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ABUSO DE CONFIANÇA
DOLO
Sumário
Para efeitos de preenchimento do crime de abuso de confiança, a intenção de restituir exclui o dolo de apropriação.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal da Relação do Porto:
I – Relatório.
I – 1.) Inconformado com o despacho judicial proferido em 21/02/2006 (cfr. fls. 246 a 252), nestes autos com o n.º ……./04.7TDLSB do Tribunal Judicial de Paredes, em que o Sr. Juiz, na sequência da instrução requerida pelo arguido B……….. decidiu pela sua não pronúncia, relativamente ao crime de abuso de confiança qualificado (art. 205.º, n.ºs 1, 4.º, al. b) e 5.º, do Cód. Penal) que lhe era imputado pela acusação pública, recorre o Ministério Público para esta Relação, para esse efeito sustentando as seguintes conclusões:
1.ª - O crime de abuso de confiança consiste no descaminho ou dissipação de qualquer coisa móvel, que ao agente tenha sido entregue, de forma lícita e voluntária, por título e com um fim que o obrigaria a restituir essa coisa ou um valor equivalente.
2.ª - Por conseguinte, da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas.
3.ª - O actual Código de Processo penal estabelece no seu artigo 283.º, n.º 1 que “se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz acusação contra aquele”. E, no n.º 2 do citado normativo legal, estabelece-se que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”, tendo aplicação na Instrução por via do disposto no artigo 308.º do Código de Processo Penal.
4.ª - Face à prova recolhida em sede de Inquérito e em sede de Instrução existem indícios suficientes de que o arguido praticou o crime em crise.
5.ª - Da prova recolhida, não temos dúvidas, salvo o devido o respeito por opinião em contrário, que o arguido, no exercício das suas funções, sabia que tal dinheiro não era seu e que tinha recebido em razão da sua profissão e, quis apropriar-se dele para cobrir as despesas e dívidas resultantes da actividade comercial por si exercida com o estabelecimento comercial “C………..”, preenchendo, desta forma, o elemento subjectivo do tipo, na forma de dolo directo.
6.ª - A restituição da coisa ou a reparação do prejuízo não influi na culpa. Não são só os interesses da vítima que estão em causa na punição destes crimes patrimoniais, mas também, e sobretudo, razões de politica criminal, nomeadamente, razões de prevenção.
7.ª - Assim, não podemos aceitar que a restituição ou reparação do prejuízo seja vista como uma causa de exclusão da culpa. A intenção do legislador não foi excluir a culpa, como fez entender o Exmo. Juiz de Instrução, foi sim, salvo melhor opinião, atenuar especialmente a pena em homenagem a um princípio vitimológico, como fundamento da consideração da vítima como principal destinatário da política criminal, sendo nesses precisos termos que deve ser entendido tal comportamento e não como refracção de uma qualquer disponibilidade do objecto do crime patrimonial conducente ao seu tratamento ainda em quadros subsidiários do direito privado.
8.ª - Ao interpretar de modo diverso e ao não pronunciar o arguido, violou o despacho recorrido as disposições conjugadas dos artigos 205.º, n.º 1 e n.º 4, alínea b) e artigo 206.º, ambos do Código Penal e os artigos 308.º e 283.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
Deve assim o despacho recorrido ser, nessa parte, revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido B………. pelos factos constantes da acusação que integram o crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alínea b) do Código Penal.
I – 2.) Na sua resposta, o arguido B………… concluiu pela forma seguinte:
1.ª - Nos termos do artigo 205.º n.º 1 do Código Penal, apropriação significa fazer sua a coisa, integrá-lo no seu património, tornar-se proprietário.
2.ª - O crime de abuso de confiança consuma-se com a apropriação, passando o agente a dispor da coisa como sua. O simples uso nos casos das contas (dinheiro) é insuficiente para integrar o elemento objectivo do crime, ou seja a apropriação.
3.ª - Mais tarde teria que resultar da apropriação da coisa sem que houvesse intenção de restitui-la, acrescendo a tudo isto o dolo. Ora no caso sub judice, nada disto se passou (o arguido devolveu tudo o que usou e com autorização dos proprietários das contas).
4.ª - O facto de o arguido ter tido sempre a intenção de restituir como o fez, exclui o dolo de apropriação, excluindo assim, o tipo subjectivo do crime de abuso de confiança.
5.ª - Do apuramento da prova indiciária apurada quer em fase de inquérito quer em fase de instrução não resultam indícios suficientes da prática do crime de abuso de confiança pelo arguido, o que faz com que a probabilidade do mesmo vir a ser condenado em sede de julgamento seja menor do que o contrário.
6.ª - Acresce a tudo isto que o arguido é pessoa de bem e muito considerado por todos os que o conhecem, nomeadamente os que lhe deram autorização para movimentar as suas contas, e que prestaram declarações em sede de instrução, reconhecendo tê-lo feito por nele confiarem na altura e continuando a confiar, pois mantêm negócios com o mesmo.
