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CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA E INVALIDEZ
NULIDADE
INFORMAÇÕES OMITIDAS OU INEXACTAS
Sumário
I - O contrato de seguro de vida com cobertura de invalidez total e permanente é nulo, por inexistência do risco, se no momento da sua celebração o tomador do seguro já se encontra numa situação de invalidez permanente. II - Porém, essa circunstância não se deduz de modo automático da circunstância de já estar diagnosticada ao tomador de seguro uma doença que só mais tarde vem a suscitar o estado de invalidez permanente. III - A aposição da assinatura num documento representa a assunção da autoria e/ou a vinculação aos termos do documento. IV - Provando-se que o tomador do seguro não efectuou o preenchimento do questionário médico da proposta de seguro mas que a assinou já preenchida, ele fica vinculado pelas respostas ao questionário excepto se demonstrar que as respostas foram preenchidas pelo beneficiário do seguro sem lhe fazer quaisquer perguntas para obter a informação a levar às respostas.
Texto Integral
Recurso de Apelação ECLI:PT:TRP:2020:7365.13.2TBVNG.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório: B… e mulher C…, contribuintes fiscais n.º ……… e ………, respectivamente, residentes em …, Vila Nova de Gaia, intentaram acção judicial contra D…, SA, pessoa colectiva com a matrícula e a identificação fiscal n.º ………, com sede em Lisboa, e contra E…, SA, pessoa colectiva com a matrícula e a identificação fiscal n.º ………, com sede no Porto, pedindo:
. a condenação das rés a reconhecer (i) que o autor está em situação de invalidez permanente com impossibilidade de angariar meios de subsistência; (ii) que a situação da incapacidade é irreversível; (iii) a 1ª ré a pagar ao 2º réu o remanescente do empréstimo do autor ainda em dívida, a contar da data em que ao autor foi reconhecida a situação de reforma por incapacidade permanente; (iv) o 2º réu pagar ao autor as prestações recebidas desde tal data, incluindo a quota-parte do prémio de seguro, acrescidas de juros à taxa legal.
Alegaram para o efeito que contrataram com o réu banco um mútuo para aquisição de habitação própria, no valor de € 79.400,00, e, por exigência deste, com a ré seguradora um seguro de vida, na modalidade de adesão a seguro de grupo, para garantir o pagamento do empréstimo, em caso de invalidez ou morte de qualquer deles. Posteriormente uma Junta Médica da Segurança Social atribuiu ao autor, por motivos de doença, uma incapacidade de 66%. O autor dirigiu-se ao banco a comunicar a situação para efeito do seguro, mas foi-lhe comunicado não dispor das condições exigidas na apólice por alegadamente a sua incapacidade não ser total. Os autores não tomaram conhecimento das condições gerais ou especiais da apólice do seguro, visto que elas não lhes foram lidas, exibidas, entregues ou enviadas posteriormente à subscrição da proposta de contrato, e apenas têm conhecimento do que consta do certificado de seguro: morte ou invalidez permanente, entendendo por invalidez permanente a situação de por falta de saúde não mais poder exercer a sua profissão ou outro trabalho remunerado do mesmo género.
O réu banco contestou a acção, alegando que para efeito da celebração do contrato de seguro, cada um dos autores preencheu os impressos próprios relativos aos seus antecedentes de saúde e recebeu as condições gerais e especiais do contrato de seguro que iam celebrar, delas tomando conhecimento, tendo-lhe sido prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre as garantias e exclusões. Impugna ainda os demais factos alegados atinentes ao sucedido após a celebração dos contratos.
A ré seguradora contestou alegando que as condições gerais e especiais do contrato foram entregues aos autores, o seu conteúdo foi-lhes explicado e foram-lhe prestados todos os esclarecimentos sobre coberturas, garantias e exclusões, conforme os mesmos declararam na proposta de adesão; a contratação da cobertura do risco foi aceite com base nas declarações prestadas na proposta de seguro e no pressuposto de que as declarações efectuadas não padeciam de incorrecções ou omissões; a ré nunca recebeu qualquer participação de sinistro por parte dos autores, desconhecendo em absoluto a razão de ser desta acção, bem como a invalidez que alegadamente afecta o autor, a qual não preenche o conceito de invalidez total e permanente das condições da apólice. Mais impugna os demais factos alegados pelos autores.
Após a realização da audiência de julgamento e estando o processo concluso para sentença, foi determinada a reabertura da discussão e ordenada oficiosamente a realização de exame médico-legal ao autor.
Junto o respectivo relatório, a ré seguradora apresentou um articulado superveniente alegando que através do referido relatório tomou conhecimento que em 1994 o autor padecia de “policemia vera” de risco intermédio para fenómenos trombóticos, estando a ser medicado a essa patologia, facto que omitiu aquando da subscrição do seguro em 2007, sendo certo que se a ré tivesse conhecimento dessa situação teria aceite a cobertura do risco de morte com agravamento do prémio em 400% e teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente. Tomou igualmente conhecimento que o autor desde 2004 faz coagulação oral por trombose venosa profunda nos membros inferiores, que em 2001e 2003 foi seguido em consultas de Cardiologia por apresentar hipertensão arterial com repercussão cardíaca e que em 2004 esteve 42 dias de baixa médica não tendo sido explicado o seu motivo. Todas estas situações eram do conhecimento do autor e foram omitidas, deliberada e dolosamente, no preenchimento da proposta de adesão ao seguro, revelando que a invalidez actual resulta de doença pré-existente não comunicada à seguradora. Se as mesmas tivessem sido declaradas na proposta de adesão a ré teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente.
O articulado superveniente foi admitindo e no exercício do contraditório os autores responderam que não foram eles que preencheram o formulário da proposta de seguro, tendo-se deslocado ao escritório de uma colaboradora do E… para tratarem da “papelada” do empréstimo bancário e esta pediu-lhes apenas para assinarem a papelada, entre a qual se encontraria a proposta de seguro, já integralmente preenchida, indicando-lhes o local das assinaturas, sem lhes fazer qualquer pergunta; acrescentam que à data da celebração do contrato o autor fazia a sua vida normal, desenvolvendo um trabalho duro como fundidor, ocupava as horas vagas na agricultura e tinha um estado de saúde perfeitamente estabilizado, sentia-se bem e tinha a hipertensão perfeitamente controlada.
