CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE
VALOR DA ACÇÃO
Sumário

I.–Estando em causa a admissibilidade da reconvenção, o juiz, na ocasião do despacho saneador em que deve fixar o valor da causa e simultaneamente decidir da admissibilidade da reconvenção, deverá fixar o primeiro em conformidade com a decisão que produzir quanto à segunda, e não apenas de modo automático, por simples soma do valor do pedido do autor com o do pedido reconvencional.

II.– Só nesta medida se consegue fazer corresponder à utilidade económica dos pedidos a utilidade processual que o legislador entendeu ser a adequada.

III– Numa acção em que é pedida a condenação no pagamento da diferença de preço prometido num contrato promessa de compra e venda e o preço pago na escritura do contrato de compra e venda, negando o réu a existência do crédito do Autor, não é possível admitir o pedido reconvencional ao abrigo da alínea c) do nº 2 do artigo 266º do CPC.

IV– Já porém, na mesma acção, são admissíveis, ao abrigo da al. a) do nº 2 do artigo 266º do CPC, os pedidos reconvencionais relacionados com o incumprimento, por parte dos promitentes vendedores, da transmissão livre de ónus e encargos acordada, não o sendo todavia os pedidos reconvencionais fundados apenas na consciente interposição infundada da acção que causou prejuízos à reputação e bom crédito do réu.

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:



I.Relatório


Na presente acção declarativa comum que A… e B… intentaram contra C…, Ldª, todos nos autos m. id., peticionando a condenação desta a pagar-lhes €141.336,00 e juros vencidos no valor de €3.665,64, remanescente da quantia a pagar por via de contrato de compra e venda onde os primeiros figuraram como vendedores, veio a Ré contestar e reconvir peticionando a condenação dos Autores em €594.308,47 devidos pelos prejuízos causados com declarações erróneas dos Autores enquanto promitentes vendedores, relativamente ao imóvel objecto da venda.

Em síntese das posições das partes:

Os AA. prometeram vender à Ré vários terrenos, por €1.825.000,00, preço abaixo do real, porque estavam a braços com a cobrança de crédito por parte de um Banco, o que era do conhecimento do legal representante da Ré, que aliás, face às suas crescentes dificuldades em cumprir os compromissos de “reforma” do mútuo bancário, os apaziguou “referindo-lhes que, com a colaboração deles, na obtenção da licença de construção para os fins consignados na cláusula segunda do contrato promessa, rapidamente podiam outorgar a escritura definitiva e, nessa altura, pagarem a dívida ao” Banco. Porém a marcação da escritura foi sendo protelada, e o Banco credor dos AA. instaurou mesmo acção executiva, e só nesta data, e para compensar os AA. das despesas acrescidas com a execução, a Ré declarou abdicar da quantia prevista no nº 3 da 6ª cláusula do contrato promessa, referente a uma comissão imobiliária. No dia da escritura foram saldadas as dívidas ao Banco, obtendo-se assim o distrate, e paga também a Autoridade Tributária. Faltaria então pagar €141.336,00, aos AA. O preço de venda constante da escritura não corresponde ao montante acordado. Questionado o legal representante da Ré sobre a discrepância, referiu que o valor estava relacionado com o montante de financiamento bancário que a Ré havia conseguido, e no fim da escritura nada foi pago aos AA., dizendo o mesmo legal representante que o iria fazer ulteriormente, o que não fez.

Já a Ré alinhou que:

Constava expressamente do contrato promessa que os promitentes vendedores prometiam vender os terrenos inteiramente devolutos de pessoas e bens e livres de quaisquer ónus, encargos ou qualquer outra responsabilidade directa ou indirecta com as construções neles existentes (cláusula 1ª nº 2), que todos e quaisquer ónus ou encargos que recaiam sobre o terreno serão resolvidos e assegurados pelos promitentes vendedores (…) garantindo estes o cancelamento de todos os ónus e encargos que incidem sobre o terreno, entregando no momento da outorga da escritura de compra e venda os respectivos termos de cancelamento (cláusula 3ª nº 1) e (nº 2) que os promitentes vendedores asseguram a declaram expressamente (...) que a) não têm conhecimento de quaisquer outras restrições, encargos, ou limitações de qualquer espécie que incidam ou venham a incidir sobre este terreno, independentemente dos mesmos deverem ou não constar do registo predial, e que, de alguma forma, limitem os poderes de administração ou de disposição sobre os mesmos, ou ainda os direitos de construção sobre este terreno, bem como não têm conhecimento de quaisquer condicionantes, impedimentos, ou limitações que possam por em causa a viabilidade do projecto de construção do estabelecimento comercial a designar para o local; (b) não existem quaisquer obrigações ou vínculos, de natureza real ou meramente obrigacional, envolvendo esse terreno, assim como não incidem sobre os prédios confinantes com o mesmo que sejam propriedade dos promitentes vendedores, quaisquer ónus ou vínculos de natureza semelhante aos já referidos e relacionados com este terreno; d) não têm conhecimento, que quaisquer terceiros se arroguem direitos ou pretensões relativos ao domínio, posse ou mera detenção deste terreno; e) não têm conhecimento, relativamente a quaisquer produtos ou materiais que se encontrem ou tenham encontrado neste terreno ou no respectivo subsolo e que, de alguma forma, constituam perigo para o promitente comprador ou quaisquer terceiros ou fazer aquela incorrer em responsabilidade perante terceiros.

(Cláusula 6ª) A escritura será outorgada no prazo máximo de 120 (...) dias após a notificação do deferimento incondicional do processo de licenciamento das construções dos estabelecimentos comerciais (...) e após a notificação de que todas as eventuais autorizações e licenças necessárias à construção se encontram aprovadas por todas as autoridades competentes e que se encontra a pagamento a licença de construção (…)”.

