.
VII – Não tendo sido apresentada qualquer resposta à impugnação da lista definitiva, deveria a mesma ter sido julgada procedente, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 131.º, n.º 3, do CIRE.
VIII – Carecendo a sentença recorrida de qualquer decisão quanto ao teor da impugnação apresentada, a mesma peca por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
IX – Da forma como está feita a graduação dos créditos reconhecidos constante da sentença ora recorrida, resulta que o bem identificado sob a verba 1 – e, atualmente, única – do auto de apreensão de bens seria garantido pelo crédito reconhecido ao Banco Recorrente no valor de € 318.022,56.
X – Contudo, o crédito reclamado pelo Banco Recorrente no montante de € 318.022,56 – e reconhecido pelo Administrador de Insolvência – encontra-se garantido por hipoteca registada sob o prédio urbano descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…), que entretanto já foi adjudicado pelo Banco Recorrente e não pela verba 1.
XI – O bem identificado pela verba 1 do auto de apreensão de bens corresponde ao bem imóvel destinado a habitação, cave com cozinha, casa de banho, 2 arrecadações e garagem, r/c com três divisões, cozinha, casa de banho, 2 alpendres e zona de serviço, 1º andar com cinco divisões e 2 casas de banho, sito na Rua (…), n.º 7, 7005 – 610 Évora, inscrito na matriz urbana com o artigo …, da união de freguesias de Malagueira e Horta das Figueiras, concelho de Évora.
XII – Sobre o imóvel identificado pela verba 1 do auto de apreensão encontram-se registadas hipotecas a favor do Banco Recorrente, as quais garantem o atual crédito de € 43.252,67, acrescido dos juros de mora entretanto vencidos.
XIII – Tais créditos não foram devidamente reconhecidos pelo Administrador de Insolvência, o que resultou na apresentação da impugnação à lista definitiva junta aos autos.
XIV – Não obstante o imóvel apreendido garantir um crédito hipotecário do Banco Recorrente, a verdade é que o Administrador de Insolvência apenas incluiu na lista definitiva de créditos reconhecidos o crédito inicialmente reclamado pelo Banco Recorrente, no montante global de € 318.357,39, o qual estava garantido pelo imóvel descrito no artigo 1.º, entretanto vendido, e não pelo imóvel que subsiste apreendido.
XV – Por um lado, a decisão recorrida peca pelo facto de não se pronunciar quanto ao reconhecimento e graduação dos créditos reclamados e relacionados em relação ao bem imóvel melhor identificado no artigo 1.º das presentes alegações.
XVI – Por outro lado, a sentença recorrida peca pelo facto de, erroneamente, graduar o crédito relacionado, no valor de € 318.022,56, em relação a um bem que não o garante e que, por seu turno, garante créditos do Banco Recorrente que não foram relacionados pelo Administrador de Insolvência, não obstante a impugnação da lista apresentada nos autos.
XVII – Afigura-se ao Recorrente que os créditos por si reclamados devem ser devidamente reconhecidos e graduados em primeiro lugar, devendo a douta sentença de graduação de créditos conter uma decisão quanto ao teor da impugnação da lista de créditos apresentada pelo Recorrente, sob pena de nulidade da mesma e, consequentemente, graduar os créditos reconhecidos em relação a cada um dos bens imóveis que já foram apreendidos para a massa insolvente.
XVIII – A douta sentença de graduação de créditos proferida nos autos peca por omissão de pronúncia e por defeito, uma vez que não decide quanto à impugnação apresentada quanto à lista definitiva de créditos reconhecidos pelo Administrador de Insolvência, associa erradamente créditos a bens que não os garantem e não gradua créditos hipotecários reconhecidos pela Administrador de Insolvência e que devem ser pagos pelo produto obtido pela liquidação da única verba que ainda se encontra apreendida para a massa insolvente e melhor identificada na relação de bens, motivo pelo qual deve ser revogada.
Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, revogando-se a douta sentença recorrida e, em conformidade, os créditos reclamados pelo Credor Reclamante/Recorrente sejam reconhecidos e graduados preferencialmente, de acordo com as garantias reais que os revestem – hipotecas – relativamente ao produto da venda dos bens apreendidos para a massa insolvente e que devem ser relacionados na relação de bens, tudo com todas as consequências legais.
Assim, se fará, como sempre, inteira Justiça».
*
Não houve lugar a resposta.
*
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. * II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito a apurar se existe:
i) omissão de pronúncia nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
ii) erro na graduação de créditos.
* III – Factos com interesse para a decisão da causa (ónus e encargos constituídos sobre o património do insolvente colocados em crise no presente recurso):
1) O prédio urbano descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…) tem inscrita uma hipoteca a favor do “Banco Comercial Português, SA – Sociedade Aberta”.
2) O prédio sito na Rua (…), n.º 7, 7005 – 610 Évora, inscrito na matriz urbana com o artigo (…), da união de freguesias de Malagueira e Horta das Figueiras, concelho de Évora, tem igualmente registadas hipotecas a favor do “Banco Comercial Português, SA – Sociedade Aberta”.
3) O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António, sob o nº (…), fracção “Q”, da freguesia de Monte Gordo e inscrito na matriz predial urbana sob o nº …-Q, tem inscrita hipoteca a favor do “Banco BPN – Banco Português de Negócios, SA”, actualmente integrado através de fusão por incorporação “Banco BIC Português, SA”.
* IV – Fundamentação:
Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.
Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente –, os créditos subordinados[1] e os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual, conforme ressalta da leitura integrada do artigo 47º, nºs 1, 2 e 4, a) a c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa. A lei admite ainda a figura dos créditos sob condição[2].
Da interligação entre os artigos 47º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[3] e o artigo 604º do Código Civil[4] resulta que a situação concreta chama à colação o conceito de crédito garantido por hipoteca.
A hipoteca é o instituto em virtude do qual os bens do devedor podem ser destinados à satisfação preferencial de outros créditos[5]. Ou, noutra formulação doutrinal, a hipoteca é a garantia especial que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certas coisas imóveis ou a ela equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros[6][7].
É indiscutível que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artigo 686º, nº 1, do Código Civil).
A obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional (artigo 686º, nº 2, do Código Civil) e as especificidades da hipoteca voluntária (aquela que nasce de contrato, de testamento ou de declaração unilateral) estão regulamentadas nos artigos 712º a 717º do Código Civil.
Na insolvência, os créditos são satisfeitos de harmonia com o princípio da satisfação integral sucessiva. Ou seja, segundo a ordem da sua graduação e desta regra decorre a consequência que um crédito só pode ser pago depois de o crédito anteriormente graduado se encontrar totalmente solvido (artigos 173º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e 604º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil).
Por conseguinte, valorizando a linha directora legislativa, mesmo que o produto obtido com a venda dos bens apreendidos para a massa seja insuficiente para satisfazer todos os créditos graduados, isso não obsta à satisfação daqueles que, segundo a sua graduação, puderem ser integralmente pagos, à luz da disciplina inscrita nos artigos 174º, nº 1, e 175º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Da análise integrada do conspecto legal torna-se evidente que, quanto à sua natureza, a hipoteca se limita às faculdades de executar a coisa e de obter pagamento sobre o seu valor, com preferência em relação aos demais credores do devedor. Em adição, o registo da garantia real é condição de eficácia entre as próprias partes[8][9], conforme decorre das regras precipitadas nos artigos 687º[10] do Código Civil e 4º, nº 2,[11] e 5º[12] do Código do Registo Predial.
*
Cumpre assim aferir se existe preferência de pagamento constituída a favor dos alegados credores hipotecários.
