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SUBTRAÇÃO DE MENOR
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
ABSOLVIÇÃO
Sumário
I) Ao fazer depender o preenchimento do tipo legal do crime de subtração de menor, p. e p. pelo art. 249º, n.º 1, al. c), do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31/10, de um incumprimento do regime estabelecido para a convivência do menor quantitativa e qualitativamente qualificado, impondo que o mesmo seja "repetido e injustificado", foi intenção do legislador reservar a tutela penal para os casos em que os comportamentos inadimplentes assumam uma relevância que justifique uma punição criminal, atento o princípio da subsidiariedade de intervenção do direito penal, sem banalizar a sua criminalização. II) Assim, a palavra "injustificado" deve ser entendida em sentido amplo, apelando a uma visão fáctica do conceito, existindo nesta matéria um amplo campo de justificação do comportamento do agente. III) Todavia, não é qualquer justificação que permite afastar a previsão da norma, mas apenas aquelas condutas que se prendam com questões de particular relevo para a vida da criança, designadamente a sua saúde, educação e bem-estar. IV) Em situações como a dos autos, em que o comportamento do progenitor a quem o menor está confiado, ao alterar a sua residência para o estrangeiro, é determinado pela obtenção de outras, e melhores, condições de vida, quer no campo familiar quer no domínio profissional, criando reflexamente a possibilidade de inserção do menor num contexto mais adequado ao seu bem-estar, segurança e formação, que não lhe conseguia assegurar em Portugal, não podendo, pois, ser qualificado como uma "fuga" planeada ou deliberada, com o intuito de infringir o acordo quanto ao regime de visitas, nem como uma "fuga" sem qualquer fundamento lógico ou racional, o consequente incumprimento do regime estabelecido para a convivência do menor com o outro progenitor não se apresenta como injustificado, não sendo, por isso, ilícito à luz do tipo legal de crime em apreço.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO
1. No processo comum, com intervenção de tribunal singular, com o NUIPC 278/17.0PBGMR, a correr termos no Juízo Local Criminal de Guimarães (Juiz 1) do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, realizado o julgamento, foi proferida sentença a absolver a arguida, G. B., da prática do crime de subtração de menor, p. e p. pelo art. 249º, n.º 1, al. c), do Código Penal que lhe era imputado, bem como a julgar improcedente o pedido de indemnização civil contra ela deduzido pelo assistente e demandante civil, J. F., absolvendo-a do peticionado. 2. Inconformados, interpuseram recurso da sentença o Ministério Público e o assistente. 2.1 - A Exma. Procuradora da República extraiu da respetiva motivação as conclusões que a seguir se transcrevem[1]:
«1. A Mmª. Juiz do Tribunal a quo absolveu a arguida G. B., por entender que o incumprimento do regime das responsabilidades parentais por parte da arguida foi justificado, na medida em que a arguida foi em busca de mais e melhores condições de vida para si e para a sua descendente. 2. Porém, com o devido respeito, entendemos que o Tribunal a quo faz uma errada interpretação do artigo 249º, n.º 1, al. c) do Código Penal. 3. Face à factualidade provada, dúvidas não há de que a arguida praticou todos os atos objetivos do crime em apreço, porquanto levou a menor para o Brasil, sem o conhecimento e o consentimento do progenitor, incumprindo não só o regime de visitas estabelecido no acordo de regulação das responsabilidades parentais, mas também afastando definitivamente o pai da filha, que desde então nunca mais a viu, falando com a mesma apenas com o recurso a meios informáticos. 4. Face à redação atual do artigo 249º do Código Penal, o bem jurídico protegido apresenta-se como complexo englobando, por um lado, o interesse do menor, no sentido de estar próximo da sua família, de ambos os seus progenitores, mas por outro os interesses da família, em especial dos progenitores, de que o menor se mantenha no seio da sua família e com eles mantenha a maior proximidade possível. 5. Com a sua conduta, a arguida violou não só o superior interesse da menor, que ficou privada de qualquer convívio com o pai, como o interesse deste que, não mais viu a sua filha. 6. A arguida ausentou-se para o Brasil, levando consigo a menor, para ali passar a residir e fê-lo sem qualquer autorização do assistente/progenitor e sem sequer lhe dar conhecimento de que partiria do país levando consigo a filha de ambos. 7. A arguida também não deu qualquer conhecimento ao Tribunal de Família e Menores, nem obteve do mesmo autorização para deslocar a menor do país. 8. Ao fazê-lo, à revelia de todos, a arguida impediu definitivamente, até à presente data, o assistente/progenitor de conviver com a sua filha. 9. A forma como foi feita pela arguida esta “busca por uma vida melhor” parece-nos não só moralmente censurável, como criminosa, porquanto, de um modo reiterado e injustificado, a arguida privou a menor de conviver com o seu pai. Injustificado porquanto nunca foi apresentada qualquer razão válida para a arguida não ter intentado, junto do Tribunal de Família e Menores um incidente para a alteração da regulação das responsabilidades parentais. Injustificado porque foi intenção da arguida furtar-se a um juízo por parte daquele Tribunal daquilo que seria melhor para o superior interesse da sua filha, se ficar em Portugal se ir para o Brasil. 10. Face à factualidade dada como provada e face à letra da lei, forçosamente terá de ser dado como provado que “A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, com o desígnio de impedir que o assistente/pai da menor jamais estivesse com esta e que agiu, ainda, com o intuito de privar o convívio entre o assistente e a filha de ambos.” 11. A interpretação que o Tribunal a quo deu ao artigo 249º do Código Penal é inconstitucional, porquanto violadora do disposto no artigo 36º da Constituição da República Portuguesa. 12. Discordamos também da interpretação alargada da palavra “convivência” feita pelo Tribunal a quo. Falar com alguém apenas pelo “whatsapp” não é conviver. Daí que deva ser eliminado dos factos não provados o facto ao qual foi atribuído o n.º 1 e, na factualidade dada como provada, ao facto n.º 8 deve ser dada a seguinte redação “Não obstante tal conhecimento, a arguida viajou para o estrangeiro, levando a sua filha menor consigo o que impossibilitou que o outro progenitor pudesse conviver com a mesma.” 13. Padece também a douta sentença de uma insuficiência, para a decisão, da matéria de facto dada como provada, vício previsto na al. a), do n.º 2, do artigo 410 do Código de Processo Penal. 14. Não pode o Tribunal afirmar que é legítima, por parte da arguida, a busca de mais e melhores condições de vida, quando sequer apurou, como lhe competia, as condições de vida atuais e no passado da arguida. Estes elementos seriam importantes para avaliar um eventual “estado de necessidade” por parte daquela.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogar-se a douta sentença proferida nos autos e substituí-la por outra que condene a arguida G. B. pela prática do aludido crime de subtração de menor, pelo qual a mesma vinha acusada. (…)» 2.2 - Por seu turno, o assistente formulou as seguintes conclusões (transcrição):
«1ª - O regime de convivência do pai com a sua filha é mais do que um direito de visita, equivalendo ao direito que o progenitor sem a guarda do filho tem de se relacionar e conviver com este. Mais do que um direito do progenitor não guardião, é um direito da própria filha em receber o carinho e o afeto de ambos os pais, como forma de minimizar a falta que, com certeza, sente por não os ter, a ambos, sempre junto de si. Tal direito é uma concretização da norma do art. 36º, nº 6 da Constituição da República Portuguesa, segundo a qual os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
2ª - No âmbito da regulação geral do exercício das responsabilidades parentais, os menores não podem ser retirados da casa de morada de família apenas por decisão de um dos progenitores, nos termos do art. 1887º nº 1 do CC.