Porém, ao contrário do que os AA. asseveraram, o local em causa integrava um Unidade Operativa de Planeamento e Gestão, que obrigava a que a edificação não podia ser levada a efeito sem que se contemplasse toda a área da UOPG, área essa que abrangia um terreno pertencente a terceiro, facto de que os AA. tinham conhecimento mas a Ré não, o que a levou a apresentar a licenciamento a operação incluindo inadvertidamente aos terrenos do terceiro, que então veio embargar judicialmente os trabalhos. Por outro lado, a escritura foi antecipada para antes da licença se encontrar a pagamento por via das vicissitudes das dívidas dos AA., sendo que a Ré foi surpreendida por um edital/anúncio de venda em execução fiscal, e sendo ainda que o Banco credor hipotecário dos AA. não estando dispensado de proceder ao preço da venda em execução fiscal, não pretendia esperar mais pela satisfação do seu crédito. A Ré, confrontada com a perspectiva de vir a poder perder o terreno após o investimento feito em projectos, estudos e licenças, não teve outra solução que antecipar a escritura, no que lhe resultou um agravamento de custos e incertezas, pois a falta de licenças impedia a Ré de negociar um mútuo com hipoteca com o seu próprio Banco, tendo este aceite um financiamento como escritura a título genérico, com tributação mais elevada em termos de imposto de selo. Por isso, acordaram as partes alterar o preço de venda para menos €63.000,00 (desse imposto de selo). Como ainda estava por resolver a questão com o proprietário terceiro e o embargo, com a celebração da escritura de compra e venda, a Ré ficava amarrada, de forma definitiva, à necessidade de obter o licenciamento da construção. Em virtude dessa propriedade do terceiro, a Ré chegou a acordo com ele na concretização da UOPG mediante o pagamento, pela Ré, de todas as taxas, tendo a Ré pago a mais relativamente ao previsto, a quantia de €233.641,11. Mais ainda, sobre o terreno existia igualmente uma servidão de colocação de linhas e instalação de postes da EDP, a qual, por força da alteração do traçado, veio a cobrar à Ré a quantia de €44.134,52. Ao iniciar os trabalhos de movimentação de solos, a Ré constatou que os solos se encontravam contaminados com ácidos e óleos duma anterior utilização industrial do terreno, que tiveram de ser removidos, o que teve o custo de €80.559,64.

“Mais grave que estes custos acumulados decorrentes das declarações erróneas dos Autores em sede de celebração do contrato promessa e que decorrem do incumprimento das obrigações acessórias assumidas no contrato promessa, é a interposição da presente demanda, total e completamente desprovida de fundamento”. Na conjuntura em que os Bancos têm instruções para cortar créditos, a afectação da reputação de uma empresa compromete a concessão e manutenção de crédito e a conquista de novos clientes. No caso concreto, “a distribuição da presente acção soou com estridência, sendo que numa primeira fase, a Ré foi bombardeada com pedidos de informação e explicações para toda a banca”. A informação de crédito é consultada pela grande maioria dos fornecedores, e a alteração do “rating” teve impactos também nas propostas de fornecimento ou subcontratação, cujos preços unitários passaram a ser superiores. “A primeira consequência foi um pedido generalizado dos fornecedores a solicitar o pagamento imediato dos créditos”. A Ré tem créditos concedidos anualmente no valor próximo de cinco milhões de euros, sendo que a partir da apresentação da demanda sofreu um agravamento de spread de 0,25%. A Ré teve um custo de €1.000,00 com telefones, cartas e comunicações, a administração teve reuniões com clientes, fiscalização de obras, fornecedores e outras entidades, com um custo de salário e despesas de estadia e deslocação de €15.000,00. O mercado funciona numa particular base de confiança, a Ré tem como principais clientes o Grupo … e o Grupo …, que passaram a ser muito mais intransigentes consigo. Também os processos de contratação pública passaram a ser muito mais conduzidos sob a forma de convite, dependendo os convites da reputação da empresa, o mesmo sucedendo aliás com as empresas privadas. A quantificação do valor decorrente da perda deve ser fixada com recurso à equidade, em €120.000,00. O bom nome e reputação da Ré foi lesado com a apresentação infundada e dolosa da acção, devendo também ser compensada em valor não inferior a €100.000,00.

Procedeu-se a audiência prévia, na qual foram proferidos, além de outros, os seguintes despachos:

I– Ao abrigo do disposto nos arts. 297º/1,2, 299º/1 e 306º/1 do C.P.C., fixa-se, enquanto valor da acção, o montante de €739.300,11.

II– A R. deduz pedido reconvencional, nos termos do qual os AA. deveriam ser condenados a pagar-lhe €233.614,11 a título de agravamento de taxas de construção e urbanização, €44.134,52 referentes a custos de cancelamento de servidão de passagem de linha de colocação de postes da EDP no terreno adquirido; €80.559,84 de encargos com a remoção de resíduos; €100.000,00 a título de compensação pela lesão do nome comercial e crédito da empresa, €120.000,00 referentes ao agravamento de encargos financeiros e custos de reposição de imagem e melhoria de crédito e scoring no período de cinco anos, €16.000,00 de agravamento de encargos com deslocações, reuniões e outras actividades necessárias à justificação (sic) da empresa.

O fundamento da presente acção consiste no alegado não pagamento de parte do preço em contrato de compra e venda de imóvel.
A R. alega que foi paga a totalidade do preço (cf. art.º 3º da contestação).
A acção funda-se, pois, no incumprimento da obrigação de pagamento.
Os pedidos da Ré não emergem do facto jurídico que serve de fundamento à acção (não pagamento do preço) ou à defesa (pagamento do preço) – al. a) do nº 2 do artº 266º do C.P.C..
A R. não se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida (al. b) do nº 2 do art.º 266º do C.P.C.), já que não lhe é pedida a entrega de coisa.
A R. não pretende o reconhecimento de um crédito para obter a compensação ou para obter o pagamento do valor em que o crédito excederia o dos AA. (al. c) do nº 2 do artº 266º do C.P.C.) já que afirma ter pago.
O pedido da R. não tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que os AA. se propõem obter (artº 266º/d do C.P.C.).
Visto que a pretensão da R. não se enquadra em qualquer uma das previsões do artº 266º do C.P.C., não se admite a reconvenção.
Custas da reconvenção pela R. (artº 527º/1/2 do C.P.C.).
(…)

Inconformada, a Ré interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:

ANos termos conjuntos do Artº 297º e 299º do CPC, tendo a acção por base um pedido de pagamento, o valor da acção corresponde a tal pedido, acrescido do valor do pedido reconvencional que venha a ser deduzido, conquanto tal pedido seja admitido. A não admissão do pedido reconvencional, e na medida em que o valor económico que se pretende obter da acção e pode ser obtido da acção se limita ao valor do pedido formulado na petição inicial, deve ser esse o valor da acção.