Deve assim o despacho recorrido ser mantido e não ser o arguido pronunciado pelo crime pelo qual foi acusado pelo Ministério Público.
II - Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
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No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi acrescentado.
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Seguiram-se os vistos legais.
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Teve lugar a conferência.
III – 1.) De harmonia com as conclusões apresentadas, fácil será intuir, que a finalidade última prosseguida pelo recurso interposto pelo Ministério Público, tem em vista a pronúncia do arguido B………… pelo crime de abuso de confiança qualificado (valor consideravelmente elevado) cuja indiciação foi afastada pelo Sr. Juiz no despacho ora posto em crise.
III – 2.) Vamos conferir o seu teor, na parte que aqui releva:
«(…) Vejamos o caso sub judice e o que dos autos dimana.
Na douta acusação proferida nos presentes autos é imputada ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelo art. 205°, n.º 1, 4 alínea b) e 5 do Código Penal.
Refere-se, para tanto e em síntese, na douta acusação que o arguido, no exercício da actividade de subgerente da G………. (…..) e aproveitando as atribuições inerentes a tal cargo, começou a emitir diversos cheques pós-datados que uma vez vencidos davam origem a um descoberto, em virtude de não terem provisão.
Para regularizar esta situação o arguido assinava outros cheques de outros bancos, que depositava na conta dos primeiros. Através deste procedimento o arguido ganhava dois a três dias para tentar resolver a situação através da atribuição de financiamentos.
Porém, após a CGD ter deixado de aceitar esses depósitos de valor e de igual forma, e de igual forma recorrendo àquele cargo, o arguido decidiu utilizar contas de clientes particulares da agência onde trabalhava para depósito de cheques sacados por D………., com recurso à utilização de ATS's instaladas na mesma.
Assim, o arguido efectuava o levantamento dos montantes em numerário ou através da emissão de cheques sobre o país, permitindo o aprovisionamento das contas sediadas no E………. e no F……….. .
O arguido, utilizando aquelas contas de clientes particulares, iniciou um processo de rotação de valores que deu origem a um descoberto na ordem dos €180.000,00.
Importa, antes de mais e apesar do que doutamente se escreveu no despacho ora colocado em crise, uma breve análise ao tipo legal de crime em apreço.
Estatui o art. 205.º do Código Penal, sob a epígrafe "Abuso de confiança", que "(n.º 1) quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. (n.º 2) A tentativa é punível. (n.º 3) O procedimento criminal depende de queixa.
(n. º 4) Se a coisa referida no n.º 1 for: a) de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias; b) de valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
(n.º 5) Se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicia4 é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos".
Como resulta claro do exposto, o tipo legal de crime imputado ao arguido é de natureza pública, sem desnecessário ou juridicamente irrelevante o exercício do direito de queixa, bastando a mera notícia do crime.
Cai, por conseguinte, por terra, passe a expressão, o primeiro argumento invocado pelo arguido no seu requerimento de abertura da instrução.
Quanto a este tipo legal de crime, escreve o Prof. Figueiredo Dias, in "Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 94 e ss., o seguinte: "abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma, violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (por isso sendo este crime chamado, em várias ordens jurídicas de diferente linguagem, «apropriação indevida»). Daqui resulta que o crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime patrimonial pertencente à subespécie dos crimes contra a propriedade; tem como objecto de acção, tal como o furto, uma coisa móvel alheia; e, ainda como o furto, revela-se por um acto que traduz o mesmo conteúdo substancial de ilicitude, uma apropriação.
Pese as identidades que ficam anotadas, o crime de abuso de confiança ganha autonomia e especificidade perante o crime de furto logo na contemplação do bem jurídico protegido, que é aqui exclusivamente a propriedade. Com efeito, no furto protege-se a propriedade, mas protege-se também e simultaneamente a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel, o que oferece, em definitivo, um carácter complexo ao objecto da tutela. Diferentemente, no abuso de confiança só a propriedade como tal é objecto de tutela e constitui assim integralmente o bem jurídico protegido. Dito com as palavras sugestivas de MAIWALD, diferentemente do que sucede com o ladrão, «ao abusador de confiança poupa-se o esforço de ter de "subtrair" a coisa.
A partir desta conclusão não falta quem sublinhe que o perigo para a propriedade resultante do abuso de confiança é mais pesado e grave que o resultante do furto. O argumento que a propósito se esgrime nas literaturas jurídico-penais alemã e italiana é o de que esse maior peso e gravidade deriva da circunstância de o proprietário da coisa furtada poder exigi-la de terceiro adquirente de boa fé, o que já não sucede com o proprietário da coisa apropriada através de abuso de confiança. Este argumento não vale porém perante o direito civil português, sabido como é que a aquisição a non domino, mesmo de boa fé, não é por princípio protegida em qualquer dos casos (...). Em todo o caso a conclusão apontada não deixará porventura, também entre nós, de ter o seu valor não em função de uma consideração jurídica, mas prática: a de que a posição jurídico-processual da vítima de abuso de confiança será em geral mais difícil e gravosa do que a da vítima de furto, por ser mais custoso provar a «inversão do título de posse» - que constitui a essência típica da conduta abusiva da confiança - do que a «subtracção» que se viu ser elemento essencial da tipicidade do furto.