Passados mais de quatro anos sobre o seu encerramento, a audiência de julgamento foi reaberta e sete meses depois da abertura de nova conclusão para sentença foi, por fim, proferida sentença, julgando a acção «totalmente procedente, por provada, … condenando a 1ª Ré “D…, SA”, a pagar ao 2º Réu “E…, SA” as prestações do empréstimo bancário vencidas desde 2 de Janeiro de 2013 até atingir o capital seguro. Caso haja remanescente do capital seguro, condena-se a 1ª Ré a entregar o montante respectivo aos AA., seus beneficiários».
Do assim decidido, a ré seguradora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
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Os recorridos responderam a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
Se bem interpretamos as alegações de recurso, a recorrente suscita duas questões distintas, embora conexas, que caberá agora decidir:
i) Saber se a situação de invalidez em que se encontra actualmente o autor tem origem numa patologia pré-existente à celebração do contrato de seguro, conhecida do autor e não informada por este e, na afirmativa, se essa situação gera a nulidade do contrato de seguro.
ii) Saber se ao apresentar a sua proposta de adesão ao seguro de grupo o autor escondeu à seguradora informações sobre o seu estado de saúde por si conhecidas e essas informações eram relevante para a celebração do contrato ou para os termos do mesmo e, na afirmativa, qual a consequência dessa omissão de informação.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1. Em 26 de Abril de 2007, através de escritura pública, os autores celebraram com o Banco réu, através de uma agência em Vila Nova de Gaia, um mútuo com hipoteca destinado a aquisição de habitação própria, no valor de € 79.400,00.
2. Para o empréstimo, o 2º réu exigiu que os autores subscrevessem um seguro de vida que ficasse a garantir o reembolso do capital, tendo sugerido a modalidade de adesão a seguro de grupo.
3. A proposta de adesão foi subscrita pelos autores a 22-03-2007, e a 1ª ré aceitou e emitiu o contrato de seguro de vida associado ao crédito à habitação contraído junto do 2º réu, identificado pelo certificado individual n.º …….. (apólice de grupo n.º …….), com início em 26-04-2007, e coberturas de morte ou invalidez total e permanente para o capital inicial de € 79.400.
4. O tipo de seguro contratado é na modalidade de seguro de adesão ou de grupo, em que a pessoa segura é cada um dos autores, o banco mutuante o tomador e beneficiário, mediante o qual a 1ª ré se obrigou a pagar ao banco mutuante, 2º réu, em caso de morte ou invalidez de qualquer dos autores, o valor do mútuo em débito.
5. O prémio do seguro contratado (anual) era pago em 12 mensalidades, incorporadas no pagamento da prestação do empréstimo, estando os autores em dia no cumprimento dessas prestações.
6. Após submissão a Junta Médica, foi atribuída ao autor marido pela Segurança Social uma incapacidade de 66%, e reconhecida a situação de reforma em 02-01-2013.
7. O autor marido nasceu em 28-06-1965, era metalúrgico de profissão, não está ao trabalho desde 2011, e o único rendimento de que agora dispõe é o da pensão de reforma paga pela Segurança Social, no montante de €379,04.
8. Consta do art. 6º das condições especiais da cobertura de invalidez total e permanente que o Segurado deve solicitar à Seguradora, por escrito, a verificação da invalidez total e permanente, nos 60 dias imediatos à constatação da mesma, enviando os seguintes documentos: a) Relatório do médico ou médicos assistentes, dando informações sobre o início e evolução da invalidez, devendo ser clinicamente comprovada com elementos clínicos objectivos, e declarar a pessoa segura como incapacitada total e definitivamente para o exercício de uma qualquer actividade remunerada; b) Descrição detalhada da actividade profissional exercida pela pessoa segura antes da invalidez.
9. Para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os autores contactaram uma terceira pessoa que tratou da documentação necessária, esclarecendo-se que acompanhou os autores ao banco, onde estes subscreveram os documentos que lhes foram apresentados, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida.
10. Algum tempo após a dita subscrição, e já depois da concessão do empréstimo, os autores receberam pelo correio o certificado de seguro de vida.
11. Em 2011, o autor começou a ter queixas de cefaleias, tonturas, mialgia e astenia e inchaço na perna esquerda, com situações de febre, bem como um cansaço permanente.
12. Deixou de ter condições físicas para trabalhar, entrando em baixa médica.
13. O autor sofria de “uma doença no sangue”, em virtude da qual tinha de se submeter regularmente a flebotomias.
14. Foi referido ao autor, em data indeterminada, que tal doença não tem cura e há um risco de progressão para neoplasia ou leucemia.
15. A partir de 2011, o autor teve de abandonar todas as actividades que exigem esforço, por não ter condições físicas para as exercer, precisando de repousar o mais que puder.
16. O autor não tem habilitações escolares e técnicas que lhe permitam granjear trabalho que dispense a força física.
17. Era convicção do autor de que preenchia os pressupostos de accionamento do seguro de vida, e por isso dirigiu-se ao balcão do banco, onde lhe foi comunicado não dispor das condições exigidas na apólice por alegadamente a sua incapacidade não ser total.
18. Os autores não tomaram conhecimento das condições gerais ou especiais da apólice do seguro, não lhes tendo sido lida nem explicada qualquer cláusula da apólice ou das condições, designadamente a respeitante à invalidez total e permanente.
19. Foram entregues à pessoa segura as condições gerais e especiais do contrato.
20. A ré aceitou a contratação da cobertura do risco com base nas declarações constantes da proposta de adesão subscrita pelos interessados, não tendo sido necessário solicitar quaisquer outras informações relativas ao estado de saúde, de acordo com os critérios internos de conjugação de idade e capital em risco.
21. Através da proposta de seguro, dados das pessoas seguras e respectivos questionários médicos e declarações de saúde, a ré avalia e aceita os riscos garantidos ao abrigo dos contratos de seguro de vida.
22. Os seguros foram aceites no pressuposto de que as declarações constantes da proposta não padeciam de incorrecções ou omissões que, no futuro, se fosse esse o caso, poderiam originar a resolução do contrato ou a cessação das garantias conferidas, inclusive, numa eventual participação de sinistro.
23. Em 04-01-2013 a ré recebeu um pedido de cópia do contrato de seguro de vida, subscrito pelo autor, tendo em 09-05-2013 remetido ao autor cópia das condições gerais, especiais e particulares.