BO conceito de facto jurídico que flui do disposto na al. a) do nº 2 do Artº 266º do CPC é o conceito amplo e abstracto que abrange todos os factos com relevo para a aplicação, nele se incluindo os actos jurídicos e em concreto os negócios jurídicos.

CEm acção em que o Autor vem reclamar o pagamento do preço de um imóvel, por força de obrigação decorrente de dois contratos celebrados, o facto jurídico que serve de fundamento à acção não é a falta de pagamento, mas o conjunto das obrigações assumidas nos dois contratos cuja celebração é alegada na petição inicial, dado que, apenas pode ser pedido o pagamento do preço como pedido decorrente da existência de uma obrigação de pagamento, que é exigida judicialmente.

DTendo os contratos celebrados e indicados na petição inicial natureza bilateral, o pedido reconvencional deduzido, decorrente da falta de cumprimento da obrigação assumida pelo Autor nos mesmos contratos, decorre de facto jurídico que serve de base à acção e enquadra-se no disposto no Artº 266º n. 2 al. a);

EDa mesma forma, o pedido reconvencional que tenha como pretensão o reconhecimento de um crédito a favor do Réu que exceda o valor do crédito do Autor (que pode vir a ser igual a zero após a produção da decisão final), é admissível e enquadrável no disposto no Art. 266º nº 2 al c), dado que, a admissibilidade do pedido reconvencional não se limita apenas a obter a compensação, podendo revestir a forma de reconhecimento da existência de um crédito de valor superior ao crédito peticionado pelos Autores, o que aliás sucede também como o presente pedido reconvencional. 

FA douta decisão em recurso incorre em erro de aplicação do direito, por referência aos Artº 297, 299 e 266 nº 2 als. a) e c), todos do CPC.

Termos em que (…) deverá ser revogada a decisão em recurso, alterando-se o valor da acção e bem assim ordenando-se a admissão do pedido reconvencional, (…)”.

Não consta dos autos que tenham sido oferecidas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir:

II.Direito

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - as questões a decidir são 1) saber qual devia ser o valor fixado à acção, e 2) saber se o pedido reconvencional devia ter sido admitido.

III.Matéria de facto

AA constante do relatório supra.

BAcresce que o tribunal recorrido fixou o tema de prova como: “Do pagamento pela R aos AA. da quantia de €141,336,00 ou outra, para além da quantia de €1683,664,00. O tribunal seleccionou também os factos já então provados, nos seguintes termos:
“1– Em 10 de Março de 2017, os AA. e a R. celebraram contrato promessa de compra e venda dos imóveis descritos (…).
2– A e R acordaram que o preço seria de €1.825.000,00 (…).

3– Da cláusula quinta consta, assinaladamente, o seguinte a propósito do preço e do respectivo pagamento:
a)- €25,000,00, já liquidados pelo promitente comprador, quantia que os promitentes vendedores declaram já ter recebido, dando na presente data a respectiva quitação (…);
b)- €25.000,00, a título de reforço de sinal no prazo de 60 dias após a assinatura do presente contrato;
c)- €1.775.000,00, em simultâneo com a outorga da escritura pública de compra e venda.

4A escritura pública de compra e venda teve lugar em 9 de Março de 2018, constando da mesma que o preço total de €1.762.000,00 já se mostra recebido (…).

5Da escritura pública consta, assinaladamente, o seguinte:

Pelos outorgantes foi dito, nas respectivas qualidades:

-que o preço foi pago da seguinte forma: duas transferências bancárias no montante de vinte cinco mil euros, cada uma, efectuadas uma em vinte e três de março de dois mil e dezassete e outra em vinte sete de abril de dois mil e dezassete, da conta (…) para a conta beneficiária (…);
- que o remanescente do preço foi pago no dia de hoje mediante entrega da quatro cheques bancários, (….);

5– Os AA. aceitam ter recebido €1.683,664,00.

C– Dá-se aqui como reproduzido o teor do contrato promessa, do aditamento ao contrato promessa e da escritura de compra e venda, documentos juntos com a Petição Inicial, sendo certo que do exemplar em papel junto a este recurso, o contrato promessa se não mostra completo.

IV.Apreciação

1ª questão: da fixação do valor da acção.

Sustenta a Recorrente que o tribunal recorrido não deveria ter fixado o valor da acção na soma do valor do pedido dos Autores com o do pedido reconvencional uma vez que não admitiu o pedido reconvencional.

Nos termos do artigo 296º nº 1 do CPC A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido”. Prossegue-se no nº 2 do mesmo preceito indicando-se, com relevo para o nosso caso, que a fixação do valor releva para determinar a competência do tribunal e a relação da causa com a alçada do tribunal, ou seja, releva também para o regime de recursos admissíveis segundo a regra geral da alçada e sucumbência, e finalmente indica o nº 3 do mesmo preceito a relevância também do valor da causa para efeitos de custas.

O artigo 299º do CPC estabelece o momento a que se atende para a determinação do valor, qual seja, nº 1, o momento em que a acção é proposta, e nº 2, uma excepção material atinente ao próprio valor segundo o nº 1, que em caso de reconvenção quando o pedido reconvencional é distinto do formulado pelo autor, devem então somar-se os pedidos deduzidos por ambas as partes. Neste caso, nº 3, o aumento só produz efeitos quanto “aos atos e termos posteriores à reconvenção (…)”.

