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QUINHÕES HEREDITÁRIOS
PREENCHIMENTO
LICITAÇÕES
Sumário
I - O preenchimento dos quinhões deverá ser feito em primeiro lugar com os bens licitados que serão adjudicados aos licitantes. II - Se nenhum dos herdeiros tiver licitado em bens que excedam a sua quota na herança mas também não houver herdeiros não licitantes, os bens não licitados serão divididos em lotes o mais iguais possível e sorteados entre todos os herdeiros, compondo o quinhão daquele a quem couberem em sorte, o qual pagará tornas pelo valor que o seu quinhão exceda a sua quota na herança.
Texto Integral
Recurso de Apelação ECLI:PT:TRP:2020:50.07.6TBCRZ.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
No presente processo de inventário por óbito de B…, falecida em 02-01-1999, instaurado no já longínquo ano de 2007 e que vicissitudes e interesses vários lograram tornar numa autênticasaga, iniciou-se em 22-09-2016 a conferência de interessados.
Nessa conferência foi submetido à aprovação dos interessados o passivo relacionado, tendo este sido aprovado apenas pelo cabeça-de-casal, manifestando os demais interessados oposição a essa aprovação. Após essas manifestações, foi proferido o despacho que, na parte aqui interessa, decidiu o seguinte:
«No que concerne às despesas referidas na verba número um, despesas do funeral, as quais se encontram documentadas a fls. 284 e 285, constando ainda a fls. 383 a informação da Caixa Geral de Aposentações quanto ao montante recebido pelo cabeça de casal a título de subsídio de funeral, também quanto a esta se afirma que, pese embora a factura e o recibo estejam emitidos ao cabeça de casal, nada nos autos resulta que tal despesa tenha sido suportada por si. Por estas razões concluímos que a questão não pode ser resolvida com segurança pela análise dos documentos apresentados pelo que se decide não reconhecer o passivo relacionado, o qual apenas será imputado ao cabeça de casal na sua quota-parte - artºs 1354º, 1355º e 1356º do C. P. Civil de 1961.»
Na sessão seguinte da conferência de interessados, realizada em 21-03-2018, os interessados procederam à licitação de alguns dos bens da herança, ficando por licitar vários bens imóveis.
Na respectiva acta, consta que:
«[…]tiveram início as respectivas licitações, com o seguinte resultado final: Os bens móveis constantes das verbas 1-A a 1-N, da relação de bens de fls. 758 a 768, não foram licitados, ficando em comum, sem determinação de parte ou direito para todos os interessados na proporção dos seus quinhões, pelo valor global de €855,00.»
A seguir consta a indicação dos bens que foram licitados, por quem e por que valor, e dos 14 bens imóveis que não foram licitados.
Após assinala-se que:
«…pela Mma. Juiz foi proferido o seguinte despacho: Relativamente aos bens não licitados os mesmos serão adjudicados em comum, sem determinação de parte ou direito a todos os interessados na proporção dos seus quinhões, pelo valor da relação de bens. […] Notifique.»
Segue-se a menção de que «todos os presentes foram devidamente notificados, do que disseram ficar bem cientes, sendo de seguida encerrada a presente conferência de interessados.»
Após a conferência, o cabeça-de-casal apresentou nos autos um requerimento que termina pedindo: «(i) devem ser notificados os interessados, nos termos do art.º 1373º/1, com referência ao art.º 1348º/1 do CPC, na redacção anterior à Lei nº 41/2013, para serem ouvidos sobre a forma da partilha; (ii) devem ser anulados os despachos … [refere-se aos segmentos da acta da conferência de interessados antes assinalados], por preterição de formalidades prévias prescritas na lei de processo, que influenciam o exame e decisão da causa, no caso a notificação e audição prévia dos interessados sobre a forma da partilha (art.ºs 195º/1 do novo CPC e 1373º/1 do velho CPC).»
Este requerimento foi indeferido, com o fundamento de na prolação de tais despachos não foi cometida qualquer nulidade e ainda não era chegado o momento da notificação requerida.
O cabeça-de-casal apresentou ainda recurso dos despachos proferidos na conferência, recurso que não foi admitido por se ter entendido que tais decisões apenas podiam ser impugnadas no recurso da sentença homologatória da partilha.
De seguida foi ordenada e realizada a notificação dos «interessados nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1373.º, n.º 1 do Código de Processo Civil de 1961».
O cabeça-de-casal pronunciou-se sobre a forma à partilha, manifestando entre outras coisas, que «os bens licitados são adjudicados ao respectivo licitante - art.º 1374º, a) do velho Código de Processo Civil» e que «não existindo situação subsumível à al. b), os bens restantes não licitados serão adjudicados a todos os interessados, em comum, mas na proporção necessária ao integral preenchimento dos respectivos quinhões.»
O interessado C… pronunciou-se igualmente sobre a forma à partilha defendendo, entre outras coisas, que «a composição dos quinhões deverá ser efectuada de acordo com o resultado das licitações, adjudicando aos interessados os bens que respectivamente licitaram, sendo que quanto aos bens não licitados, de harmonia com o determinado durante a conferência de interessados, deverão ser adjudicados em comum sem determinação de parte ou direito a todos os interessados e na proporção dos respectivos quinhões pelos valores (actualizados) da Relação de bens; o crédito/dinheiro deverá ser adjudicado aos interessados na proporção dos respectivos quinhões.»
Foi proferido despacho determinativo da partilha, no qual e quanto ao preenchimento dos quinhões, se determinou somente a sua realização «de acordo com as licitações e o demais decididos na conferência de interessados – cfr. atas da conferência de interessados».
Foi elaborado mapa informativo com a alegação de que face ao modo como se ordenou o preenchimento dos quinhões existem herdeiros que receberão bens de valor superior à respectiva quota, tornando-se devedores de tornas.
Notificado desse mapa e do despacho determinativo da partilha, o cabeça-de-casal apresentou arguição de nulidade do mesmo por omissão de pronúncia sobre as questões por si levantadas sobre o modo de preenchimento dos quinhões.