3ª - O Regulamento CE 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, art.º 2º, nº 9 e 11, classifica a deslocação e retenção unilateral do menor, para local diverso do que lhe fora destinado pelos seus progenitores, como ILÍCITA.
4ª - O convívio entre pai e filho, é muito mais do que uma chamada de WhatsApp, Messenger, e-mail ou telefone. O convívio é poder passear, fazer refeições, beijar, abraçar, acariciar, adormecer, ir a uma festa, celebrar o seu aniversário, enfim, um sem fim de atividades que permita ao pai conviver com a sua filha em carne e osso, e vice-versa.
5ª - O bem jurídico a proteger na redação do art. 249º, nº 1, c) continua a ser a garantia da integridade do exercício dos poderes deveres inerentes às responsabilidades parentais, devendo este comando ser sempre lido em conjugação com os artigos 1906º a 1908º do Código Civil, cujo respeito a norma penal visa garantir.
6ª - A arguida conhecia o teor do acordo de regulação das responsabilidades parentais por si aceite e homologado judicialmente não obstante esse fator ausentou-se para o estrangeiro, sem qualquer autorização do assistente ou do tribunal, e sem sequer dar conhecimento ao progenitor da menor, impedindo-o de conviver com a filha, com a agravante de desconhecer inclusive o respetivo paradeiro.
7ª - O superior interesse da criança que deve prevalecer foi aqui absolutamente desrespeitado pela mãe sem qualquer justificação para a conduta.
8ª – O superior interesse da criança deve constituir o núcleo central dos interesses que o art. 249º visa tutelar, pois, a criança é o centro e a destinatária primordial do regime legal em vigor e para garantir esse interesse é imprescindível que o exercício das responsabilidades parentais possa ser levado a cabo de forma plena e sem manobras interesseiras de um dos progenitores sobre o outro com desrespeito pela criança e pelo que fora acordado.
9ª - O crime de subtração de menores insere-se assim num contexto melindroso, em que a atuação do Estado deve ser moderada e ponderada, devendo todos os intervenientes prosseguir o interesse superior da criança, sem esquecer que isso passa, salvo algumas exceções, pela presença na sua vida de ambos os progenitores.
10ª - Deslocar uma criança para o estrangeiro sem autorização do pai, nem seu conhecimento prévio, constitui um ato que torna impossível a entrega da criança e o cumprimento do regime de visitas estabelecido, não podendo servir o argumento de que foi procurar melhores condições de vida, para obstar à imputação do crime em causa.
11ª - O facto da menor D. J. ser retirada do local onde reside, pela sua mãe e sem autorização do pai, afastando-a, assim, do contacto e controlo da educação, saúde e afetos, do outro progenitor, de forma radical e definitiva, terá de ser necessariamente protegida ao menos pelo elemento teleológico do preceito penal em causa e da sua ratio.
12ª - Da literalidade do mesmo preceito não se retira que são excluídos da previsão legal os comportamentos de um progenitor que retire a filha menor da esfera do exercício do poder paternal do outro progenitor, pelo menos presumida de provocar o afastamento definitivo da menor do outro progenitor.
13ª - Nada justifica a “fuga” para o estrangeiro com uma criança que tem judicialmente regulado o regime das responsabilidades parentais por ambos os progenitores com visitas e convivência do outro, dado que, por mais atendíveis que sejam os motivos, nada impede que se comunique ao outro progenitor e se peça prévia alteração do exercício das responsabilidades parentais.
14ª - Tal comportamento da arguida que retirou o menor da casa de família, levou a filha de ambos para o estrangeiro de forma não conhecida nem autorizada pelo outro progenitor, não constitui, na realidade um vulgar não entrega da menor para cumprimento de regime de visitas. É, sim uma subtração de criança retirada totalmente da sua vida normal para outro destino mantendo-se em violação grave, altamente lesiva, perentória e definitiva do exercício das responsabilidades parentais constitucional e legalmente reguladas.
15ª - Tal comportamento, colocando em risco o desenvolvimento da menor, sendo comprovadamente premeditado, perpetrado com dolo, com forma consciente quanto à respetiva ilicitude.
16ª - É do senso comum que quando um progenitor sai do país com a filha menor sem autorização do progenitor, estando regularizada as responsabilidades parentais, tem perfeita consciência que está a praticar um ilícito criminal. Age de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta é punida por lei.
17ª - Ao aceitar-se a decisão recorrida em que um dos progenitores possa deslocar-se por forma aparentemente definitiva para o estrangeiro, como emigrante ou nacional do país em causa, à revelia de sentenças proferidas no âmbito das responsabilidades parentais, e sem o respetivo consentimento de um dos progenitores, ou decisão judicial nesse sentido, é um escancarar de portas que consubstancia um grave precedente atentório aos superiores interesses da criança, em que em roda livre, os progenitores em questão, seja em situações de litigância entre si e mesquinhas vinganças, tomam atitudes que ordenamento jurídico e a justiça que aplica esse ordenamento possa de todo tolerar.
18ª - Face à matéria de facto dada como provada, pedido de indemnização civil o mesmo necessariamente terá de proceder e o Assistente ser ressarcido da totalidade do pedido, pois não só o hediondo crime perpetrado pela arguida atingiu de forma indelével a sua filha, que há cerca de 3 anos não convive com o seu pai.
19ª - Foram violadas as disposições legais do art. 249º nº 1 c) do Código Penal, art. 36º nº 6 da Constituição da Republica Portuguesa, arts. 1887º, 1901º, 1906º, 1907º, 1908º do Código Civil, art. 2º nº 9 e 11 do Regulamento CE2201/2003 do Conselho Europeu de 27 de Novembro de 2003.
Termos em que deve proceder o interposto recurso. Assim se fazendo J U S T I Ç A» 3. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu à motivação do assistente, manifestando a posição de que, como se alcança das alegações de recurso por si apresentadas, aquele tem toda a razão nos argumentos que invoca, pelo que também é do entendimento de que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação do artigo 249º, n.º 1, al. c) do Código Penal, devendo a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que condene a arguida pela prática do crime de subtração de menor de que vinha acusada. 4. Neste Tribunal da Relação, no âmbito do exame preliminar previsto no art. 417º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que «o recurso deve proceder», acompanhando a posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, por se lhe afigurar haver analisado a vexata quaestio em termos juridicamente adequados. 5. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta a esse parecer. 6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispondo o art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido", são, pois, as conclusões que constituem o limite do objeto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso[2].
Assim, balizadas pelas conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a apreciar são as seguintes:
a) - A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (recurso do Ministério Público);
b) - A impugnação ampla da matéria de facto (idem);
c) - A subsunção dos factos ao crime de subtração de menor previsto na al. c) do n.º 1 do art. 249º do Código Penal (recursos do Ministério Público e do assistente).
2. DA SENTENÇA RECORRIDA
É do seguinte teor a motivação de facto constante da sentença recorrida (transcrição):
«1.1. Factos provados.
Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
- Da acusação 1. A menor D. J. nasceu no dia - de Maio de 2009 e é filha da aqui arguida e de J. F.. 2. J. F. na data dos factos abaixo referidos residia (e ainda reside) na cidade de Guimarães. 3. Por acordo do exercício das responsabilidades parentais, homologado por decisão de 29.11.2011, proferida pela Conservatória de Guimarães, proc. n.º 16000, ficou estabelecido que a menor ficaria confiada à aqui arguida, passando a residir com esta, competindo as responsabilidades parentais a ambos os progenitores. 4. Mais ficou estabelecido que o pai poderia ter a menor consigo às terças e quintas-feiras, para jantar e ainda que passaria o fim-de-semana, alternadamente, com o pai e com a mãe. 5. Acontece que, em Março de 2017, a arguida regressou ao Brasil, seu país natal, levando consigo a menor, sem conhecimento do progenitor e sem autorização deste ou do Tribunal. 6. Daí para cá, o progenitor não mais esteve presencialmente/fisicamente ou conviveu presencialmente/fisicamente com a sua filha, permanecendo a mesma no Brasil. 7. A arguida sabia que estava legalmente obrigada a cumprir o regime estabelecido para a convivência da menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais. 8. Não obstante tal conhecimento, a arguida viajou para o estrangeiro, levando a sua filha menor consigo o que impossibilitou que o outro progenitor pudesse conviver com a mesma nos termos estabelecidos no mencionado acordo.
Do pedido de indemnização civil:
9. Mercê da viagem, e estadia no Brasil, desde Março de 2017 que a arguida efetuou levando com ela a menor D. J., o assistente sente-se triste, passou a ser uma pessoa reservada, evita falar na sua filha, sente sofrimento; 10. E sente-se impotente, angustiado, desesperado, humilhado face à ineficácia de um acordo, devidamente, homologado que estipulava que o mesmo podia estar com a menor, sua filha, duas vezes por semana e pernoitar com esta de 15 em 15 dias e que não está a ser cumprido pela arguida;
Mais se provou
11. A arguida não tem antecedentes criminais; 12. A arguida tem formação superior, e esteve em Portugal a fazer doutoramento, sendo bolsista do governo brasileiro do CNPQ, porém tal bolsa terminou e a arguida não terminou o doutoramento; 13. Desde o divórcio, entre arguida e assistente, que a menor ficou a residir com a arguida; 14. À data em que a arguida foi para o Brasil a mesma não exercia qualquer atividade laboral remunerada em Portugal e já não beneficiava há tempo não determinado em concreto daquela bolsa; 15. A arguida, nessa ocasião residia, com a menor, num apartamento, T1+1, em Guimarães, pagando de renda mensal entre 375,00 a 400,00 euros, que pagava com a ajuda monetária dos pais da mesma; 16. E pagava todas as suas demais despesas de alimentação, de vestuário, água, eletricidade, saúde, transportes, etc, e com a alimentação da menor, vestuário da menor, transportes desta - quando a mesma não estava com o pai nos dias estipulados pela regulação das responsabilidades parentais -, com as ajudas monetárias dos seus pais residentes no Brasil, sendo o pai médico naquele País; 17. Sendo que o arguido pagava o colégio frequentado pela menor até que a mesma foi matriculada numa escola pública, escola esta que frequentava quando foi para o Brasil em 2017; 18. O assistente no início do acordo das responsabilidades parentais chegou a pagar, por tempo em concreto não determinado, a prestação de alimentos fixada no acordo acima referido, mas à data em que a arguida foi com a menor para o Brasil o arguido já não pagava e há tempo não concretamente determinado, aquela prestação de alimentos; 19. No momento em que chegou ao Brasil, com a menor, a arguida matriculou a mesma num colégio – Colégio … – Unidade … - em ..., onde ambas residiam na casa dos pais da arguida, sendo que a menor frequentou tal colégio; 20. E disso mesmo a arguida deu conhecimento ao assistente; 21. E, posteriormente a arguida, por motivos de trabalho que executa na empresa da família da mesma, foi residir para C. G., com a menor, para a casa dos pais da arguida e que ali também residem, sendo que são estes que ficam com a menor quando a arguida, mercê do seu trabalho tem que fazer deslocações por cerca de dois dias; 22. Desde que a arguida foi para o Brasil com a menor as mesmas têm contacto com uma sobrinha do assistente que é madrinha da menor D. J.; 23. E desde que está no Brasil a menor convive com o assistente através de WhatsApp, email, telemóvel, Messenger; 24. Através de requerimento de 2019, a arguida dirigiu ao Juiz da Vara Da Família da Comarca da Capital – SC, Brasil, uma ação de guarda, alimentos, regulamentos de visitas e provimento provisório em face do aqui assistente, onde, além do mais, refere o local onde se encontra e onde se encontra a menor no Brasil, sendo que de tal requerimento foi dado conhecimento ao assistente.
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1.2. Factos não provados.
Com interesse para a decisão da causa resultaram “não provados” os seguintes factos:
1. Que desde que a arguida foi para o Brasil com a menor, em Março de 2017, o progenitor não mais conviveu com a menor D. J.;
2. Que a arguida tivesse agido de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
3. Que a arguida agiu com o desígnio de impedir que o assistente/pai da menor jamais estivesse com esta e que agiu, ainda, com o intuito de privar o convívio entre o assistente e a filha de ambos;
4. Que a arguida agiu com intenção de coartar a liberdade de movimentação e de comunicação do assistente;
5. Que a arguida só deixa o assistente falar telefonicamente com a sua filha quando esta deixa e que não permite que o assistente contacte com a menor quando ambos (ele e a menor) pretendem, mas apenas quando a arguida o entende e o mínimo tempo possível;
6. Que a arguida não permite que outros familiares do lado paterno contactem com a menor, nomeadamente avó, tios e primos.
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1.3. Motivação.
Determina o art. 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, além do mais, que a fundamentação da sentença contenha a enumeração dos factos provados e não provados que serão, como resulta do art. 368º, n.º 2, do mesmo Diploma, apenas os que sendo relevantes para a decisão estejam descritos na acusação, ou na pronúncia, tenham sido alegados na contestação, ou que resultem da discussão da causa.
Com efeito, atenta a uniformidade do entendimento que desde há muito o STJ tem vindo a adotar sobre este ponto (3) aquela enumeração visa a exaustiva cognição do “thema probandum”, i. é, a demonstração de que o Tribunal analisou especificamente toda a matéria de prova que foi submetida à sua apreciação e que revista de interesse para a decisão da causa, pelo que a obrigação legal, de na sentença, se fazer a descrição dos factos provados e não provados, se refere tão somente “(...) aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação” (4).
Cumpre ainda referir que, como é consabido, em matéria de apreciação da prova vigora o princípio de acordo com o qual o julgador formará livremente a sua convicção, objetivando-a racionalmente nos elementos produzidos ou analisados em audiência de julgamento e, com apoio, as mais das vezes, num raciocínio dedutivo ou indutivo, confrontando-a com as chamadas regras da experiência comum, entendidas como juízos hipotéticos assentes nas máximas da experimentação ordinária, independentes dos casos individuais em que se alicerçam e para lá dos quais mantêm validade - cfr. art. 127º do Código de Processo Penal.
Não se duvidando, pois, da tendencial impossibilidade de, em razão da conhecida subjetividade inerente à individual perceção de acontecimentos, alcançar um conhecimento direto e esgotante da realidade fenomenológica passada com apoio em testemunhos presenciais (quando os há) convergentes ou compatíveis, impõe-se um particular esforço de racionalidade na correlativa e dialética apreciação da prova produzida, subordinado aos princípios da lógica e condicionado pela credibilidade que seja de reconhecer a cada uma das fontes de conhecimento em presença.
Posto isto, vejamos o percurso da motivação do Tribunal.
Assim, os factos dados como provados nos números 1, 3 e 4, basearam-se no teor da certidão de nascimento da menor D. J. e do acordo das responsabilidades parentais relativamente à mesma, e juntas aos autos, respetivamente a fls. 11 e 15.