Diz-nos ainda o artigo 306º do CPC que compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo da indicação de valor que as partes devem realizar, e que a fixação do valor da causa deve ocorrer no despacho saneador “O valor da causa é fixado no despacho saneador (…)” (nº 2).

Quando analisamos os termos das tarefas funcionais do tribunal na prolação de despacho saneador, referidos no artigo 595º do CPC, não encontramos a menção à fixação do valor da causa. Note-se porém que em tais tarefas, a primeira delas é o conhecimento das excepções dilatórias alegadas pelas partes ou constantes dos elementos do processo, e que as excepções dilatórias são, além das nominadas no artigo 577º do CPC, todas as outras que obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância ou à remessa dos autos a outro tribunal – artigo 576º nº 2 do CPC.

A admissão dum pedido reconvencional não é automática, depende de despacho onde se assegura que estão preenchidos os requisitos previstos no artigo 266º do CPC. Embora estejamos, no despacho de admissibilidade da reconvenção, numa fase preliminar, de apuramento duma excepção à estabilidade da instância – artigo 260º do CPC – repare-se que o resultado da não admissão do pedido reconvencional tem o mesmo efeito que o conhecimento de uma excepção dilatória: - a não admissão da reconvenção impede o tribunal de conhecer do mérito do pedido reconvencional e porque não conhece, o pedido reconvencional não é afectado em si, mas apenas no seu conhecimento, ou seja, fica quem o deduz livre de instaurar acção autónoma para que ele seja posteriormente conhecido.

É muito comum ver-se a fixação do valor da causa em despacho prévio imediatamente anterior ao despacho saneador. Foi o caso também dos autos.

E então pergunta-se, no caso de ter sido deduzido pedido reconvencional, a fixação do valor independe da admissibilidade da reconvenção?

Afirmativamente responderam os acórdãos da Relação do Porto de 29.3.2007 e de 8.2.2001, citando aliás como doutrina “Lopes Cardoso, in “Manual dos Incidentes da Instância”, ed. de 1992, págs. 35 a 36 e Salvador da Costa, in “Os Incidentes da Instância”, 3.ª ed., págs. 34 a 35”.

Em sentido contrário e mais actualmente, aliás referindo-se expressamente a esses acórdãos, o acórdão da Relação de Guimarães de 8.10.2015, em cujo ponto I do respectivo sumário se lê: Para a determinação do valor da causa, nos termos do art. 299 do C. P. Civil, a soma do valor dos pedidos principal e reconvencional, não é automática. Essa soma de valores só acontecia na redacção do Código de Processo Civil vigente até ao Dec. Lei n.º 34/2008, que entrou em vigor em 20/04/2009 (o então art. 308 n.º 1 e 2 do C. P. Civil), e mesmo aí se verificados os respectivos pressupostos”.

O caso sobre que este acórdão se debruça é exactamente o inverso do presente: ali, o tribunal recorrido, não admitindo a reconvenção, fixou o valor da acção na correspondência do pedido do autor, ignorando a indicação de valor do pedido reconvencional, não o somando portanto ao pedido do autor. E a Relação de Guimarães entendeu não censurar essa fixação do seu tribunal recorrido.

Independentemente de estar em causa, nesse processo, a discussão sobre a identidade dos pedidos (segunda parte do nº 2 do artigo 299º do CPC), o que o Tribunal da Relação de Guimarães afirma é que a soma não é automática, desde logo porque a admissibilidade da reconvenção depende de despacho.

Quando pensamos no objectivo e relevância de atribuição e fixação de um valor à causa, e quando pensamos no momento e competência de fixação do valor da causa, resulta-nos que um pensamento de mera soma operando automaticamente não se acomoda à lógica desse objectivo e relevância: - qual é a utilidade processual que a utilidade económica reclama? A do alargamento do regime de recursos ou a da intervenção de um tribunal mais especializado a um caso que o legislador reputa não necessitar disso e portanto que o legislador entende não autorizar tenha acesso? Repare-se, se a acção, pelo valor do pedido inicial, não admite recurso para o STJ, porque é que, para que é que, vai beneficiar dum recurso para o STJ pelo simples facto do réu ter deduzido uma reconvenção que não é admissível, face ao artigo 266º do CPC, apenas porque o valor do pedido reconvencional, na soma ao pedido do autor, vai exceder a alçada da Relação?

E por outro lado, se o tribunal não vai despender mais actividade do que a da simples rejeição do pedido reconvencional face ao artigo 266º do CPC, qual é a razão para que a tributação deva ser a correspondente à duma acção em que se some o valor do pedido inicial com o do pedido reconvencional?

Entendemos por isso que, ademais porque o tribunal deve fixar o valor da causa no momento em que profere saneador, competindo-lhe aqui um juízo também sobre a admissibilidade da reconvenção, quando o tribunal sabe que não vai admitir o pedido reconvencional, a fixação do valor da causa deve atender a este conhecimento, para permitir que a lógica de atribuição de valor à causa se mantenha conforme à correspondência pensada pelo legislador entre a utilidade processual e a utilidade económica que as partes fazem valer em juízo. 

As consequências deste pensamento em termos de decisão do presente recurso serão então abordadas a final da segunda questão do recurso, precisamente a de saber se deve ou não ser admitida a reconvenção.

2ª questão: deve admitir-se a reconvenção ao abrigo das alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 266º do CPC?