24. A ré nunca recebeu qualquer participação de sinistro por parte dos autores.
25. Os autores assinaram pelo seu próprio punho o documento onde consta que: «São exactas e completas as declarações por mim prestadas e que tomei conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do(s) presente(s) contrato(s), tendo-me sido entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, para delas tomar conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões com as quais estou de acordo». «Tanto o tomador do seguro como a Pessoa Segura declaram ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar, bem como das possibilidades de realização de Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico que se tornem necessários pela conjugação do capital com a idade da Pessoa Segura ou pela existência de outros seguros de vida, pelo que as garantias do seguro de vida só serão accionadas após aceitação pela D…, SA e comunicação ao Tomador de Seguro/Pessoa Segura».
26. Nunca os autores participaram por escrito ao banco a ocorrência de qualquer sinistro.
27. A ré não deu seguimento ao procedimento de justificação e reconhecimento do direito às garantias contratuais por não ter uma participação escrita, e não pôde constatar qualquer situação de invalidez que afecte o autor.
28. Constatação essa que teria obrigatoriamente de ser efectuada através da comprovação cumulativa do impedimento do exercício de uma actividade remunerada (documento da Segurança Social ou de outra entidade oficial com a atribuição de pensão de invalidez) e possuir um grau de desvalorização superior a 66,6% determinado com base na Tabela Nacional de Incapacidades – Atestado Médico de Incapacidade Multiusos) – art. 1º, al. e) das condições especiais da cobertura de invalidez total e permanente.
29. O autor foi remetido em 1994 para consulta de Hematologia Clínica para estudo de “poliglobulia”.
30. O estudo efectuado na consulta externa da referida especialidade no Centro Hospitalar … foi compatível com “policemia vera” de risco intermédio para fenómenos trombóticos.
31. O autor iniciou medicação nesse ano, tendo em 1996 alterado a medicação, sempre associado a flebotomias.
32. Caso a ré tivesse conhecimento destes factos, teria o contrato de seguro sido aceite com um agravamento de 400% do prémio na cobertura de morte, e teria sido recusada a cobertura de invalidez total e permanente.
33. Desde 2004, o autor faz coagulação oral por trombose venosa profunda nos membros inferiores.
34. Em 2003 e 2001, o autor foi seguido na consulta externa de Cardiologia do mesmo Hospital, por apresentar hipertensão arterial com repercussão cardíaca.
35. Trata-se de outro factor que agravaria a cobertura de morte já que a invalidez total e permanente seria recusada.
36. Verifica-se pré-existência de doenças que motivaram a actual invalidez, cobertura que teria sido recusada aquando da aceitação do contrato de seguro, pela existência dos antecedentes clínicos do autor.
37. Os antecedentes clínicos do autor eram do seu perfeito conhecimento e foram omitidos deliberadamente pelo autor, quer na proposta de adesão, em 2007, quer na petição inicial.
38. Se as referidas patologias tivessem sido declaradas na proposta de adesão (o autor respondeu negativamente a todas as questões do questionário médico…), condicionavam a análise e aceitação do risco, sendo que a ré teria recusado a cobertura de invalidez total e permanente.
39. Nenhum dos autores preencheu o formulário/proposta de seguro.
40. Os sinais apostos nos quadrados correspondentes aos antecedentes e estado de saúde não são do punho do autor nem da sua mulher e não lhes foram previamente feitas quaisquer perguntas para o preenchimento desses quadrados.
41. Os autores não têm consciência de qualquer terem incorrido em qualquer omissão na subscrição do contrato de seguro: à data, o autor fazia um trabalho duro, como fundidor por conta de outrem, ocupava horas vagas na agricultura no seu terreno e tinha um estado de saúde perfeitamente estabilizado, sentindo-se bem.
42. Os problemas de saúde que teve em 1994 não afligiam o autor, pois a sua hipertensão estava perfeitamente controlada, e fazia a sua vida normal, com trabalho duro e esforçado.
IV. O mérito do recurso:
Breve enquadramento:
A presente acção tem como causa de pedir um contrato de seguro de grupo do ramo vida, através do qual a ré seguradora, em resultado da aceitação da proposta de adesão dos autores, se obrigou a pagar ao banco réu um montante indexado ao valor em dívida num contrato de mútuo para aquisição de habitação própria celebrado pelos autores com este banco, no caso de se verificarem certos eventos relativos às pessoas dos autores, mais concretamente, no que interessa para efeitos da acção, a sua invalidez permanente.
O contrato de seguro é um contrato bilateral, de execução continuada e de adesão que pode ser definido como a convenção através da qual uma das partes – o segurador – se obriga, mediante retribuição – o prémio – paga pela outra parte – o segurado – a assumir um risco e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.
É ainda um contrato aleatório pois as partes submetem-se a uma álea, à possibilidade de ganhar ou perder, e oneroso na medida em que apesar de ambas as partes estarem sujeitas ao risco de perder, no final de contas só uma virá a ganhar – cf. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra, 2005, pág. 403 -.
Nas palavras de Moitinho de Almeida, in O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Lisboa, págs. 23-24, o contrato de seguro é «aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos ou, tratando-se de evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou renda ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de pretensão a realizar em data determinada».
Na data em que o contrato a que respeitam os autos foi celebrado vigoravam ainda as disposições legais anteriores ao regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, designadamente as do Código Comercial de 1888.
Nos termos do artigo 3.º do citado Decreto-Lei as disposições do regime jurídico do contrato de seguro aplicam-se aos contratos de seguro com renovação periódica - é o caso do presente que foi celebrado por um ano com renovações automáticas por igual período até ao final do contrato de mútuo que tem por referência - a partir da primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do Decreto-Lei, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente as constantes dos artigos 18.º a 26.º, 27.º, 32.º a 37.º, 78.º, 87.º, 88.º, 89.º, 151.º, 154.º, 158.º, 178.º, 179.º, 185.º e 187.º do regime jurídico do contrato de seguro.
Por conseguinte, estando em causa na acção precisamente as circunstâncias e os vícios na formação do contrato, as disposições do regime jurídico do contrato de seguro não são ainda aplicáveis ao caso.
Nos termos do artigo 426º do Código Comercial, o contrato de seguro era um contrato formal, devendo ser reduzido a escrito num instrumento que constituía a apólice de seguro, a qual devia enunciar, além do mais, o objecto do seguro, os riscos cobertos e, em geral, todas as condições estipuladas pelas partes.
