LENOCÍNIO
ESPECIAL COMPLEXIDADE DO PROCESSO
Sumário


O processo relativo a crime de lenocínio previsto e punido no artº 169º do Código Penal nunca pode ser declarado de especial complexidade nos termos do artº 215º, nº 1, do C.P.P., uma vez que não integra o conceito de criminalidade violenta mencionado no artº 1º al. j), do C.P.P..

Texto Integral

I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de inquérito acima identificados, dos Serviços do M.º P.º de Loulé, foi no dia 20-8-2019 realizado 1º interrogatório de arguidos detidos (…), aos quais foi aplicada, além doutras, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação e proibição de contactos, pela indiciada prática de, além de outros que agora não interessam ao caso, um crime de lenocínio simples, p. e p. pelo art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal.
Quando o M.º P.º pretendeu que o Exmo. JIC determinasse serem os autos de especial complexidade, este indeferiu tal pretensão, alegando, além do mais, que aquele crime de lenocínio simples não preenche o conceito de criminalidade violenta a que aludem os art.º 215.º, n.º 2 e 1.º al.ª j), do Código de Processo Penal (diploma do qual serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), necessária e indispensável a tal desiderato, por se ter entendido não ser tal lenocínio um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual mencionadas no referido art.º 1.º al.ª j).
O despacho em questão tem o seguinte teor:
Veio a Digna Magistrada do Ministério público, na sua douta promoção de 13/11/2019, requerer a aplicação da excepcional complexidade aos presentes autos, em virtude da quantidade de diligências já designadas, bem como aquelas que ainda se mostram pendentes.
Notificados os arguidos para se pronunciar, os mesmos nada disseram.
Apreciando.
A referência à "especial complexidade" encontra-se prevista no art.º 215.°, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, podendo ter lugar face "ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime".
Ainda, o mesmo preceito legal delimita a possibilidade de ser conferida excepcional complexidade aos crimes que se encontram previstos no n.º 2 do art.º 215.°, a saber:
"(…) em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:
a)Previsto no artigo 299.º no n.º 1 do artigo 318.º, nos artigos 319.º, 326.º, 331.º ou no n.º 1 do artigo 333.º do Código Penal e nos artigos 30.º, 79.º e 80.º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro;
b) De furto de veículos ou de falsificação de documentos a eles respeitantes ou de elementos identificadores de veículos;
c) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e equiparados ou da respectiva passagem;
d) De burla, insolvência dolosa, administração danosa do sector público ou cooperativo, falsificação, corrupção, peculato ou de participação económica em negócio;
e) De branqueamento de vantagens de proveniência ilícita;
j) De fraude na obtenção ou desvio de subsidio, subvenção ou crédito;
g) Abrangido por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima."
No que ao presente caso diz respeito, são imputados aos arguidos os seguintes crimes:
A (…), em co-autoria material, um crime de lenocínio p. e p. pelo art.º 169, n.º 1, do Cód. Penal;
A (…), em co-autoria material, um crime de trafico de estupefacientes, p. e p pelo art.º 25.°, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro;
A (…), um crime de detenção de arma proibida e de arma modificada, previsto e punido pelas alíneas c) e d) do n.º 1 do art.º 86.° da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as últimas alterações republicadas pela Lei n.º 50/2013, de 24 de Julho;
A (…), um crime de detenção de arma proibida, - previsto e punido pela alínea d) do n.º 1 do art.º 86.° da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as últimas alterações republicadas pela Lei n.º 50/2013 de 24 de Julho; e
A (…), um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01.
A respeito dos crimes de lenocínio, escreveu-se no despacho que aplicou a medida de coacção o seguinte:
"E dizemos apenas um crime de lenocínio, não obstante o numero de prostitutas que exerciam aquela que é conhecida pela "mais velha profissão do mundo ". já que entendemos que o bem jurídico protegido em tal tipo de crime não é a liberdade e determinação sexual de cada uma das mulheres, maior de idade e no perfeito estado das suas faculdades pretende exercer prostituição mas antes que o legislador ao punir todo e qualquer aproveitamento e lucro obtido à custa da prostituição de outros, pune essencialmente uma actividade, uma profissão.
Acresce dizer que, in casu encontramos perante a mera previsão do art.º 169° n.º 1 (lenocínio simples) e não a do n° 2 do referido preceito legal (lenocínio agravado).
Conforme se descreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-04­2012, Processo n.º 8/06.2GAAMT.P1, disponível na base de dados da DGSI e a jurisprudência igualmente ali citada, no tipo previsto no n.º 1 do referido preceito legal está verdadeiramente em causa um crime sem vítima, pelo que havendo uma só resolução criminosa, como se indicia nestes autos e relativamente a todos os arguidos, consuma-se a realização de um só crime de lenocínio independentemente, claro está do numero de prostitutas que possam ter exercido a referida actividade de prostituição.