Comecemos pela alínea c): A reconvenção é admissível quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor

Na decisão recorrida afirmou-se: A R. não pretende o reconhecimento de um crédito para obter a compensação ou para obter o pagamento do valor em que o crédito excederia o dos AA. (al. c) do nº 2 do artº 266º do C.P.C.) já que afirma ter pago”. É bem certo que a Ré não declarou expressamente pretender operar a compensação, o que teria de fazer nos termos conjugados dos artigos 848º do Código Civil, 3º nº 1, 583º nº 1 e 588º nº 1 e 2, todos do CPC. De resto, como se sabe, para operar a compensação, os dois créditos têm de existir, e a afirmação da Ré de que tinha pago tudo o que tinha que pagar (portanto, que inexistia crédito dos AA), opor-se-ia logicamente a essa compensação, a menos que fosse formulada subsidiariamente. A segunda parte da alínea c) ao circunscrever a reconvenção ao excesso, acaba a dizer a mesma coisa: - o valor do pedido reconvencional há-de compreender o necessário à compensação e além dela ao excesso, ou seja, em qualquer caso, tem de haver um crédito do Autor. Isto significa que o reconvinte tem de reconhecer o crédito do Autor? Que não o pode impugnar, como sucede no caso concreto?

Sendo tema de prova a existência do crédito do Autor, é bem possível que se chegue à decisão final de que ele existe. Nesse caso, a valia da admissão do pedido reconvencional serviria perfeitamente à hipótese da al. c): - o valor maior do pedido reconvencional cobria o crédito do Autor e ultrapassava-o.

Quando pensamos que a regra geral é a da estabilidade da instância (artigo 260º do CPC), em termos de sujeitos, pedido e causa de pedir, sendo limitados os casos em que a lei autoriza modificações nessa estabilidade, percebemos que a razão de fundo desta estabilidade está, tal como nas admissões de modificação, na economia de meios para a decisão das questões a resolver, concentrando o tribunal nas questões e nas pessoas, no limite do que é geralmente aceite pelas partes pela sua centralidade e não exige do tribunal um esforço maior. Este último aspecto explica a regra do nº 3 do preceito. O primeiro explica os casos previstos no nº 2 do mesmo preceito.

É porém certo que estas discussões, sobre o que é central, o que pode ou não ser conhecido em conjunto, se delimitam temporalmente em termos processuais na fase dos articulados, ou seja, na primeira fase do processo já fica claro qual vai ser o âmbito das questões a decidir pelo tribunal. Como assim, como requisito prévio ou inicial, é indiferente o que possa vir a suceder posteriormente no processo, de modo que a interpretação a fazer da segunda parte da al. c) do nº 2 do artigo 266º tem de circunscrever-se ao caso evidente nela disposto e não à hipótese duma alternativa posterior de verificação. Ou dito de outro modo, tem de ser claro que o caso é de peticionar o excesso sobre o crédito do autor, não se admitindo a petição do crédito do réu quando nega o crédito do autor, ainda que este venha a ser reconhecido.

Esta posição mais formalista é mais consentânea com a ideia de estabilizar inicialmente a instância, definir ao tribunal, logo ao início, exactamente qual é a sua missão, circunscrever o objecto do processo, definição e circunscrição que irão guiar o tribunal nas fases posteriores, desde logo na admissão de provas, na gestão processual, na marcação da audiência de julgamento.

Estamos assim em que a reconvenção deduzida não será admissível ao abrigo da al. c) do nº 2 do artigo 266º do CPC.

Será admissível ao abrigo da al. a), porquanto o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção?

Socorramo-nos do acórdão proferido nesta Relação em 8.10.2019 no processo 45824/18.8YIPRT-B.L1, disponível na dgsi e cuja explicação é bastante minuciosa e aliás revela alguma proximidade com o nosso caso. No acórdão afirma-se: 
“A recorrente vem pugnar pela admissibilidade da reconvenção por entender que existe conexão entre o pedido da acção e o pedido reconvencional, tal como decorre da previsão da alínea a) daquele normativo, sustentando que o facto jurídico que serve de fundamento à acção é a prestação de serviço – transporte e mudança de bens móveis – e os factos que fundamentam o pedido reconvencional emergem da forma como foi executada a mudança, o que não se cinge aos danos causados nos bens móveis mas também aos prejuízos causados na esfera jurídica da reconvinte, advindos da conduta do gerente e funcionários da autora/reconvinda, existindo uma relação de causa-efeito entre a prestação do serviço e a conduta daqueles” (…)
             
“De todo o modo sempre se aduzirá que a reconvenção é uma nova acção proposta pelo réu (reconvinte) contra o autor (reconvindo), baseando-se num pedido conexo com o do autor. Deduzida a reconvenção, esta constitui uma acção enxertada noutra, ou seja, uma acção do réu num processo pendente, sendo considerada também como uma contra-acção ou como uma acção cruzada.

“Com a dedução da reconvenção é o próprio conteúdo da relação processual que sofre uma significativa alteração, já que a reconvenção “representa uma cumulação sucessiva (não inicial) de objectos, tendo como principal especialidade a característica de este objecto ser um contra-objecto, já que se opõe àquele que é inicialmente proposto pelo autor.” – cf. Marco António Borges, A Demanda Reconvencional, 2008, pág. 23.

A reconvenção assume autonomia perante o pedido da acção (…)

Funciona como um instrumento jurídico de aplicação do princípio da economia processual, pois que viabiliza que num mesmo processo sejam reunidas pretensões materiais contrapostas, para além de proporcionar melhores condições para o julgamento unitário de todo o litígio estabelecido entre as partes, evitando a prolação de decisões divergentes a propósito de realidades próximas ou interdependentes – cf. A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, Coimbra 1997, pág. 120.

No entanto, esse ganho em economia de meios e de processo não deve contender com a eficácia das decisões ou com a justiça que destas deve emanar, o que justifica a introdução de limites à dedução pelo réu de uma pretensão autónoma dirigida contra o autor, de onde podem resultar graves inconvenientes para este, decorrentes sobretudo do retardamento da decisão a proferir sobre a pretensão por ele formulada.

Um desses limites radica precisamente, tal como resulta do vertido no art. 266º, n.º 2, a) do CPC, na conexão substancial que deve existir entre ambas as pretensões (a da acção e a da reconvenção).