Além disso, nos termos dos artigos 427º e 3.º do mesmo diploma, o contrato de seguro regia-se pelas estipulações e cláusulas da respectiva apólice não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do próprio Código Comercial e, subsidiariamente, ainda pelas regras do próprio Código Civil.
Este tipo contratual encontra-se especialmente subordinado às imposições normativas do princípio da boa fé, devendo a seguradora e os proponentes do contrato de seguro orientar as respectivas condutas, na fase pré-contratual tal como depois na fase do cumprimento do contrato, segundo os ditames de um correcto proceder, característica que leva a doutrina e a jurisprudência a qualificar o seguro como um contrato de «Uberrima Fides» - v.g. Luis Poças, in O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, Coimbra, 2013, pág. 36 e seg. -.
Para Mafalda Miranda Barbosa, in Causalidade no universo dos seguros: o não cumprimento da declaração inicial de risco e o seu regime …, www.revistadedireitocomercial.com, «à luz da boa-fé, um contraente honesto, leal e correto oferecerá à contraparte a informação que se situa na sua esfera pessoal e que pode ser relevante para a decisão de contratar e para a conformação dos termos da contratação (..). A declaração inicial de risco deve ser lida a essa luz, como uma exigência da boa-fé (..). É, aliás, a boa-fé que nos deve guiar na modelação do tipo de informação que deve ser prestada. As informações razoavelmente tidas por significativas são aquelas que um contraente médio, agindo de boa-fé, colocado na situação do real tomador do seguro, pode considerar como tal, o que significa que a boa-fé, enquanto padrão normativo de conduta, nos oferece um critério objectivo (embora mitigado) de determinação do conteúdo da declaração inicial do risco».
No âmbito dos contratos de seguro as informações sobre o objecto a que respeita o risco a segurar são essenciais para a formação e a execução do contrato. Por isso, quem celebra um contrato de seguro tem o dever de informar a seguradora de todos os factos ou circunstâncias que possam influenciar a decisão da seguradora no tocante à celebração do contrato ou à definição das respectivas condições. É o chamado dever de declaração inicial do risco, regulado no artigo 429.º do Código Comercial.
Segundo Luís Poças, in O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro, Coimbra, 2013, pág. 47, nota 123, considerando que, «no plano estritamente jurídico – e porque o risco é (…) um elemento fundamental do contrato, dependendo as condições deste da aferição daquele pelo segurador –, o papel de proponente é formalmente assumido pelo candidato a tomador do seguro, que apresenta ao segurador uma declaração negocial (proposta contratual), em regra mediante o preenchimento e subscrição de um formulário previamente fornecido pelo segurador, onde aquele concretiza algumas das condições pretendidas e descreve o risco que pretende fazer segurar, concluindo-se o contrato com a aceitação do segurador».
A declaração inicial do risco por parte do tomador do seguro ou pelo segurado na proposta de seguro tem por objecto o conjunto de informações destinadas a permitir à seguradora calcular o risco e decidir sobre a aceitação da proposta e sobre o valor do prémio pelo qual está disposta a assegurar esse risco.
O proponente do seguro é normalmente quem dispõe de um conhecimento mais aprofundado acerca dos dados ou elementos relevantes do risco que pretende cobrir com o contrato de seguro proposto. A seguradora, sendo embora a parte económica, técnica e socialmente mais forte na relação contratual, encontra-se particularmente dependente das informações que lhe sejam transmitidas pelo proponente do seguro.
Para o efeito, o proponente deve responder com verdade às perguntas do questionário que lhe é apresentado pela seguradora para ser preenchido. Esse dever pressupõe naturalmente que a pessoa tenha conhecimento dos factos ou circunstâncias relevantes, sendo censurável somente a omissão ou falseamento do que era do seu conhecimento.
A esse respeito considera Júlio Gomes, in O Dever de Informação do (candidato a) do tomador do seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de Abril - Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. II, Coimbra, 2011, pág. 405 e seguintes que que a solução que confina o dever de esclarecimento às circunstâncias conhecidas do segurador é a mais razoável; não se trata de impor ao tomador do seguro ou ao segurado um ónus de averiguação ou de investigação, convertendo-os no “segurador do segurador”, mas apenas de consagrar o dever de declarar com exactidão aquilo que se sabe, o que se conhece – apud Albuquerque Matos, in O Regulamento de protecção de dados pessoais (2016/679) no contexto dos desafios da actividade seguradora - o caso particular dos seguros de saúde, Revista Online Banca, Bolsa e Seguros, n.º 3, pág. 68 -. Existe no entanto doutrina que defende que o dever de esclarecimento deve incluir ainda as circunstâncias cognoscíveis, as circunstâncias que o tomador do seguro, actuando com a necessária diligência, deveria conhecer.
O artigo 429º do Código Comercial, aplicável ao caso, sob a epígrafe «nulidade do seguro por inexactidões ou omissões», dispunha o seguinte:
«Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tomam o seguro nulo. § único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio.»
Esta estatuição consagrava pois a invalidade do contrato de seguro nos casos em que o segurado fizesse declaração inexacta ou reticente sobre factos ou circunstâncias que conhecia e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato.
Declarações inexactas serão as que contém afirmações de factos que não correspondem, total ou parcialmente, à verdade; declarações reticentes são aquelas que revelam apenas uma parte dos factos e omitem propositadamente algo que se devia ou podia dizer e que é assim deixado na penumbra para não ser apreendido pelo destinatário.
Confrontada com a desactualização da terminologia jurídica do preceito, a jurisprudência assumiu de forma consensual que a cominação prevista no preceito corresponde à figura da anulabilidade do contrato, razão pela qual carece de ser arguida pelo interessado com legitimidade para o fazer, não pode ser conhecida oficiosamente, a sua invocação está sujeita a prazo de caducidade e o vício pode ser objecto de convalidação nos mesmos termos da anulabilidade dos negócios jurídicos em geral.
Afirma-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2012, processo n.º 64/09.TBSJM.P1.S1, in www.dgsi.pt, que os tribunais superiores foram ao longo do tempo consolidando o entendimento de considerar ilegítima a invocação da invalidade contratual, por parte do segurador, em determinadas circunstâncias, designadamente: a) Quando falte um nexo de adequação entre a actuação do segurado ou do tomador e o resultado; b) Quando o segurador revele inércia na sua actuação posterior; c) Quando tenha havido omissão manifesta de deveres de diligência por parte do segurador ou, em geral; d) Sempre que tenham sido adoptados comportamentos susceptíveis de integrarem a figura do abuso de direito, nas suas diversas dimensões, com especial destaque para comportamentos contraditórios, criação de expectativas legítimas ou demora irrazoável na detecção ou superação das situações de desconformidade entre o que fora declarado pelo tomador do seguro ou pelo segurado e a realidade existente à data das declarações.