Face a esta essencialidade, de resto, não tem hoje sentido, mesmo só em perspectiva formal - sistemática, integrar o crime de abuso de confiança nos «furtos», seja como «furto impróprio» (assim CARLOS ALEGRE, «Crimes contra o Património), Cadernos da RMP 3 1988 77 ss.), seja como «furto especial» (assim J. A.BARREIROS, Crimes contra o Património 1996 82): uma tal integração representaria, salvo melhor opinião, o retrocesso de mais de um século na elaboração dogmática dos crimes contra o património (a propriedade).
Por quanto fica já exposto não deixa de ser em alguma medida equivoca a redução da essência do abuso de confiança à apropriação de coisa móvel alheia, sem quebra de posse ou detenção (supra § 1,. e sobre a questão que se segue, entre nós e por último, PEDROSA MACHADO, RPCC 1997495 ss.). Sendo isto em si exacto, toma-se em todo o caso indispensável que o agente tenha detido a coisa (que a coisa «lhe tenha sido entregue por titulo não translativo da propriedade», como claramente se exprime o art. 205° 1). Assim, entra na própria conformação do bem jurídico um elemento novo, que serve inclusivamente para contrapor o abuso de confiança à mera apropriação indevida. Depara-se aqui com uma linha de pensamento e uma orientação legislativas de segura tradição francesa. Com efeito, já o C.P. napoleónico de 1810 (art. 408) era muito claro no sentido de que a apropriação só poderia ter lugar depois do recebimento da coisa (realce meu) (…).
Em função do que fica exposto toma-se agora seguro determinar em que consiste concretamente o elemento típico que exprime por excelência o bem jurídico protegido: a apropriação. Não deve aqui repetir-se pura e simplesmente o que ficou dito sobre o mesmo elemento - a apropriação - no contexto do crime de furto: cf. supra art. 203° § 27 s.: no furto a apropriação intervém como elemento do tipo subjectivo de ilícito (como «intenção de apropriação»), no abuso de confiança, diferentemente, na sua estrutura de apropriação qua tale, isto é, na sua veste objectiva de elemento do tipo objectivo de ilícito (realce meu). Por isso ensinava já EDUARDO CORREIA, RLJ 90° 36, com plena pertinência e seguindo a lição de SCHRODER, que a apropriação no abuso de confiança «mão pode ser... um puro fenómeno interior - até porque cogitationis poenam nemo patitur - mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento que o releve e execute» (doutrina que a jurisprudência portuguesa assumiu de forma absolutamente dominante). E a teoria, que não pode deixar de ser acolhida, do acto manifesto de apropriação e que tem relevo, entre outros, para efeitos de consumação (infra § 34).
A apropriação traduz-se sempre, no contexto do abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção. Dito por outras palavras (como sempre ensinou EDUARDO CORREIA, p. ex. RLJ 900 35 ss., a propósito da interpretação a conferir às expressões «desencaminhar ou dissipar» que constavam do art. 453.º do CP de 1886; e também CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito e Justiça IV 243): o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela - naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a «inversão do título de posse ou detenção») e é nela que se traduz e se consuma a apropriação (…)”.
Creio que nada há a acrescentar para a correcta interpretação do tipo.
Se bem apreendi a lição dos Ilustres Mestres citados, temos que no crime de abuso de confiança a vítima entrega a coisa móvel uti alieno, isto é, com a obrigatoriedade de a restituir. Só num segundo momento há a inversão do título de posse.
Verifica-se um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima).
A apropriação só pode ter lugar depois do recebimento da coisa e intervém como elemento objectivo do ilícito, traduzindo-se sempre na inversão do título de posse ou detenção.
Cumpre ainda referir que nos termos dos n.º 4 e 5 do art. 205.º do Código Penal, o crime em apreço pode constituir um crime qualificado em função de dois tipos de circunstâncias diferentes: em função do valor elevado ou consideravelmente elevado da coisa (n.º 4); e em função de a coisa ter sido entregue ao agente a título de depósito imposto por lei (n.º 5).
O abuso de confiança qualificado em função do valor não levanta qualquer tipo de dificuldade na sua análise, pelo que me dispenso de tecer quaisquer considerações.
Por seu lado, abuso de confiança qualificado em função da especificidade do título de recebimento ocorre em virtude de especialíssima relação de fidúcia intercedente entre o agente e a coisa, que cria para aquele um especialíssimo dever de garantir a não apropriação desta.