Esta arguição de nulidade foi desatendida com o fundamento de que «as questões nas quais este suporta a invocação de tal vício foram resolvidas na conferência de interessados, conforme a acta que documenta tal acto o atesta e aí o cabeça-de-casal não levantou qualquer objecção.»
Foi reclamado o pagamento das tornas e os devedores das mesmas notificados para as depositarem, não o tendo feito.
Foi ordenada a elaboração do mapa de partilha, o qual foi elaborado e, de seguida, posto em reclamação.
Por fim foi proferida sentença a homologar o mapa de partilha.
O cabeça-de-casal apresentou então recurso de apelação, dizendo fazê-lo da sentença homologatória da partilha e ainda das seguintes decisões: a) despacho proferido em 22-09-2016, durante a conferência de interessados, que não aprovou o passivo da herança reclamado a título de despesas de funeral; b) despachos proferidos em 21-03-2018, durante a conferência de interessados, sobre a distribuição dos bens não licitados; c) despacho proferido em 03-05-2018 que indeferiu a arguição de nulidade dos despachos proferidos em 21-03-2018; d) despacho determinativo da partilha proferido em 04-09-2018.
As alegações de recurso terminam com as seguintes conclusões:
A) A sentença recorrida homologou o mapa de partilha, condenando o recorrente no pagamento de tornas no montante de € 59.085,05.
B) Segundo a sentença homologatória do mapa da partilha e regras sobre a respectiva organização, foram adjudicados ao recorrente os imóveis que licitou nºs 3, 11 e 19 e metade do dinheiro por acordo dos interessados; e ainda atribuiu-lhe, na proporção do seu quinhão (1/2), 14 verbas que ninguém licitou relativas a imóveis n.ºs 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 18, 22 e 23 e as 14 verbas relativas a móveis n.º 1-A a 1-N.
C) As verbas não licitadas (no valor de € 175.620,00, sendo o valor da herança de €438.132,70), ao serem atribuídas ao recorrente na proporção de 1/2, determinam ser o recorrente condenado, ilegalmente, como devedor de avultadas tornas, sem que este haja, com a licitação e adjudicação dos 3 imóveis licitados e atribuição de dinheiro, excedido o preenchimento do seu quinhão.
D) Já que os bens não licitados por qualquer dos interessados devem, em caso de atribuição em comum aos interessados, sê-lo na proporção dos respectivos quinhões, procurando preencher, assim, o que estiver em falta no quinhão de cada um.
E) Tendo ficado por licitar 14 bens imóveis e 14 móveis, estes de muito baixo valor, tais poderiam ter composto, através de outras soluções de partilha, os quinhões por preencher de todos os interessados sem pagamento de tornas ou de valor residual resultante de meros acertos, ao contrário do que resulta das regras estabelecidas pelo tribunal a quo sobre a forma de organização da partilha.
F) Ao cabeça-de-casal, aqui recorrente, cabe um quinhão de metade da herança: €219.066,35 e a cada um dos demais interessados netos, em direito de representação do pai pré-falecido, cabe 1/6 da herança, in casu, €73.022,12.
G)Nenhum dos interessados licitou para além do respectivo quinhão hereditário, tendo o recorrente composto apenas parcialmente o respectivo quinhão através dos bens que licitou e lhe foram adjudicados em propriedade plena, acrescido de ½ do dinheiro atribuído, no valor de € 190.341,35, abaixo do respectivo quinhão em €28.725,00.
H) As regras sobre a organização da partilha tiveram como fonte os despachos proferidos em 21/03/2018, durante a conferência de interessados convocada para licitações (cf. acta com a refª Citius nº 391026282), a fls. 2 e 8 da mesma, que decidiram que as verbas móveis 1-A a 1-N não licitadas são atribuídas em comum, sem determinação de parte ou direito para todos os interessados, na proporção dos seus quinhões e todas as verbas imóveis não licitadas, são também atribuídas em comum, sem determinação de parte ou direito para todos os interessados, na proporção dos seus quinhões;
I) E o despacho determinativo da organização da partilha, proferido em 04/09/2018, com a refª Citius nº 395672172 que, entre outras, decidiu que “o preenchimento dos quinhões deverá ser feito de acordo com as licitações e o demais decidido na conferências de interessados - cfr. atas da conferência de interessados”, remetendo pois, para os despachos de 21/03/2018 supra referidos.
J) Os despachos recorridos padecem de falta de fundamentação, não referindo ao abrigo de que normas são proferidos, nomeadamente que consintam a solução de partilha que expõem quanto aos bens não licitados.
K) Os despachos de 21/03/2018 proferidos na conferência para licitações corporizam materialmente regras determinativas da organização da partilha e não podiam ter sido proferidos, como foram, durante a fase das licitações e antes do início da fase processual da partilha (arts. 1373º e ss do anterior CPC), sendo a sua prolação anterior ao exercício do contraditório dos intervenientes especificamente regulado no art.º 1373º do anterior CPC, específico para pronúncia sobre as regras de organização da partilha e anteriores ao despacho determinativo da organização da partilha; sendo evidente que este não pode corporizar regras já anteriormente declaradas em despachos avulsos, que assim configuram um pré-juízo, proferidos em fase anterior ao exercício do contraditório específico previsto no art.º 1373º do anterior CPC, sob pena de violação do princípio do contraditório.
L) Os despachos de 21/03/2018 foram proferidos antes da notificação dos advogados dos interessados para audição sobre a forma da partilha, nos termos aplicáveis do artigo 1348º do anterior CPC, isto é, no prazo de 10 dias - artigos 1373º/1 e 1374º do anterior CPC; só após aquela notificação, pronúncia e ponderação pelo tribunal a quo, é proferido o despacho determinativo do modo como deve ser organizada a partilha, o qual corporiza toda a organização e regras a aplicar à elaboração do mapa de partilha e respectiva forma de preenchimento – artigo 1373º/2 e 1374º do anterior CPC.