Assinala-se no mesmo Acórdão que «a verificação do referido vício depende da existência de um nexo de causalidade entre as inexactidões ou reticências do tomador do seguro sobre os factos e circunstâncias relevantes e a outorga do contrato ou, ao menos, sobre o seu clausulado, máxime, sobre as exclusões do âmbito de cobertura ou sobre o prémio a suportar pelo tomador em função do risco calculado assumido pelo segurador. Como se refere no Ac. do STJ, de 4-3-04, CJSTJ, tomo I, pág. 102, não é qualquer declaração inexacta ou reticente que desencadeia a possibilidade de anulação do seguro, sendo indispensável que a inexactidão influa na existência e condições do contrato, de sorte que o segurador ou não contrataria ou teria contratado em diversas condições se as conhecesse, sendo, assim, relevantes apenas as declarações inexactas ou reticentes respeitantes a factos ou circunstâncias que servem para a exacta apreciação do risco. […] Acresce que recai sobre o segurador o ónus da prova do nexo de causalidade entre as informações inverídicas ou reticentes e a outorga do contrato de seguro, dependendo a procedência da defesa assente na invalidade da demonstração de que o segurado exarou declarações falsas ou reticentes de factos ou circunstâncias dele conhecidas susceptíveis de influir na formação do contrato e suas condições, enquanto relacionadas com a avaliação do risco a assumir…»
Isto posto entremos agora na análise das questões suscitadas pela recorrente. A)A situação de invalidez em que se encontra actualmente o autor tem origem numa patologia pré-existente à celebração do contrato de seguro, conhecida do autor e não informada por este.
Tanto quanto julgamos, o recorrente pretende suscitar a questão da inexistência do risco no momento da celebração do contrato.
Sendo o contrato de seguro, como vimos, um contrato aleatório, cujo objecto seguro é o risco de verificação de um determinado evento, a validade do contrato pressupõe naturalmente que no momento da sua celebração o risco exista, melhor dizendo que a verificação da situação cujo perigo de ocorrência está na génese e justifica a celebração do contrato seja ainda uma mera possibilidade, uma eventualidade de verificação incerta. O que significa que o risco seguro tem de se reportar sempre a uma modificação futura do estado de coisas vigente ao tempo da celebração do contrato.
Se alguém, em representação ou por conta de outrem, celebra um seguro de vida do representado e este afinal já tinha falecido no momento da celebração do seguro, o contrato é nulo, ainda que a pessoa que celebrou o contrato desconhecesse esse facto. Se o proponente pretende garantir o risco de invalidez permanente é necessário que no momento da celebração do seguro o segurado não se encontre ainda numa situação de efectiva (ainda que não declarada clinica ou administrativamente) invalidez; caso contrário o contrato é nulo por falta de um dos seus elementos essenciais.
Essa é a solução legal que o artigo 44º do Decreto-Lei n.º 72/2008, 16 de Abril, consagra para as situações de inexistência de risco, norma que como vimos não se aplica ao caso concreto mas cujo desfecho Luís Poças, loc. cit., pág. 87, considera resulta igualmente do disposto no artigo 280º Código Civil, relativo à nulidade por impossibilidade do objecto do negócio.
Como quer que seja, não cremos que essa solução seja aplicável ao caso concreto.
O seguro em causa não é um seguro de saúde cujo objecto seja a cobertura de riscos relacionados com a prestação de cuidados de saúde tornados necessários no caso de surgimento de doenças. Trata-se sim de um seguro de vida, no qual o segurador cobre os riscos de óbito ou de incapacidade permanente da pessoa segura.
O risco coberto pelo seguro é o risco de invalidez permanente da pessoa segura, não é o risco de ele vir a padecer de qualquer doença que possa gerar aquela consequência ao nível da respectiva capacidade de trabalho.
Excepto se estivermos perante uma doença cujo aparecimento determine sempre,de imediato e em qualquer circunstância, uma situação de incapacidade tal qual esta se encontra prevista na apólice de seguro, em condições normais uma doença pode ter vários estadios e manifestações, manifestar-se naquela pessoa em concreto com mais ou menos gravidade no tocante quer ao estado de saúde quer à sua repercussão na capacidade de trabalho do doente. Mesmo que haja uma relação de causalidade entre a doença e a incapacidade que sobreveio para o doente, esta há-se surgir se e quando a gravidade da evolução da doença determinar a incapacidade, não antes disso.
Ainda que se tenha julgado provado que a actual invalidez da pessoa segura foi motivada por doenças pré-existentes, não estando demonstrado que tais doenças desencadeariam sempre, em qualquer circunstância, a invalidez do doente – que assim deixaria de ser uma mera possibilidade para passar a ser uma certeza ainda que de manifestação futura –, não é possível concluir que o risco de invalidez coberto pelo seguro já estava verificado quando o contrato de seguro foi celebrado e que por isso possa ser julgado nulo.
Questão diferente, note-se, é a de saber se a cobertura está excluída em relação a doenças pré-existentes, rectius, se para efeitos de funcionamento da cobertura a invalidez tem de ser consequência de doença que surja apenas depois da celebração do contrato. Esta problemática já não respeita à questão da inexistência do risco, respeita sim à delimitação do risco garantido por via da interpretação das respectivas cláusulas de definição do risco e de exclusão da respectiva cobertura. Já não estaremos pois a falar da invalidade do contrato, estaremos a falar da interpretação das cláusulas da apólice para determinar o objecto do contrato (situação em que se poderá então suscitar a questão da validade e/ou eficácia das cláusulas da apólice, designadamente à face do regime das cláusulas contratuais gerais).
Por ora, portanto, basta concluir que a argumentação no sentido da defesa da invalidade do contrato por no momento da sua celebração já não existir o risco – por estar verificado o evento correspondente ao risco – é improcedente, não sendo o contrato inválido por tal ordem de razões.
B) Ao apresentar a sua proposta de adesão ao seguro de grupo o autor escondeu à seguradora informações sobre o seu estado de saúde por si conhecidas e essas informações eram relevante para a celebração do contrato ou para os termos do mesmo
Da proposta de seguro que os autores apresentaram à ré seguradora consta um questionário médico com seis perguntas, para as quais são apresentadas duas respostas possíveis, sim ou não.