Necessário se torna que a coisa seja confiada ao agente a título de depósito imposto por lei. Não se trata aqui do contrato jurídico-privado de depósito (art. 1185.º e seguintes do Código Civil), mas de situações particulares em que é a própria lei a impor o depósito de uma coisa, v. g., em casos como os depósitos de bens penhorados, entrega ao curador provisório dos bens do ausente, entrega da massa falida ao liquidatário judicial ou entrega de objectos a funcionários judiciais.
Nem todos os depósitos impostos por lei integram porém o tipo de objectivo deste abuso de confiança qualificado, mas apenas aqueles em que a imposição legal tem um de dois fundamentos: ou o de ser feita em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial. Pode afirmar-se que praticamente todas as hipóteses de depósito legalmente imposto caberão nos dois fundamentos indicados. Mas nem por isso se dirá que a especificação dos fundamentos levada a cabo pela lei penal é destituída de sentido, porque pode a lei não penal conhecer ou criar novas imposições de depósito por razões que não têm a ver com a razão de ser da restrição feita pela lei penal. Uma tal restrição funda-se, uma vez mais, na circunstância de daquelas posições ou qualidades jurídicas - resultantes de ofício, emprego, profissão, ou da função de tutor, curador ou depositário judicial - derivar o dever especialíssimo que constitui o agente na também especialíssima obrigação de não apropriação da coisa depositada.
Analisada a douta acusação deduzida nós autos, e tendo presente tudo o que se acabou de deixar dito, verificamos que a qualificação do abuso de confiança efectuada naquela peça processual, e referente ao disposto no n.º 5 do art. 205.º do Código Penal, mostra-se juridicamente incorrecta.
Na verdade, dos factos ali descritos não se vislumbra como pode o Ministério Público concluir por aquela agravação, quando, como se referiu supra, o abuso de confiança qualificado em função da especificidade do título de recebimento ocorre em virtude de especialíssima relação de fidúcia intercedente entre o agente e a coisa, que cria para aquele um especialíssimo dever de garantir a não apropriação desta.
Necessário se torna que a coisa seja confiada ao agente a título de depósito imposto por lei. Não se trata aqui do contrato jurídico-privado de depósito (art 11850 e seguintes do Código Civil), mas de situações particulares em que é a própria lei a impor o depósito de uma coisa, v. g., em casos como os depósitos de bens penhorados, entrega ao curador provisório dos bens do ausente, entrega da massa falida ao liquidatário judicial ou entrega de objectos a funcionários judiciais.
Mas mais ainda.
De acordo com aquilo que é a noção de abuso de confiança, e ainda que se faça menção aos ensinamentos transmitidos por Jorge de Figueiredo Dias (cfr. obra e local supra referidos, no sentido de que a conduta típica reside na apropriação ilegítima de coisa que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade, significando isto que se toma necessário ao abuso de confiança que, no momento da apropriação, o agente tivesse já a posse ou a detenção da coisa, mas não a propriedade. E os conceitos de posse ou detenção devem ser entendidos mais latamente do que aquilo que é o seu exacto conteúdo no direito civil, de forma a fazer-se equivaler ao recebimento de uma coisa móvel constitutivo de uma relação fática de domínio sobre ela), não se pode ou consegue falar no caso dos autos em nada mais do que uma "mera apropriação", ainda que ilegítima.
Com efeito, a coisa que o arguido ilegitimamente se apropriou (dinheiro) não lhe havia sido entregue a qualquer título, nem com ela o arguido havia constituído uma qualquer relação fáctica de domínio.
O que sucedia, de acordo com a prova produzida nos autos, é que em determinados momentos, e com a autorização de pelo menos todos os clientes, com excepção de um único, o arguido utilizava contas bancárias tituladas por estes numa agência da qual era subgerente para fazer face a dificuldades económicas que enfrentava. E então depositava nestas contas cheques emitidos pela sua mulher, dando posteriormente autorização para a libertação de todos os valores que se encontrassem pendentes de cobrança, permitindo dessa forma a emissão de "cheques sem país" que iriam aprovisionar a conta bancária à qual pertenciam os cheques emitidos pela sua mulher.
Desta forma o arguido procurava obter algum tempo para angariar os financiamentos necessários à regularização da situação de "descobertos" em que ficavam as contas daqueles clientes.
A falta daquele mais em relação à "mera apropriação" leva a que não se possa qualificar os factos descritos na douta acusação do Ministério Público como susceptíveis de configurarem a prática de o crime de abuso de confiança.
Mas ainda que se entenda de forma contrária, sempre se dirá que não resulta dos autos suficientemente indiciado o preenchimento por parte do arguido do tipo subjectivo de ilícito.
O dolo é necessário relativamente à totalidade dos elementos do tipo objectivo do ilícito em apreço, tratando-se pois de crime de congruência total. O dolo eventual é suficiente.
Porém, e como sempre defendeu Eduardo Correia (cfr. por exemplo RLJ, 90°, págs. 38 e ss.), entendo também que a intenção de restituir exclui o dolo de apropriação e, por conseguinte, o tipo subjectivo do crime de abuso de confiança.