M) A omissão daqueles actos e formalidades constituem irregularidades que são causa de nulidade, produzindo consequentemente a anulação dos despachos de 21/03/2018, pois as omissões identificadas influem no exame e decisão da causa, ou seja, a forma de elaboração do mapa da partilha (artº 195º/1 do actual CPC).
N) Dos despachos de 21/03/2018, arguiu o recorrente a respectiva nulidade, que foi indeferida pelo tribunal a quo por despacho de 03/05/2018 (com a refª Citius 392390416).
O) O tribunal ordenou o contraditório dos interessados nos termos do art.º 1373º do CPC apenas depois de já ter proferido aqueles despachos na conferência, sendo tal contraditório inútil após já ter proferido decisões quanto à organização da partilha naqueles despachos de 21/03/2018.
P) A violação do princípio do contraditório previsto no art.º 1373º do anterior CPC e o pré-juízo sobre a forma da partilha que consta das decisões dos despachos de 21/03/2018 projectam-se no despacho determinativo da organização da partilha de 04/09/2018 que remete para aqueles despachos.
Q) Após a pronúncia do recorrente em 21/06/2018, decorrente de despacho de 04/06/2018 a notificá-lo nos termos do art.º 1373º do anterior CPC, o despacho determinativo da organização da partilha proferido em 04/09/2018, omite em absoluto qualquer referência ao teor do contraditório efectuado e não se pronuncia sobre nenhuma das questões levantadas pelo recorrente, remetendo genericamente para o teor dos despachos de 21/03/2018.
R) Sobre a ilegalidade do despacho determinativo da organização da partilha, tenha-se em consideração que este tem o relevo próprio de sentença quanto à organização das regras da partilha e os despachos com relevo próprio de sentença têm de identificar e resolver as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, bem como especificar os fundamentos e interpretar e aplicar as normas jurídicas. Princípios e exigências mínimas concretizados no artigo 1373º/2 do anterior CPC para o despacho que organiza a partilha em inventário.
S) Em qualquer caso, sempre devem os despachos recorridos proferidos em (i) 21/03/2018 sobre a atribuição em comum dos móveis e imóveis não licitados na proporção dos quinhões; (ii) em 03/05/2018, que indeferiu sem mais a nulidade daqueles; (iii) e o despacho determinativo da organização da partilha, de 04/09/2018, que para os despachos de 21/03/2018 remete, serem revogados e substituídos por Acórdão que dê cumprimento às normas e princípios do processo de inventário aplicáveis às regras de organização da partilha.
T) Quanto à forma da partilha os bens licitados são adjudicados ao respectivo licitante - art.º 1374º, a) do anterior CPC;
U) Não existindo situação subsumível à al. b) do art.º 1374º, estabelece o artigo 1374º al. c) do anterior CPC que os bens restantes são repartidos à sorte entre os interessados por lotes iguais.
V) A solução escolhida pelo tribunal a quo de que os bens restantes não licitados são adjudicados a todos os interessados em comum, tem, na procedência dessa interpretação, de o ser na proporção necessária ao integral preenchimento dos respectivos quinhões e nunca na proporção dos respectivos quinhões.
W)O recorrente cabeça-de-casal não licitou bens que excedessem o seu quinhão hereditário (1/2), não sendo aplicáveis os art.ºs 1376º/1, 1377º/1/2 e 1378º do CPC, não podendo haver lugar ao pagamento de tornas.
X) Tal situação configura manifestação evidente de vontade do recorrente de não contrair dívidas de tornas originadas pelo preenchimento excessivo da sua quota com verbas licitadas.
Y) Existem nestes autos 14 bens imóveis não licitados, a que correspondem o valor global de €174.705,00, a que somado o valor dos 14 bens móveis de €855,00, totalizam €175.620,00; valor e número de bens que teriam permitido amplamente ao tribunal recorrido efectuar as operações de partilha necessárias ao preenchimento integral e equitativo dos quinhões de todos os interessados sem serem devidas tornas.
Z) O tribunal pode autorizar a adjudicação em comum na proporção que indicar, mas tal tem por fim o objectivo de conseguir o maior equilíbrio de lotes: art.º 1377º/ 4 do anterior CPC.
AA) A solução impugnada, segundo a qual os bens não licitados são atribuídos em comum a todos os interessados, na proporção dos seus quinhões, faz incorrer por via de regra no dever de pagamento de tornas pelos titulares dos maiores quinhões, que por serem os maiores titulares de direitos são também regra geral os maiores licitantes, solução a que leva a que ainda que não preencham integralmente seu quinhão pelos bens licitados acabem ter de pagar avultadas tornas por força daquela atribuição medida pelo quinhão.
BB) Aliás, na incorrecta solução dos despachos recorridos, os maiores licitantes teriam de pagar tornas mesmo que o valor licitado fosse residualmente superior às licitações efectuadas pelos menores licitantes: só nestes autos, para além do recorrente, a interessada foi também condenada a pagar tornas tendo licitado em pouco mais de 40% do respectivo quinhão.
CC) Os despachos recorridos violam as normas e princípios segundo os quais, pela natureza do processo de partilha e inventário, o dever de pagar tornas é por regra excepcional e decorre do preenchimento excessivo do quinhão pelas licitações, devendo ser obtida partilha equilibrada e justa (art.s 1374º do anterior CPC que sobre a partilha refere “igualdade”, ou 1377º que refere “equilíbrio”).
DD) Devendo os mesmos serem revogados e substituídos por outro que disponha que os bens não licitados serão adjudicados aos interessados, de forma equilibrada, justa e equitativa, sem pagamento de tornas, em proporção estritamente necessária ao integral preenchimento dos respectivos quinhões,
EE) Sendo que, na procedência do entendimento da adjudicação em comum dos bens não licitados, não deve caber ao recorrente percentagem que exceda 16,36%, assim igualando a totalidade do seu quinhão hereditário.