A primeira pergunta é se o proponente já foi aconselhado a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica. Na quarta pergunta questiona-se entre outras coisas se o proponente tem alguma alteração física ou funcional.
Em resposta a todas as questões foi colocado visto na quadrícula «não», dando-lhes assim resposta sempre negativa.
Resulta dos autos que a proposta de seguro foi apresentada e aceite em Março de 2007, tendo o seguro tido início em Abril de 2007.
Não obstante isso, provou-se que:
1. Em 1994, o autor foi remetido para consulta de Hematologia Clínica num Hospital para estudo de “poliglobulia”, vindo a apurar-se em resultado desse estudo que o autor sofria de patologia compatível com “policemia vera” de risco intermédio para fenómenos trombóticos.
2. O autor iniciou nesse ano medicação a essa patologia, tendo em 1996 alterado a medicação, sempre associado a flebotomias.
3. Em 2001 e 2003 o autor foi seguido na consulta externa de Cardiologia Hospital, por apresentar hipertensão arterial com repercussão cardíaca. 4. Desde 2004, o autor faz coagulação oral por trombose venosa profunda nos membros inferiores.
5. Em 2011, o autor começou a ter queixas de cefaleias, tonturas, mialgia e astenia e inchaço na perna esquerda, com situações de febre, bem como um cansaço permanente, vindo a apurar-se que o autor sofria de “uma doença no sangue”, em virtude da qual tinha de se submeter regularmente a flebotomias com risco de progressão para neoplasia ou leucemia.
Parece dever concluir-se que as respostas dadas ao questionário médico não correspondiam à verdade. À data o autor não apenas já tinha sido aconselhado a consultar médicos, como fizeram inclusivamente consultas de duas especialidades que haviam detectado patologias com alguma gravidade e que demandavam tratamento medicamentoso continuo. As declarações constante da proposta são assim falsas e/ou reticentes.
Provou-se ainda que estes antecedentes clínicos do autor eram do seu perfeito conhecimento, como não podia deixar de ser, apesar do que foram omitidos na resposta ao questionário médico.
A questão que curiosamente se coloca nos autos é se esta falha é imputável aos autores!
Com efeito, provou-se que o preenchimento do formulário da proposta de seguro onde consta o questionário médiconão foi feito pelos autores, que os sinais apostos nos quadrados do questionário médico não são do punhodo autor nem da sua mulher.
Provou-se ainda que não lhes foram feitas previamente quaisquer perguntas para o preenchimento desses quadrados. Mas provou-se igualmente que para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os autores contactaram uma terceira pessoa que tratou da documentação necessária, tendo acompanhado os autores ao banco onde estes subscreveram os documentos que lhes foram apresentados, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida.
Como interpretar estes factos?
A proposta de seguro é a declaração negocial dos proponentes que visa ser transmitida à seguradora para esta decidir se a aceita. É pois uma declaração dos autores. Ora a proposta de seguro encontra-se assinada pelos autores, como não podia deixar de ser, sob pena de não existir proposta, logo de nem sequer existir contrato de seguro.
A aposição da assinatura de uma pessoa num documento significa a sua vinculação aos termos do mesmo, nos precisos moldes em que o teor ou conteúdo do documento se reporta à pessoa que assina.
Para ficar vinculado nesses termos o autor da assinatura não necessita de ser em simultâneo a pessoa que redige ou preenche o documento, este pode ser-lhe apresentado com uma redacção feita por outra pessoa e, por ser de sua vontade assumir o que consta do documento, a pessoa limitar-se a fazer nele a sua assinatura, assumindo como seu o teor do documento. A aposição da assinatura num documento, a não ser que se trate de um acto inconsciente ou resultante de algum vício da vontade, consiste assim na assunção da autoria do documento.
Na sentença recorrida, a dado trecho da fundamentação de direito o Mmo. Juiz a quo afirma o seguinte: «Consta da factualidade provada que o banco R. não informou os AA. do conteúdo das cláusulas relevantes, designadamente as exclusões, do contrato de seguro contratado. Na verdade, o dever de informação que onera o tomador/mediador não se esgota com a “entrega” das condições aos segurados, pois o que se pretende com o dever de informação é precisamente dar a conhecer ao subscritor o seu conteúdo, o que a mera entrega de papéis não cumpre (…). Acresce que o tomador/mediador, através de funcionários seus,procedeu ao preenchimento da proposta de seguro sem ter feito aos AA. as perguntas do questionário que serve de base à aceitação, por parte da seguradora, daqueles beneficiários. Donde decorre não existir qualquer acção dos beneficiários nas pretensas declarações inexactas ou reticentes, ….»
Com todo o devido respeito, estas afirmações, para além de misturarem aspectos distintos, não estão em conformidade com a materialidade que foi julgada provada.
Não se pode confundir a informação e explicação do teor das cláusulas do contrato de seguro que se encontram previamente elaboradas e às quais os autores se limitaram a aderir, com o preenchimento da proposta de seguro que já não contém qualquer cláusula contratual, consistindo apenas numa proposta negocial unilateral para adesão a um contrato de seguro de grupo.
O que está julgado provado é que efectivamente foi entregue aos autores uma cópia das condições do contrato mas não lhe foi dada qualquer explicação sobre o teor das referidas cláusulas. Essa questão assume relevância para efeitos da determinação da validade e/ou interpretação das cláusulas do contrato de seguro, designadamente por aplicação das normas do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, mas nada nos diz sobre o modo como foi preenchida a proposta de seguro que os autores assinaram.
No que concerne ao preenchimento da proposta de seguro, a proposta de adesão é um formulário que tem efectivamente espaços para serem preenchidos, sendo uma parte relativa à identificação dos proponentes e aos dados do mútuo para cuja garantia se pretendia celebrar o contrato de seguro, a qual está imprensa, sinal de que o preenchimento foi feito por meios mecânicos (conforme explicou a testemunha F…), e outra parte relativa ao inquérito médico que se destina a ser preenchida apenas com a colocação de um sinal na quadrícula correspondente à resposta.
Ao contrário que afirma nessa passagem da fundamentação de direito, o Mmo. Juiz a quo não julgou provado qualquer facto que evidencie que foi a funcionária do banco (F…) preencheu totalmente a proposta, designadamente que foi ela que colocou os sinais de resposta ao questionário médico na proposta de seguro que os autores assinaram. Não só não o fez como inclusivamente julgou provado que as situações relativas ao seu estado de saúde foram «omitidos deliberadamentepelo autor (…) na proposta de adesão (…)».