“Todos os pedidos reconvencionais devem ser conexos com o pedido do autor, porque seria inadmissível que ao réu fosse lícito enxertar na acção pendente uma outra que com ela não tivesse conexão alguma.” – cf. Prof. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, Coimbra 1946, pág. 99.

Quando a lei exige na alínea a) do n.º 2 do art. 266º do CPC que o pedido do réu emerja do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa, tal deve ser entendido no sentido de que um pedido é emergente de determinado acto ou facto jurídico quando tem o seu fundamento nesse acto ou facto.

O pedido reconvencional emerge do mesmo facto jurídico quando tem a mesma causa de pedir que baseia o pedido da acção (…).

O facto jurídico que serve de fundamento à acção constitui o acto ou relação jurídica em que o autor baseia o pedido formulado, como sucede com a invocação de um direito emergente de um contrato, que também pode ser invocado pelo réu para sustentar uma diversa pretensão dirigida contra o autor.
            (…)
O facto jurídico a que alude a alínea a) do n.º 2 do art. 266º do CPC deve ser entendido como coincidente com a noção de causa de pedir, sendo relevante, para efeitos da aferição da admissibilidade da reconvenção, delimitar o conceito desta.

O art. 552º do CPC, nas alíneas d) e e) do respectivo n.º 2, impõe ao autor, no âmbito do processo comum de declaração, o ónus de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção e o de formular o pedido.

Quem dirige uma pretensão ao Tribunal tem de expor a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado. É a causa de pedir, entendida como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida”, que assume uma função individualizadora do pedido e, como tal, do objecto do processo – cf. art. 581º, n.º 4 do CPC.

A causa de pedir, independentemente do entendimento que se perfilhe acerca dos factos que a integram (nomeadamente se abrange todos os necessários à procedência da acção ou apenas aqueles que se reconduzam aos elementos essenciais de um determinado tipo legal), cumpre sempre uma função individualizadora do pedido e, portanto, do objecto do processo. Por isso, há-de conter, pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido – cf. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume II, 3ª edição, 1981, pág. 351.

O art.º 5º, n.º 1 do CPC impõe às partes o ónus de r os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, ou seja, quanto aos primeiros, devem ser alegados os factos essenciais à procedência do pedido, aqueles que são constitutivos do direito do autor.

Distingue-se, dentro dos factos integradores da procedência do pedido, o núcleo essencial, constituído pelos factos principais, ou seja, os elementos típicos do direito que se pretende fazer valer, e os factos acessórios ou complementares, aqueles que concretizam ou qualificam os primeiros, conforme previsto na norma de procedência (processualmente, são aqueles que integram a causa de pedir mas não individualizam a causa nem a sua omissão determina a ineptidão da petição), sendo, como aqueles, decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção.

O pressuposto de admissibilidade do pedido reconvencional exige mais do que uma simples conexão entre as duas causas de pedir (da acção e da reconvenção), devendo estas serem idênticas, pois é essa identidade que fundamenta o regime excepcional de admissibilidade da reconvenção – cf. neste sentido, Marco Borges, op. cit., pág. 43.

Assim, “[…] a causa de pedir, para efeitos de admissibilidade de reconvenção, deve ser definida através do facto principal comum a ambas as pretensões”, ou seja, que “os factos alegados devem ser seleccionados através das normas jurídicas alegadas, assim se determinando quais são os principais. Estabelecidos estes, se um deles for principal para a acção e para a reconvenção, haverá identidade de causa de pedir e, logo, estará preenchido o requisito do art. 274º, n.º 2, al. a)” – cf. Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, pág. 270 apud A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipes Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 302.

Tal como se reconheceu na decisão recorrida, o pedido deduzido na acção baseia-se, como é evidente, no contrato de prestação de serviços que foi celebrado entre as partes, relativamente ao qual a autora refere ter cumprido a obrigação que dele para si advinha, tendo direito a obter o pagamento do respectivo preço por parte da ré.

Na sua contestação, a ré/recorrente alegou que a autora se obrigou a efectuar o transporte de móveis antigos de um local para outro e que o fez de modo defeituoso, pois que causou danos em dois espelhos dourados, reclamando, em sede reconvencional, o ressarcimento desse prejuízo, no valor de € 2 500,00.

Nesta parte, o pedido reconvencional foi admitido por se considerar que o seu fundamento assenta ainda no facto jurídico principal em que se baseia a acção e que corresponde à celebração do contrato de prestação de serviços.

Quanto aos demais pedidos, considerou-se que se reportam a uma relação material distinta, pois que não decorrem do alegado não cumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato celebrado, mas antes da prática de factos ilícitos por banda do gerente da autora e respectivos funcionários e que consistem, em síntese, no modo intimidador como o gerente se terá dirigido à ré e seus familiares e no facto de lhe ter causado vergonha e embaraço, colocando em causa o seu bom-nome, razão pela qual, face à ausência de conexão substancial, a reconvenção não foi admitida quanto a tais pedidos.

(…)”. (fim de citação).

Concordando-se com as considerações jurídicas feitas no acórdão acabado de citar, em suma, que para efeitos da alínea a) do nº 2 do artigo 266º do CPC nos interessa a causa de pedir enquanto “situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado”, quando se afirma na decisão recorrida que “O fundamento da presente acção consiste no alegado não pagamento de parte do preço em contrato de compra e venda de imóvel”, tal não será inteiramente explicativo: - na verdade, a causa de pedir, a situação na qual os AA. fundam a sua pretensão de pagamento do remanescente do preço, situa-se, além do não pagamento, ainda anteriormente na diferença entre o preço prometido no contrato promessa e o preço pago na escritura do contrato definitivo.