Da conjugação entre os elementos registrais públicos presentes nos autos resulta que, sem embargo de se estar perante a apreensão de direitos indivisos, os prédios apreendidos nos autos têm registadas hipotecas e a venda judicial destes direitos implica o acionamento das garantias reais inerentes.
Torna-se também evidente que existe uma dupla omissão de pronúncia. Por um lado, ao contrário daquilo que consta do texto da decisão, foi deduzida uma impugnação da lista de credores desconhecidos, a qual não foi conhecida no acto postulativo recorrido. Noutra dimensão, relativamente a dois dos imóveis apreendidos não foi feita a graduação de créditos, perpassando da leitura do processo que existiu uma dissintonia interpretativa entre duas realidades diversas: a da liquidação de bens e da existência de preferência do credor a ser pago pelo valor de certas coisas imóveis.
Efectivamente, o raciocínio silogístico presente na sentença parece reconhecer que, quanto aos imóveis negociados em sede de fase de venda, desaparecem ou ficam paralisadas as garantias reais incidentes sobre os imóveis em discussão. Porém, é patente que tal formulação não se adequa à natureza real do direito de hipoteca.
É indiscutível que o Tribunal «a quo» cometeu a nulidade omissão de pronúncia nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
Como já foi decidido por este colectivo do Tribunal da Relação de Évora, ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das nulidades da sentença, o Tribunal de recurso não deve proceder à remessa imediata do processo para o Tribunal «a quo», apenas o podendo fazer se não dispuser dos elementos necessários para decidir[13][14].
Na presente situação a falta de resposta à impugnação da lista de credores reconhecidos e o teor das certidões prediais apresentadas conjuntamente com os requerimentos apresentados pelos reclamantes permitem decidir a questão com toda a certeza, segurança e prontidão.
Para além dos créditos garantidos por hipoteca, os credores hipotecários têm direito aos acessórios do crédito hipotecário abrangendo os juros relativos a três anos, salvo convenção em contrário, tal como impõe a regra impressa no artigo 693º[15] do Código Civil, quando concliada com a disciplina do artigo 48º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[16].
Assim, relativamente a cada dos imóveis procede-se à seguinte graduação de créditos, revogando-se consequentemente em parte a sentença recorrida:
«O produto da venda do imóvel de cada um dos imóveis é pago pela seguinte ordem:
1 – As dívidas da massa insolvente saem precípuas.
2 – Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito garantido do credor hipotecário, até ao limite do valor inscrito no registo, com respeito pela prioridade, que lhes caiba acrescido dos acessórios do crédito hipotecário abrangendo os juros relativos a três anos.
3 – Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos comuns, em igualdade e em rateio.
4 – Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados. * V – Sumário: (…)
* VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedentes os recursos interpostos, revogando-se a decisão recorrida, que passa a contemplar que relativamente a cada um dos três imóveis aqui em discussão, a graduação é realizada pela seguinte ordem:
«1 – As dívidas da massa insolvente saem precípuas.
2 – Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito garantido do credor hipotecário, até ao limite do valor inscrito no registo, com respeito pela prioridade que lhes caiba acrescido dos acessórios do crédito hipotecário que abrangem os juros relativos a três anos.
3 – Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos comuns, em igualdade e em rateio.
4 – Do remanescente, se o houver, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados».
Custas a cargo da massa insolvente, tendo em atenção o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
*
Processei e revi.
*
Évora, 10/09/2020
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
__________________________________________________
[1] Artigo 48º (Créditos subordinados)
Consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência:
a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
b) Os juros de créditos não subordinados constituídos após a declaração da insolvência, com excepção dos abrangidos por garantia real e por privilégios creditórios gerais, até ao valor dos bens respectivos;
c) Os créditos cuja subordinação tenha sido convencionada pelas partes; d) Os créditos que tenham por objecto prestações do devedor a título gratuito;
e) Os créditos sobre a insolvência que, como consequência da resolução em benefício da massa insolvente, resultem para o terceiro de má fé;
f) Os juros de créditos subordinados constituídos após a declaração da insolvência;
g) Os créditos por suprimentos.