Não basta, é certo, uma qualquer vontade de restituir. É indispensável que o agente se represente como seguro que, no prazo e nas condições juridicamente devidas, efectuará a restituição da coisa recebida.
Dos autos resulta no entanto fortemente indiciado o seguinte:
1. Numa primeira fase a situação de descoberto bancário era regularizada passados dois ou três dias, como a emissão de outros cheques de outros bancos e até com o conhecimento da própria entidade patronal (é o que resulta do teor da acusação deduzida nos autos);
2. Numa segunda fase, e já depois de perdido o consentimento da entidade patronal para actuar da forma referida em 1., a utilização das contas dos clientes supra referidos permitia ao arguido ganhar algum tempo para resolver as situações de descoberto, através da obtenção de financiamento (é também o que resulta do teor da acusação deduzida nos autos);
3. Depois, numa terceira fase e já depois de ter perdido o controlo da situação, através da contratação de um financiamento, que permitiu ao arguido cobrir todos os descobertos bancários gerados com a sua actuação.
O que se acaba de deixar dito é, ressalvado o devido respeito por diferente opinião, suficiente para que se possa falar da presença na actuação do arguido da intenção de restituir que, como se disse, exclui o dolo de apropriação e, por conseguinte, o tipo subjectivo do crime de abuso de confiança.
Em conclusão poder-se-á dizer que de acordo com a prova produzida em sede de inquérito, e valorando ainda a prova produzida já nesta fase (o depoimento das testemunhas inquiridas em sede de instrução vai no sentido das declarações prestadas pelo arguido), não me parece objectivamente indiciada a prática do crime que vem imputado ao arguido.
O que se disse é, a meu ver, já suficiente para o provimento do requerimento de abertura da instrução, pois aplicando os princípios e conceitos supra enunciados ao caso sub judicie afastada está nos autos prova indiciária suficiente para ao arguido vir a ser aplicada uma pena - o que levará, consequentemente, à não pronúncia do mesmo
*
Isto posto, porque não se antevê em face da factualidade constante da douta acusação e dos indícios probatórios recolhidos, como provável uma futura condenação do arguido B………, por falta de elementos de prova quanto aos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime pelo qual vem acusado, decido não o pronunciar e, em consequência, ordeno o arquivamento dos autos. (…)»
III – 3.1.) No presente recurso o conceito de indícios suficientes não se mostra controvertido por nenhum dos intervenientes processuais, traduzindo assim a pacificidade da sua definição legal e doutrinal.
Dispõe com efeito o art. 308.º, n.º 1, do Código Processo Penal, que: «Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».
Ora ainda que legislador haja enunciado tal definição, em sede de acusação (cfr. art. 283.º, n.º 2, do mesmo diploma), considerando como tais, aqueles donde “(…) resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança”, a verdade é que, aquela enunciação mostra-se extensível à pronúncia por via do n.º 2 daquele mesmo art. 308.º, acima citado.
Também a Doutrina e a Jurisprudência, na procura de uma maior concretização e afinação daquele conceito, vêem encarecendo a ideia de que os indícios são suficientes, quando “a partir deles se crie a convicção de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime de que não o tenha cometido, ou que haja uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
É certo que, a mais das vezes, a tarefa da concordância prática das finalidades em jogo nesta fase processual (a realização da justiça, a descoberta da verdade material e a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento, tão rápido quanto possível, da paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade da norma violada), é mais fácil de enunciar do que concretizar.
Em todo o caso, haverá que ter em conta em tal actividade, na esteira da lição do Prof. Figueiredo Dias, “que o acto de levar alguém a julgamento representa já um ataque ao bom nome e reputação do acusado. Daí que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.”
III – 3.2.) Temos também como adquirida, neste momento, a ideia constante da pronúncia, de que no caso, não cabe a imputação ao recorrido da qualificativa decorrente do n.º 5 do art. 205.º do Cód. Penal.
Ou seja, pelos motivos já constantes do mesmo e que aqui não importa repetir, dada a transcrição a que se operou do despacho recorrido, em função da matéria de facto disponibilizada, não se pode considerar que o agente tenha “recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício emprego ou profissão”, ou de qualquer das outras qualidade aí referidas.
Sobram ainda no mesmo, diversas alusões doutrinárias feitas em torno do crime de abuso de confiança, que também não haverá que repristinar, sendo certo, no entanto, que a matéria envolvida na procura da solução a emprestar ao presente recurso está longe de ser simples em termos dogmáticos.
III – 3.3.) O primeira ponto que aqui gostaríamos de reter, diz respeito ao bem jurídico protegido pelo crime de abuso de confiança, matéria já considerada no despacho de não pronúncia, por reporte ao Comentário Conimbricense onde se afirma:
«Pese as identidades que ficam anotadas, o crime de abuso de confiança ganha autonomia e especificidade perante o crime de furto logo na contemplação do bem jurídico protegido, que é aqui exclusivamente a propriedade. Com efeito, no furto protege-se a propriedade, mas protege-se também e simultaneamente a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel, o que oferece, em definitivo, um carácter complexo ao objecto da tutela. Diferentemente, no abuso de confiança só a propriedade como tal é objecto de tutela e constitui assim integralmente o bem jurídico protegido.»