Neste sentido, acaba a fazer sentido o que a Ré refere quanto à necessidade de apelo aos contratos celebrados: - o contrato promessa e o contrato prometido. E a verdade é também que se atendermos ao contrato promessa, o que a Ré invoca no pedido reconvencional é que os AA. incumpriram as obrigações que para eles resultavam do mesmo contrato, designadamente não esclarecendo, sendo do seu conhecimento ao contrário do que afirmaram, que afinal havia condicionantes à possibilidade de construção, que havia uma servidão relativa aos postes da EDP e que havia resíduos no subsolo que tinham de ser removidos – em suma, que afinal o terreno não era transmitido, tal como prometido, livre de ónus e encargos, havendo então incumprimento também por parte dos AA. Trata-se, no pedido dos AA e no pedido reconvencional, de apurar o incumprimento do mesmo contrato promessa e do mesmo contrato prometido. Apelando às noções fundamentais de economia processual e da conveniência de evitar que vários tribunais decidam de modo diverso no que toca à mesma relação de facto, parece mais consentâneo afirmar que os pedidos reconvencionais são admissíveis ao abrigo da referida alínea a) do nº 2 do artigo 266º do CPC.

Porém, e por isso nos servimos do acórdão que citámos, não todos os pedidos reconvencionais: - é que na realidade os pedidos relativos a despesas com reposição de bom crédito, indemnização pela perda de crédito e pelo dano à reputação da Ré estão fundados apenas no facto da demanda dos AA., isto é, da interposição da presente acção contra a Ré, ser infundada e falsa, como os AA. bem sabem. Isto é, um facto totalmente estranho à relação contratual, posterior a esta, à execução desta, que é atribuído aos AA. em modo voluntário deles, e em modo culposo e ilícito, por violar o direito da Ré à sua reputação e bom crédito junto da banca e dos seus clientes públicos, privados e dos seus fornecedores. Estamos então manifestamente em face de responsabilidade civil extracontratual e por isso não estamos em presença do mesmo facto jurídico, do mesmo complexo fáctico que serve de causa de pedir à acção, não sendo assim admissíveis os pedidos reconvencionais referidos.

A solução é então a de admitir os pedidos reconvencionais relacionados com o incumprimento dos contratos promessa e prometido e não admitir os demais. Nestes termos, não se admitem os pedidos reconvencionais relativos ao pagamento de €100.000,00, €120.000,00 e de €16.000,00.

Em coerência com a solução agora obtida, e em aplicação à 1ª questão deste recurso, há então que alterar o valor da acção, diminuindo ao valor fixado o valor dos pedidos reconvencionais não admitidos.

Assim, procede também aqui o recurso, embora parcialmente, fixando-se o valor da acção em €503.300,11.

Quanto à questão do valor da acção, entende-se que em face da não apresentação de contra-alegações, não são devidas custas. Estamos em presença duma actividade oficiosa do tribunal que, não tendo admitido a reconvenção, haveria de ter fixado o valor após o despacho de não admissão no valor do pedido dos AA.

Tal parte do recurso, em face de dois despachos recorridos, corresponde a 50%.

Na parte restante, e quanto à admissibilidade da reconvenção, as custas são por AA. e Ré na proporção do decaimento – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC – que neste caso se fixa em 40% para a Ré e 60% para os AA.

V.Decisão

Nos termos supra expostos, acordam conceder provimento parcial ao recurso e em consequência:

A- Revogam a decisão recorrida na parte em que não admitiu os pedidos reconvencionais relativos à condenação dos AA. a pagarem à Ré as quantias de €233.614,11 a título de agravamento de taxas de construção e urbanização, €44.134,52 referentes a custos de cancelamento de servidão de passagem de linha de colocação de postes da EDP no terreno adquirido e €80.559,84 de encargos com a remoção de resíduos, substituindo-a nessa parte pelo presente acórdão que delibera pela sua admissão e determina o correspondente prosseguimento dos autos quanto a eles.

B- Concedem parcial provimento ao recurso do despacho de fixação do valor da acção, que se revoga parcialmente, fixando-se outrossim à acção o valor de €503.300,11.

C- No mais, mantém-se a decisão recorrida.

D- Custas do recurso, apenas na parte relativa à admissão dos pedidos reconvencionais (50%), que se fixam na proporção de 40% (quarenta por cento) para a Ré e 60% (sessenta por cento) para os AA.

Registe e notifique.



Lisboa, 14.07.2020



Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves
Manuel Rodrigues
(vencido quanto à questão do valor da acção, conforme declaração anexa)


«DECLARAÇÃO DE VOTO»
Salvo o devido respeito, estamos em total desacordo com a decisão que fez vencimento na parte em que, concedeu parcial provimento ao recurso do despacho de fixação do valor da acção e, revogando-o parcialmente, fixou à acção o valor de €503.300,11.

Entendemos, diversamente, que seria de manter a decisão recorrida no segmento em que fixou o valor da acção, no montante de €739.300,11, correspondente à soma do valor do pedido formulado pelos Autores com o dos pedidos formulados pela Ré em reconvenção.