O assistente referiu os factos que se deram como provados nos números 2, 9, 10 e 23, o que fez de modo que e evidenciou sincero, objetivo e credível; sendo, ainda, que os padecimentos sofridos pelo assistente, mercê do incumprimento do acordo das responsabilidades parentais e da circunstância da sua filha estar a residir longe de si, foram, ainda, e de modo que se mostrou isento, espontâneo e crível, corroborados pela testemunha F. M., amigo do assistente desde a adolescência e que com o mesmo convive desde então, o qual, referiu, igualmente, saber que o assistente tem contactado com a filha, desde que a mesma está no Brasil, através do WhatsApp e pelo Messenger. A factualidade dada como assente nos números 5 a 8, 12 a 13, alicerçou-se na análise conjunta e crítica das declarações prestadas pelo assistente e das declarações da arguida que constam de fls. 72 a 78. A materialidade factual dada como provada nos números 14 a 22 baseou-se nas declarações prestadas pela arguida, e que constam de fls. 72 a 78, sendo que igualmente as testemunhas C. B., professora universitária no Brasil e amiga da arguida, I. B., professora e amiga da arguida e M. C., esta última “senhoria” da arguida em Portugal após o divórcio daquela e até que a mesma foi para o Brasil, referiram, de forma que se evidenciou espontânea, sincera, objetiva e credível, as condições de dificuldade económica e financeira em que a arguida, com a filha D. J., viviam em Portugal tempos antes de irem para o Brasil; reportando, ainda, as duas primeiras testemunhas os termos da bolsa de que beneficiou a arguida e o terminus daquela e que a partir dessa altura a arguida e a filha D. J. viviam, em Portugal, da ajuda monetária dos pais da arguida e que aqueles enviavam do Brasil e mais referindo a testemunha M. C., de modo até emocionado, que quando saia à rua com a arguida e a menor se apercebia que a arguida não tinha dinheiro para comprar as roupas que a menina queria ou para pagar à menina um hambúrguer no MacDonalds, referindo que a arguida se atrasava no pagamento das rendas por não ter dinheiro esperando pela ajuda do pai (da arguida) nesse sentido e que mercê de tais dificuldades económicas e financeiras a própria testemunha perguntava por vezes porque é que a arguida não ia residir para junto dos pais para ter mais e melhores condições económicas e emocionais de vida para si e para a menina.
Mais disse esta testemunha que a arguida nunca colocou entraves a que a menor, quando em Portugal, estivesse com o pai e família deste.
Sendo, ainda, que quanto ao facto descrito no número 18 o próprio assistente referiu não fazer ideia de como a arguida se sustentava aqui em Portugal, após o divórcio de ambos, mais dizendo ter ideia que as condições económicas e financeiras da arguida não eram favoráveis e que a mesma não trabalhava e que era sustentada com a ajuda dos pais da mesma; mais disse que ele pagava o colégio da menor (sendo que a arguida referiu que o mesmo pagava apenas metade daquela mensalidade) e algumas peças de vestuário da menor quando a menina estava com ele mas que entretanto as coisas complicaram-se porque quando tais peças de vestuário iam para a casa da arguida não voltavam.
O Tribunal atendeu, ainda, ao CRC da arguida junto aos autos e ao teor do documento junto a fls. 192 (requerimento dirigido pela arguida ao Tribunal de Família do Brasil e citação do mesmo ao assistente).
Os factos dados como não provados resultaram da ausência de prova cabal e segura que os corroborasse.»
3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS
3.1 – Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Nas conclusões 13ª e 14ª do recurso por si interposto, a Exma. Magistrada do Ministério Público imputa à sentença recorrida o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, compêndio legal a que pertencem os artigos doravante citados sem referência a qualquer diploma, preceito esse que, a par da impugnação (ampla) a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3 e 4, consagra uma segunda e distinta forma de impugnar a matéria de facto (através da chamada revista alargada).
3.1.1 - Nos termos daquele primeiro normativo, "[m]esmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (…)”.
Conforme resulta desse texto legal, qualquer dos vícios aí mencionados, que são de conhecimento oficioso[5], tem que emergir da própria decisão recorrida, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[6]. Tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença, quanto a eles, esta terá que ser autossuficiente, não se podendo recorrer à prova documentada.
No âmbito da revista alargada, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando-se a detetar os vícios que a sentença evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426º, n.º 1).
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando esta seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito ou quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão. Reporta-se, pois, à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não sindicável em sede de reexame restrito.
Como tem sido decidido uniformemente pelos tribunais superiores[7], o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão.
Na invocação desse vício critica-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo. O vício consiste, pois, numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente[8].
Em suma, a insuficiência da matéria de facto para a decisão verifica-se quando há lacuna, deficiência ou omissão no seu apuramento e investigação, o que se vem a repercutir na qualificação jurídica dos factos e/ou na medida da pena aplicada e/ou em qualquer outra consequência que, em sede de decisão, se tomou sobre o caso, como, por exemplo, o resultado do pedido cível ou o destino a dar a bens e objetos apreendidos nos autos, acarretando a normal consequência de uma decisão viciada por falta de base factual. 3.1.2 - Para fundamentar a existência deste vício, alega a Exma. Magistrada recorrente que em face da posição de direito que veio a assumir, ao considerar que foi legítima a partida da arguida para o Brasil em procura de melhores condições de vida, o tribunal a quo não cuidou de apurar, como lhe cabia, factos que eram essenciais para a decisão, designadamente qual era a real situação da arguida no nosso país, desde que data é que deixou de ser financeiramente independente, quando terminou a atribuição da bolsa, desde que data deixou o assistente de contribuir com alimentos para a menor e por que razão o fez, qual é a real situação de vida da arguida no Brasil, se nesse país é financeiramente independente dos pais, qual a sua atividade profissional e quanto aufere pela mesma, concluindo que estes elementos seriam importantes para avaliar um eventual “estado de necessidade” por parte da arguida.
Porém, não lhe assiste razão, porquanto, contrariamente ao que é sustentado, a Mmª. Juíza procurou averiguar, naturalmente que por recurso aos meios de prova disponíveis e até onde, naturalmente, lhe era possível, atentas as limitações decorrentes da circunstância de a arguida se encontrar a residir no Brasil há cerca de três anos e de não ter comparecido ao julgamento, quais eram as concretas condições de vida da mesma, quer em Portugal, antes de se deslocar para aquele país, quer neste último.
Com efeito, consta da matéria de facto provada que, à data, a arguida não exercia qualquer atividade laboral remunerada e já não beneficiava há tempo não determinado em concreto da bolsa atribuída para fazer o doutoramento, dependendo da ajuda monetária dos pais, residentes no Brasil, para pagar a renda de casa, no valor entre € 375,00 e € 400,00 mensais, e todas as demais despesas de alimentação, vestuário, água, eletricidade, saúde, transportes, quer consigo, quer com a menor, tanto mais que o assistente já não pagava, há tempo não concretamente determinado, a prestação de alimentos fixada no âmbito da regulação das responsabilidades parentais (cf. pontos 12º, 14º, 15º, 16º e 18º dos factos provados, com sublinhados por nós introduzidos). E, no que concerne às condições de vida no Brasil, foi dado como provado que a arguida, quando aí chegou com a menor, ficou a residir em casa dos pais, em ..., sendo que, posteriormente, por motivos de trabalho que executa na empresa da família, foi residir para C. G., com a menor, para a casa dos pais e que aí também residem (cf. pontos 19º e 21º).