Este postulado afigura-se-nos importante a vários títulos: desde logo, pela definição do posicionamento do arguido em relação aos bens passíveis de apropriação, depois porque a especial natureza dos fundos existentes em depósito nos bancos poder contender com aquele conceito de propriedade, e finalmente, pela possibilidade assim deixada antevista de o agente poder violar a tal incolumidade da posse e ainda assim a sua conduta se manter atípica, por poder não importar a violação da propriedade de outrem.
III – 3.4.) Tal como o enuncia o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, invocando para isso a lição de Sofia Gouveia Pereira na sua obra Contrato de Abertura de Crédito Bancário, no depósito bancário, contrariamente ao que sucede no depósito mercantil, “ao receber os fundos do cliente, estes passam a ser propriedade do banco, o qual fica obrigado a restituir não esses mesmos fundos, mas outros tantos, desde que da mesma espécie”, passando a deles usufruir “como sendo próprios, tendo apenas de restituir idêntico montante”.
Porém, se este entendimento deixa clara a natureza alheia dos fundos em relação ao agente (não possível numa concepção meramente creditícia), ou se quiser, que a sua eventual detenção por parte daquele radicará em fonte juridicamente para ele não translativa da propriedade, ainda assim fica por resolver a questão da necessidade da existência de uma entrega para perfeição do tipo objectivo do crime de abuso de confiança.
Tal aspecto é encarecido a vários títulos no despacho recorrido, onde com base em citação do Comentário Conimbricense se consignou:
«Por quanto fica já exposto não deixa de ser em alguma medida equivoca a redução da essência do abuso de confiança à apropriação de coisa móvel alheia, sem quebra de posse ou detenção (supra § 1, e sobre a questão que se segue, entre nós e por último, PEDROSA MACHADO, RPCC 1997495 ss.). Sendo isto em si exacto, toma-se em todo o caso indispensável que o agente tenha detido a coisa (que a coisa «lhe tenha sido entregue por titulo não translativo da propriedade», como claramente se exprime o art. 205° 1). Assim, entra na própria conformação do bem jurídico um elemento novo, que serve inclusivamente para contrapor o abuso de confiança à mera apropriação indevida. Depara-se aqui com uma linha de pensamento e uma orientação legislativas de segura tradição francesa. Com efeito, já o C.P. napoleónico de 1810 (art. 408) era muito claro no sentido de que a apropriação só poderia ter lugar depois do recebimento da coisa) (…)».
Ora se na hipótese da quantia ter sido recebida fisicamente, por exemplo, pelo caixa bancário, a tal antecedência na posse é indiscutível, no que toca a um sub-gerente essa relação não é tão nítida.
Mas se poderá objectar que em relação aos demais funcionários de um banco, às situações de apropriação poderá restar sempre a tutela penal emprestada pela incriminação do furto, ainda assim, não somos em excluir os seus gerentes e sub-gerentes da possibilidade do cometimento do crime de abuso de confiança (“delito especial, concretamente na forma de delito de dever”).
Posto que se desconheça, em concreto, quais os poderes e deveres implicados por aquele cargo para o arguido, não custará aceitar em função do que a experiência comum assinala como sendo as responsabilidades decorrentes desse tipo de cargos, que existe em relação aos mesmos, uma especial relação de confiança e proximidade das quantias depositadas, ou talvez de uma forma mais correcta, dos valores depositados.
Porque podem conceder crédito ou autorizar todo um conjunto de operações que importam a alteração quantitativa ou qualitativa das quantias depositadas (tendo em vista, por exemplo, assegurar a respectiva maior rentabilidade), a responsabilidade que lhes é atribuída em relação a tais depósitos implica para os mesmos a manutenção de uma particular posição funcional.
Numa certa medida, o dinheiro do banco está-lhes especialmente entregue para que o conservem e frutifiquem.
Ora como o refere o Prof. Figueiredo Dias no Comentário, quando na decomposição dos elementos objectivos do ilícito se pronuncia sobre a conduta típica deste crime, se é certo que «(…) se toma necessário ao abuso de confiança que, no momento da apropriação, o agente tivesse já a posse ou a detenção da coisa, mas não a propriedade», também é verdade que «(…) os conceitos de posse ou detenção devem ser entendidos mais latamente do que aquilo que é o seu exacto conteúdo no direito civil, de forma a fazer-se equivaler ao recebimento de uma coisa móvel constitutivo de uma relação fática de domínio sobre ela».
É o que para nós sucede na situação ora ajuizada.