Por razões que não conseguimos compreender, nenhuma das partes impugnou a decisão sobre a matéria de facto e/ou suscitou alguma questão sobre as dúvidas que podem suscitar afirmações do Mmo. Juiz a quo na fundamentação de direito da sentença!
Perante esta dificuldadeem interpretar devidamente a matéria de facto julgada provada (o que constitui um tarefa prévia à subsunção jurídica dos factos que esta Relação é obrigada a realizar para apurar a que factos deve aplicar o direito) e pese embora, repete-se, isso não constitua, por opção soberana das partes, objecto do recurso, fomos ouvir a gravação da audiência de julgamento, em especial os depoimentos de F…, G… e dos autores que são as pessoas que estiveram envolvidos nestes factos.
A primeira testemunha era funcionária do banco réu e prestava serviço no balcão onde foi apresentada a proposta de seguro, sendo sua a assinatura do funcionário a reconhecer as assinaturas dos autores na referida proposta, dizendo terem sido feitas na sua presença.
Esta testemunha confirmou que na parte com conteúdo impresso a proposta foi preenchida por si através do seu computador porque nessa parte se trata de um formulário electrónico, mas não referiu ter sido também ela a apor os sinais nas quadrículas de resposta ao questionário médico (fazemos esta distinção porque o documento não é totalmente revelador se esses sinais são impressos – como os dados de identificação dos proponentes, por exemplo – ou manuscritos – colocados depois pelo proponente antes de apor a sua assinatura na proposta) razão pela qual o Mmo. Juiz a quo também não afirma tal coisa na motivação da sua decisão, embora depois na fundamentação de direito pareça querer sustentar isso.
A segunda testemunha é referida nos autos que forma imprecisa como colaboradora do banco, mas, segundo o respectivo depoimento e o depoimento de F…, tratava-se de uma pessoa que se dedicava profissionalmente, possuindo as suas próprias instalações para o desenvolvimento da sua actividade profissional, a serviços de solicitadoria, consultadoria, aconselhamento ou ajuda na obtenção de créditos para as pessoas que a procuravam para o efeito e que para além da relação de prestação de serviços que estabelecia com os que designou por «seus clientes» e onde incluiu os autores, tinha concertado com vários bancos o recebimento de um prémio financeiro do banco que aceitasse o pedido de crédito que lhes apresentava por conta dos seus clientes.
Esta testemunha admite que foi contactada por uma prima (e contabilista!) dos autores para tratar da obtenção de um crédito para estes comprarem uma casa e que tratou de obter a aprovação da concessão do crédito - no caso neste banco - e afirma que não foi ela que preencheu a proposta de seguro, o que foi feito no banco com a sua presença, altura em que foram feitas aos autores as perguntas do questionário.
Curiosamente os autores afirmaram no artigo 5 º da petição inicial que «para os procedimentos da constituição do empréstimo, hipoteca e seguro de vida, os AA. contactaram uma “agência de serviços”, que lhes foi indicada, sita na Avª … em Vila Nova de Gaia, cuja gerente tratou de todo o expediente, preencheu a documentação necessária, pedindo seguidamente a cada um deles que subscrevesse os documentos que lhes apresentou, entre os quais os respeitantes ao seguro de vida». Por outras palavras, naquela peça os autores não atribuem aos serviços do banco o preenchimento do questionário médico da proposta, atribuem-na sim à «agência de serviços» que contactaram para tratar de todo o expediente por sua conta (isto é, à testemunha G…).
Na resposta ao articulado superveniente que trouxe inovatoriamente para o objecto da lide a eventual falsidade da resposta a esse questionário, a posição dos autores apenas muda num pormenor. O que os autores alegam é que «(10) Pouco tempo antes do empréstimo, o A., sua mulher, e uma irmã daquele, a quem iam comprar um apartamento, dirigiram-se ao escritório de uma colaboradora do E…, para tratarem da “papelada” do empréstimo bancário. (11) Aí chegados, a colaboradora do E… – D. G… – pediu aos AA que assinassem a papelada já integralmente preenchida, indicando o local onde se faziam as assinaturas, e pouco tempo aí permaneceram. (12) Entre os formulários respectivos para o empréstimo estavam certamente os das propostas de seguros de vida dos AA., visto que as não tinham assinado antes e depois disso só assinaram a escritura no notário. (13)Não fez a dita colaboradora qualquer pergunta aos AA., designadamente para o preenchimento dos formulários de seguro de vida.».
Portanto, a diferença consistiu na conversão da «agência de serviços» pela «D. G…» e na designação desta como «colaboradora do E…», embora os autores aleguem que se deslocaram ao escritório desta e não ao balcão da agência bancária, como se fosse normal tratar de assuntos com um banco fora dos seus balcões. O que se retira desta alegação é que os autores continuam a atribuir a autoria do preenchimento do questionário médico à D. G…, não a qualquer funcionário do banco. Nos seus depoimentos de parte os autores mantiveram essencialmente essa versão.
Na motivação da decisão sobre a matéria de facto, o Mmo. Juiz a quo afirma que «atendendo à discrepância dos dados constantes da proposta com os dados físicos dos AA., conforme por estes declarado, admite-se(sic) que tenham sido preenchidos “a olho”, sem que tenham sido efectuadas quaisquer perguntas aos AA., colocando-se a normal resposta de “não” nas questões relativas aos antecedentes clínicos e patologias de risco – sendo certo que a testemunha que preencheu a proposta de seguro, F…, não confirmou ter colocado as questões constantes do questionário aos AA., como lhe competia».
Trata-se de uma motivação insuficiente e que não podemos acompanhar. A admissão de uma possibilidade (admite-se que…) não é, em circunstância alguma, um meio de prova, muito menos a afirmação de uma probabilidade que é o critério que releva para efeito da decisão. Por outro lado, em relação ao depoimento da testemunha D… não é correcto afirmar que ela «não confirmouter colocado as questões constantes do questionário». O que sucede é que do seu depoimento nada se retira sobre esse aspectoporque a questão não chegou a ser-lhe colocada de forma explícita e/ou expressa, pelo que em rigor o que se deve dizer é que ela não confirmou nem desmentiu. O que ela confessou, aliás de modo bastante sincero, foi somente que não deu aos autores qualquer explicação sobre as condições do contrato de seguro.