Tal factualidade revela-se suficiente para aferir do carácter justificado ou injustificado do incumprimento do acordo das responsabilidades parentais por parte da arguida, ao passar a residir com a menor no Brasil, dessa forma inviabilizando o exercício do regime de visitas do assistente em relação à filha, na medida em que os factos apurados permitem estabelecer um confronto entre a situação económica da arguida em Portugal e no Brasil, em ordem a perscrutar no resultado dessa comparação uma justificação para a sua mudança.
Questão diferente é a de saber se tais factos permitem concluir pelo carácter justificado do referido incumprimento, o que, todavia, já se prende com o enquadramento jurídico, objeto de análise adiante.
Não tinha, pois, o tribunal a quo qualquer motivo sério para investigar outros factos. Improcede, assim, a questão do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
3.2 - Da impugnação ampla da matéria de facto
Ainda em sede de recurso sobre a matéria de facto, a Exma. Magistrada do Ministério Público recorrente insurge-se contra a decisão de dar como não provado, nos pontos 2º e 3º, que "A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, com o desígnio de impedir que o assistente/pai da menor jamais estivesse com esta e que agiu, ainda, com o intuito de privar o convívio entre o assistente e a filha de ambos”, bem como, no ponto 1º, que "desde que a arguida foi para o Brasil com a menor, em Março de 2017, o progenitor não mais conviveu com a menor D. J." (conclusões 10ª e 12ª), defendendo que tais factos deverão antes ser dados como provados. 3.2.1 - Como é sabido, a decisão sobre a matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas vias.
Uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de "revista alargada", implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º, n.º 2, ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.
A outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, prevista e regulada no art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6, envolve a reapreciação da atividade probatória realizada pelo tribunal de primeira instância e da prova dela resultante, mas com limites, porque subordinada ao cumprimento do ónus de especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados [al. a) do n.º 3], das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida [al. b)] e das provas que devem ser renovadas [al. c)], devendo estas duas últimas especificações ser feitas, em caso de prova gravada, por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, com indicação das concretas passagens em que se funda a impugnação (n.º 4 do art. 412º), sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (n.º 6 do art. 412º).
Trata-se, nesta segunda via, de submeter à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os factos impugnados com a prova efetivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos, mas de forma parcial, restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente invoque e demonstre terem sido julgados de forma incorreta. 3.2.2 - No caso em apreço, como resulta da conclusão 12ª, o primeiro facto que, no entender da Exma. Magistrada recorrente, foi erroneamente julgado é o vertido no ponto 1º da matéria não provada, no qual é dado como não provado (transcrição):
«1. Que desde que a arguida foi para o Brasil com a menor, em Março de 2017, o progenitor não mais conviveu com a menor D. J.;».
Todavia, tal impugnação não assenta numa pretendida reapreciação dos meios de prova produzidos e mobilizáveis para a formação da convicção quanto a esse facto, não sendo, por conseguinte, cumprido o ónus de especificação previsto na al. b) do n.º 3 do art. 412º, ou seja, indicando a recorrente as concretas provas que impõem decisão diversa ou colocando em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões, relacionando, assim, o conteúdo específico dos meios de prova por si especificados, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Na verdade, no que concerne a este ponto 1º, a impugnação prende-se apenas com o significado do verbo "conviver", discordando a Exma. Magistrada recorrente do conceito alargado da palavra “convivência” que o tribunal a quo tem, alegando que falar com alguém, que está do outro lado do mundo, apenas pelo “whatsapp” não é conviver; conviver é ter contacto (físico), ter intimidade, frequentar o mesmo local, estar junto, partilhar o mesmo espaço, ambiente ou recinto, o que a menor D. J. não faz com o seu pai desde que, em março de 2017, foi levada pela mãe para o Brasil.
Nessa decorrência, entende que o facto impugnado deve ser eliminado do rol da matéria não provada, passando para os factos provados, em complemento ao aí vertido no ponto 8º.
Da economia da decisão sobre a matéria de facto resulta efetivamente que a Mmª. Juíza empregou o verbo conviver com um significado mais abrangente do que aquele que é defendido pela Exma. Magistrada do Ministério Público recorrente, para quem a convivência implica contacto físico.
Com efeito, no ponto 6º, a julgadora considerou como provado que desde que a arguida regressou ao Brasil, levando consigo a menor, o progenitor desta "não mais esteve presencialmente/fisicamente ou conviveu presencialmente/fisicamente com a sua filha, permanecendo a mesma no Brasil".
Coerentemente, nos pontos 7º e 8º, deu como provado que «[a] arguida sabia que estava legalmente obrigada a cumprir o regime estabelecido para a convivência da menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais» e que «[n]ão obstante tal conhecimento, a arguida viajou para o estrangeiro, levando a sua filha menor consigo o que impossibilitou que o outro progenitor pudesse conviver com a mesma nos termos estabelecidos no mencionado acordo», estando, pois, a reportar-se ao regime de visitas, de acordo com o qual o pai poderia ter a menor consigo às terças e quintas-feiras, para jantar, e passar fins de semana alternados com ela, havendo, pois, contacto físico ou presencial entre ambos.
Já no ponto 23º dos factos provados, donde consta que «[e] desde que está no Brasil a menor convive com o assistente através de WhatsApp, email, telemóvel, Messenger", o verbo conviver é empregue com um sentido mais amplo que para além do convívio físico ou presencial, abrangendo também o contacto por aqueles meios de comunicação à distância.
Nessa decorrência, compreende-se que tenha sido dado como não provado, no ponto 1 ora impugnado, «[q]ue desde que a arguida foi para o Brasil com a menor, em Março de 2017, o progenitor não mais conviveu com a menor D. J.".
Sem que exista qualquer contradição ou incoerência com os referidos factos provados, porquanto a Mmª. Juíza adotou o mencionado conceito abrangente do verbo conviver, no sentido de também incluir contactos não presenciais.
O que parece estar de acordo com a semântica da palavra conviver, que, para além de "viver em comum", "viver com outrem" ou "viver com outrem em intimidade", também pode ter o significado de "relacionar-se", "privar", "dar-se" ou "ter familiaridade" com outrem[9].
Ora, estas formas de "convivência", podem ter lugar e manifestar-se em contactos não presenciais, designadamente pelas mencionadas vias de comunicação à distância.
Pelo exposto, não merece censura a decisão de dar como não provado o facto vertido no ponto 1º.
3.2.3 - Em segundo lugar, no que respeita aos pontos 2º e 3º da factualidade não provada, a Exma. Magistrada do Ministério Público recorrente entende ter sido incorretamente dado como não provado (transcrição):
«2. Que a arguida tivesse agido de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
3. Que a arguida agiu com o desígnio de impedir que o assistente/pai da menor jamais estivesse com esta e que agiu, ainda, com o intuito de privar o convívio entre o assistente e a filha de ambos;».
Depois de argumentar que o tribunal a quo fez uma errada interpretação do art. 249º do Código Penal e que a factualidade provada preenche todos os elementos objetivos do crime de subtração de menor, de cuja prática foi a arguida absolvida, incluindo o carácter injustificado do incumprimento do regime estabelecido para a convivência do menor com o progenitor, a recorrente, na conclusão 10ª, sustenta que face à factualidade dada como provada e à letra da lei, forçosamente terá de ser dado como provado que “A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, com o desígnio de impedir que o assistente/pai da menor jamais estivesse com esta e que agiu, ainda, com o intuito de privar o convívio entre o assistente e a filha de ambos”.
No corpo da motivação, integralmente focada na problemática da correta interpretação da norma incriminadora e, consequentemente, da correta definição do tipo legal do crime em referência, nada mais adiantou sobre a correta ou incorreta decisão proferida sobre a matéria de facto.