III – 3.5.) Como vimos, em face da deterioração da situação económica e familiar do arguido, designadamente pelas dificuldades emergentes da necessidade de fazer face aos pagamentos a credores e fornecedores de um estabelecimento que explorava com a sua mulher, aquele, desde o início de 2004, passou a utilizar as funções de sub-gerente que na altura exercia numa agência da G……….., em Paredes, para de alguma forma os “solucionar”.
Para o efeito, emitia cheques pré-datados que uma vez vencidos davam origem a um descoberto dado que não tinham provisão. Para regularizar essa situação, assinava outros cheques de outros bancos que depositava na conta dos primeiros.
“Através deste procedimento o arguido ganhava dois ou três dias para tentar resolver a situação através da atribuição de financiamentos.”
Porém, após a G…….. ter deixado de aceitar esses depósitos em valor, o arguido, de igual forma, recorrendo àquele cargo, decidiu utilizar contas de clientes particulares da agência onde trabalhava para depósito de cheques sacados por D………, com recurso à utilização de ATS's instaladas na mesma.
Assim, o arguido efectuava o levantamento dos montantes em numerário ou através da emissão de cheques sobre o país, permitindo o aprovisionamento das contas sediadas no E……… e no F……….. .
Desta forma, o arguido utilizando aquelas contas de clientes particulares, iniciou um processo de rotação de valores que deu origem a um descoberto na ordem dos € 180.000,00.
A este propósito o despacho recorrido assinala três momentos:
“Numa primeira fase a situação de descoberto bancário era regularizada passado dois ou três dias, com a emissão de outros cheques de outros bancos e até com o conhecimento da própria entidade patronal (é o que resulta do teor da acusação deduzida nos autos);
Numa segunda fase, e já depois de perdido o consentimento da entidade patronal para actuar da forma referida em 1., a utilização das contas dos clientes supra referidos permitia ao arguido ganhar algum tempo para resolver as situações de descoberto, através da obtenção de financiamento (é também o que resulta do teor da acusação deduzida nos autos);
Depois, numa terceira fase e já depois de ter perdido o controlo da situação, através da contratação de um financiamento, que permitiu ao arguido cobrir todos os descobertos bancários gerados com a sua actuação.”
III – 3.6.) O Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto ainda que entendendo verificar-se uma apropriação de quantias por parte do arguido nas diversas situações supra referidas, concede em como nos dois primeiros momentos não existiu crime, pois que a intenção de restituir exclui o dolo de apropriação.
No que concerne àquela primeira proposição, em face da matéria de facto indiciada, preferiríamos antes mencionar, que o arguido nas circunstâncias indicadas dispôs indevidamente em seu proveito de valores que lhe estavam confiados.
A exclusão do dolo fundada na intenção de restituir foi defendida entre nós pelo Prof. Eduardo Correia, na esteira da doutrina francesa, italiana “e mesmo alemã”, colhendo o aplauso do Prof. Figueiredo Dias, tendo “uma particular importância relativamente a coisas recebidas a titulo de depósito ou análogas” (obra citada pág.ª 108.).
No seu estudo “Tutela Penal de La Propiedad Y Delitos de Apropriación” – PPU, S.A. – Barcelona, 1994, o Prof. Norberto De La Mata Barranco faz estudo aprofundado por referência à doutrina espanhola e alemã, no que respeita ao problema da utilização temporal de quantias em dinheiro não pertencentes ao sujeito activo.
E se vem a assinalar a existência de autores (como Sainz-Pardo), para os quais em geral “a apropriação temporária de coisas fungíveis representa uma verdadeira apropriação em que a restituição posterior do tomado em nada afecta a plena realização do delito, que fica consumado com o acto de disposição das coisas como próprias” ainda assim acode-lhe sublinhar, que mesmo para quem defenda essa corrente, haverá que distinguir os actos de apropriação dos meros usos.
Isto não só porque a intenção de restituir exclui o ânimo “rem sibi habendi”, como também neste último caso a acção não poder ser considerada como uma apropriação.
Daí que aquele Autor ao erigir a ausência de apropriação definitiva como critério que permite negar a tipicidade daquelas condutas, faz ressaltar a capacidade e a vontade de restituir como elementos capazes de operar a distinção entre a utilização temporal e apropriação definitiva.
Posto que estes elementos devam caminhar juntos, a verdade é que, naquelas duas primeiras situações, a sua atipicidade não se mostra questionada neste Tribunal pelo Ministério Público, ainda que por razões não totalmente coincidentes.
III – 3.7.) Convergem, todavia, no sublinhar da maior fragilidade da terceira situação elencada.
A “rotação de cheques,” como é sabido, tendo sido feita com títulos sem provisão, produz uma aparente disponibilidade de fundos e solvabilidade numa conta bancária, mas se não for preenchida a curto prazo, traduz para alguém um prejuízo efectivo.