[2] Artigo 50º (Créditos sob condição)
1 - Para efeitos deste Código consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respectivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico.
2 - São havidos, designadamente, como créditos sob condição suspensiva:
a) Os resultantes da recusa de execução ou denúncia antecipada, por parte do administrador da insolvência, de contratos bilaterais em curso à data da declaração da insolvência, ou da resolução de actos em benefício da massa insolvente, enquanto não se verificar essa denúncia, recusa ou resolução;
b) Os créditos que não possam ser exercidos contra o insolvente sem prévia excussão do património de outrem, enquanto não se verificar tal excussão;
c) Os créditos sobre a insolvência pelos quais o insolvente não responda pessoalmente, enquanto a dívida não for exigível.
[3] Artigo 47º (Conceito de credores da insolvência e classes de créditos sobre a insolvência).
1 - Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.
2 - Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência.
3 - São equiparados aos titulares de créditos sobre a insolvência à data da declaração da insolvência aqueles que mostrem tê-los adquirido no decorrer do processo.
4 - Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são:
a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes;
b) ‘Subordinados’ os créditos enumerados no artigo seguinte, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência;
c) ‘Comuns’ os demais créditos.
[4] Artigo 604.º
(Concurso de credores)
1. Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.
2. São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção.
[5] Vaz Serra, Hipoteca, in Boletim do Ministério da Justiça, nº62, 1957, págs. 5 e seguintes.
[6] Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. II, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 549.
[7] Cláudia Madaleno, A vulnerabilidade das garantias reais – A hipoteca voluntária face ao direito de retenção e ao direito de arrendamento, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 40-41.
[8] Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil Português, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 372.
[9] Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 468.
[10] Artigo 687º (Registo):
A hipoteca deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes.
[11] Artigo 4º (Eficácia entre as partes):
1 - Os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros.
2 - Exceptuam-se os factos constitutivos de hipoteca cuja eficácia, entre as próprias partes, depende da realização do registo.
[12] Artigo 5º (Oponibilidade a terceiros):
1 - Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior:
a) A aquisição, fundada na usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º;
b) As servidões aparentes;
c) Os factos relativos a bens indeterminados, enquanto estes não forem devidamente especificados e determinados.
3 - A falta de registo não pode ser oposta aos interessados por quem esteja obrigado a promovê-lo, nem pelos herdeiros destes.
4 - Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
5 - Não é oponível a terceiros a duração superior a seis anos do arrendamento não registado.
[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23/04/2020, consultável em www.dgsi.pt.
[14] Ou, noutra formulação, em acórdão da Secção Social desta Relação subscrito aqui pelo primeiro adjunto, datado de 30/05/2019, ficou exarado que «a Relação não tem a obrigação de previamente ouvir as partes acerca do exercício de poderes de substituição ao tribunal recorrido, caso a nulidade da sentença recorrida tenha sido expressamente arguida nas alegações de recurso e a parte contrária tenha podido exercer o seu contraditório quanto a essa matéria nas respectivas contra-alegações».
[15] Artigo 693º (Acessórios do crédito):
1. A hipoteca assegura os acessórios do crédito que constem do registo.
2. Tratando-se de juros, a hipoteca nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a três anos.
3. O disposto no número anterior não impede o registo de nova hipoteca em relação a juros em dívida.
[16] Acórdão do tribunal da Relação de Évora 04/10/2013, publicado no www.dgsi.pt, que também reconhece que «no âmbito da reclamação de créditos, no processo de insolvência, o crédito do reclamante que esteja garantido por hipoteca abrange os juros relativos aos três últimos anos posteriores ao incumprimento, devendo tais juros ser reconhecidos e graduados como “garantidos”, juntamente o capital».