Todavia, como já referimos, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art. 412º, sobre o recorrente que pretenda impugnar amplamente a matéria de facto recai o ónus de uma tripla especificação: dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, n.º 1, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo que em relação à especificação das concretas provas, quando tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na ata, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação.
Todas estas especificações devem constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3).
Acrescente-se que para a procedência da impugnação e consequente modificação da decisão de facto não basta que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal. Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam um decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
A demonstração desta imposição recai igualmente sobre o recorrente, que deve relacionaro conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado[10].
Ora, a Exma. Magistrada recorrente não deu cumprimento a este ónus, já que não se mostra feita a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da proferida nem é invocada a existência de vícios da decisão e especificadas as provas que devam ser renovadas.
Como é entendimento pacífico, a inobservância do ónus de especificação previsto no art. 412º, nºs 3, als. b) e c), e 4, inviabiliza a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto pela via da impugnação ampla da mesma.
De acordo com a alegação da recorrente, a imposição de decisão diversa quanto aos factos dados como não provados nos pontos 2º e 3º, relativos aos elementos subjetivos do tipo legal de crime em apreço, deriva da própria factualidade provada, atinente aos elementos objetivos do mesmo, alegando que esta, forçosamente, impõe que aquela seja dada como provada.
Tal situação é suscetível de integrar o erro notório na apreciação da prova, vício previsto no art. 410º, n.º 2, al. c), que, embora não seja expressamente invocado, é de conhecimento oficioso, pelo que, a verificar-se, deve o mesmo ser conhecido e declarado.
O que, todavia, não se verifica, no caso em apreço, pelas razões que passamos a expor.
Como já referimos a propósito da questão da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (ponto 3.1), nesta forma de impugnação, designada por "revista alargada", o vício tem de emergir da própria decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Assim, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando a sua atuação à deteção dos vícios que a sentença evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento.
No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, existe tal vício quando o tribunal a valora contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, melhor dito, ao juiz “normal”, isto é, dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente[11].
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão e que consiste, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou em dar-se como provado o que não pode ter acontecido[12]. É um erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova. No âmbito do controlo ínsito na identificação desses vícios, o que releva é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
Revertendo para a questão sub judice, temos que o tribunal a quo considerou como não provados os factos integrantes do tipo subjetivo do crime imputado à arguida, ou seja, do dolo.
Este, enquanto conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do Código Penal, é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjetivo, não diretamente apreensível por terceiro. Por isso, a sua demonstração probatória, sobretudo quando não existe confissão, não pode ser feita diretamente, designadamente através de prova testemunhal. Nestes casos, a prova do dolo tem que ser feita por inferência, isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objetivos – em particular, dos que integram o tipo objetivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.
Parece ser, efetivamente, essa a pretensão da Exma. Magistrada recorrente, ao defender que, não havendo dúvidas de que a arguida praticou todos os atos objetivos do crime em apreço, porquanto levou a menor para o Brasil, sem o conhecimento e o consentimento do progenitor, incumprindo não só o regime de visitas estabelecido no acordo de regulação das responsabilidades parentais, mas também afastando definitivamente o pai da filha, que desde então nunca mais a viu, falando com a mesma apenas com o recurso a meios informáticos, terão forçosamente de ser dados como provados os factos ora impugnados, integrantes do dolo, ou seja, que "a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal" e que "agiu com o desígnio de impedir que o assistente/pai da menor jamais estivesse com esta e, ainda, com o intuito de privar o convívio entre o assistente e a filha de ambos".
Todavia, essa inferência não se apresenta como necessária ou, sequer, como altamente provável em face das regras da experiência comum, porquanto a deslocação da arguida para o Brasil, levando consigo a menor, pode ter outras justificações que não o propósito de impedir os contactos físicos do assistente com a filha, como, aliás, entendeu a Mmª. Juíza a quo ao considerar justificado esse incumprimento do regime estabelecido para a convivência da menor com o progenitor, na esteira da corrente jurisprudencial que cita.
Assim, por esta via também não se impõe decisão diversa da recorrida quanto aos pontos 2 e 3 dos factos não provados. Improcede, pois, a questão relativa à impugnação da matéria de facto.
3.3 – Da subsunção dos factos ao crime de subtração de menor previsto na al. c) do n.º 1 do art. 249º do Código Penal
Ambos os recorrentes (Ministério Público e assistente) discordam da sentença recorrida na parte em que a Mmª. Juíza a quo considerou que o comportamento da arguida, ao deslocar a filha que tem com o assistente para o Brasil, dessa forma incumprindo o regime estabelecido para a convivência da menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, foi justificado, não sendo, por isso, ilícito à luz da alínea c) do n.º 1 do artigo 249º, do Código Penal, razão pela qual a absolveu da prática de tal crime e do pedido cível nele fundado.
O mencionado artigo, na redação atual e aplicável ao caso sub judice, introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, pune "[q]uem, de um modo repetido e injustificado, não cumprir o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, ao recusar, atrasar ou dificultar significativamente a sua entrega ou acolhimento".
O bem jurídico protegido é o interesse do menor a uma relação de proximidade com os seus progenitores, ou seja, a proteção da família, considerando esta em sentido amplo e olhando para o menor, a proteção da família do menor e o seu direito a ser próximo de ambos os progenitores.
Com efeito, as frequentes ruturas familiares entre pessoas que partilham uma vida em comum geram muitas vezes conflitos graves entre os progenitores que se repercutem de forma muito negativa na vida das crianças, as quais são frequentemente utlizadas como “moeda de troca” ou “arma de arremesso” nas disputas entre os pais, e em que o afastamento da criança de um dos seus progenitores pode provocar sequelas graves e irreversíveis no seu desenvolvimento harmonioso, constituindo a presença efetiva e afetiva dos pais na vida da criança um dos seus direitos fundamentais, impondo-se ao Estado a tomada de medidas para a tornar uma realidade.
Assim, a nova redação dada à citada alínea visa proteger a criança dos conflitos parentais e impedir que os mesmos se projetem negativamente na sua vida e no seu bem-estar. Para tanto, a relação de ambos os progenitores com o filho de uma forma salutar, gratificante e regular deve ser salvaguardada e acautelada.
No entanto, afigura-se-nos não ter sido intenção do legislador banalizar a criminalização dos comportamentos inadimplentes, antes reservando a tutela penal para os casos em que os mesmos assumam relevância que justifique uma punição criminal, atento o princípio da subsidiariedade de intervenção do direito penal.
Daí a preocupação, na formulação da previsão legal, em não beliscar esse princípio basilar do direito penal, fazendo depender o preenchimento do tipo de um incumprimento quantitativa e qualitativamente qualificado, ao impor que o mesmo seja "repetido e injustificado".
Não se suscitam dúvidas - tal como, aliás, é reconhecido na sentença recorrida - que deslocar uma criança para o estrangeiro, para mais para um lugar geograficamente muito distante, constitui um ato que “dificulta significativamente” e pode mesmo ser impeditivo da entrega da criança no âmbito do cumprimento do regime de visitas estabelecido em relação ao outro progenitor.
Da mesma forma que uma alteração de residência do menor que implique uma mudança geográfica para o estrangeiro constitui uma questão de particular importância, a ser decidida por acordo de ambos os progenitores ou, na falta deste, por decisão judicial a proferir em processo próprio.
De igual modo, por regra, o progenitor com que o menor reside habitualmente não pode unilateralmente decidir-se pela mudança de residência deste, desde que tal implique um grande afastamento geográfico do outro progenitor o que acontece, com especial acuidade, nos casos em que a mudança tem lugar para outro país.