FF) O despacho proferido em 22/09/2016 durante a conferência de interessados (acta com a refª Citius nº 373042925), decidiu ilegalmente a não inclusão no passivo da herança das despesas de funeral suportadas pelo recorrente e relacionadas no passivo da relação de bens sob a verba nº 1, afirmando nada resultar dos autos que as despesas tenham sido suportadas pelo recorrente, concluindo não poder resolver a questão com segurança da análise dos documentos.
GG) Para comprovar tais despesas o recorrente exibiu nos autos a respectiva factura, recibo e subsídio de funeral emitidos em seu nome, sendo ainda conhecido e aceite nos autos a localização do jazigo em cemitério, bem que, aliás, faz parte do activo da herança e adjudicado à interessada.
HH) Nos termos do artigo 1355º do anterior CPC, o tribunal deve conhecer a questão quando puder resolvê-la com segurança pelo exame dos documentos apresentados.
II) Tendo sido genericamente impugnada a dívida pelos interessados, nenhum deles arguiu a falsidade dos documentos apresentados.
JJ) Sendo ilegal, em face da exigência de prova documental, que foi apresentada, que o tribunal a indique mas, infundadamente, conclua que “nada nos autos resulta que tal despesa tenha sido suportada por si”, sem que, do exame dos documentos, fundamente existirem dúvidas quanto à respectiva idoneidade ou invoque a existência de outros elementos concretos ou sequer indícios nos autos, que leve a concluir existirem dúvidas fundamentadas quanto à segurança da ocorrência dos factos declarados naqueles documentos quanto à dívida contraída ou facto gerador da mesma.
Normas jurídicas violadas: - Artigos 1348º, 1353º, 1355º, 1373º/1 e /2, 1374.º, 1376º/1, 1377º/1, /2 e /4, 1378º, todos do CPC, na redacção anterior à Lei nº 29/2009; - Artigo 195º/1 do CPC, do actual CPC.
Termos em que, deve ser o presente recurso julgado procedente e revogada a partilha.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões: a) Se deve ser declarada a existência da dívida da herança reclamada pelo cabeça-de-casal (despesas de funeral); b) Se a decisão sobre a composição dos quinhões é nula e a nulidade carece de ser apreciada aqui; c) Como deve afectar-se o preenchimento dos quinhões com os bens não licitados.
III. Os factos:
Os factos que importam para o julgamento do recurso são os constantes do relatório que antecede.
IV. O mérito do recurso: A] questão prévia: lei aplicável.
O presente processo de inventário foi instaurado em 15-03-2007.
A Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário cuja tramitação passaria a ser assegurada pelas conservatórias e pelos cartórios notariais.
A entrada em vigor desta lei foi fixada no dia 18 de Janeiro de 2010, nos termos do artigo 87.º, n.º 1, data que a Lei n.º 1/2010, de 15 de Janeiro, transferiu para 18 de Julho de 2010. No entanto, nesse ínterim a Lei n.º 44/2010, de 3 de Setembro, alterou o artigo 87.º, n.º 1, da Lei n.º 29/2009, o qual passou a dispor que a presente lei produz efeitos 90 dias após a publicação da portaria referida no n.º 3 do artigo 2.º. Em simultâneo, o artigo 3.º da citada Lei n.º 44/2010 determinou a sua produção de efeitos desde o dia 18 de Julho de 2010.
Uma vez que a referida portaria não chegou a ser publicada, o regime do processo inventário aprovado pela Lei n.º 29/2009 não chegou nunca a produzir efeitos. Isso mesmo foi concluído no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 327/2011, onde se escreveu que “Ao determinar que o novo regime do inventário só produz efeitos 90 dias após a publicação de uma portaria, o legislador adiou, mais uma vez, a sua efectiva entrada em vigor, mantendo-se entretanto aplicável aos processos de inventário o regime anterior à Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, o qual atribui aos tribunais judiciais, rectius, aos tribunais de família onde os haja instalado, a competência para tramitar os processos de inventário”.
Entretanto a Lei nº 29/2009 foi revogada pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, que aprovou o novo regime jurídico do processo de inventário
Nos termos do respectivo artigo 8.º, a Lei n.º 23/2013, entrou em vigor no primeiro dia útil do mês de Setembro de 2013. E, nos termos do respectivo artigo 7.º, o disposto na mesma lei não se aplica aos processos de inventário que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem pendentes. Assim, tendo o presente inventário sido instaurado em 15-03-2007, continua a estar submetido ao regime jurídico do processo de inventário previsto no Código de Processo Civil.
O Código de Processo Civil em causa é o anterior ao aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que em consonância com a autonomização do processo de inventário relativamente à lei processual geral, finalmente assegurado pela Lei n.º 23/2013, o novo Código de Processo Civil deixou de incluir, entre os vários processos especiais que regula, o processo de inventário que passou a ter um regime processual definido em diploma autónomo.
Entretanto a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, alterou o Código de Processo Civil em matéria de processo de inventário, revogando o regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, e aprovando o regime do inventário notarial. Esta Lei entrou em vigor em 01-01-2010, mas não se aplica aos processos pendentes – artigo 11.º -, razão pela qual o presente processo continua subordinado ao regime do Código de Processo Civil na redacção anterior à aprovada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
Por outro lado, em 01.01.2008 entrou em vigor o regime do sistema de recursos cíveis aprovado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto. Nos termos dos artigos 11.º e 12.º deste diploma, esse novo regime não se aplicava aos processos pendentes naquela data, como era o caso do presente processo.
Entretanto, no dia 01-09-2013 entrou em vigor o novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
O artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, determina a aplicação imediata do novo Código às acções declarativas pendentes.
Porém, no que concerne aos recursos, o artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, dispõe sobre o regime dos recursos de decisões proferidas a partir de 1 de Setembro de 2013 nas acções instauradas antes de 1 de Janeiro de 2008, que é precisamente o caso que aqui se nos coloca (acção de 15-03-2007 e decisões de 22-09-2016 e posteriores).