Diga-se, desde já que face ao entendimento atrás exarado o crime de lenocínio não pode ser enquadrável como um crime de criminalidade violenta ou altamente organizada, na previsão do art.º 202º alínea b) e c) e alíneas j) a m) do art.º 1° ambos do Código Processo Penal. Com efeito, ao entender-se que o crime de lenocínio não tem como objecto a tutela de um bem jurídico eminentemente pessoal afastada se mostra a previsão da "criminalidade violenta"." (sublinhado nosso).
Por via disso, ao crime de lenocínio imputado aos arguidos foi judicialmente afastada a qualificação de "criminalidade violenta", não tendo o despacho sido objecto de recurso, razão pela qual tal qualificação - e sua influência nos prazos máximos da respectiva medida coactiva aplicada - se encontra fixada.
Por outro lado, o art.º 51.° do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, refere o seguinte:
"Para efeitos do disposto no Código de Processo Penal, e em conformidade com o n.° 2 do artigo 1.° do mesmo Código, consideram-se equiparadas a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integrem os crimes previstos nos artigos 21.° a 24.° e 28.° deste diploma."
Deste modo, do conceito de "criminalidade altamente organizada" encontra-se expressamente excluída a incriminação constante do art.º 25.° do Decreto-Lei n.º 15/93 ­neste sentido vd., igualmente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/09/2016, proc. n.º 247/14.2JELSB-E-S1, disponível in www.dgsi.pt.
Atento todo o exposto, nenhum dos crimes imputados aos arguidos (…) se enquadram na previsão ínsita do n.º 2 do art.º 215.°, motivo pelo qual igualmente não podem servir como justificação para a declaração de excepcional complexidade do processo.
Todavia, o crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.°, n.º 1, do Decreto-Lei n." 15/93, de 22/01, imputado a (…), já se integra na "criminalidade altamente organizada", razão pela qual poderá levar à aplicação da excepcional complexidade do processo.
Sucede, porém, que compulsado o requerimento que peticiona a declaração de excepcional complexidade, é possível concluir que as diligências investigatórias pendentes dizem respeito, essencialmente, à investigação do crime de lenocínio, bem como eventuais outros crimes, perpetrados pelos arguidos (…), relacionados com a exploração do estabelecimento (…)".
O crime de tráfico de estupefacientes, por si só, não apresenta dimensão investigatória suficiente para motivar a aplicação da excepcional complexidade. Por esse motivo, igualmente se entende não ser de aplicar tal instituto pela prática do crime por parte de (…).
Por fim, ainda que se tenha em conta toda a relação criminosa no seu conjunto, levando a efeito as pretensas ligações existentes entre os quatro arguidos, mesmo assim não se considera que o processo seja de especial complexidade.
Tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/01/2005, proc. n.º 05P3114, disponível in www.dgsi.pt. a verificação de especial complexidade num dado processo carece de ser analisada casuisticamente, devendo ser ponderado todo o processo de forma a determinar se se justifica a sua aplicação.
Ora, conforme se deixou referido no despacho judicial transcrito supra, que aplicou as medidas coactivas a (…), o crime de lenocínio em apreço foi qualificado como sendo um "crime sem vítima", razão pela qual não existem ofendidos no processo.
Por outro lado, apenas se mostram constituídos quatro arguidos, não sendo tal número suficiente para suscitar a aplicação do instituto em análise.
Por fim, não se vislumbra que os crimes praticados pelos quatro arguidos tenham um "carácter altamente organizado". De facto, a factualidade em apreço consistiu na exploração, de forma continuada ao longo de pelo menos dois anos, de uma hospedaria/residencial, no interior da qual determinadas pessoas se dedicavam à actividade da prostituição. Igualmente no âmbito de tal exploração, os arguidos (…) venderiam cocaína aos clientes, que lhes era fornecida por (…), não se retirando daí uma estrutura organizacional complexa ou de elevada ramificação.
Importa ter em consideração que o conceito de organização criminosa é totalmente distinto da complexidade investigatória. Crimes de realização simples e singular existem que, pelas suas características, implicam prolongadas e dispendiosas investigações, com resultados várias vezes infrutíferos.
Deste modo, e nos termos do art.º 215.°, n.ºs 3 e 4, do Cód. Proc. Penal, indefere-se a declaração de excepcional complexidade dos presentes autos.
(…)
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Inconformado com o assim decidido, o M.º P.º interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso é interposto do douto despacho judicial, proferido no dia 6.12.2019, Referência CITIUS nº 115229956, apenas na parte em que sustentando que o indiciado crime de lenocínio simples, p. e p. pelo artigo 169º nº 1 Código Penal, não tutela a autodeterminação sexual, por se tratar de crime sem vítima, determinou que as medidas coactivas aplicadas aos arguidos (…) – obrigação de permanência na habitação -, cessam no dia 20.12.2019 e não seis meses depois, conforme dispõe a lei, designadamente os artigos 1º al. j) e 215º nº 2 do Código Processo Penal.

2. Acresce, que de harmonia com o disposto no artigo 401º nº 2 do Código Processo Penal, o Ministério Público, não obstante já ter deduzido despacho final de acusação dentro do prazo “fixado” pelo Mmº Juiz de Instrução, no despacho recorrido, mantém o interesse em agir no presente recurso, na medida em que se pretende acautelar a salvaguarda dos prazos máximos de duração das medidas de coacção aplicadas aos arguidos nas fases subsequentes do processo – instrução, se houver, julgamento e recurso.

3. Salvo o devido respeito, mal andou o Mmº Juiz de Instrução a quo, ao considerar que o crime de lenocínio simples p. e p. pelo artigo 169º nº 1 do Cód. Penal é um crime sem vitima e que não tutela a liberdade sexual das prostitutas, mas sim apenas o aproveitamento lucrativo obtido à custa da prostituição.

4. Não sendo desconhecido pelo actual legislador, a discussão histórica doutrinária e jurisprudencial em torno de se saber qual o verdadeiro bem jurídico tutelado pela norma do artigo 169º nº 1 do Código Penal, o mesmo não excluiu expressamente este número do Capítulo V “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”, Secção I “Crimes contra a liberdade sexual” do Código Penal, na actual redacção, pelo que, ainda de harmonia, com a mais avisada jurisprudência, conclui-se que, efectivamente, o bem jurídico tutelado pela incriminação é a liberdade sexual e a autodeterminação sexual das mulheres que se dedicam à prostituição .

5. Por outro lado, sendo certo que o crime de lenocínio Simples p. e p. pelo artigo 169º nº 1 é um crime contra a liberdade sexual, punível com uma moldura penal abstracta de máximo igual a 5 anos de prisão, se enquadra, conforme dispõe o artigo 1º al. j) do Código de Processo Penal, no conceito de “criminalidade violenta”, dúvidas não restam que o prazo máximo de duração das medidas de coacção são os fixados no artigo 215º nº 2 do Código de Processo Penal e não, como o douto despacho recorrido “fixou”, o previsto no nº 1 al. a), pelo que antes da dedução da acusação, tendo em conta a aplicação das medidas de coacção de obrigação de permanência na habitação aos arguidos (…) ocorreu no dia 20.08.2019, o prazo de duração máxima não é o fixado no despacho recorrido para 20.12.2019, mas sim o de 20.02.2020.

6. O douto despacho recorrido ao aplicar, erradamente e contra lei expressa, o prazo máximo de 4 meses ao invés dos 6 meses, violou o disposto nos artigos 169º nº 1 do Código Penal, 1º al. j) e 215º nº 1 al. a) e 2 do CPP.

7. O Ministério Público pugna pela revogação do douto despacho recorrido, substituindo-se por outro que:
1º Reconheça que o crime de Lenocínio Simples, p. e p. pelo artigo 169º nº 1 do CP tutela a liberdade e autodeterminação sexual das vitimas prostitutas;
2º Que por tal crime estar inserido no Capítulo V “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”, Secção I “Crimes contra a liberdade sexual” do Código Penal, na actual redacção, está enquadrado no conceito de “criminalidade violenta” e, em obediência do disposto nos artigos 1º al. j) e 215º nº 1 e 2 do CPP, os prazos máximos das medidas de coacção para as fases subsequentes à prolação da acusação – instrução, se houver, julgamento e recurso, são os que constam do nº 2 do artigo 215º do CPP, o que se pretende acautelar com este recurso.

Termos em que deverá o presente recurso merecer provimento e, por conseguinte, ser o despacho recorrido objecto de revogação e ser, por isso, substituindo-se por outro que:
1º Reconheça que o crime de Lenocínio Simples, p. e p. pelo artigo 169º nº 1 do CP tutela a liberdade e autodeterminação sexual das vitimas prostitutas;
2º Que por tal crime estar inserido no Capítulo V “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”, Secção I “Crimes contra a liberdade sexual” do Código Penal, na actual redacção, está enquadrado no conceito de “criminalidade violenta” e, em obediência do disposto nos artigos 1º al. j) e 215º nº 1 e 2 do CPP, os prazos máximos das medidas de coacção para as fases subsequentes à prolação da acusação – instrução, se houver, julgamento e recurso, são os que constam do nº 2 do artigo 215º do CPP, o que se pretende acautelar com este recurso.
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Nenhum dos arguidos respondeu.
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Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que a única questão posta ao desembargo desta Relação é a de se o lenocínio simples, p. e p. pelo art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, é ou não um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual mencionadas no art.º 1.º al.ª j), a fim de poder integrar o conceito de criminalidade violenta ali descrito e pelo art.º 215.º, n.º 2, tornado pressuposto indispensável para que um processo se possa considerar como sendo de especial complexidade (e uma vez que a situação não cabe em qualquer outra das previsões do n.º 2 do mencionado art.º 215.º).
Vejamos:
Quanto à 1.ª parte da questão, presentemente tem sido bastante discutida na doutrina e na jurisprudência que o lenocínio simples, p. e p. pelo art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, seja ou não um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.
Para o ac. TRP de 13-2-2008, proc. 715332, www.dgsi.pt, o bem jurídico protegido no artigo 170º, n.º 1 do Cód. Penal [que no Código Penal de 95 correspondia ao actual art.º 169.º] não é a liberdade de determinação sexual. Na verdade, na actual redacção do referido preceito (contrariamente à redacção imediatamente anterior), tal crime existe, ainda que aquele que pratica a prostituição o faça livremente, sem quaisquer constrangimentos.
Se a prostituta ou o prostituto, de maior idade e no perfeito estado das suas faculdades, pretende exercer a prostituição, o favorecimento que outro fizer dessa actividade, com intuito lucrativo, não tem a ver com a sua liberdade de determinação sexual.
(…) a actual redacção do art. 170º, 1 do C. Penal, ao delimitar o tipo, recortando-o apenas em função da acção de fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, com intenção lucrativa, desligando-o de qualquer aproveitamento de situações de dependência ou carência económica, ou de qualquer outra espécie, não está a querer punir a ingerência na formação da vontade de quem se prostitui, mas apenas o aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente, não é reconhecida como plenamente lícita.
O legislador, ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, pune essencialmente uma actividade, uma profissão (“Quem, profissionalmente…”- art. 170º,1) e não uma corrupção da vontade livre.
A diferença específica entre o lenocínio simples (art. 170º, 1 do C. Penal) e o lenocínio agravado (art. 170º, 2) radica na natureza do relacionamento entre quem explora e quem se prostituiu, isto é, radica na existência ou não da corrupção da livre determinação sexual: havendo livre determinação sexual de quem se prostitui, o lenocínio é simples; não havendo essa liberdade, o lenocínio é agravado.
Também o ac. TRC de 10-7-2013, proc. 61/10.4TAACN.C1, www,dgsi.pt, quando afirma no n.º 1 do artigo 169.º não se tutela, após as reformas de 1998 e 2007, a liberdade sexual de alguém – único fundamento para a punição dos crimes contra a liberdade sexual, onde apenas deve estar em causa a liberdade e a autodeterminação de uma pessoa concreta e não qualquer opção moral sobre a vida sexual que cada um quer ter – nomeadamente de quem pratica a prostituição.
O que é tutelado no n.º 1 do citado preceito, como bem jurídico, é uma determinada concepção de vida que não se compadece com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição.
A reforma de 2007 retirou do n.º 1 do tipo a referência à prática de actos sexuais de relevo, sendo, por isso, mais claro que é apenas a facilitação à prostituição como actividade que é objecto de censura penal.
A alteração introduzida em 2007 parece reforçar a opinião de que é a prostituição o alvo único do tipo de crime, não sendo, por isso, muito nítida a natureza do bem jurídico que se pretende proteger, nomeadamente no seu n.º 1.
De acordo com a actual redacção do preceito tal crime existe ainda que aquele que pratica a prostituição o faça livremente, sem quaisquer constrangimentos.
Se a prostituta ou o prostituto, de maior idade e no perfeito estado das suas faculdades, pretende exercer a prostituição, o favorecimento que outro fizer dessa actividade, com intuito lucrativo, não tem a ver com a sua liberdade de determinação sexual.

Daí que a actual redacção do artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal, ao delimitar o tipo, recortando-o apenas em função da acção de fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, com intenção lucrativa, eliminando a exigência da exploração de uma situação de abandono ou de necessidade económica, assim como a referência à prática de actos sexuais de relevo, não esteja a querer punir a ingerência na formação da vontade de quem se prostitui mas apenas o aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente, não é reconhecida como plenamente lícita.
Ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, o legislador pune essencialmente uma actividade, uma profissão e não uma corrupção da vontade livre.
A diferença específica entre o lenocínio simples (artigo 169.º, n.º 1) e o lenocínio agravado (artigo 169.º, n.º 2) radica na natureza do relacionamento entre quem explora e quem se prostituiu, isto é, na existência ou não da corrupção da livre determinação sexual: havendo livre determinação sexual de quem se prostitui, o lenocínio é simples; não havendo essa liberdade, o lenocínio é agravado.[1]
Como escreveu o Conselheiro Manuel da Costa Andrade no voto de vencido que lavrou nos Acórdãos n.º 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018 e 178/2018 do Tribunal Constitucional, é seguramente assim a partir da reforma de 1998. Que inter alia eliminou o inciso –“exploração de situação de abandono ou de necessidade económica” – constante da versão originária (de 1982/1995). E deste modo abriu deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a infração à ofensa à liberdade sexual e deixou atrás de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar” uma prática em si mesma irrelevante e indiferente para o direito penal – a prostituição. E daí que este Mestre considere que o tipo legal em causa, o do lenocínio simples, p. e p. pelo art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, seja inconstitucional, por violação do disposto no n.º 2 do art.º 18.º da Constituição da República, o que aliás veio recentemente a ser declarado, embora que não já com força obrigatória geral, no acórdão 134/2020 do Tribunal Constitucional – o que, só por si, adensa ainda mais os critérios de exigência da declaração de especial complexidade por causa de um ilícito cuja constitucionalidade começa a ser posta em causa.
Assim e tendo em conta o nível da discussão actual sobre, por um lado, a identificação do bem jurídico no tipo de crime em causa (o do n.º 1 do art.º 169.º do Código Penal) e, por outro, as dúvidas sobre a sua constitucionalidade e, por último, ainda a fase processual em que os autos se encontram actualmente (com acusação deduzida) – e temos, pois, como concretamente não preenchido o conceito de criminalidade violenta mencionado no art.º 1.º al.ª j), do Código de Processo Penal, pressuposto indispensável a que, nos termos do art.º 215.º, n.º 2, do mesmo código, se possa declarar como de especial complexidade o presente processo.
III
Termos em que, negando provimento ao recurso e mantendo na íntegra a decisão recorrida, se decide não declarar o presente processo como de especial complexidade.
Não é devida tributação (art.º 522.º, do Código de Processo Penal)
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Évora, 14-7-2020
(elaborado e revisto pelo relator; tem voto de conformidade por parte da Exma. Desembargadora Adjunta, Dr.ª Ana Barata Brito, que não assina em virtude da actual situação de pandemia da Covid-19)

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[1] No mesmo sentido, na doutrina, entre outros, Mouraz Lopes, “Os Crimes Contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal”, Coimbra Editora, 2.ª ed., pág. 86; e Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 2.ª ed. (2007), pág. 124. E na jurisprudência, ac. TRC de 18-6-1991, , segundo o qual o bem jurídico, no crime de lenocínio, não é eminentemente pessoal. Não é a prostituta que a lei quer proteger com tal incriminação, mas apenas o interesse geral da sociedade em que haja pudor e moralidade sexual e ganho honesto. Ac. STJ de 19-10-2003, proc. 2301/03, 3ª secção: (…) protege-se o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto. Assim também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.11.90, BMJ 401º, 205.
Em sentido contrário:
Vítor de Sá Pereira e Alexandre Lafayete, “Código Penal Anotado e Comentado”, 2008, pág. 459, anot. 9: …pretende-se proteger a liberdade e a autodeterminação sexual da vítima…
M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, “Código Penal, Parte Geral e Especial”, 2018, pág. 809, anot. 5: O bem jurídico protegido pela incriminação consiste na liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição.
Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código Penal", 2015, 3.ª ed. actualizada, pág. 671, anot. 2: O bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição.
Anabela Miranda Rodrigues e Sónia Fidalgo, "Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo I (2012), pág. 813, §27: … pretendendo proteger-se – como se pretende, apesar de tudo – o bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual da pessoa. Com as quais concordam Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “Código Penal Anotado”, vol. III, 4.ª ed., pág. 523.
E na jurisprudência:
Ac. STJ de 26-2-1986, proc. 038274, www.dgsi.pt ou BMJ n.º 354, pág. 350:
II - O valor jurídico defendido na incriminação de lenocínio é o da liberdade individual no aspecto sexual.
Ac. STJ de 13-4-2009, proc. 47/07.6PAAMD-P.S1, www.dgsi.pt:
II - O crime de lenocínio é um crime que tem como objecto da tutela um bem jurídico eminentemente pessoal – “a liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição ou, por outras palavras, a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa”, arredados que foram bens jurídicos de natureza supra-individual da comunidade ou do Estado “relacionados com concepções de ordem moral enquanto fundamentadoras da incriminação de condutas”.
IV -Neste contexto o crime de lenocínio pode integrar-se no conceito de “criminalidade violenta”, na medida em que, em conformidade com a al. j) do art. 1.º do CPP, as respectivas condutas, que têm carácter doloso, se dirigem contra a liberdade das pessoas, aqui abrangida, como sua indispensável componente, a liberdade e autodeterminação sexual das pessoas.
Ac. TRP de 28-3-2012, proc. 86/08.0GBOVR.P1, www.dgsi.pt:
IX - O bem jurídico protegido com a incriminação do Lenocínio é a liberdade sexual individual da prostituta e a sua dignidade pessoal;
No mesmo sentido: ac. STJ de 5-9-2007, proc. 07P1125 e ac. TRP de 11-4-2012, proc. 8/06.2GAAMT.P1, ambos em www.dgsi.pt; ac. TRP de 7-6-1989, CJ, 1989, III-232; ac.STJ de 14-4-1983, BMJ n.º 326, pág. 322; ac. STJ de 28-3 1990, BMJ n.º 395, pág. 312. E ac. do Tribunal Constitucional n.º 144/2004, no mesmo sítio da Internet.