Nessa conformidade, a Mmª. Juíza entendeu que, no caso dos autos, a alteração de residência da arguida para o Brasil, levando consigo a filha menor que tem com o assistente, sem prévia autorização deste, cria entraves e dificuldades no relacionamento pessoal entre este progenitor e a menor, ficando assim comprometido o contacto entre ambos, tal como ficou estabelecido no acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais, consubstanciando tal comportamento da arguida, objetivamente, uma situação de incumprimento do regime estabelecido para a convivência da menor com o seu progenitor, relativamente ao regime de visitas fixado, uma vez que a permanência da mãe da menor e desta no estrangeiro cria, inevitavelmente, dificuldades sensíveis no direito (natural) de relacionamento pessoal entre ele e a filha.
Como é mencionado no acórdão da Relação do Porto de 25-03-2010[13], citado na sentença recorrida, «(…) a recusa, atraso ou o estorvo significativo na entrega do menor, só têm relevância jurídico-penal para efeitos do crime de subtração de menor se essas condutas se mostrarem graves. Tal só sucederá se as mesmas para além de significarem uma autêntica rutura na relação familiar ou habitual entre o menor e os seus progenitores ou com aquele a quem o mesmo se encontra confiado, corresponderem ainda a uma lesão nos direitos ou interesses do menor e não em relação àqueles a quem o mesmo está confiado.».
Também não se duvida que, atenta a separação geográfica entre o Brasil e Guimarães (local da residência do progenitor), fica comprometido o contacto entre este e a menor, tal como ficou estabelecido no acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais. Nessa medida, objetivamente considerada, a conduta da arguida assume uma gravidade tal a ponto de ser apta a ter relevância jurídico-penal para efeitos do referido crime de subtração de menor que lhe é imputado.
Todavia, tendo presente que, como resulta dos factos provados, a mudança de Portugal para o Brasil por parte arguida foi determinada ou motivada pela circunstância de passar a ter a sua vida profissional organizada neste último país, onde reside com a menor em casa dos seus pais, ou seja, que a referida mudança ocorreu em busca de mais e melhores condições de vida, quer para si, quer para a filha, possibilitando a inserção desta num contexto mais adequado ao seu bem-estar, segurança e formação, a Mmª. Juíza considerou esse comportamento da arguida como justificado, afastando, assim, a respetiva tipicidade.
Para tanto, perfilhou a corrente jurisprudencial[14] que, defendendo que a aplicação da lei penal deve ser o último reduto da intervenção legislativa nas relações familiares, faz uma interpretação restritiva do sentido da norma contida no art. 249º, n.º 1, al. c), do Código Penal.
Nessa decorrência, situações como a dos autos, em que o comportamento do progenitor a quem o menor está confiado, é determinado pela obtenção, num outro país, de outras, e melhores, condições de vida, quer no campo familiar quer no domínio profissional, criando também, reflexamente, a possibilidade de inserção do menor num contexto mais adequado ao seu bem-estar, segurança e formação, o consequente incumprimento do regime estabelecido para a convivência do menor com o outro progenitor não se apresenta como injustificado, não sendo, por isso, ilícito à luz do tipo legal de crime em apreço.
O que, nessas situações, se verifica é uma alteração das circunstâncias de vivência do menor, determinando a alteração da forma de convivência do mesmo com ambos os progenitores, a ponto de reclamar uma alteração do acordo estabelecido quanto ao exercício das responsabilidades parentais, a determinar em sede própria. Mas sem que a deslocação para o estrangeiro sem, previamente, promover e obter junto do Tribunal essa alteração, deva implicar a tipicidade da conduta.
Concordamos e aderimos ao referido entendimento, sem que, em nosso entender, o mesmo redunde no esvaziamento de conteúdo da previsão da norma penal.
É certo que, como refere André Lamas Leite[15] "(…) a atual redação do art. 249.º, n.º 1, al. c), visa acorrer a essas situações em que a recusa, atraso ou criação de dificuldades sensíveis na entrega ou acolhimento do menor se faz através da fuga para o estrangeiro de um dos vinculados pelo regime de regulação das responsabilidades parentais".
No entanto, como acrescenta o mesmo autor:
"Conhecidas as críticas a que a intervenção penal é sujeita nesta área, bem andou o legislador ao exigir um incumprimento qualificado, não se satisfazendo, desde logo do prisma quantitativo, com uma única hipótese de inadimplemento, mas sim, ao invés, exigindo que ele seja «repetido». (…)
Tanto assim é que, como dizíamos, o incumprimento é ainda qualitativamente qualificado, porquanto o mesmo deve ser injustificado, i.e., o legislador, na própria descrição do tipo, não se mostrou insensível à ordem de considerações acima enunciadas e que apontam no sentido do funcionamento das causas de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa previstas a título exemplificativo no CP, (…).
Mais ainda: a utilização do conceito «injustificado» abrangerá outras hipóteses que, não preenchendo expressamente a totalidade dos requisitos daquelas figuras justificadoras, delas se aproximem materialmente (…). Numa palavra, classificando o incumprimento como «injustificado», pretendeu o legisladora sinalizar ao intérprete e aplicador da lei uma preferência por uma utilização lata do termo, não confinada aos tipos justificadores em sentido técnico-jurídico, mas alargada a outras factualidades que comportem a virtualidade de diminuir ou mesmo excluir a imagem global ilícita da conduta."
Como também se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-05-2012[16]:
"A atual redação do art. 249.°, n.° 1, alínea c), interpretada logo pela construção da tipicidade, visa acorrer às situações em que a recusa, atraso ou criação de dificuldades sensíveis na entrega ou acolhimento do menor, se faz, por exemplo, através da fuga para o estrangeiro de um dos vinculados pelo regime de regulação das responsabilidades parentais, ou através de comportamentos ou abstenções de semelhante dimensão, com graves prejuízos para a estabilidade e os direitos dos menores; é em tais circunstâncias que se impõe, não uma exigência de abstenção dos Estados face às relações jurídico-familiares, mas também deveres de conteúdo positivo, fazendo impender sobre os Estados o dever de criar mecanismos legais expeditos para o cumprimento.
Conhecidas as críticas a que a intervenção penal é sujeita nesta área, a lei penal não se pode satisfazer com uma qualquer forma ou modalidade de incumprimento; exige, por isso, logo pela descrição do tipo e como elemento da tipicidade, um incumprimento qualificado, não se satisfazendo, por uma projeção quantitativa, com uma única hipótese de incumprimento, mas sim, ao invés, exigindo que seja «repetido».
O incumprimento é ainda qualitativamente qualificado, porquanto deve ser injustificado; mas «injustificado», não apenas no sentido da inexistência de alguma causa de justificação, mas abrangendo outras hipóteses que, não preenchendo expressamente os requisitos das causas justificadoras, excluam materialmente os índices de constância, reiteração, intensidade e gravidade («de modo repetido e injustificado»), que estão pressupostos na dimensão e descrição penal.
Classificando o incumprimento como «injustificado», o legislador utiliza a noção desligada dos tipos justificadores em sentido técnico-jurídico, alargando-a a outras realidades e circunstâncias que se impõem na definição como elementos do tipo e não como causa de exclusão da ilicitude: «repetido» e «injustificado» são expressões da realidade que apontam para projeções simultaneamente materiais e de valoração, como índices de gravidade e de insuportabilidade da rejeição ao cumprimento de deveres, que justificam a dimensão penal do não cumprimento do «regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais»; «recusar, atrasar ou dificultar significativamente» são ações que apenas podem assumir dimensão típica se constituírem comportamentos repetidos, isto é, reiterados e recorrentes, densificando quantitativamente, e pela quantidade e persistência, qualitativamente, a gravidade in se e as consequências do não cumprimento do regime estabelecido."