Segundo esta norma, a essas decisões aplica-se o regime de recursos decorrente do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, com as alterações agora introduzidas, com excepção do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do novo Código de Processo Civil, aprovado em anexo à referida lei.
Apesar da forma relativamente complexa da redacção do preceito, o que ele significa é que aos recursos dessas decisões se aplica afinal o regime de recurso do novo Código de Processo Civil, com excepção apenas da norma do n.º 3 do artigo 671.º (dupla conforme).
B] Recurso da decisão proferida em 22-09-2016 de não aprovação do passivo das despesas de funeral:
O artigo 1353.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável aos autos, prescrevia que à conferência de interessados competia, além do mais, deliberar sobre a aprovação do passivo da herança.
O artigo 1356.º estabelecia ainda que havendo divergências sobre a aprovação da dívida, isto é, havendo interessados que aprovam e interessados que não aprovam a mesma dívida, se devia aplicar o disposto no artigo 1354.º à quota-parte relativa aos interessados que a aprovem e quanto à parte restante o disposto no artigo 1355.º.
Aquele primeiro artigo dispunha que as dívidas que sejam aprovadas pelos interessados se consideravam judicialmente reconhecidas, devendo a sentença que julgue a partilha condenar no seu pagamento. O segundo dos preceitos citado dispunha que se todos os interessados fossem contrários à aprovação da dívida, o juiz conheceria da sua existência quando a questão pudesse ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados. É o que cabe fazer.
A despesa em causa, já vimos, corresponde a custos com o funeral da inventariada e foi aprovada pelo cabeça-de-casal, herdeiro que aliás é o credor da despesa em causa. Os demais interessados não aprovaram esta dívida. Por conseguinte, cabia ao tribunal o dever de verificar a existência da dívida, decidindo pela sua existência desde que a questão pudesse ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.
Na própria decisão recorrida se afirma que as despesas do funeral se encontram documentadas a fls. 284 e 285, constando ainda a fls. 383 dos autos informação da Caixa Geral de Aposentações sobre o montante recebido pelo cabeça-de-casal a título de subsídio de funeral. Apesar disso, afirma-se na decisão recorrida que «pese embora a factura e o recibo estejam emitidos ao cabeça-de-casal, nada nos autos resulta que tal despesa tenha sido suportada por si», razão pela qual a «questão não pode ser resolvida com segurança pela análise dos documentos apresentados».
Com todo o devido respeito não pode concordar-se com este entendimento.
Havendo uma factura e um recibo em nome do cabeça-de-casal é possível deduzir com suficiente segurança que estas despesas foram contraídas por iniciativa do cabeça-de-casal e que este efectuou o seu pagamento, possuindo para o efeito o competente recibo, cuja função é precisamente a de dar quitação de um pagamento realizado pela pessoa em nome de quem se emite o recibo.
Sendo o cabeça-de-casal um dos dois filhos da inventariada e tendo o outro filho falecido antes da mãe, é de presumir que o único filho sobrevivo se tivesse encarregue de organizar o funeral da mãe que gerou tais despesas, pelo que nenhuma anomalia se detecta na situação de este se apresentar a reclamar o pagamento da correspondente despesa da herança.
O que não pode, cremos, é escamotear-se o valor da factura e do recibo com o pretexto de que se desconhece com que dinheiro o pagamento foi feito. Essa objecção é sempre possível de colocar em relação a qualquer pagamento, feito por qualquer pessoa, pelo que não lhe deve ser atribuído um valor decisivo para resolver a questão.
Acresce que se existia na herança dinheiro para pagar tais despesas e o pagamento foi feito pelo cabeça-de-casal com dinheiro da herança, a questão devia colocar-se ao nível do activo da herança, relacionando-se igualmente essa quantia, o que não sucedeu.
Assim, as despesas da herança a que se reporta a factura e o recibo juntos devem ser verificadas para efeitos do presente inventário, o que aqui se decide.
C]despacho de 03-05-2018 que indeferiu a arguição de nulidade dos despachos de 21-03-2018:
No decurso da conferência de interessados, a Mma. Juíza a quo proferiu dois despachos sobre o modo como os bens não licitados deveriam ser distribuídos para preenchimento dos quinhões dos interessados. O cabeça-de-casal arguiu a nulidade desses despachos, sustentando que os mesmos não se encontram fundamentados, foram proferidos antes do momento processual fixado para o efeito e sem previamente serem ouvidos os interessados sobre a forma à partilha, designadamente o preenchimento dos quinhões.
A Mma. Juíza a quo indeferiu a arguição da nulidade e o cabeça-de-casal vem agora interpor recurso da decisão que desatendeu essa arguição. Sendo a questão da nulidade dos despachos prejudicial ao conhecimento do respectivo mérito, conhecer-se-á previamente do recurso da decisão que desatendeu a arguição de nulidade.
Em rigor, porém, este recurso não deve sequer ser decidido.
No sistema de recursos vigente a nulidade da sentença não determina mais a anulação do processado e o regresso dos autos à fase anterior ao cometimento da nulidade. Com efeito, o artigo 665.º do Código de Processo Civil (leia-se, do novo Código de Processo Civil que por se tratar de uma norma sobre os recursos é aplicável aos autos) determina que ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação.
Assim, quando, como aqui sucede, a nulidade não é o único objecto do recurso mas apenas mais um dos fundamentos através dos quais se ataca o mérito da decisão recorrida e se reclama a sua alteração, a Relação, ainda que conheça da nulidade, deve substituir-se ao tribunal recorrido sanando a nulidade e conhecendo dos demais fundamentos do recurso.
Sucede mesmo que o tribunal de recurso pode não necessitar sequer de conhecer da nulidade da decisão recorrida e não deve mesmo conhecer desse vício se puder logo confirmar ou revogar a decisão recorrida com outro fundamento.