Senão vejamos,

O artigo 299.º do CPC, dispõe:
“1.- Na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta, excepto quando haja reconvenção ou intervenção principal.
2.- O valor do pedido formulado pelo réu ou pelo interveniente só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 530.º
3.- O aumento referido no número anterior só produz efeitos quanto aos actos posteriores à reconvenção ou intervenção.
4.- […]”
O texto deste normativo reproduz, com a mera actualização da remissão, o anterior artigo 308.º do CPC, na redacção do Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26-2, que entrou em vigor em 20/04/2009.
Temos, assim, que o valor da acção determinado em face da petição inicial é sempre ampliado quando haja pedido reconvencional (at.º 266.º, n.º 1) ou de interveniente (art.ºs 314.º e 319.º, n.º 3) que seja distinto do deduzido pelo autor (art.º 299.º, n.º 2), ou, ainda, nos casos em que, na pendência da acção, o autor cumule um novo pedido ao formulado na petição inicial (art.ºs 264.º e 265.º, n.º 2).
A reconvenção dá causa a uma verdadeira cumulação de pedidos, embora recíprocos. Por isso, como refere EURICO LOPES-CARDOSO, in Manual dos Incidentes de Instância em Processo Civil, Livraria Petrony, Lda., pá. 35-36, “(…) em harmonia com o estabelecido em geral para a cumulação de pedidos, já o art.º 313.º do Código de 1939 dispunha que, havendo pedido reconvencional , a causa passaria a ter o valor que resultasse da soma do valor desse pedido com o do formulado pelo autor.”
O Código de 1939 não se referia expressamente aos efeitos da cumulação decorrente de intervenção principal activa relativamente ao valor da causa, mas já então boa parte da doutrina e da jurisprudência defendia que a intervenção principal activa em coligação deveria ter efeitos semelhantes ao da reconvenção, quanto a esse valor (neste sentido, EURICO LOPES-CARDOSO, obra citada, 36-37.
O n.º 2 do anterior artigo 308.º do CPC, na redacção do Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26-2, veio preencher essa lacuna, alargando expressamente ao caso de intervenção principal, a regra que era estabelecida para o caso de reconvenção.
Esta foi, aliás, a única alteração introduzida pela reforma operada pelo Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26-2, ao regime anterior vigente desde 1939.
Desta sorte e salvo o devido respeito, não podemos concordar com o argumento lapidarmente aduzido no Acórdão do Tribunal de Guimarães, de 08-10-2015 [proferido no Proc.º n.º 1089/14.0TJVNF.G1 e relatado pelo Desembargador José Estelita Mendonça], que serviu de mote à decisão que fez vencimento, de que “a soma do valor dos pedidos não é automática (…). Essa soma do valor só acontecia na redacção do Código de Processo Civil vigente até ao Dec. Lei n.º 34/2008, que entrou em vigor em 20/04/2009 (o então art. 308 n.º 1 e 2 do C. P. Civil), sendo sintomático que os apelantes só invoquem a seu favor jurisprudência anterior a 2009”.
Na verdade, nenhuma alteração ocorreu nesse aspecto na letra da lei e se a alguma alteração se assistiu, a justificar, a vetustez dos acórdãos citados, foi que a questão há muito estabilizou na doutrina e na prática judiciária no sentido por nós defendido, ao contrário do que sucedia no regime processual de pretérito em que foi entendido por alguns autores que, no caso de indeferimento liminar do pedido reconvencional, não funcionava o aumento do valor da causa, por não haver cumulação de pedidos e o aumento de valor só produzir efeito quando aos actos e termos posteriores à defesa do réu [MANUEL AUGUSTO DA GAMA PRAZERES, “Os Incidentes da Instância no Actual Código de Processo Civil”, Braga, 1963, pág. 48].
No caso de reconvenção [e no de intervenção principal], o novo valor da causa fixa-se, automaticamente, pela soma ideal dos dois valores referidos: o dado pelo autor à acção e o dado pelo reconvinte [ou interveniente]. O aumento de valor da causa, por força de pedido reconvencional, ocorre ope legis, não dependendo de decisão que aprecie previamente da admissibilidade do pedido reconvencional.
Basta a simples formulação do novo pedido, independentemente da admissão da reconvenção [ou da intervenção], para que funcione imediatamente a regra do n.º 3 do artigo 299.º, segundo a qual “o aumento do valor” “só produz efeitos quanto aos actos e termos posteriores à reconvenção ou intervenção”.
Esses efeitos, está bom de ver, são os atribuídos pelo n.º 2 do artigo 296.º ao valor processual da causa: “determinação da competência do tribunal”; “forma do processo de execução”; “e relação da causa com a alçada do tribunal”.
O valor processual da causa resultante da soma do pedido reconvencional ou do pedido do interveniente estabiliza-se ainda que esses pedidos venham a ser rejeitados, reduzidos, objecto de desistência ou de improcedência.
Desde que o valor processual da causa, determinado pela soma do valor do pedido formulado pelo autor e do valor do pedido reconvencional formulado pelo réu ou do pedido formulado pelo interveniente, exceda o da alçada do tribunal, é admissível recurso, ainda que aqueles pedidos subsequentes, julgados improcedentes, não estejam em causa e o primeiro não ultrapasse o valor da alçada do tribunal recorrido [ac. do STJ, de 7-6-74, BMJ, n.º 238, pág. 184].
Como refere, SAVALDOR DA COSTA, Os Incidentes da Instância”, 3.ª Edição, Almedina, pág. 35, e reitera na pág. 36 da 10.ª Edição Revista e Actualizada, a mais recente, “(…) face à letra da lei, não contrariada pelo seu elemento teleológico, a reconvenção e a intervenção principal produzem o efeito de acréscimo logo após a sua formulação, isto é, ele não depende da prolação de decisão da sua admissibilidade.”
Também JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, no Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, defendem, em anotação (n.º 8) ao artigo 299.º que “São irrelevantes para o valor da acção, apurado nos termos do n.º 1, as vicissitudes posteriores que importem a redução do objecto do processo, a desistência do pedido reconvencional (ac. do STJ, de 22-3-74, BMJ, 235, p. 226) ou transacção sobre a acção inicial com subsistência da intervenção principal (ac. do ST, de 18-11-79… BMJ..403). Deste modo, mantém-se, para os efeitos fixados no art.º 296.º, n.º 2, o valor fixado após a reconvenção ou a intervenção principal”.
Estes os fundamentos por que entendemos, diversamente da decisão que fez vencimento, que seria de manter a decisão recorrida no segmento em que fixou o valor da acção, no montante de €739.300,11, correspondente à soma do valor do pedido formulado pelos Autores com o dos pedidos formulados pela Ré em reconvenção.
*
Lisboa, 14 de Julho de 2020
Manuel Rodrigues - 2.º Adjunto


Sumário (a que se refere o artigo 663º nº 7 do CPC  ) (……..) acima transcrito :
              
Eduardo Petersen Silva
Processado por meios informáticos e revisto pelo relator