Como também refere o referido autor, o lexema "injustificado" deve ser entendido em sentido amplo, apelando para uma visão fáctica do conceito, pelo que existirá, nesta matéria um amplo campo de justificação do comportamento do agente.
Na verdade, ao termo tem de ser atribuído um sentido lato, de molde a não abranger apenas as causas de justificação da ilicitude e da culpa, mas também outras causas que se aproximam delas e que podem e devem ser consideradas justificativas da conduta, sob pena de ser desnecessária a exigência feita no tipo legal de crime de o incumprimento ser "injustificado".
Sem que, todavia, se perda a noção de que não é qualquer justificação que permite afastar a previsão da norma, mas apenas aquelas condutas que se prendem com questões de particular relevo para a vida da criança, designadamente a sua saúde, educação e bem-estar. E já não, por regra, situações relacionadas com o próprio progenitor, salvo se forem inusitadas, inultrapassáveis ou de força maior.
Ora, no caso vertente, em ordem a aferir do carácter injustificado do comportamento da arguida, importa ter presente que, como consta da matéria de facto provada, a mesma é de nacionalidade brasileira e que veio para Portugal a fim de tirar o doutoramento, com o apoio de uma bolsa do governo brasileiro, tendo a referida bolsa terminado sem ela finalizar o doutoramento, não exercendo também qualquer atividade remunerada, sendo com a ajuda monetária dos seus pais, residentes no Brasil, que pagava a renda de casa e todas as demais despesas com a alimentação, vestuário, água, eletricidade, saúde e transportes, quer suas quer da menor.
Ao invés do que sucedia em Portugal, no Brasil tem emprego, numa empresa familiar, e conta com o apoio dos pais para cuidar da filha.
Acresce que a arguida, quando chegou ao Brasil, deu conhecimento ao assistente do local onde se encontrava a residir, em casa dos pais, e do colégio frequentado pela menor, mantendo ambas sempre contacto com uma sobrinha do assistente, madrinha da menor, da mesma forma que esta também contacta com o pai através de WhatsApp, email, telemóvel, Messenger.
Da mesma forma que, ainda que algo tardiamente, só em 2019, a arguida intentou nos tribunais brasileiros, uma ação de guarda, alimentos, regulamentos de visitas e provimento provisório, requerimento esse de que foi dado conhecimento ao assistente.
Deste quadro factual não se retira, pois, qualquer indício de que a partida e a permanência da arguida no Brasil, seu país natal, consubstancia um meio de retorção ou de mera vingança em relação ao assistente, nem tão pouco, uma intenção deliberada de impedir a convivência entre este e a filha nos termos do regime de visitas estabelecido no âmbito da regulação das responsabilidades parentais.
Bem ao invés, a sua decisão foi determinada pelo facto de não ter, em Portugal, meios de subsistência, quer para si, quer para a própria menor, o que, em relação a esta, é agravado pelo facto de o assistente não pagar, há tempo não concretamente determinado, a prestação de alimentos fixada no referido acordo, o que apenas fez no início da vigência do mesmo.
Embora a situação em apreço se prenda com a própria vida pessoal da progenitora, o certo é que, reflexamente, reflete-se de forma positiva no próprio bem-estar da menor, que aquela não lhe conseguia assegurar em Portugal, atenta a falta de meios de subsistência, ao invés do que sucede no Brasil.
O comportamento da arguida não pode, assim, ser qualificado como uma "fuga" planeada ou deliberada, com o intuito de infringir o acordo acerca do exercício das responsabilidades parentais no que diz respeito ao regime de visitas, nem como uma "fuga" sem qualquer fundamento lógico ou racional, apenas para provocar o assistente.
O que está em causa é antes uma deslocação da arguida, razoável e até mesmo necessária, num contexto de ausência de meios de subsistência em Portugal, para o seu país natal (Brasil), onde tem emprego numa empresa familiar e vive em casa dos pais, o que lhe permite assegurar o bem-estar da menor, tanto mais que o assistente deixou de lhe pagar a prestação de alimentos.
Razão pela qual a interpretação feita da al. c) do n.º 1 do art. 249º do Código Penal não viola o invocado art. 36º, n.º 6, da Constituição, que consagra a proximidade física entre os progenitores e os seus filhos como um direito, liberdade e garantia pessoa nuclear nas responsabilidades parentais, na medida em que assenta numa ponderação sobre as concretas características da situação e do peso da razão ou razões que levaram ao incumprimento do regime estabelecido para a convivência do menor, nomeadamente a ausência de uma intencionalidade, a ponto de não ser justificativa da intervenção do direito penal, numa área em que, pelo melindre das relações interpessoais e familiares, a atuação do Estado deve ser moderada e ponderada, sob pena de se vulgarizar a criminalização dos comportamentos incumpridores.
Entendemos assim, tal como o tribunal a quo, que o motivo que determinou a conduta da arguida é suscetível de a justificar minimamente, a ponto de a tornar atípica à luz da redação da al. c) do n.º 1 do artigo 249º do Código Penal.
Em face do exposto, afigura-se-nos que a decisão recorrida não merece reparo, sendo, por isso, de manter, assim improcedendo a questão em apreço, suscitada em ambos os recursos.
III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente, J. F., confirmando a sentença recorrida.
Recurso do Ministério Público sem tributação em custas, atenta a isenção consagrada no art. 522º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Recurso do assistente com custas a cargo deste, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta (art. 515º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 14 de setembro de 2020
(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)
1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes, a formatação e a ortografia utilizadas, que são da responsabilidade do relator.
2. - Como resulta, nomeadamente, dos arts. 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal e do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995).
3. - Cfr. por todos os acs. STJ de 3.4.91 e de 5.2.98, CJ, 1991, t 2, 19 e CJ t2, 245, respetivamente.
4. - Cfr. ac. STJ de 15.1.97, CJ, Ac. STJ, 1997, t 1, 181.
5. - Conforme jurisprudência fixada pelo acórdão citado na nota 2.
6. - Cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª edição, pág. 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª edição, pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, pág. 77 e ss..
7. - Cf., nomeadamente, o acórdão de STJ de 20-04-2006 (processo n.º 06P363), disponível em http://www.dgsi.pt.
8. - Cf. o acórdão do TRL de 18-07-2013 (processo n.º 1/05.2JFLSB.L1-3), disponível em http://www.dgsi.pt.
9. - Vd. Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Vol II, coordenação de José Pedro Machado, Círculo de Leitores, bem como Dicionário de Português on line, in https://www.lexico.pt, e ainda Infopédia - Dicionários Porto Editora, in https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa.
10. - Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1135).
11. - Vd. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 341.
12. - Vd. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74.
13. - Proferido no processo n.º 1568/08.9PAVNG.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.
14. - Seguida, nomeadamente, nos acórdãos do TRC de 18-05-2010 (processo n.º 35/09.8TACTB.C1) e do TRP de 21-10-2015 (processo n.º 14755/13.9TDPRT.P1), disponíveis em http//www.dgsi.pt.
15. - O Crime de Subtração de Menor – Uma Leitura do Reformado Artº 249º do Código Penal», “Julgar”, nº 7, Janeiro-Abril, 2009, p. 99, segs.)
16. - Proferido no processo n.º 687/10.6TAABF.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.