Por isso, como muito bem anotou no Acórdão da Relação de Coimbra de 20.12.2011, relatado por Henrique Antunes, in www.dgsi.pt, «na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 do CPC). No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC). Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso. (…) Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC)».
Por tudo isso, sendo, nesse contexto, absolutamente inútil conhecer da nulidade da decisão recorrida, não iremos conhecer da mesma, passando directamente à avaliação do mérito da decisão impugnada, como pretendido pelo recorrente.
D] despachos de 21-03-2018 sobre a distribuição dos bens não licitados:
No decurso da conferência de interessados foram proferidos dois despachos nos termos dos quais se decidiu que os bens não licitados (móveis e imóveis) seriam adjudicados aos interessados em comum, sem determinação de parte ou direito, e na proporção dos seus quinhões.
O cabeça-de-casal opõe-se a este entendimento defendendo que a ser assim, apesar de não ter sequer licitados bens de valor equivalente ao da sua quota no inventário, acaba por ficar onerado com o pagamento de tornas elevadas quando os bens não licitados podem ser distribuídos por todos os herdeiros de modo a compor a sua quota.
O artigo 1374.º do Código de Processo Civil estabelece as regras a que deve obedecer o preenchimento dos quinhões.
Nos termos da alínea a) deste preceito os bens licitados são adjudicados ao respectivo licitante, tal como os bens doados ou legados são adjudicados ao respectivo donatário ou legatário. Daqui resulta que havendo bens licitados eles devem ser adjudicados ao herdeiro que os licitou.
Se por força dessa adjudicação, ao herdeiro vierem a caber bens de valor superior à sua quota na herança, ele fica obrigado ao pagamento de tornas. Nesse caso os interessados a quem haja de caber tornas podem requerer que as verbas licitadas em excesso ou algumas delas lhes seja adjudicadas pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão, cabendo então ao licitante o direito de escolher entre as verbas que licitou aquelas que deverão preencher a sua quota, sendo as restantes adjudicadas aos herdeiros que não as licitaram mas que requereram a sua adjudicação para preenchimento das suas quotas (artigo 1377.º do Código Civil).
A segunda regra de preenchimento consta da alínea b) do preceito e reporta-se à situação de haver interessados que não licitaram bens. Nos termos dessa regra devem ser adjudicados aos não licitantes, quando possível, bens da mesma espécie e natureza dos licitados. Se isso não for possível, os não licitantes são inteirados em outros bens da herança, mas se estes forem de natureza diferente da dos bens licitados, podem exigir a composição em dinheiro, vendendo-se judicialmente os bens necessários para obter as devidas quantias.
O que esta regra nos diz é que desde que tal seja possível aos não licitantes deverão ser adjudicados bens da mesma espécie e natureza dos licitados. Trata-se, portanto, de alcançar, na medida do possível, a máxima igualação dos interessados: se há interessados que licitaram bens imóveis constituídos por prédios urbanos e a herança compreende outros prédios urbanos, os não licitados deverão ser adjudicados aos interessados não licitantes de modo a que estes recebam na herança bens da mesma natureza e espécie, ainda que de valor superior que depois deverá ser compensado através das tornas; e assim sucessivamente.
Se não houver bens da mesma espécie e natureza dos licitados para adjudicar aos não licitantes, estes serão, como não podia deixar de ser, inteirados com outros bens da herança. A regra apenas consente que se estes bens forem de natureza (já não também de espécie) diferente da dos licitados, os não licitantes possam exigir a composição dos seus quinhões em dinheiro, vendendo-se judicialmente os bens necessários para obter as devidas quantias.
A regra da alínea c) respeita à situação dos restantes bens, leia-se, dos bens que não foram licitados (os licitados são adjudicados segundo a primeira regra) e/ou aos bens que não foram afectos à igualação dos interessados não licitantes (em observância da segunda regra). É para esses que a lei institui a terceira regra: os bens restantes são repartidos à sorte entre os interessados, por lotes iguais. Para aplicação desta regra devem ser organizados lotes de bens, cuja composição deve procurar a maior igualdade possível entre os lotes (embora não seja forçoso que os lotes sejam exactamente iguais e os bens normalmente não o permitam), os quais serão depois sorteados entre os vários interessados, sendo adjudicados a cada um o(s) bem(ns) do lote(s) que lhes couber em sorteio.
Por fim, temos a quarta e última regra que consta da alínea d). Nos termos desta regra, os bens que não tenham valor são distribuídos proporcionalmente pelos interessados. É só nesta regra que encontramos prevista a possibilidade de distribuição proporcional dos bens pelos interessados. A norma não indica expressamente qual o critério dessa proporcionalidade, mas é possível entender que a norma se pretende referir à proporção da quota do interessado na herança.
Do conjunto destas regras podemos extrair algumas ideias base. A primeira é a de que o objectivo primordial da composição dos quinhões deve ser a igualação dos quinhões de cada um dos interessados, isto é, assegurar, tanto quanto o acervo hereditário o permita, que cada um deles comparticipa, na medida da sua quota, de bens das diversas naturezas e espécies que integram a herança. Se há interessados que recebem bens valiosos e da herança fazem parte outros bens valiosos, os não licitantes devem poder obter por via da partilha bens também valiosos, ainda que depois haja que fazer o acerto das quotas mediante o pagamento de tornas.
A segunda ideia é a de que não existe regra que preveja a adjudicação dos bens aos interessados em comum. Mesmo a última regra relativa exclusivamente aos bens sem valor ou incertos quando prevê a distribuição proporcional deve ser cumprida fazendo se possível a distribuição dos bens por cada interessado e não em comum (por exemplo, se houver cinco móveis sem valor e cinco interessados com quotas iguais, distribui-se a cada um dos interessados um dos bens e não os cinco bens, em comum, aos cinco interessados na proporção de 1/5).
E isso é assim porque o objectivo da partilha é acabar com a indivisão da herança (uma situação de indivisão de origem sucessória ou mortis causa) mas não é instituir uma nova indivisão (uma indivisão inter vivos de natureza contratual ou legal). Se assim fosse o processo de inventário não seria necessário para nada (ou teria apenas por objectivo a determinação dos herdeiros) e bastava a lei dizer que com a abertura da herança cada um dos herdeiros se convertia em comproprietário dos bens da herança na medida da sua quota na herança.
Por conseguinte, cremos, excepto se os próprios herdeiros acordarem[1] (ou alguns deles licitarem bens em comum) a adjudicação dos bens ou de alguns dos bens da herança em comum a mais do que um interessado e na proporção que entenderem (correspondente ou não à da sua quota), desejando constituir sobre esses bens uma situação de compropriedade ou indivisão, a adjudicação dos bens não licitados não deve ser feita de forma agregada, em comum a todos os interessados, e na proporção dos respectivos quinhões. Tal só deverá suceder quando não for possível fazer a partilha de outro modo (v.g. a herança ser constituída por um único prédio urbano indivisível).
Os princípios gerais que norteiam o processo de inventário são obviamente critérios operativos válidos e indispensáveis para interpretar e aplicar o respectivo regime, designadamente nos casos em que as soluções instituídas não permitam responder a todas as situações que se colocam. Todavia, não podem ser invocados para desvirtuar as regras legais instituídas, designadamente as que concernem ao preenchimento dos quinhões, e consentir que o intérprete faça a sua própria leitura do que considera ser justo no caso.
Em resultado das regras definidas o preenchimento dos quinhões deve começar pelos bens licitados, os quais serão adjudicados ao licitante. Pela licitação o herdeiro obtém o direito preferencial a que esses bens componham o seu quinhão, mas não obtém o direito de por esse via obrigar os outros herdeiros a verem o respectivo quinhão integrado apenas pelos restantes bens da herança. Se os bens licitados não excederem a quota do respectivo interessado, essa adjudicação é definitiva no sentido de que não determina depois o cumprimento do disposto no artigo 1377.º do Código de Processo Civil. É esse o caso dos autos[2].
Note-se que o caso não estava verificada a situação do artigo 1376.º do Código de Processo Civil que podia determinar a necessidade de elaboração do mapa informativo pelo que não se compreende porque este foi elaborado, podendo deduzir-se que o foi por se ter confundindo a situação de haver lugar a tornas – que pode ocorrer por vários motivos – com a situação de haver excesso de bens licitados – que é uma das várias situações em que pode haver lugar a tornas mas também a única situação em que há lugar à elaboração daquele mapa –.
No momento seguinte, verificando-se que existem interessados que licitaram bens que, no entanto, não excedem a respectiva quota, e interessados que não licitaram quaisquer bens haverá que proceder nos termos da segunda regra.
Em primeiro lugar, determina-se se a herança compreende bens da mesma natureza e espécie dos bens licitados. Se tal se verificar serão adjudicados aos interessados não licitantes os bens não licitados da mesma natureza e espécie dos bens licitados. Sendo vários os interessados e vários os bens nessa circunstância, formar-se-ão, para o efeito lotes o mais iguais possível e adjudica-se a cada interessado os bens de um dos lotes (se necessário por sorteio).
Não sendo possível a atribuição de bens da mesma espécie e natureza, os não licitantes são inteirados em outros bens da herança, qualquer que seja a sua espécie ou natureza[3]. Para o efeito há então que distinguir nos bens da herança aqueles que sejam da mesma natureza e espécie dos bens licitados. Havendo-os eles deverão ser adjudicados aos interessados não licitantes na medida em que «o princípio igualitário impõe, sempre que possível, que cada um dos interessados participe por igual em cada categoria de bens» (cit. Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, II Volume, 1986, pág. 256) ou «visa fazer participar cada um dos interessados em tudo quanto constitui o acervo do património indiviso, sejam bens valiosos e de venda fácil, ou bens de valor duvidoso» (cit. Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, II, 1990, pág.465).
Os bens restantes (os bens que não forem necessários para igualar o valor dos bens licitados[4]) serão repartidos à sorte entre os interessados, por lotes iguais. A licitação dá ao licitante o direito preferencial ao preenchimento do seu quinhão com os bens que licitou ou por bens que licitou, mas, havendo mais bens para partilhar que não tenham sido licitados por nenhum dos herdeiros e não havendo excesso de licitações, a regra legal instituída é a do sorteio dos restantes bens por lotes.
Ora no caso nenhum dos interessados licitou bens de valor superior ao da respectiva quota, razão pela qual, não sendo aplicável o disposto no artigo 1377.º, n.os 2 a 4, do Código de Processo Civil, estava excluída a possibilidade de a adjudicação ser feita em comum e em proporção a definir pelo juiz.
Também se verifica que todos os herdeiros são licitantes, tendo dois deles (o cabeça-de-casal e a interessada D…) licitado individualmente bens que não excedem a respectiva quota e os outros dois licitado em conjunto bens que igualmente não excedem a respectiva quota. Por conseguinte, está excluída a possibilidade de compor os quinhões segundo a segunda regra constante da alínea b) do artigo 1374.º do Código de Processo Civil[5].
Acresce que não há bens sem qualquer valor, não se colocando pois a questão de os mesmos serem distribuídos proporcionalmente pelos interessados, nos termos da alínea d) do artigo 1374.º do Código de Processo Civil.
Por fim, da herança faz parte um único prédio urbano não havendo outro da mesma natureza. Todavia, tendo esse bem sido licitado mas não em excesso não pode deixar de ser atribuído ao licitante. Por outro lado, os bens móveis não licitados são bens da mesma natureza e de idêntica espécie. Os bens imóveis não licitados são todos da mesma natureza (prédios rústicos) e igualmente da mesma espécie (prédios rústicos para produção florestal – pinhais – ou agrícola – terras – de vinho, azeite e cereais).
Por conseguinte, considerando que todos os herdeiros licitaram bens (não há não licitantes) e que em nenhum caso os bens licitados excedem a quota do licitante (não há excesso de licitações), os bens não licitados devem ser adjudicados aos interessados do modo que se passa a descrever: a) Bens móveis:
Deverão formar-se dois lotes iguais ou o mais iguais possível, atentas as características dos bens, os quais serão depois sorteados pelo cabeça-de-casal e pelo representado dos restantes herdeiros. A seguir o lote que a este sair em sorte será dividido em três novos lotes, iguais ou o mais iguais possível, os quais serão depois sorteados entre os três herdeiros por direito de representação. b) Bens imóveis:
Deverão formar-se dois lotes com os bens imóveis não licitados compostos por prédios rústicos, lotes que deverão ser iguais ou o mais iguais possível. Depois proceder-se-á ao seu sorteio pelo cabeça-de-casal e pelo representado dos restantes herdeiros. A seguir, o lote que a este sair em sorte será dividido em três novos lotes, iguais ou o mais iguais possível, os quais serão depois sorteados entre os três herdeiros por direito de representação.
A diferença entre o valor da quota de cada herdeiro e a soma dos bens que cada um licitou e que cada um irá receber do lote que lhe sair em sorteio, será inteirado através das tornas a cargo de quem recebeu em excesso e em benefício de quem recebeu a menos.
Nestes termos, procede o recurso das decisões proferidas na conferência de interessados sobre a composição dos quinhões, a qual deverá ser feita do modo que acaba de ser determinado.
E] recurso do despacho determinativo da partilha:
O despacho determinativo da partilha incluiu a decisão sobre o preenchimento dos quinhões que embora constante de despachos anteriores foi depois incorporado por remissão no despacho determinativo da partilha.
A impugnação deste despacho no recurso tem por objecto precisamente o decidido quanto ao preenchimento dos quinhões.
A procedência do recurso no tocante aos referidos despachos anteriores que se pronunciaram especificamente sobre essa matéria repercute-se directamente no despacho determinativo da partilha, que assim fica revogado na mesma medida e parte do que decidiu anteriormente.
F] recurso da sentença homologatória da partilha:
O acabado de decidir sobre a aprovação do passivo e a composição dos quinhões inutiliza os actos processuais praticados a partir do despacho determinativo da partilha, designadamente o mapa de partilha e a sentença homologatória deste.
Por conseguinte, o conhecimento do recurso da sentença (interposto aliás apenas para permitir o recurso das decisões interlocutórias anteriores) encontra-se nesse momento prejudicado e não deverá mais ter lugar.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:
a) Declaram verificada, para efeitos do presente inventário, a existência das despesas da herança reclamadas pelo cabeça-de-casal a que se reporta a factura e o recibo respeitantes a despesas com o funeral;
b) Determinam que o preenchimento dos quinhões com os bens móveis e imóveis não licitados se faça através da definição de lotes e realização de sorteios conforme acima especificado;
c) Determinam a anulação do processado a partir do mapa determinativo da partilha, o qual deverá ser reformulado em função do ora decidido, praticando-se a seguir os restantes actos processuais previstos na lei.
Custas do recurso pelo recorrente e pelos recorridos na proporção de metade.
*
Porto, 14 de Julho de 2020.
* Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 558)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]
__________________ [1] Nos termos do artigo 1352.º, n.º 1, do Código de Processo Civil na conferência de interessados (e mesmo ulteriormente, segundo Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, II, 1990, pág. 108) os interessados podem acordar entre si por unanimidade quais as verbas, e respectivos valores, que hão-de compor no todo ou em parte os seus quinhões ou consentir em que as verbas sejam sorteadas, separadamente ou em lotes, pelos respectivos quinhões. [2] Quando o interessado tiver licitado em mais verbas do que as necessárias para o preenchimento da sua quota, o artigo 1377.º do Código de Processo Civil permite aos interessados que hajam de receber tomas requerer que as verbas em excesso ou algumas delas lhes sejam adjudicadas pelo valor resultante da licitação, até ao limite dos respectivos quinhões. Se forem vários os interessados a exercer esse direito e não houver acordo entre eles sobre as verbas a adjudicar, o juiz, nos termos do n.º 4 do referido preceito, decidirá sobre o modo de proceder à adjudicação das verbas excessivamente licitadas por forma a conseguir o maior equilíbrio dos lotes, podendo para o efeito mandar proceder a sorteio ou autorizar a adjudicação em comum na proporção que indicar. É só para essa situação que a lei faculta ao juiz o poder de autorizar a adjudicação em comum em proporção a definir pelo juiz, mas ainda aí o critério é a maior igualação dos lotes a caber a cada interessado, pelo que se esta for possível mediante a adjudicação das verbas de modo singular a cada um dos interessados deve ser afastada a adjudicação em comum. [3] Quando os interessados não licitantes houverem de receber bens de natureza diferente da dos bens licitados aqueles poderão exigir a composição em dinheiro, vendendo-se os bens necessários para obter as devidas quantias (parte final do 1.º § da alínea b) do artigo 1374.º do Código de Processo Civil). [4] Para Capelo de Sousa, loc. cit, pág. 256, nota 991, os bens restantes a que se refere a alín. c) do artigo 1374.º do Código de Processo Civil, são «os bens que não sejam necessários para igualar os valores dos bens licitados ou conferidos, sempre que as licitações ou conferências não esgotem os quinhões dos partilhantes respectivos». [5] É essa diferença que torna o presente caso diferente do caso decidido no Acórdão desta Relação do Porto de 27-09-2011, Ramos Lopes, proc. n.º 2519/06.0TBSTS.P1,in www.dgsi.pt, citado pelo recorrente, pois nesse caso havia herdeiros não licitantes o que tornava aplicável a regra da alínea b) do artigo 1374.º do Código de Processo Civil de preenchimento dos quinhões, discutindo-se no aresto a medida em que aos não licitantes deviam ser atribuídos bens da mesma espécie e natureza dos bens licitados, designadamente se por essa via era possível atribuir-lhe bens que excedessem a respectiva quota tornando os não licitantes em devedores de tornas.