Neste tipo de situações é frequente haver um efeito de “espiral negativo” e se o arguido na realidade chegou a um ponto de descontrole financeiro, poder-se-á afirmar que ainda que tenha vontade de devolver (como o arguido Babo o referiu nas suas primeiras declarações), poderá objectivamente não ter condições para o fazer.
Donde, o poder-se legitimamente deduzir uma intenção da apropriação a partir do momento em que o agente tenha previsto não poder restituir os valores que dispôs, caso houvesse uma reclamação por quem os houvesse de exigir.
III – 3.8.) A este propósito encarece-se a circunstância de a restituição operada perante a G……… só se ter efectuado em razão da detecção da situação realizada por aquela instituição de crédito, e como tal, estando o crime nessa altura já consumado, tal devolução só valer em termos de atenuação da pena que não da “exclusão da culpa”.
Com efeito, em 21/07/2004, o recorrido contratou um financiamento bancário subscrito com o aval dos seus irmãos no valor de 180.000 € e desse modo cobriu o montante apresentado a “descoberto”.
Donde o Sr. Procurador-Geral Adjunto afirmar, que “se não tem ocorrido tal fiscalização na G……….., tudo leva a crer que o arguido não mudaria o trajecto que vinha seguindo e não restituiria voluntariamente – até porque não tinha os fundos necessários para o efeito e porque na qualidade de sub-gerente da Agência, e gestor de contas particulares de depósitos tinha os meios e as ferramentas para dar continuidade ao estratagema delituoso que havia montado em proveito próprio”.
Embora a experiência comum, na realidade, apoie este tipo de asserção, não a temos ainda assim como suficientemente consolidada para justificar a pronúncia do arguido.
A tal consumação não se apresenta pois tão linear, nem a acusação recorta a matéria de facto de molde a evidenciar aquela “espiral negativa”.
III – 3.9.) Com efeito, se se aceita que houve duas fases em que a intenção de restituir existiu, então não será fácil definir o momento em que aquele propósito apropriativo se consolidou, sobretudo tendo em conta que a actuação não se desenvolveu em balizas temporais muito latas (vai de inícios de 2004 a início de Julho do mesmo ano), e algumas das actuações reportadas (v. g. as envolvendo as contas de H………. e I…………, em que expressamente se reconhece que houve consentimento do respectivo depositante naquela rotação) se situam na parte final daquele período – argumento utilizado para a exclusão do crime no segundo momento reportado no despacho recorrido …
Por outro lado, ainda que alicerçada em elementos de consideração objectiva, a verdade é que, a conclusão pretendida pelo Ministério Público, tal como pela pena do seu Exm.º Procurador-Geral Adjunto se reconhece, não prescinde, para a sua evidenciação, da necessidade de recorrer a “um juízo imposto pela experiência comum”.
Do lado subjectivo, o arguido nas suas declarações afirmou “que nunca foi intenção do declarante subtrair qualquer quantia em dinheiro mas sim utilizar temporariamente essa quantia em dinheiro para fazer face às dificuldades que se lhe deparavam. (…) Os pagamentos que mandava efectuar sobre cheques seus eram sempre feitos na esperança de o declarante conseguir financiamento para pagamento dos cheques provisionados”.
É uma afirmação que valerá o que a esse respeito se lhe entender atribuir. Todavia, competindo à acusação fazer a prova dos factos delitivos imputados, a verdade é que o arguido, perante a Caixa, sempre se predispôs ao seu reembolso.
Ainda que se questione se com bens próprios ou alheios, a verdade é que aparentemente conseguiu-o.
Ora como o Autor espanhol a que vimos fazendo vem a defender, ainda que se deva distinguir, dogmaticamente, os casos “em que o sujeito activo actua com “capacidade de restituição” no momento em que leva a cabo a dinâmica comissiva de apossamento ou apropriação, daqueles outros em que o sujeito carece de fundos em esse mesmo momento mas conta com a possibilidade – hipotética mas fundada em dados objectivos – de poder fazer efectiva a devolução do utilizado num breve período de tempo, a verdade é que, ainda assim, acaba por reconhecer que para ambos é possível propor um tratamento similar.
Ou seja, pese embora a sua situação económica difícil, em termos de liquidez, patenteada pelo arguido, não está concludentemente afastada a possibilidade de ainda assim aquele conseguir repor o indevidamente utilizado.
Dir-se-á: assim aconteceu, porque exactamente a situação foi descoberta precocemente.
Pode, com efeito, assim ter acontecido. Em todo caso, não remanesceu prejuízo que autonomamente haja que reparar.
III – 3.10.) Dito por outras palavras, sem embargo de reconhecer a valia dos argumentos suscitados no recurso pelo Ministério Público, ainda assim entendemos que a possibilidade de em julgamento a acusação vir a proceder não se mostram claramente superiores à possibilidade da verificação da situação precisamente inversa.
Nessa conformidade, não será de conceder na pronúncia.
Assim:
IV – Decisão:
Nos termos e com os fundamentos indicados, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas.
Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário.
Porto, 8 de Novembro de 2006
Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento