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ACIDENTE DE VIAÇÃO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
ALTERAÇÃO
RENÚNCIA DE DIREITOS
NULIDADE
ALIMENTOS
Sumário
I - A provisoriedade das medidas tomadas na providência cautelar de arbitramento de reparação provisória determina que, havendo alteração das circunstâncias determinantes que presidiram à primeira decisão, possam ser novamente apreciadas pelo Tribunal. II – Considerando as semelhanças e identidade entre as providências de alimentos provisórios e o arbitramento de reparação provisória, uma eventual limitação voluntária do direito da requerente desta última providência, violaria o disposto no artigo 2008º do CC, segundo o qual o direito a alimentos não pode ser renunciado. III – Assim, a indisponibilidade do direito a receber quantia certa a título de renda nos termos do artigo 388º do CPC, teria como consequência que uma eventual renúncia efetuada pela requerente em transação judicial, não pudesse agora ser obstáculo inultrapassável para a fixação de uma nova renda (sumário elaborado pelo relator).
Texto Integral
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO M… instaurou o presente procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, contra Z… , pedindo que lhe seja arbitrada a quantia mensal de € 1.279,60, a título de reparação provisória, bem como a quantia adicional de € 7.661,35 por despesas já realizadas e, ainda, a condenação da requerida no pagamento de uma quantia de € 1.000,00 por dia a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no pagamento de qualquer uma das quantias mensais a pagar.
Alegou, em resumo, ter sido vítima de acidente de viação ocorrido no dia 16.08.2017, cuja responsabilidade imputa ao condutor do veículo seguro na requerida, e que, em consequência, sofreu diversas lesões físicas, em resultado do que tem despesas acrescidas com a ajuda de uma terceira pessoa, ginásio, consultas médicas, transportes/deslocações e medicamentos, e que o valor da pensão de invalidez que aufere, no valor mensal de € 1.534,00, não é suficiente para prover o seu sustento e suportar as referidas despesas.
Mais alega que não obstante ter recebido € 50.000,00 no âmbito do procedimento cautelar de reparação provisória que correu termos sob o número de processo 219/18.8T8ORQ (atual apenso A), as despesas efetuadas até à presente data ascendem já a € 57.661,35.
A Sr.ª Juíza a quo proferiu decisão a indeferir liminarmente a providência.
Inconformada, a requerida interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e substituição por outra que admita a providência cautelar e proceda ao seu julgamento, finalizando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1) A Recorrente não se conformando com a sentença proferida em 1ª instância, dela pretende recorrer.
2) O facto da primeira providência cautelar ter terminado com uma transacção, impede o Tribunal a quo de comparar os pressupostos substantivos da primeira e segunda providência cautelares.
3) Em parte alguma da transacção da primeira providência as partes mencionaram que, a Requerente nada mais tinha a reclamar a título provisório da Requerida, ou que nada mais tinha ou queria receber a título de reparação provisória do dano, etc….
4) Não foi exarado na transacção que os € 50.000,00 eram a única quantia que a Requerente admitia receber a título provisório ou que a Requerida apenas se obrigava a pagar aquela quantia e mais nenhuma.
5) A sentença homologatória de transacção proferida no anterior procedimento cautelar não decidiu da controvérsia substancial existente entre as partes, já que foram estas que puseram fim a tal lide, por acordo alcançado entre elas.
6) O facto de se ter transaccionado na anterior providência cautelar não impede a Requerente de intentar nova providência desde que prove a necessidade da reparação.
7) A transacção é um negócio jurídico cuja substância apenas às partes diz respeito, pelo que existindo uma providencia cautelar que termina com um acordo e nesse acordo não seja dito que, nada mais pode reclamar a Requerente, esta poderá sempre intentar nova providência cautelar com os mesmos factos desde que respeitantes a datas diferentes.
8) Bastava à Requerente, como o fez, alegar e provar que os € 50.000,00 inicialmente adiantados foram já gastos, para poder peticionar nova renda ou nova quantia.
9) Efectivamente existe uma alteração concreta, objectiva e determinante que consiste no consumo total do adiantamento por conta da indemnização final, objecto da transacção.
10) Além de que é facto público e notório que decorreram já 20 meses desde a data da entrada da primeira providencia cautelar, pelo que a demora do processo principal é fundamento superveniente suficiente para permitir nova providência cautelar.
11) Caso se entenda que o teor do ponto 3 da transacção da primeira providência é facto impeditivo de repetição da providência cautelar, forçosamente tem que se concluir que o direito da Requerente é um direito indisponível e por isso não poderia de modo algum operar qualquer tipo de renuncia do mesmo.
12) Se a interpretação a dar à transacção, é de que houve uma renúncia do direito de requerer o arbitramento de reparação provisória, essa parte deverá ser declarada como não escrita.
13) Deve assim a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra admita liminarmente o requerimento inicial e julgue a presente providência cautelar com a necessária produção de prova e proferimento de douta sentença;
14) Ou caso assim não se entenda, que convalide a presente providência cautelar em “Incidente de Alteração de Providência”, admita liminarmente o requerimento inicial e julgue o incidente com a necessária produção de prova e proferimento de douta sentença;
15) A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1248º, 2008º, 483º, 505º e 506º do Código Civil, nos artigos 20º nº 5 e 64º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 3º, 290º, 401º, 403º, 404º, 405º e 388º do CPC.
Caso assim não se entenda, Subsidiariamente:
16) E não é verdade que os factos sejam exactamente os mesmos.
17) Em bom rigor a Requerente no artigo 31º, alegou uma tentativa de suicídio recente, o que reforça a necessidade de ter agora 4 consultas de psicólogo por mês e uma consulta mensal de psiquiatra, o que não tinha alegado na primeira providencia cautelar, tendo feito apenas uma referência genérica não concretizando valores ou frequência temporal.
18) Ou seja, estes factos são novos e supervenientes, pelo que em última análise, deveria o Tribunal a quo ter julgado a providência e no limite condene a Requerida numa renda mensal de pelo menos de € 280,00.
19) Deve a douta sentença recorrida ser revogada substituída por outra admita liminarmente o requerimento inicial relativamente aos novos factos e julgue a presente providência cautelar com a necessária produção de prova e proferimento de douta sentença;
20) A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1248º, 2008º, 483º, 505º e 506º do Código Civil, nos artigos 20º nº 5 e 64º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 3º, 290º, 401º, 403º, 404º, 405º e 388º do CPC.»
A requerida contra-alegou, defendendo a manutenção do decidido.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II - ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir é a de saber se perante as circunstâncias concretas do caso, se justifica o indeferimento liminar desta segunda providência cautelar de arbitramento de reparação provisória.
III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
A factualidade a considerar - que resulta dos autos de procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória que constituem o apenso A (e que correram termos no Juízo de Competência Genérica de Ourique com o processo n.º 219/18.8T8ORQ) – é a seguinte:
- A requerente instaurou anterior procedimento cautelar (apenso A) em 11.10.2018 tendo peticionado a atribuição de uma renda mensal a título de reparação provisória.
- Em 23.10.2018, as partes juntaram aos autos uma transação com o seguinte teor:
«M… e Z…,
1. A requerida Z…, (em representação e em nome da Z… Espanha) reconhece o dever de indemnizar a Requerente pelos danos que a mesma sofreu no acidente objecto dos presentes autos e que se venham a demonstrar e a fixar na competente acção principal.
2. A Requerida Z… aceita assim fazer um adiantamento por conta da indemnização que vier a ser fixada na acção principal no valor de € 50.000,00.
3. A Requerente opta por esse pagamento como adiantamento por conta da indemnização em detrimento do pagamento da indemnização em prestações mensais, requerida no presente requerimento.
4. O pagamento da supra referida quantia será efectuado no prazo de 20 dias, contados da data da entrada em juízo do presente requerimento, para o IBAN da Requerente com o nº …, contra recibo de quitação a enviar para o escritório do Ilustre Mandatário da Requerente.
5. As custas em dívida a juízo serão pagas pela Requerente e Requerida, em partes iguais, prescindindo ambas de custas de parte e procuradoria na parte disponível.»
- A transação foi homologada por sentença de 25.10.2018 e transitou em julgado.
- A requerida entregou à requerente o referido montante de € 50.000,00.
O DIREITO
Tendo sido introduzida no nosso ordenamento jurídico pela reforma processual civil de 1995/96, a providência cautelar de arbitramento de reparação provisória permite antecipar o efeito jurídico pretendido na ação principal e visa garantir a tutela do direito em situações manifestamente graves.
À semelhança do que sucede nos alimentos provisórios, esta providência reveste uma natureza vincadamente social face à comprovada insuficiência da tutela jurisdicional para prevenir todas as consequências danosas, procurando, deste modo, obviar a uma situação premente de carência, antecipando-se a satisfação do direito.
Na verdade, como escreve Marco Carvalho Gonçalves[1], «atenta a normal morosidade da justiça no que respeita à determinação da obrigação de indemnizar, associada ao desequilíbrio económico bem patente nesse tipo de ações, em que o devedor, normalmente, é a parte mais forte, esta providência cautelar permite, por um lado, evitar o protelamento da decisão final e, por outro, garantir a sustentabilidade económica do requerente, até que essa decisão revista um carácter definitivo».
Assim, dispõe o art. 388º do CPC, em conjugação com o art. 565º do CC, que como dependência da ação de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, os lesados, bem como os titulares do direito a que se refere o art. 495º, nº 3, do CC, podem requerer o arbitramento de quantia certa, sob a forma de renda mensal, como reparação provisória do dano.
O decretamento desta providência cautelar depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos:
«a) existência de indícios suficientemente fortes quanto à obrigação de indemnizar por parte do requerido;
b) verificação de uma situação de necessidade;
c) nexo de causalidade entre os danos sofridos pelo requerente e a situação de necessidade que fundamenta o recurso à tutela cautelar.» [2]
Ao processamento da providência de arbitramento de reparação provisória é aplicável o disposto acerca dos alimentos provisórios, com as necessárias adaptações – art. 389º, nº 1, do CPC.
«Assim, se as necessidades do requerente, que foram consideradas na decisão cautelar, tiverem, entretanto, sofrido alterações, não existe obstáculo legal para que seja modificada ou revogada a prestação mensal que lhe tinha sido inicialmente arbitrada.
Atentas as suas finalidades, facilmente se compreende que, mostrando-se esgotado o capital máximo fixado numa providência cautelar de arbitramento de reparação provisória e se o requerente continuar em situação de necessidade, nada obsta a que seja requerida uma nova providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, desde que se encontrem preenchidos os requisitos de que a lei faz depender o seu decretamento»[3].
É também este o entendimento de Abrantes Geraldes[4], quando refere, a propósito da providência de alimentos provisórios, que «a especial natureza do direito e da correspectiva obrigação, a variação temporal dos factos que interessam para a fixação da justa medida ou a necessidade de fomentar a justiça material, por forma a compatibilizar as carências efectivas com as reais possibilidades dos diversos sujeitos, conduziram o legislador a passar para segundo plano os objectivos de segurança e de certeza jurídica que rodeiam a figura do caso julgado e a privilegiar os valores da justiça e da equidade».
Acrescenta, porém, que «de acordo com o art. 2012.º do CC, não é qualquer modificaçãoda matéria de facto oportunamente considerada que deverá servir de pretexto para a apresentação de um pedido de alteração. Apenas a modificação das “circunstâncias determinantes”para a fixação e quantificação da prestação.
Esta exigência assume-se como um travão a pretensões injustificadas, assentes em motivos irrisórios, de forma a dissuadir qualquer dos interessados e perturbar, sem motivo sério, a estabilidade da decisão e a actividade judicial»[5].
De igual modo assim entendeu o acórdão da Relação do Porto de 04.07.2007[6], segundo o qual «a provisoriedade das medidas tomadas na providência cautelar de reparação provisória, determina que, havendo alteração das circunstâncias determinantes que presidiram à primeira decisão, possam ser novamente apreciadas pelo tribunal», acrescentando que cumpre «ao lesado a alegação e prova dos factos que apontam para a verificação concreta da modificação das circunstâncias e justificativas da alteração da medida, talvez a processar no próprio procedimento cautelar, como incidente de alteração da providência».
Escreveu-se na decisão recorrida:
«Acontece que, cotejando-se e confrontando-se o requerimento inicial do Apenso A com o requerimento inicial do procedimento agora em apreço, se verifica que a factualidade nuclear é a mesma, não se vislumbrando – por total ausência de alegação – qualquer situação concreta e objetiva superveniente e determinante que possa vir a justificar agora uma alteração da transação alcançada pelas partes (transação essa que para estes efeitos reveste o mesmo valor que uma providência decretada por sentença). Note-se que, mesmo o aumento para € 1.000.00 do valor da renda, já havia sido invocada pela Requerente no procedimento cautelar pretérito e, por conseguinte, levado em consideração no acordo alcançado pelas partes. Sublinhe-se ainda que, a mera circunstância de o capital antecipado pela Requerida se ter esgotado, por si só e desacompanhada de outros fundamentos - repita-se - supervenientes e determinantes, não pode em nossa ótica estribar uma alteração aos termos da transação, pois, a assim não se entender, sairiam frustrados o desiderato de tal acordo e a expetativa das partes, maxime, da Requerida.»
Não se afigura totalmente exata a afirmação de que não foi alegada “qualquer situação concreta e objetiva superveniente e determinante que possa vir a justificar agora uma alteração da transação alcançada pelas partes”.
Com efeito, alegou a requerente, no artigo 31º do requerimento inicial desta providência, “continuar a necessitar de acompanhamento de psicólogo, e agora ainda mais atenta uma tentativa de suicídio recente, pagando por mês € 200,00 (€ 50,00 x 4 consultas mensais) e ainda € 80,00 na consulta mensal de psiquiatria”, ao passo que na primeira providência, limitou-se a requerente a alegar, de forma genérica, necessitar “de acompanhamento de psicólogo, em consultas quinzenais a realizar no Hospital de São José”.
Por outro lado, a alegação de que se mostra esgotado o capital antecipado pela requerente, não pode, no caso concreto, deixar de assumir a relevância que a decisão recorrida não lhe atribui, até porque parte do capital adiantado pela requerida, após a celebração da transação, ter-se-á destinado a pagar dívidas contraídas pela requente (cfr. art. 24º do requerimento inicial da primeira providência).
Ademais, o facto de a requerente ter aceitado no ponto 3 da transação o adiantamento da quantia de € 50.000,00 por conta da indemnização final que vier a ser fixada na ação principal e ter optado por esse pagamento em vez do pagamento em prestações mensais, não pode ser interpretado no sentido da mesma ter renunciado a receber qualquer outra quantia ou renda a título de reparação provisória de danos decorrentes do acidente de viação em causa.
Ainda que assim não fosse – o que não se concede -, fazendo apelo às semelhanças e identidade entre os alimentos provisórios e a reparação provisória, podemos afirmar que a limitação voluntária do direito da requerente violaria o disposto no art. 2008º do CC, segundo o qual o direito a alimentos não pode ser renunciado, pelo que a indisponibilidade do direito a receber quantia certa a título de renda do art. 388º do CPC, teria como consequência que a renúncia efetuada pela requerente não pudesse agora ser obstáculo inultrapassável para a fixação de uma nova renda, pelo que seria de aplicar também aqui o art. 2008º e considerar que se trataria de um bem indisponível e portanto ter-se aquela referida cláusula inserta na transação como não escrita, por violadora daquele normativo[7].
Também o facto de o julgamento da ação principal estar designado para o próximo dia 15.10.2020[8], não deve obstar a que se apure desde já, no âmbito da presente providência, a real situação de necessidade da requerente, considerando, nomeadamente, as novas despesas indicadas, até porque não é de todo seguro que o julgamento se venha a realizar naquela data.
O recurso merece, pois, provimento, impondo-se a revogação da decisão recorrida, com o consequente prosseguimento do processo até decisão final.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, devendo aceitar-se o requerimento inicial e prosseguir a providência.
Custas pela recorrida.
*
Évora, 14 de julho de 2020
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Tomé Ramião (2º adjunto)
_______________________________________________
[1] Providências Cautelares, Almedina, 2019 - 4.ª edição, p. 316.
[2] Ibidem, p. 318.
[3] Ibidem, p. 326.
[4] In Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, 4.º edição Revista e Actualizada, Almedina, 2010, p. 132.
[5] Ibidem.
[6] Proc. 0752894, in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. o citado acórdão da Relação do Porto de 04.07.2007.