Finalmente, não se vê como pode ser julgado provado que «a funcionária do banco preencheu ela mesma o questionário sem perguntar nada aos propoentes» quando nenhuma testemunha o afirmou (houve sim uma testemunha a afirmar o contrário e outra a quem não foi feita explicitamente a pergunta) e os próprios autores não o alegaram nem referiram no seu depoimento de parte (exactamente porque atribuem o preenchimento não à funcionária do banco, F…, mas à «D. G…»).
Tal como não se concebe que se pudesse julgar provado que «nada foi perguntado aos autores, por quem preencheu o questionário, sobre o seu estado de saúde», apenas com base no depoimento de parte dos autores (na motivação da decisão não é mencionado outro meio de prova desse facto e ele não foi produzido) tratando-se de um facto favorável aos autores e com a relevância que o mesmo tem no caso concreto.
A mesma incredulidade nos assalta em relação à afirmação do Mmo. Juiz a quo de admitir «que os AA. incorram em erro, podendo ter sido atendidos num gabinete do balcão do banco réu pensando tratar-se do escritório da testemunha G…», o que é absolutamente inverosímil porque os balcões dos bancos possuem equipamentos específicos inconfundíveis e layouts perfeitamente notórios e distintos, compostos por um conjunto de imagens e símbolos alusivos à marca e à actividade do banco, que nenhuma pessoa que ali se desloca pode ignorar ou não ver.
Daqui resulta que se devêssemos reapreciar a decisão sobre a matéria de facto com recurso à prova produzida com vista a eliminar dúvidas, obscuridades ou contradições (que no caso, repetimos, são ao nível da decisão propriamente ditameramente aparentes e daí a metodologia seguida), julgaríamos seguramentenão provado que nenhum dos intervenientes ao serviço, em representação ou por conta do banco réu, fez perguntas aos autores para preencher o questionário médico em substituição dos mesmos.
Por esse motivo, face à obrigação de deixar claro quais os factos que constituem a fundamentação de facto da decisão do pleito, iremos interpretar a matéria de facto julgada provada pela 1.ª instância respeitando o teor literal dos factos provados.
Por outras palavras, iremos considerar que não está (porque de facto não está) julgado provado que foi um funcionário do banco réu - ou alguém actuando por conta deste - que preencheu o questionário médico(é só o preenchimento deste que releva para a questão que nos ocupa) no lugar dos autores e sem para o efeito lhes colocar as perguntas do questionário.
Desse modo, não acompanharemos a afirmação do Mmo. Juiz a quo na fundamentação de direito da decisão recorrida, de que foi «o tomador/mediador, através de funcionários seus, procedeu ao preenchimento da proposta de seguro sem ter feito aos AA. as perguntas do questionário que serve de base à aceitação, por parte da seguradora, daqueles beneficiários».
Se estivesse provado que o preenchimento do questionário médico foi efectuada por funcionário do banco e que este não colocou aos autores as perguntas do questionário para poder assinalar as respostas dadas por eles, a responsabilidade pelo conteúdo desse questionário seria inteiramente imputável ao banco e os autores não poderiam ser responsabilizados por falsas declarações no questionário.
Não estando isso provado e resultando até dos autos que os autores contactaram uma terceira pessoa para tratar da documentação, a qual inclusivamente os acompanhou ao banco onde eles acabaram por assinar os documentos, não pode deixar de se imputar à esfera de actuação dos próprios autores (e/ou da pessoa que contactaram para o efeito e que desse modo actuou se não em seu nome, pelo menos por sua conta) o modo como foi feito o preenchimento do questionário médico. Isso determina que ao nível do preenchimento do inquérito médico os autores (ou alguém cuja actuação é, no caso, imputável à esfera de interesse dos autores) prestaram informações falsas ou reticentes sobre o estado de saúde do autor.
A questão que se coloca de seguida é se esse facto importa a anulabilidade do contrato. A resposta, face à matéria de facto provada, parece-nos clara.
Por um lado está demonstrado que as patologias que o autor já apresentava e em relação às quais o autor vinha tendo consultas médicas para diagnóstico e posterior acompanhamento e vinha fazendo tratamentos regulares com medicamentos, são o motivo (a causa) da actual situação de invalidez. Está pois demonstrada a existência de um nexo entre as informações omitidas e o risco coberto pelo contrato de seguro.
Por outro lado, está demonstrado que as informações médicas omitidas interferem claramente com a avaliação do risco por parte da seguradora (condicionavam a análise e aceitação do risco) e que se a seguradora tivesse sido informada dos antecedentes clínicos do autor teria recusado assumir o risco da invalidez total e permanente. Está, por isso, demonstrada a influência da informação omitida para a formação da vontade negocial da seguradora e bem assim qual seria a vontade negocial da seguradora no caso de possuir essa informação.
Independentemente da discussão teórica que no domínio da legislação anterior ao regime jurídico do contrato de seguro se travava sobre a necessidade ou desnecessidade destes requisitos para gerar a invalidade (a anulabilidade) do contrato, no caso, uma vez que ambos os requisitos estão demonstrados parece inevitável concluir que o contrato de seguro é efectivamente inválido, pelo menos no tocante ao risco da invalidez total e permanente que é aquele que no caso se discute.
Em suma, a acção deveria ter sido julgada improcedente e, não o tendo sido, o recurso procede.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, absolvendo os réus dos pedidos dos autores.
Custas da acção e do recurso pelos autores.
*
Porto, 18 de Junho de 2020.
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 555)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]
_____________ [1] A alternativa seria, porventura, determinar que o Mmo. Juiz a quo proferisse nova decisão, esclarecendo a sua decisão em relação a alguns pontos de facto sobre a qual as suas afirmações posteriores deixam dúvidas. Todavia, afigurando-se-nos que efectivamente não foi julgado provado que o preenchimento das respostas ao questionário médico foi feito pela funcionária do banco que recebeu a proposta (o que geraria uma contradição carecida de sanação), que esse facto também não foi sequer alegado pelos autores, que essa solução apenas atrasaria mais um processo cuja duração é já claramente excessiva e que nos termos do artigo 662.º, n.º 1 e n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil tendo esta Relação à sua disposição a totalidade dos meios de prova, lhe cabe o poder oficioso de alterar a decisão sobre a matéria de facto para suprir as obscuridades desta, optou-se pala via seguida.